quinta-feira, 25 de junho de 2020

Miséria da filosofia (Boitempo: Parte II) – Karl Marx

Editora: Boitempo
Tradução e apresentação: José Paulo Netto
ISBN: 978-85-7559-567-1
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 232
Sinopse: Ver Parte I


“Não se faz história com fórmulas.”


“Uma condição das mais indispensáveis para a formação da indústria manufatureira foi a acumulação dos capitais, facilitada pela descoberta da América e pela introdução de seus metais preciosos.
Está suficientemente provado que o aumento dos meios de troca teve por consequência, de um lado, a depreciação dos salários e das rendas fundiárias e, de outro, o crescimento dos lucros industriais. Em outros termos: enquanto a classe dos proprietários e a classe dos trabalhadores, os senhores feudais e o povo, decaíam, ascendia a classe dos capitalistas, a burguesia,
Outras circunstâncias concorreram simultaneamente para o desenvolvimento da indústria manufatureira: o aumento de mercadorias em circulação depois que o comércio penetra nas Índias Orientais pelo Cabo da Boa Esperança, o regime colonial, o desenvolvimento do comércio marítimo.
Um outro ponto que ainda não foi devidamente apreciado na história da indústria manufatureira foi a liberação de numerosos séquitos de senhores feudais, cujos membros subalternos se tornaram vagabundos antes de entrar para as fábricas. A criação da fábrica foi precedida por uma vagabundagem quase universal nos séculos XV e XVI. A fábrica encontrou ainda um forte apoio entre os numerosos camponeses que, expulsos do campo pela transformação da terra em pasto e pelos progressos agrícolas que requeriam menos braços para o cultivo, afluíram às cidades durante séculos inteiros*.
A ampliação do mercado, a acumulação de capitais, as modificações verificadas na posição social das classes, uma multidão de pessoas privadas de suas fontes de renda, eis as condições históricas para a formação da manufatura. Não foram, como diz o sr. Proudhon, estipulações amistosas entre iguais que reuniram os homens na fábrica. A manufatura nem sequer nasceu no seio das antigas corporações. Foi o comerciante que se tornou o chefe da oficina moderna, não o antigo mestre das corporações. Em quase todos os lugares, houve uma luta encarniçada entre a manufatura e os ofícios.”


“Há até mesmo fases na vida econômica dos povos modernos em que todo o mundo é tomado de uma espécie de vertigem para lucrar sem produzir. Essa vertigem de especulação, que retorna periodicamente, desnuda o verdadeiro caráter da concorrência, que procura escapar à necessidade da emulação industrial.
Se dissessem a um artesão do século XIV que os privilégios e toda a organização feudal da indústria seriam abolidos e substituídos pela emulação industrial, a chamada concorrência, ele replicaria que os privilégios das diversas corporações, confrarias e grêmios são a concorrência organizada. O sr. Proudhon não diz coisa melhor, afirmando que “a emulação não é outra coisa senão a própria concorrência. [...] Ordene-se que, a partir de 1º de janeiro de 1847, o trabalho e o salário sejam garantidos a todo o mundo e logo um enorme relaxamento sucederá à ardente tensão da indústria”****.
* Pierre-Joseph Proudhon, Système des contradictions économiques, edição de 1923, t. I., p. 211 e 212.


“Toda história não é mais que uma transformação contínua da natureza humana.”


“Em cada época histórica, a propriedade desenvolveu-se diferentemente e numa série de relações sociais totalmente distintas. Portanto, definir a propriedade burguesa não é mais que expor todas as relações sociais da produção burguesa.
Pretender dar uma definição da propriedade como uma relação independente, uma categoria à parte, uma ideia abstrata e eterna, só pode ser uma ilusão de metafísica ou jurisprudência.”


“A renda, no sentido de Ricardo, é a agricultura patriarcal transformada em indústria comercial, o capital industrial aplicado à terra, a burguesia das cidades transplantada para o campo. A renda, em vez de ligar o homem à natureza, apenas liga a exploração da terra à concorrência. Uma vez constituída em renda a propriedade fundiária mesma é resultado da concorrência, já que, a partir daí, ela depende do valor venal dos produtos agrícolas. Como renda, a propriedade fundiária é mobilizada e se torna um objeto de comércio. A renda só é possível a partir do momento em que o desenvolvimento da indústria das cidades e a organização social dele resultante forçam o proprietário fundiário a visar somente ao lucro venal, à relação monetária de seus produtos agrícolas, enfim, a ver sua propriedade fundiária apenas como uma máquina de cunhar moedas. A renda separou tão perfeitamente o proprietário fundiário do solo, da natureza, que ele nem sequer necessita conhecer suas terras como se vê na Inglaterra. Quanto ao arrendatário, ao capitalista industrial e ao operário agrícola, eles não estão mais ligados à terra que exploram do que o empresário e operário manufatureiro ao algodão ou à lã que fabricam; eles só têm vinculação com o preço de sua exploração, com o produto monetário. Daí as jeremiadas dos partidos reacionários, que apelam com todas as vozes pelo retorno do feudalismo, da boa vida patriarcal, dos costumes simples e das grandes virtudes de nossos antepassados. A sujeição do solo às leis que regem todas as outras indústrias é e será sempre o tema de condolências interesseiras. Por isso, pode-se dizer que a renda se tornou a força motriz que lançou o idílio no movimento da história.”


