quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Marxismo e alienação: contribuição para um estudo do conceito marxista de alienação (Parte I), de Leandro Konder

Editora: Expressão Popular

ISBN: 978-85-7743-120-5

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 256

Sinopse: Este é o primeiro livro de Leandro Konder, publicado em 1965. Sua importância histórica é dupla: de uma parte, enfrenta uma temática até então negligenciada pelos estudiosos brasileiros – o conceito marxista de alienação; de outra maneira, assinala uma inflexão na reflexão filosófica do marxismo no Brasil, ao tratar da obra de Marx num registro decididamente antidogmático.


“Assim – e apesar da discrepância de perspectivas já referida – parece-nos ouvir um eco do pensamento do jovem Marx dos Manuscritos de 1844 naquilo que Lukács escreveu em algumas passagens de História e consciência de classe a respeito do fenômeno da reificação: “Neste fenômeno estrutural fundamental, é preciso reter, antes de tudo, que ele faz com que ao homem se oponha a sua própria atividade, o seu próprio trabalho, como algo objetivo, independente dele, como algo que o domina através de leis próprias, estranhas ao homem”. Nesta mesma linha de interpretação, Lukács procura constantemente caracterizar a reificação como um processo mediante o qual uma determinada relação concreta entre homens é dissimulada por uma “objetividade ilusória” e assume a feição de “coisa”. (Coisa em latim é res: daí reificação).

No curso deste estudo, teremos ocasião de recorrer a observações do jovem Lukács (o Lukács de 1922) que nos possibilitarão, talvez, uma visão mais clara de como coincidem bastante a reificação lukacsiana e o conceito de alienação usado pelo próprio Marx, para o qual aquilo que é criação do homem se afasta (aliena) dele, torna-se-lhe estranho, volta-se contra ele.

Na acepção marxista, por conseguinte, a alienação é um fenômeno que deve ser entendido a partir da atividade criadora do homem, nas condições em que ela se processa. Deve ser entendido, sobretudo, a partir daquela atividade que distingue o homem de todos os outros animais, isto é, daquela atividade através da qual o homem produz os seus meios de vida e se cria a si mesmo: o trabalho humano.

Esta concepção do homem como autocriação, como ser que se produz a si mesmo pelo trabalho humano, é um dos fundamentos essenciais da filosofia marxista. O padre Chambre chega a admitir que, a partir dela, não há como deixar de aceitar a teoria marxista da luta de classes: “se o homem fosse apenas atividade criadora e produtora de si mesmo e do mundo que o cerca, é certo que toda apropriação privada seria fonte de violência e dominação do homem sobre o homem” (De Marx a Mao Tse-tung).17 Para um cristão, como Chambre, a ideia de que o homem se faz a si mesmo e humaniza o mundo pelo trabalho, eliminando toda transcendência e reduzindo o homem à história, acaba por sacrificar-lhe a espiritualidade; rebaixando-o à condição animal. De mais a mais, o cristão vê na autossuficiência do homem (tal como os marxistas o concebem) uma manifestação do pecado do orgulho.

Mas, voltando à concepção marxista do trabalho humano, vejamos como o próprio Marx coloca a questão: “certamente o animal também produz – escreve Marx nos Manuscritos de 1844. Ele constrói para seu uso um ninho, habitações do tipo das da abelha etc. Mas só produz aquilo de que necessita imediatamente para ele mesmo ou para a sua progênie. Produz de modo limitado, ao passo que o homem produz universalmente. O animal só produz sob o imperativo da necessidade física imediata, enquanto o homem produz mesmo quando se acha livre da necessidade física; e não produz verdadeiramente como homem senão quando se acha livre desta necessidade”.

Em O capital, esta observação acerca da especificidade humana do trabalho do homem é retomada: A abelha, com a estrutura das células de cera, ultrapassa em habilidade muitos arquitetos. Mas o que distingue o trabalho do arquiteto mais bisonho da atividade da mais hábil das abelhas é o fato de que, antes de construir a célula na colmeia, o arquiteto a constrói na sua cabeça. O resultado a que chega o trabalho preexiste idealmente na cabeça do trabalhador”.

Sendo o trabalho humano a atividade através da qual o homem se produz a si mesmo, sendo a atividade produtiva do homem uma atividade humanizadora por natureza, Marx preocupou-se em saber por que e como se haviam criado condições nas quais o trabalho, de condição natural para a realização do homem, chegara a se tornar o seu algoz.

Como foi possível que o trabalho produtivo, do qual resultaram todas as inestimáveis conquistas tecnológicas em que se baseia o funcionamento do mundo contemporâneo, tenha chegado a se apresentar diante do trabalhador – precisamente diante do trabalhador – como “uma atividade que é sofrimento, uma força que é impotência, uma procriação que é castração?” (Manuscritos). Como foi possível que a realização do trabalho surgisse, afinal, a economia política, como desrealização do operário? (idem).

Num primeiro momento, Marx constata a alienação do trabalho em relação ao trabalhador. Ele verifica que numa sociedade voltada para a produção de mercadorias se manifesta uma cisão entre o produto e o produtor; e o mundo do produto – da mercadoria – passa a impor as suas exigências e os seus valores ao mundo dos produtores. “Quanto mais o trabalhador produz mercadorias, mais se transforma a si mesmo em mercadoria envilecida. A desvalorização do homem aumenta na razão direta da valorização dos objetos” (Manuscritos).

“O esbulho do operário em proveito do seu produto significa não que o seu trabalho se tornou objeto, adquirindo existência exterior a ele, mas que este trabalho se torna estranho a ele e se ergue diante dele como potência autônoma” (Manuscritos).

Mais adiante, Marx se pergunta por que o produto do trabalho se aliena do trabalhador e conclui que isso ocorre porque tal produto, antes mesmo da realização do trabalho, pertence a outrem que não o trabalhador. E é levado a considerar o sistema de propriedade que promove a desapropriação do trabalhador em relação ao produto do trabalho.

Por fim, do exame das formas de organização social baseadas na propriedade privada e no sistema de produção de mercadorias, Marx conclui que “tudo que aparece no trabalhador como atividade de alienação aparece no não trabalhador como condição de alienação” (Manuscritos), de modo que a alienação, dentro de uma sociedade dividida em classes, acaba por atingir todos os indivíduos que a compõem, tanto explorados quanto exploradores.

Para aprofundar o seu exame, Marx veio a empreender a exaustiva investigação de O capital.

Marx estava seguro de ter encontrado na alienação econômica a raiz do fenômeno global da alienação. Ele sabia que, antes de poder fazer política, ciência, religião etc., os homens precisam comer, beber, vestir e ter um teto para morar. Sabia que, antes do trabalho intelectual típico, o homem tem de realizar o trabalho material de que depende a sua subsistência.

Jamais lhe ocorreu, porém, reduzir o fenômeno da alienação, nas suas múltiplas formas, aspectos e dimensões, à alienação econômica, tal como jamais lhe ocorreu reduzir todo o trabalho humano ao trabalho diretamente empenhado na produção econômica.

A pluridimensionalidade é fundamental na alienação, tal como o fenômeno é visto pelos marxistas. É isto que o padre Calvez parece não ter compreendido quando, na sua obra O pensamento de Karl Marx,18 estuda a teoria marxista da alienação com base em um esquema reducionista, fundado na seguinte convicção: “As categorias encadeiam-se logicamente e supõem-se umas às outras pela redução sucessiva das diversas alienações, desde a alienação religiosa até a alienação econômica”. Com tal esquema, a alienação econômica torna-se a causa exclusiva da qual as alienações ideológicas não passariam de meros efeitos, subprodutos, consequências inertes e sem vida própria.

Também por autores marxistas, salvo engano da nossa parte, este ponto – que se refere à pluridimensionalidade da alienação – não tem sido compreendido com clareza. Não que se negue à alienação uma feição política, uma feição religiosa, uma feição filosófica etc. Mas o que ocorre, em alguns casos, é que o mecanismo das alienações extraeconômicas aparece, nas análises de certos marxistas, como um mecanismo epifenomênico: os movimentos em que se consubstanciam as alienações ideológicas se apresentam como destituídos daquela autonomia relativa a que se acha ligada a especificidade dessas alienações.

Este equívoco traz, como consequência, uma subestimação do estudo das formas particulares de que se revestem as alienações ideológicas.