“Uma classe oprimida é a condição vital de toda sociedade fundada no antagonismo entre classes. A libertação da classe oprimida implica, pois, necessariamente, a criação de uma sociedade nova. Para que a classe oprimida possa libertar-se, é preciso que os poderes produtivos já adquiridos e as relações sociais existentes não possam mais existir lado a lado. De todos os instrumentos de produção, o maior poder produtivo é a classe revolucionária. A organização dos elementos revolucionários como classe supõe a existência de todas as forças produtivas que possam engendrar-se no seio da sociedade antiga.
Isso significa que, após a ruína da velha sociedade, haverá uma nova dominação de classe, resumida num novo poder político? Não.
A condição de libertação da classe laboriosa é a abolição de toda classe, assim como a condição da libertação do terceiro Estado, da ordem burguesa, foi a abolição de todos os Estados* e de todas as ordens.
No curso de seu desenvolvimento, a classe laboriosa substituirá a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e seu antagonismo, e não haverá mais poder político propriamente dito, já que o poder político é justamente o resumo oficial do antagonismo na sociedade civil.
Entretanto, o antagonismo entre o proletariado e a burguesia é uma luta de uma classe contra outra, uma luta que, levada à sua mais alta expressão, é uma revolução total. Ademais, é de provocar espanto que uma sociedade fundada na oposição de classes conduza à contradição brutal, a um choque corpo a corpo como derradeira solução?
Não digam que o movimento social exclui o movimento político. Não há jamais um movimento político que não seja ao mesmo tempo social.
Somente numa ordem de coisas em que não houver mais classes e antagonismo de classes as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas. Até lá, às vésperas de cada reorganização geral da sociedade, a última palavra da ciência social será sempre: “O combate ou a morte, a luta sanguinária ou o nada. É assim que a questão está irresistivelmente posta” (George Sand)**.
* Na edição alemã de 1885, Engels introduziu a seguinte nota: “Estado tem aqui o sentido histórico das ordens do Estado feudal, desfrutando de privilégios bem delimitados. A revolução burguesa aboliu as ordens e, ao mesmo tempo, seus privilégios. A sociedade burguesa só conhece classes. Portanto, contradiz totalmente a história a designação do proletariado como quarto Estado”.
** A frase é extraída do romance histórico Jean Ziska: épisode de la Guerre des Hussites, publicado pela primeira vez em 1843.


“O que é a sociedade, qualquer que seja a sua forma? O produto da ação recíproca dos homens. Os homens podem escolher livremente esta ou aquela forma social? Nada disso. Pegue determinado estágio de desenvolvimento das faculdades produtivas dos homens e terá determinada forma de comércio e de consumo. Pegue determinados graus de desenvolvimento da produção, do comércio e do consumo e terá determinada forma de constituição social, determinada organização da família, das ordens ou das classes; numa palavra, determinada sociedade civil. Pegue determinada sociedade civil e terá determinado Estado político, que não é mais que a expressão oficial da sociedade civil. É isso o que o sr. Proudhon jamais compreenderá, pois acredita que faz uma grande coisa remetendo-se do Estado à sociedade civil, isto é, do resumo oficial da sociedade à sociedade oficial.
É supérfluo acrescentar que os homens não são livres árbitros de suas forças produtivas – que são a base de toda a sua história – pois toda força produtiva é uma força adquirida, produto de uma atividade anterior. Portanto, as forças produtivas são o resultado da energia prática dos homens mas essa mesma energia é circunscrita pelas condições em que os homens se encontram, pelas forças produtivas já adquiridas, pela forma social que existia antes deles, que não foi criada por eles e é produto da geração precedente. O simples fato de cada geração posterior deparar-se com forças produtivas adquiridas pelas gerações precedentes, que lhes servem de matéria-prima para novas produções, cria uma conexão na história dos homens, cria uma história da humanidade, que é tanto mais a história da humanidade quanto mais se desenvolveram as forças produtivas dos homens e, por conseguinte, suas relações sociais. Consequência necessária: a história social dos homens é sempre a história do seu desenvolvimento individual, tenham ou não consciência desse fato. Suas relações materiais formam a base de todas as suas relações. Essas relações materiais nada mais são que as formas necessárias nas quais se realiza a sua atividade material e individual.
O sr. Proudhon confunde as ideias e as coisas. Os homens jamais renunciam ao que conquistaram, mas isso não quer dizer que não renunciem jamais a forma social na qual adquiriram determinadas forças produtivas. Muito pelo contrário. Para não serem privados do resultado obtido, para não perderem os frutos da civilização, os homens são constrangidos, a partir do momento em que seu modo de comércio não corresponde mais às forças produtivas adquiridas, a modificar todas as suas formas sociais tradicionais. (Tomo a palavra comércio em seu sentido mais amplo, como dizemos em alemão Verkehr.) Por exemplo: o privilégio, a instituição de grêmios e corporações, o regime regulamentar da Idade Média eram relações sociais que correspondiam às forças produtivas adquiridas e ao estado social preexistente, do qual surgiram essas instituições. Sob a tutela do regime corporativo e regulamentado, os capitais se acumularam, o comércio marítimo se desenvolveu, colônias foram fundadas – e os homens teriam perdido esses frutos, se tivessem querido conservar as formas à sombra das quais tais frutos amadureceram. Daí o ruído de dois trovões as revoluções de 1640 e 1688. Na Inglaterra, todas as antigas formas econômicas, as relações sociais que lhes correspondiam e o Estado político que era a expressão oficial da velha sociedade civil foram destruídos. Assim, as formas econômicas sob as quais os homens produzem, consomem e trocam são transitórias e históricas. Ao adquirir novas forças produtivas, os homens mudam seu modo de produção e, com o modo de produção, mudam as relações econômicas, que eram apenas as relações necessárias desse determinado modo de produção.
Foi isso o que o sr. Proudhon não compreendeu e, menos ainda, demonstrou. Incapaz de seguir o movimento real da história, o sr. Proudhon nos oferece uma fantasmagoria, que tem a pretensão de ser uma fantasmagoria dialética. Ele não sente necessidade de falar dos séculos XVII, XVIII e XIX, porque sua história se passa no reino nebuloso da imaginação e paira muito acima do tempo e do espaço. Numa palavra, isso não é história, mas velharia hegeliana: não é uma história profana – a história dos homens –, é uma história sacra – história das ideias. Em seu modo de ver, o homem não é mais que um instrumento do qual se vale a ideia ou a razão eterna para se desenvolver. As evoluções de que fala o sr. Proudhon são supostamente as evoluções tais como se operam no seio místico da ideia absoluta. Se rasgarmos o véu que cobre essa linguagem mística, isso significa que o sr. Proudhon nos oferece a ordem em que as categorias econômicas se encontram alinhadas em sua cabeça. Não precisaria me esforçar muito para lhe provar que essa ordem é a ordem de uma cabeça muito desordenada.”