17 De Marx a Mao Tse-tung, Henri CHAMBRE, trad. Henrique Cândido de Lima Vaz S, J., ed. Duas Cidades, São Paulo.

18 La Pensée de Karl Marx, Jean-Yves CALVEZ, éd. du Seuil, Paris. Edição em português (2 volumes) pela Livraria Tavares Martins, Porto, trad, Agostinho Veloso.

 

 

“A assimilação do marxismo a uma perspectiva economicista se choca, desde logo, com a expressão dada pelo próprio Marx às suas ideias.

Examinando o texto dos Manuscritos de 1844, Henri Lefebvre encontrou o fenômeno da alienação ali descrito sob diversas rubricas: a) a alienação do trabalhador reduzido à condição de objeto pela força estranha que se ergue diante dele no seu trabalho; b) a alienação da atividade produtora, isto é, do trabalho, que sofre uma cisão interna e se subdivide; c) a alienação do homem em relação à espécie humana, a redução do humano à satisfação das necessidades animais, com sacrifício das necessidades especificamente humanas; d) a alienação do homem em relação à natureza (Critique de la vie quotidienne, Avant-Propos de la 2eme Édition).20

O que evidencia, segundo expressão de Lefebvre, o “caráter poliscópico” da alienação, tal como Marx a analisou.

De acordo com a concepção marxista, a alienação resulta da divisão do trabalho. Refere-se, por conseguinte, a um fenômeno primordialmente econômico. Este primado do econômico, entretanto, não deriva de nenhuma lei eterna ou de qualquer imutável mandamento divino ou maldição demoníaca.

Como escreve Vieira Pinto, “as relações entre os homens são mediatizadas pelas coisas, e daí provém a possibilidade de que o domínio de um pequeno grupo sobre extensas massas se exerça mediante a posse, por esse grupo, de objetos, por exemplo, as máquinas de produção industrial, que afetam vitalmente a existência das massas” (Consciência e realidade nacional,21 tomo II). Acontece, porém, que o que aqui está dado é apenas a possibilidade abstrata de que o domínio se venha a estabelecer. Uma possibilidade que só se concretiza dentro de determinadas condições históricas.

Não foi por acaso que um marxista como Gramsci chegou a defender a tese de que na expressão “materialismo histórico” o acento deve recair sobre o segundo termo e não sobre o primeiro... Adotada a sugestão gramsciana, ficaria enfatizado o caráter de “historicismo absoluto” do marxismo.

O materialismo histórico é constatativo e não normativo. Não prescreve o primado do econômico para todo o sempre; limita-se a tornar inteligível o primado do econômico tal como ele vem ocorrendo até os nossos dias e tal como ele se manifesta na realidade presente.

Os homens não estão inapelavelmente condenados a viver sob o primado do econômico. Do contrário, não teria sentido o “salto do reino da necessidade para o reino da liberdade” a que se referem Marx e Engels, quando querem caracterizar o fim da pré-história da humanidade e o acesso a uma sociedade comunista.

O que tem feito que a vida social, de um ou de outro modo, venha girando sempre, através da história, em torno da economia – o que tem feito com que a economia venha sendo sempre “a espinha dorsal da sociedade” – é aquilo a que Sartre, na sua recente Critique de la raison dialectique,22 dá o nome de rareté: a pobreza em que ainda se encontra o desenvolvimento da dominação do homem sobre o seu mundo. O relativo atraso, ainda não superado pela humanidade como um todo. A defasagem que ainda subsiste entre as riquezas controladas pelos homens e as exigências colocadas para um desfrute seguro, verdadeiramente humano e geral.

“No curso de toda a história passada – diz Lucien Goldmann – seja por causa da indigência das sociedades primitivas, seja por causa da divisão em classes das sociedades ulteriores, os homens foram obrigados a consagrar a maior parte das atividades deles a resolver os problemas concernentes à produção e à distribuição das riquezas materiais, isto é, os problemas habitualmente chamados de problemas econômicos” (Recherches dialectiques).23

Dentro do quadro de pobreza em que se vem desenrolando a história da humanidade, a prioridade biológica da satisfação das necessidades materiais em relação à satisfação das necessidades ditas espirituais tem a sua réplica, na vida social, em uma subordinação (não absoluta, mas real) das superestruturas ideológicas à infraestrutura econômica.