“O sr. Proudhon supera-se a si mesmo quando permite que a concorrência, o monopólio, os impostos ou a polícia, a balança comercial, o crédito e a propriedade se desenvolvam dentro da sua cabeça na ordem em que os cito. Quase todas as instituições de crédito já se haviam desenvolvido na Inglaterra no começo do século XVIII, antes da invenção das máquinas. O crédito público era apenas uma nova maneira de elevar os impostos e satisfazer as novas necessidades criadas pela chegada da burguesia ao poder. Enfim, a propriedade constitui a última categoria no sistema do sr. Proudhon. No mundo real, ao contrário, a divisão do trabalho e todas as categorias do sr. Proudhon são relações sociais, cujo conjunto forma aquilo que atualmente se denomina propriedade. A propriedade burguesa, fora dessas relações, não passa de uma ilusão metafísica ou jurídica. A propriedade de outra época, a propriedade feudal, desenvolve-se numa série de relações sociais completamente diversas. O sr. Proudhon, estabelecendo a propriedade como uma relação independente, comete algo mais que um erro de método: ele prova claramente que não compreendeu o vínculo que liga todas as formas da produção burguesa, que não compreendeu o caráter histórico e transitório das formas da produção em uma determinada época. O sr. Proudhon, que não vê nossas instituições sociais como produtos históricos, que não compreende nem sua origem nem seu desenvolvimento, só pode fazer uma crítica dogmática.
Assim, o sr. Proudhon é obrigado a recorrer a uma ficção para explicar o desenvolvimento das instituições sociais. Imagina que a divisão do trabalho, o crédito, as máquinas etc. foram inventados para servir à sua ideia fixa, à ideia da igualdade. Sua explicação é de uma ingenuidade sublime. Essas coisas foram inventadas para a igualdade, mas desafortunadamente voltaram-se contra a igualdade. Esse é todo o seu raciocínio. Noutras palavras: ele faz uma suposição gratuita e, como o desenvolvimento real e a ficção criada por ele se contradizem a cada passo, conclui que há uma contradição. Esconde o fato de que só há contradição entre as suas ideias fixas e o movimento real.
Assim, pois, o sr. Proudhon, principalmente por falta de conhecimentos históricos, não viu que os homens, desenvolvendo suas faculdades produtivas, isto é, vivendo, desenvolvem certas relações entre si, e que o modo dessas relações muda necessariamente com a modificação e o desenvolvimento daquelas faculdades produtivas. Não percebeu que as categorias econômicas não passam de abstrações dessas relações reais, que são verdadeiras apenas enquanto essas relações subsistem. Por conseguinte, cai no erro dos economistas burgueses, que veem essas categorias econômicas como leis eternas e não leis históricas, que são leis apenas para um certo desenvolvimento histórico, um determinado desenvolvimento das forças produtivas. Isso posto, em vez de considerar as categorias econômico-políticas como abstrações das relações sociais reais, transitórias, históricas, o sr. Proudhon, por meio de uma inversão mística, vê as relações reais como encarnações dessas abstrações. Estas, em si mesmas, são fórmulas que estavam adormecidas no seio de Deus padre desde o princípio do mundo.”


“O sr. Proudhon compreendeu muito bem que os homens fazem o tecido de lã, de algodão, de seda – e tem o grande mérito de ter compreendido tão pouca coisa! O que o sr. Proudhon não compreendeu é que os homens, conforme as suas faculdades, produzem também as relações sociais, nas quais produzem o tecido de lã e de algodão. Compreendeu menos ainda que os homens, que produzem as relações sociais segundo a sua produtividade material, produzem também as ideias, as categorias, isto é, as expressões abstratas ideais dessas mesmas relações sociais. Portanto, essas categorias são tão pouco eternas quanto as relações que expressam. São produtos históricos e transitórios. Para o sr. Proudhon, entretanto, as abstrações, as categorias, são a causa primária. Segundo ele, são elas, e não os homens, que fazem a história. A abstração, a categoria considerada como tal – ou seja, separada dos homens e de sua ação material – é naturalmente imortal, inalterável, impassível; não é mais que um ser da razão pura, o que significa simplesmente que a abstração, considerada como tal, é abstrata – admirável tautologia!
Por isso as relações econômicas, vistas sob a forma de categorias, são, para o sr. Proudhon, fórmulas eternas, sem origem nem progresso.
Noutros termos: o sr. Proudhon não afirma diretamente que a vida burguesa é, para ele, uma verdade eterna; di-lo indiretamente, ao divinizar as categorias que expressam as relações burguesas sob a forma de pensamento. Toma os produtos da sociedade burguesa como seres espontâneos, dotados de vida própria, eternos, desde que se lhe apresentem sob a forma de categorias, de pensamento. Assim, não vê além do horizonte burguês. Como opera com pensamentos burgueses, supondo-os eternamente verdadeiros, procura sua síntese, seu equilíbrio, e não vê que seu modo atual de equilíbrio é o único possível.
Realmente, ele faz o que fazem todos os bons burgueses. Todos dizem que a concorrência, o monopólio etc. são em princípio – ou seja, considerados como ideias abstratas – os únicos fundamentos da vida, mas deixam muito a desejar na prática. Todos querem a concorrência sem as consequências funestas desta. Todos querem o impossível, isto é, as condições da vida burguesa sem as consequências necessárias dessas condições. Nenhum compreende que a forma burguesa de produção é uma forma histórica e transitória, assim como o era a forma feudal. Esse erro deriva de que, para eles, o homem burguês é a única base possível de toda sociedade, deriva de que não conseguem imaginar um estado social em que o homem deixe de ser burguês.
O sr. Proudhon é, pois, necessariamente doutrinário. O movimento histórico que revoluciona o mundo atual reduz-se, para ele, ao problema do verdadeiro equilíbrio, da síntese das duas ideias burguesas. Assim, com muita sutileza, o moço sagaz descobre o recôndito pensamento de Deus, a unidade de duas ideias isoladas, e que só são isoladas porque o sr. Proudhon as isolou da vida prática, da produção atual – que é a combinação das realidades que elas exprimem. No lugar do grande movimento histórico, que nasce do conflito entre as forças produtivas dos homens, já adquiridas, e suas relações sociais, que não correspondem mais a essas forças produtivas, no lugar das terríveis guerras, que se preparam entre as diferentes classes de uma nação e entre as diferentes nações; no lugar da ação prática e violenta das massas, a única que pode resolver esses conflitos; no lugar desse movimento amplo, prolongado e complexo, o sr. Proudhon coloca o movimento cacadauphin* saído da sua cabeça. Assim são os sábios, os homens capazes de arrancar de Deus seus íntimos pensamentos, que fazem a história. À plebe só resta aplicar suas revelações. Agora o senhor compreende por que o sr. Proudhon é inimigo declarado de todo movimento político. Para ele, a solução dos problemas atuais não consiste na ação pública, mas nas rotações dialéticas da sua cabeça. Como, para ele, as categorias são as forças motrizes, não é necessário mudar a vida prática para mudar as categorias. Muito pelo contrário: é preciso mudar as categorias, e a mudança da sociedade será a consequência disso.
Em seu desejo de conciliar as contradições, o sr. Proudhon não se questiona se a própria base dessas contradições não deve ser subvertida. Ele se parece em tudo ao doutrinário político, que quer o rei, a Câmara dos Deputados e a Câmara dos Pares como partes integrantes da vida social, como categorias eternas. Só que ele busca uma nova fórmula para equilibrar esses poderes, cujo equilíbrio consiste, precisamente, no movimento real, em que um desses poderes ora é o vencedor, ora o escravo do outro. Foi por isso que no século XVIII uma multidão de cérebros medíocres se esforçou para descobrir a verdadeira fórmula para equilibrar as ordens sociais, a nobreza, o rei, os parlamentos etc., e no dia seguinte já não havia nem rei, nem parlamento, nem nobreza. O equilíbrio justo entre esses antagonismos era a derrubada de todas as relações sociais que serviam de base a essas existências feudais e o antagonismo dessas existências feudais.
Porque o sr. Proudhon põe, de um lado, as ideias eternas, as categorias da razão pura e, de outro, os homens e sua vida prática, que, segundo ele, é a aplicação dessas categorias, o senhor encontra nele, desde o primeiro momento, um dualismo entre a vida e as ideias, entre a alma e o corpo – um dualismo que se repete sob muitas formas. Agora o senhor vê que esse antagonismo é apenas a incapacidade do sr. Proudhon de compreender a origem e a história profanas das categorias que ele diviniza.”
* Na época da Revolução Francesa, os antimonarquistas usavam o termo cacadauphin para indicar a cor mostarda, que virou moda depois que Maria Antonieta a adotou para as fraldas do delfim. Uma das traduções possíveis é “cocô de delfim”.


“O sr. Proudhon é, da cabeça aos pés, filósofo e economista da pequena burguesia. O pequeno-burguês, na sociedade avançada e por exigência de seu estado, faz-se meio socialista e meio economista, isto é, deslumbra-se com a magnificência da alta burguesia e, ao mesmo tempo, solidariza-se com o sofrimento do povo. É, simultaneamente, burguês e povo.
Em seu foro íntimo, ufana-se de sua imparcialidade, de ter encontrado o equilíbrio justo, que tem a pretensão de se distinguir do termo médio. Esse pequeno-burguês diviniza a contradição, porque ela constitui o fundo do seu ser. Ele é a contradição social em ação. Deve justificar, teoricamente, o que ele próprio é na prática.”

Miséria da filosofia (Boitempo: Parte I) – Karl Marx

Editora: Boitempo
Tradução e apresentação: José Paulo Netto
ISBN: 978-85-7559-567-1
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 232
Sinopse: Miséria da filosofia, primeiro livro que Marx publicou sozinho e o único que redigiu em francês, foi escrito entre janeiro e abril de 1847, em Bruxelas, e saiu em edição custeada pelo autor, com tiragem de oitocentos exemplares, em princípios de julho. A obra de Proudhon que é objeto da crítica de Marx, Système des contradictions économiques ou Philosophie de la misère [Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da miséria], fora publicada em Paris em outubro do ano anterior e, semanas depois, um exemplar chegou-lhe às mãos, enviado por Engels. Desde seu lançamento, Miséria da filosofia tem provocado incômodo por seu implacável tom polêmico, pelo ferino estilo que não poupa diatribes contra um autor que não só era respeitado intelectualmente (por justas razões) como tinha grande influência entre os socialistas franceses. A crítica marxiana, à qual Proudhon nunca respondeu publicamente (embora tenha feito registros amargos e indignados em seus diários e em sua correspondência), pôs fim a uma relação iniciada em Paris em 1844, quando Marx foi recebido por Proudhon em seu apartamento. Os encontros se repetiram até 1845, quando o governo francês obrigou Marx a abandonar o país. Publicada a Miséria da filosofia, os dois jamais voltaram a se falar. A edição traz um novo prefácio de José Paulo Netto, que também assina a tradução revista da obra e texto de orelha do professor João Antonio de Paula, da UFMG.