O método dialético aplicado à história da humanidade por Marx e Engels leva à constatação de que, no movimento da história, tal como ele vem sendo realizado pelos homens, se manifesta uma lógica interna, um encadeamento necessário na sucessão das grandes transformações.

A necessidade histórica, entretanto, não é e nunca foi uma força independente da vontade dos homens. Os homens – os indivíduos agem, cada um perseguindo os seus próprios fins. As ações individuais, todavia, na medida em que alcançam repercussão na história coletiva, não são puramente casuais, arbitrárias, porque partem de desafios concretos, objetivos, colocados pela situação material em que vivem os homens de cada época, de cada povo, de cada classe social.

“Os homens – escreveu Marx numa carta a Paul Annenkov – não escolhem livremente as suas forças produtivas, que constituem a base de toda a sua história, pois toda força produtiva é uma força adquirida, é o produto de uma atividade anterior. O simples fato de que toda geração nova encontre diante dela forças produtivas adquiridas pela geração anterior, que lhe servem de matéria-prima para a nova produção, cria um encadeamento na história dos homens”.

Cada geração encontra, legada pela geração anterior, determinada estrutura social organizada, determinado estatuto de propriedade, determinadas relações sociais de produção. Encontra, igualmente, determinadas forças sociais produtivas, desenvolvidas até um certo ponto que foi alcançado no tempo da geração precedente. Cumpre-lhe, como tarefa de vital importância, prosseguir no desenvolvimento das forças sociais produtivas, a fim de assegurar melhores condições materiais de existência e levar avante o progresso tecnológico, a dominação da natureza pela humanidade.

Ocorre, entretanto, que o desenvolvimento das forças sociais produtivas não acarreta uma evolução automática das formas de organização social e das relações sociais de produção instituídas com base em um determinado estatuto de propriedade. Para melhor defender os seus privilégios de proprietários, a partir de certo momento (quando as relações de produção vigentes não comportam mais um eficaz atendimento às exigências criadas pelo desenvolvimento das forças sociais produtivas), os beneficiários deste determinado estatuto de propriedade começam a agir de maneira antiprogressista. E entram em choque com as classes e camadas sociais mais diretamente interessadas no progresso.

Ingressamos, assim, numa fase de crise institucional, em que se manifesta um poderoso conflito de interesses entre proprietários e não proprietários. Ou, para ser mais exato, entre beneficiários de uma determinada forma de propriedade e não beneficiários, espoliados.

A este fenômeno é que se referia o ex-presidente dos Estados Unidos da América do Norte, James Madison. quando escrevia: “Proprietários e não proprietários sempre formaram interesses diversos dentro da sociedade” (The federalist, nº 10, 1787, citado por Ossowski em Class structure in the social consciousness).24

É o fenômeno da luta de classes. Não se trata de uma invenção de Marx e Engels: estes se limitaram à formulação de princípios gerais da interpretação dos fatos em que o fenômeno se apresentava, fatos que, de resto, já haviam sido registrados por outros autores (como, por exemplo, Babeuf).

A interpretação marxista da luta de classes, contudo, é a primeira a explicar o fenômeno em suas reais dimensões; graças a ela, estamos em condições de compreender que, dentro de uma sociedade dividida em classes, “a prática individual, façamos o que fizermos, realiza em cada um o ser de classe” (Sartre, Critique de la raison dialectique). Graças a ela, podemos afirmar que, “cada vez que se trata de achar a infraestrutura de uma filosofia, de uma corrente literária ou artística, chegamos, não a uma geração, a uma nação ou a uma igreja, mas a uma classe social e às suas relações com a sociedade” (Lucien Goldmann, Sciences humaines et Philosophie).25

A partir da convicção de que o ser condiciona o pensar, Marx e Engels aferiram a extraordinária importância da maneira de ser condicionada pelo tipo particular de inserção do indivíduo dentro da estrutura social que é a sua pertinência a uma determinada classe social. É evidente que Marx e Engels – como pensadores dialéticos que eram – jamais conceberam as relações entre o ser e o pensar como relações de causa e efeito puramente unívocas, e sim como interações (a anterioridade do ser em relação ao pensar devendo ser encarada como um momento, como um dado histórico concreto, e não como uma lei metafísica). É evidente, também, que Marx e Engels não pretenderam reduzir a riqueza da psicologia individual e a autonomia do movimento da consciência a um protótipo abstrato de consciência de classe.