“O Sr. Proudhon tem a infelicidade de ser singularmente desconhecido na Europa. Na França, tem o direito de ser um mau economista, porque passa por ser um bom filósofo alemão. Na Alemanha, tem o direito de ser um mau filósofo, porque passa por ser um dos mais vigorosos economistas franceses. Na qualidade de alemão e economista ao mesmo tempo, quisemos protestar contra este duplo erro.
O leitor compreenderá que, nesta ingrata tarefa, frequentemente fomos obrigados a abandonar a crítica ao Sr. Proudhon para fazê-la à filosofia alemã e, ao mesmo tempo, apresentar um breve resumo da economia política.
Karl Marx
Bruxelas, 15 de junho de 1847


“A obra do Sr. Proudhon não é simplesmente um tratado de economia política, um livro comum: é uma Bíblia: “Mistérios”, “Segredos arrancados ao seio de Deus”, “Revelações” – nada lhe falta. No entanto, como, em nossos dias, os profetas são discutidos mais conscientemente que os autores profanos, o leitor deve resignar-se a percorrer conosco a erudição árida e tenebrosa do “Gênesis” para se alçar, mais tarde, com o Sr. Proudhon, às etéreas e fecundas regiões do supra-socialismo (ver Proudhon, “prólogo”, Philosophie de la misère, p. III, linha 20).”


“Uma vez admitida a utilidade, o trabalho é a fonte do valor. A medida do trabalho é o tempo. O valor relativo dos produtos é determinado pelo tempo de trabalho que foi preciso para produzi-los. O preço é a expressão monetária do valor relativo de um produto. Enfim, o valor constituído de um produto é simplesmente o valor que se constitui pelo tempo do trabalho nele cristalizado.”


“Todo o mundo sabe que, quando a oferta e a demanda se equilibram, o valor relativo de um produto qualquer é exatamente determinado pela quantidade de trabalho que é fixada nele, isto é, esse valor relativo exprime a relação de proporcionalidade precisamente no sentido que acabamos de dar a ele.”


“No mesmo momento em que começa a civilização, a produção começa a se fundar no antagonismo das ordens, dos estamentos, das classes, enfim, no antagonismo do trabalho acumulado e do trabalho imediato. Sem antagonismo não há progresso. Essa é a lei que a civilização seguiu até hoje. Até o presente, as forças produtivas se desenvolveram graças a esse regime antagônico das classes. Afirmar, agora, que, estando satisfeitas todas as nenecessidades de todos os trabalhadores, os homens puderam dedicar-se à criação de produtos de uma ordem superior, a indústrias mais complexas, é abstrair do antagonismo entre as classes e subverter todo o desenvolvimento histórico. É como querer afirmar que, como se criavam moreias em piscinas artificiais sob os imperadores romanos, podia-se alimentar fartamente toda a população de Roma; mas, na verdade, enquanto o povo romano não tinha como comprar o seu pão, não faltavam escravos aos aristocratas para oferecer como comida às moreias.”


“Por que, então, o algodão, a batata e a aguardente são as pedras angulares da sociedade burguesa? Porque, para produzi-los, é necessário menos trabalho e, consequentemente, eles são mais baratos. Por que o mínimo de preço determina o máximo de consumo? Por acaso seria em função da utilidade absoluta desses produtos, de sua utilidade intrínseca, de sua utilidade na medida em que correspondem melhor às necessidades do operário como homem, e não do homem como operário? Não. É porque, numa sociedade fundada na miséria, os produtos mais miseráveis têm a prerrogativa fatal de servir ao uso da maioria.
Dizer, agora, que as coisas mais baratas, porque são as mais usadas, devem ser de maior utilidade significa dizer que o uso generalizado da aguardente, por causa dos poucos custos de sua produção, é a prova mais concludente de sua utilidade; significa dizer ao proletário que a batata é mais saudável que a carne; significa aceitar o estado de coisas vigente; significa, enfim, fazer, como o sr. Proudhon, a apologia de uma sociedade sem compreendê-la.
Numa sociedade futura, quando não existir mais o antagonismo das classes, quando não existirem mais as classes, o uso não será mais determinado pelo mínimo do tempo de produção, mas o tempo de produção consagrado aos diferentes produtos será determinado por seu grau de utilidade social.
Para retornarmos à tese do sr. Proudhon: se o tempo de trabalho necessário à produção de um objeto não é a expressão de seu grau de utilidade, o valor de troca desse mesmo objeto, determinado previamente pelo tempo de trabalho nele fixado, não poderá nunca regular a justa relação entre a oferta e a demanda, isto é, a relação de proporcionalidade no sentido que lhe atribui o sr. Proudhon.”