Coube-lhes, porém, vibrar um autêntico golpe de morte nas análises que supunham ser possível captar o fundamental de uma mentalidade, quer no caso de um indivíduo, quer no caso de uma coletividade, sem partir do estudo do seu relacionamento essencial com as condições concretas em que vivem o indivíduo ou a coletividade dados.

Munidos da aparelhagem conceitual elaborada pelo marxismo, ficamos sabendo que, quando quisermos compreender as concepções filosóficas das sociedades antigas, cujo sistema de produção era baseado na escravidão, não podemos nos deter no estudo dos textos dos filósofos (embora tal estudo seja imprescindível), mas precisaremos reconstituir o quadro geral da vida material que eles tinham e estabelecer a ligação existente entre as ideias e o uso social que lhes era dado; precisaremos pesquisar as relações que se manifestavam na prática entre as teses filosóficas e as classes interessadas em obstar a transformação da estrutura social existente, de um lado, ou as classes empenhadas nesta transformação, de outro.

Exemplificando: no caso da cultura grega do século 5 antes da nossa era, precisaremos investigar as relações existentes entre as ideias de Platão e os interesses da nobreza feudal conservadora; as relações existentes entre o materialismo de Demócrito e a burguesia comercial progressista. (Os escravos, como é sabido, por força das condições a que estavam reduzidos, não tiveram expressão ideológica própria).

Com isso, não estaremos reduzindo a filosofia de Platão ao seu conteúdo mais estritamente político (embora alguns autores marxistas incorram em tal equívoco), mas estaremos lançando nova luz sobre o background em que foram empreendidas as construções platônicas.

De qualquer modo, tanto no caso de Platão, no século 5 antes da nossa era, como no caso de outros grandes filósofos, de outros séculos, verificamos que já não podemos aprofundar a nossa compreensão das ideias e concepções gerais se nos mantemos exclusivamente no terreno filosófico: a elaboração das teorias, por mais abstratas que sejam, é uma atividade que possui íntima conexão com outros aspectos da atividade global humana, isto é, com a atividade econômica, política e mundana, em geral.

E, assim, em toda atividade humana, através da história, constatamos a presença e os efeitos daquilo que Lucien Goldmann intitulou “perspectiva parcial inevitável” (Le Dieu caché) 26 – a presença limitadora de uma consciência de classe condenada a não poder ser autenticamente universal (porque precisamente é uma consciência de classe). O ser de classe, como um modo de ser particular, apresenta aspectos de oposição ao ser universal humano.

Chegamos, então, a ter diante de nós a divisão da sociedade em classes como problema. Nosso problema não é mais, pura e simplesmente, a derrubada de uma determinada classe e do sistema social que ela sanciona; nosso problema é o da própria existência de classes sociais, é o da própria divisão da sociedade em classes. Por que existe tal divisão? Como chegou ela a produzir efeitos tão profundos como os que notamos hoje?

De um lado, oferece-nos Nietzsche a visão trágica e irracionalista de uma explicação que eterniza a divisão e só nos pede coragem para aceitá-la como uma situação que jamais poderá ser superada por nenhuma ação histórica. Escreve Nietzsche: “Uma cultura superior só pode surgir onde existam duas castas distintas no seio da sociedade: a dos trabalhadores e a dos ociosos, capacitados para o verdadeiro desfrute do seu ócio. Ou, para dizê-lo com palavras mais fortes: a casta do trabalho forçado e a casta do trabalho livre” (Vontade de potência).27

A visão nietzscheana, porém, possui uma implicação política que salta aos olhos: legitimando a divisão em classes na teoria, ela ajuda a mantê-la na prática, lançando no descrédito, a priori, qualquer iniciativa no sentido de dar-lhe fim. Com isso, presta valioso serviço às classes dominantes.

De outro lado, abre-se a perspectiva historicista, que nos leva a ver a realidade como um processo em que nada permanece estático – um permanente processo de transformação de todas as coisas.

A adesão a esta perspectiva nos protege contra a alienação que consistiria em darmos cobertura aos interesses das classes conservadoras, empenhadas em manter inalterada a situação de que são beneficiárias, sob a ilusão de estarmos servindo unicamente à ciência.