“O que determina o valor não é o tempo de produção de uma coisa, mas o mínimo de tempo no qual ela pode ser produzida, e esse mínimo é constatado pela concorrência. Suponha, por um instante, que não exista mais a concorrência e, consequentemente, não haja como verificar o mínimo de trabalho necessário para a produção de uma mercadoria. O que acontecerá? Bastará aplicar na produção de um objeto seis horas de trabalho para se ter o direito, segundo o sr. Proudhon, de exigir em troca seis vezes mais do que aquele que aplicou apenas uma hora na produção do mesmo objeto.
Em vez de uma “relação de proporcionalidade”, temos uma relação de desproporcionalidade, se insistirmos em permanecer nas relações, boas ou más.
A depreciação contínua do trabalho é apenas um aspecto, uma consequência da avaliação dos artigos pelo tempo de trabalho. A superelevação dos preços, a superprodução e muitos outros fenômenos de anarquia industrial são interpretáveis por esse mesmo modo de avaliação.
Mas, servindo de medida do valor, o tempo de trabalho faz surgir, ao menos, a variedade proporcional de produtos que tanto fascina o sr. Proudhon?
Muito pelo contrário: o monopólio, com toda a sua monotonia, invade o mundo dos produtos, do mesmo modo que, à vista de todos, invadiu o mundo dos instrumentos de produção. Apenas alguns ramos industriais, como a indústria algodoeira, podem fazer progressos rápidos. A consequência natural desses progressos é que os produtos da manufatura algodoeira, por exemplo, baixam rapidamente de preço, mas, à medida que o preço do algodão cai, o do linho, comparativamente, deve aumentar. O que acontecerá? O linho será substituído pelo algodão. Foi desse modo que o linho foi abandonado em quase toda a América do Norte. E obtivemos, em vez da variedade proporcional dos produtos, o império do algodão.
O que resta dessa “relação de proporcionalidade”? Nada mais que o desejo de um homem honesto, que gostaria que as mercadorias se produzissem em proporções tais que pudessem ser vendidas a um preço honesto. Desde sempre, os bons burgueses e os economistas filantropos gostam de formular esse desejo inocente.
Deixemos falar o velho Boisguillebert:
O preço das mercadorias deve ser sempre proporcionado, uma vez que só essa inteligência lhes permite conviver, para se trocarem a todo momento [eis a permutabilidade contínua do sr. Proudhon] e receberem reciprocamente o surgimento uns dos outros [...]. Já que a riqueza é apenas esse contínuo intercâmbio de homem para homem, de profissão para profissão etc., constitui uma espantosa cegueira procurar a causa da miséria fora da interrupção de semelhante comércio, ocasionada pela desordem das proporções nos preços.33
Ouçamos também um economista moderno:
Uma grande lei que se deve aplicar à produção é a lei da proporcionalidade (the law of proportion), que é a única que pode preservar a continuidade do valor [...]. O equivalente deve ser garantido. [...] Todas as nações tentaram, em diversas épocas, por numerosos regulamentos e restrições comerciais, realizar até certo ponto essa lei da proporcionalidade; mas o egoísmo, inerente à natureza do homem, levou-o a subverter todo esse regime regulamentar. Uma produção proporcionada (proportionate production) constitui a realização da verdade plena da ciência da economia social.34
Fuit Troja! [Troia já não existe!] Essa justa proporção entre a oferta e a demanda, que volta a ser objeto de tantos votos, deixou de existir há muito. Tornou-se uma velharia. Só foi possível em épocas nas quais os meios de produção eram limitados, nas quais a troca ocorria em limites extremamente pequenos. Com o aparecimento da grande indústria, essa justa proporção teve de acabar, e a produção foi fatalmente obrigada a passar, numa sucessão perpétua, pelas vicissitudes de prosperidade, depressão, crise, estagnação, nova prosperidade e assim por diante.
Aqueles que, como Sismondi, querem retornar à justa proporcionalidade da produção, conservando ao mesmo tempo as bases atuais da sociedade, são reacionários, porque, para serem consequentes, devem querer também o restabelecimento de todas as outras condições da indústria dos tempos passados.
O que mantinha a produção em proporções justas ou quase justas? Era a demanda, que determinava e precedia a oferta. A produção acompanhava o consumo, passo a passo. A grande indústria, forçada a produzir sempre em escala cada vez maior pelos próprios instrumentos de que dispõe, não pode mais esperar pela demanda. A produção precede o consumo, a oferta pressiona a demanda.
Na sociedade atual, na indústria fundada nas trocas individuais, a anarquia da produção, que é a fonte de tanta miséria, é, ao mesmo tempo, a fonte de todo progresso.
Assim, das duas uma: ou se deseja a justa proporção dos séculos passados com os meios de produção de nossa época e, nesse caso, é-se reacionário e utopista ao mesmo tempo; ou se deseja o progresso sem anarquia e, nesse caso, para conservar as forças produtivas, é-se obrigado a abandonar as trocas individuais.
As trocas individuais só são compatíveis com a pequena indústria dos séculos passados, com seu corolário da “justa proporção”, ou com a grande indústria atual, mas com todo o seu cortejo de miséria e anarquia.”
33 Dissertation sur la nature des richesses, edição de Daire, p. 405 e 408. [Marx cita segundo a antologia Économistes-financiers du XVIIIe siècle. Précedés de notices historiques sur chaque auteur, et accompagnés de commentaires et de notes explicatives par Eugène Daire (Paris, Guillaumin, 1843).]
34 William Atkinson, Principles of Political Economy, Londres, [Whittaker,] 1840, p. 170 e 195.


“O que é hoje o resultado do capital e da concorrência entre os operários será amanhã – se abolirmos a relação entre o trabalho e o capital – o resultado de uma convenção baseada na relação entre a soma das forças produtivas e a soma das necessidades existentes.”


“O sr. Bray faz da ilusão do burguês honesto o ideal que ele gostaria de realizar. Depurando a troca individual, expurgando-a de todos os seus componentes antagônicos, ele acredita encontrar uma relação “igualitária” que gostaria de introduzir na sociedade.
O sr. Bray não vê que essa relação igualitária, esse ideal corretivo que ele gostaria de aplicar no mundo, é apenas o reflexo do mundo atual e, consequentemente, é totalmente impossível reconstruir a sociedade sobre uma base que não passa de uma sombra embelezada de si mesma. À medida que a sombra se torna corpo, percebe-se que esse corpo, longe de ser a transfiguração sonhada, é o corpo atual da sociedade.”


“A moeda não é uma coisa, é uma relação social. Por que a relação da moeda é uma relação da produção, como qualquer outra relação econômica, por exemplo a divisão do trabalho etc.? Se o sr. Proudhon compreendesse bem essa relação, não teria visto na moeda uma exceção, um elemento destacado de uma série desconhecida ou que se deve recuperar.
Ele teria reconhecido, ao contrário, que essa relação é um elo e, como tal, está intimamente ligada a todo o encadeamento das outras relações econômicas e corresponde a um modo de produção determinado, tanto quanto a troca individual.”


“De fato, é preciso ser desprovido de qualquer conhecimento histórico para ignorar que os soberanos, em todos os tempos, submeteram-se às condições econômicas, sem jamais lhes impor sua lei. A legislação, tanto política quanto civil, apenas enuncia, verbaliza o poder das relações econômicas.
Foi o soberano que se apoderou do ouro e da prata para torná-los agentes universais da troca, imprimindo-lhes sua chancela, ou foram esses agentes universais da troca que, ao contrário, se apoderaram do soberano, obrigando-o a imprimir-lhes sua chancela e a dar-lhes uma consagração política?”


“Se o inglês transforma os homens em chapéus, o alemão transforma os chapéus em ideias. O inglês é Ricardo, banqueiro rico e distinto economista; o alemão é Hegel, simples professor de filosofia na Universidade de Berlim.”


“A metafísica, a filosofia inteira, resume-se, segundo Hegel, no método.”


“As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens mudam seu modo de produção e, ao mudar o modo de produção, a maneira de ganhar a vida, eles mudam todas as suas relações sociais. O moinho movido pelo braço humano nos dá a sociedade com o suserano; o moinho a vapor nos dá a sociedade com o capitalista industrial
Os mesmos homens que estabeleceram as relações sociais de acordo com sua produtividade material produzem também os princípios, as ideias, as categorias, de acordo com suas relações sociais.
Assim, essas ideias, essas categorias, são tão pouco eternas quanto as relações que elas exprimem. Elas são produtos históricos e transitórios.
Há um movimento contínuo de crescimento nas forças produtivas, de destruição nas relações sociais, de formação nas ideias; de imutável só existe a abstração do movimento – mors immortalis*.
*: Marx retoma aqui um verso de Lucrécio, extraído de rerum natura (Da natureza das coisas), Livro III, verso 869: “Mortalem vitam mors immortalis ademit” (“A morte imortal ceifou a vida mortal”). Em seu exemplar, Proudhon anotou: “Sim, eternas como a humanidade, nem mais nem menos, e todas contemporâneas. Sua segunda observação não conduz a nada”.


“O que constitui o movimento dialético é a coexistência de dois lados contraditórios, sua luta e sua fusão numa categoria nova.”


“Admitamos, com o sr. Proudhon, que a história real, a história segundo a ordem temporal, é a sucessão histórica na qual as ideias, as categorias e os princípios se manifestaram.
Cada princípio teve seu século para nele manifestar-se: o princípio da autoridade, por exemplo, teve o século XI, assim como o do individualismo teve o século XVIII De consequência em consequência, era o século que pertencia ao princípio, e não o princípio ao século. Em outros termos: era o princípio que fazia história, não era a história que fazia o princípio. Quando, em seguida, para salvar tanto os princípios quanto a história, indaga-se por que tal princípio se manifestou no século XI ou no XVIII e não em outro qualquer, é-se necessariamente obrigado a examinar com minúcia quem eram os homens dos séculos XI e XVIII, quais eram suas necessidades, suas forças produtivas, seu modo de produção, as matérias-primas de sua produção – enfim, quais eram as relações de homem para homem que resultavam de todas essas condições de existência. Aprofundar todas essas questões não é fazer a história real, a história profana, dos homens em cada século, representar esses homens ao mesmo tempo como os autores e os atores de seu próprio drama? Mas, a partir do momento em que os homens são representados como os atores e os autores de sua própria história, chega-se, por um atalho, ao verdadeiro ponto de partida, uma vez que são abandonados os princípios eternos de que se tratava inicialmente.
O sr. Proudhon nem mesmo avançou o suficiente nesses atalhos que o ideólogo percorre para alcançar a grande estrada da história.”