É uma adesão que nos obriga, entretanto, a um esforço no sentido de analisarmos concretamente as condições em que se geraram os fenômenos postos diante de nós. Que nos obriga, no caso de que estamos tratando, a uma consideração das origens históricas da divisão da sociedade em classes sociais. Ou, mais exatamente, a uma consideração da origem histórica da alienação.

20 Critique de la vie quotidienne, Henri LEFEBVRE, éd. L’Arche, Paris, 1 ° volume: 1958. 2° volume: 1961.

21 Consciência e realidade nacional, Álvaro VIEIRA PINTO, ed. Iseb, Rio de Janeiro.

22 Crítique de la raison dialectique, SARTRE, éd. Gallimard, Paris.

23 Recherches dialectíques, L. GOLDMANN, éd. Gallimard, Paris.

24 Class structure in the social consciousness, S. OSSOWSKI, Roudedge & Kegan Paul, London. Edição em português pela ed. Zahar, Rio de Janeiro.

25 Sciences humaines et Philosophie, L. Goldmann, éd. Presses Universitaires de France, Paris.

26 Le Dieu caché, Lucien GOLDMANN, éd. Gallimard, Paris.

27 Vontade de potência, NIETZSCHE, ed. Livraria do Globo, Porto Alegre, trad. Mário Ferreira dos Santos.

 

 

Apesar dos avanços realizados pelas pesquisas no campo da arqueologia e das mais recentes conclusões a que chegou a antropologia, não temos elementos para reconstituir o quadro das condições concretas em que viviam os homens do paleolítico, senão de maneira muito vaga e fragmentária. Podemos afirmar com segurança, todavia, que aqueles homens estavam bem mais próximos da generalidade dos animais desenvolvidos do que dos homens de hoje.

A partir de que ponto, na sua evolução, a consciência pode ser considerada especificamente humana? Em que momento se teria efetivamente humanizado a consciência do homem? Esta é uma questão difícil de ser respondida, no atual estágio alcançado pelo desenvolvimento dos nossos conhecimentos.

O cientista inglês Gordon Childe sugere que a conquista do domínio do fogo poderia ser tomada como sendo o marco decisivo da humanização do animal-homem: “Alimentando e apagando o fogo, transportando -o, servindo-se dele, o homem estava dando um passo revolucionário que o afastava do comportamento dos outros animais. Estava afirmando a humanidade e fazendo-se a si próprio” (Man makes himself).30 O domínio do fogo abriu para os homens possibilidades de desenvolvimento vedadas a qualquer outra espécie animal.

Podemos conjecturar, também, acerca da elaboração da linguagem articulada e da significação de mais esta conquista. Engels observa que ela há de ter decorrido do próprio desenvolvimento do trabalho. Multiplicando os casos de assistência mútua e de cooperação necessária, o desenvolvimento do trabalho teria criado condições nas quais os homens tinham necessidade de se dizer alguma coisa; e a elaboração da linguagem articulada veio satisfazer esta exigência. (Cf. Dialética da natureza).31

Uma coisa é certa: uma vez elaborada, a linguagem articulada, por sua vez, possibilitou desenvolvimento muito maior do intelecto humano. A utilização da linguagem articulada já não permite dúvida: estamos diante de um ser – o homem que é dotado do poder de reflexão. Um ser capaz de refletir a natureza e de refletir sobre ela, isto é, um ser que já não pertence inteiramente à natureza, que já não é inteiramente natural, porque precisamente já é humano.

28 A origem da família, da propriedade privada e do Estado, F. ENGELS, ed. Vitória, Rio de Janeiro.

29 La sociedad primitiva, MORGAN, ed. Lautaro, Buenos Aires.30 Man makes himself, Gordon CHILDE, The Rationalist Press Association, London.

30 Man makes himself, Gordon CHILDE, The Rationalist Press Association, London.

31 Dialectique de la nature, ENGELS, trad. Emile Bottigelli, éd. Sodales, Paris.

Um comentário:

ANSEMOCHI disse...

Eu creio na persistência em aperfeiçoar os modelos propostos buscando alterar a realidade cruel e injusta, sem violência, com inteligência e tecnologia, tudo pra ontem!