“Os economistas têm uma maneira singular de proceder. Para eles, só existem duas espécies de instituições: as da arte e as da natureza. As instituições feudais são artificiais, as da burguesia são naturais. Nisso, eles se parecem com os teólogos, que também estabelecem dois tipos de religião: toda religião que não é a deles é uma invenção dos homens, ao passo que a deles é uma emanação de Deus. Dizendo que as relações atuais – as relações da produção burguesa – são naturais, os economistas dão a entender que é nessas relações que se cria a riqueza e se desenvolvem as forças produtivas segundo as leis da natureza. Portanto, essas relações são leis naturais independentes da influência do tempo. São leis eternas que devem sempre reger a sociedade. Assim, houve história, mas não há mais. Houve história porque existiram instituições de feudalidade e porque nelas se encontram relações de produção inteiramente diferentes das da sociedade burguesa, que os economistas querem fazer passar por naturais, logo eternas.
O feudalismo também possuía um proletariado – os servos, que continham em si o embrião da burguesia. A produção feudal também possuía dois elementos antagônicos, designados igualmente o lado bom e o lado mau do feudalismo, sem se considerar que o lado mau sempre acaba sobrepondo-se ao bom. É o lado mau que produz o movimento que faz a história, constituindo a luta. Se, na época da dominação feudal, os economistas, entusiasmados com as virtudes cavalheirescas, com a bela harmonia entre deveres e direitos, com a vida patriarcal das cidades, com o estado de prosperidade da indústria doméstica no campo, com o desenvolvimento da indústria organizada por corporações, confrarias e grêmios, enfim, com tudo o que constitui o lado bom do feudalismo, se eles resolvessem eliminar tudo que tornava sombrio esse quadro – servidão, privilégios, anarquia –, o que aconteceria? Ter-se-iam eliminado todos os elementos constitutivos da luta e sufocado, em seu embrião, o desenvolvimento da burguesia. Ter-se-ia colocado o absurdo problema da liquidação da história.
Quando a burguesia se impôs, não se colocou a questão do lado bom e do lado mau do feudalismo. Ela incorporou as forças produtivas que desenvolvera sob ele. Foram destruídas todas as antigas formas econômicas, as relações civis que lhes correspondem, o estado político que era a expressão oficial da antiga sociedade civil.
Assim, para avaliar corretamente a produção feudal, é preciso vê-la como um modo de produção baseado no antagonismo. É preciso mostrar como a riqueza se produzia no interior desse antagonismo, como as forças produtivas se desenvolviam ao mesmo tempo que o antagonismo das classes, como uma dessas classes, o lado mau, o inconveniente da sociedade, ia sempre crescendo, até que as condições materiais de sua emancipação alcançaram seu ponto de maturidade. Não é suficiente dizer que o modo de produção, as relações nas quais se desenvolvem as forças produtivas, não são nada menos que leis eternas, mas correspondem a um desenvolvimento determinado dos homens e de suas forças produtivas, e que uma mudança nas forças produtivas dos homens conduz necessariamente a uma mudança em suas relações de produção? Como o que importa é principalmente não se privar dos frutos da civilização, das forças produtivas adquiridas, é preciso liquidar as formas tradicionais nas quais elas foram produzidas. A partir de então, a classe revolucionária torna-se conservadora.
A burguesia começa com um proletariado que é ele próprio um resto do proletariado* dos tempos feudais. No curso de seu desenvolvimento histórico, a burguesia desenvolve necessariamente seu caráter antagônico, que no início aparece mais ou menos disfarçado, existe apenas em estado latente. À medida que a burguesia se desenvolve, desenvolve-se em seu interior um novo proletariado, um proletariado moderno: desenvolve-se uma luta entre a classe proletária e a classe burguesa, uma luta que, antes de ser sentida por ambos os lados, percebida, avaliada, compreendida, confessada e proclamada, manifesta-se previamente por conflitos parciais e momentâneos, por episódios subversivos. Por outro lado, se todos os membros da burguesia moderna têm o mesmo interesse, na medida em que formam uma classe vis-à-vis a outra classe, eles têm interesses opostos, antagônicos, na medida em que se colocam vis-à-vis aos outros. Essa oposição de interesses decorre das condições econômicas da vida burguesa. Dia após dia, torna-se mais claro que as relações de produção nas quais a burguesia se move não têm um caráter uno, simples, mas um caráter de duplicidade; que, nas mesmas relações em que se produz a riqueza, também se produz a miséria; que, nas mesmas relações em que há desenvolvimento das forças produtivas, há uma força produtora de repressão; que essas relações só produzem a riqueza burguesa, isto é, a riqueza da classe burguesa, destruindo continuamente a riqueza dos membros integrantes dessa classe e produzindo um proletariado sempre crescente.
Quanto mais se evidencia esse caráter antagônico, mais os economistas, os representantes científicos da produção burguesa, embaralham-se em sua própria teoria e formam diferentes escolas.
Temos os economistas fatalistas, que, em sua teoria, são tão indiferentes ao que chamam de inconvenientes da produção burguesa quanto o são, na prática, os próprios burgueses aos sofrimentos dos proletários que os ajudam a adquirir riquezas. Nessa escola fatalista, há clássicos e românticos. Os clássicos, como Adam Smith e Ricardo, representam uma burguesia que, lutando ainda contra os restos da sociedade feudal, trabalha apenas para depurar as relações econômicas das marcas feudais, para aumentar as forças produtivas e para dar um novo impulso à indústria e ao comércio. Participando dessa luta, o proletariado, absorvido nesse trabalho febril, tem apenas sofrimentos passageiros, acidentais, e ele mesmo os vê desse modo. Os economistas como Adam Smith e Ricardo, que são os historiadores dessa época, não têm outra missão a não ser demonstrar como a riqueza se adquire nas relações de produção burguesas, formular essas relações em categorias, em leis, e demonstrar como essas leis, essas categorias, são, para a produção de riquezas, superiores às leis e às categorias da sociedade feudal. A miséria, para eles, é apenas a dor que acompanha todo parto, tanto na natureza quanto na indústria**.
Os românticos pertencem à nossa época, na qual a burguesia se encontra em oposição direta ao proletariado e a miséria se engendra em tão grande abundância quanto a riqueza. Nesse caso, os economistas se apresentam como fatalistas enfastiados que, do alto de sua posição, lançam um olhar de soberbo desprezo sobre os homens-locomotiva que fabricam as riquezas. Eles plagiam todos os desenvolvimentos de seus antecessores, e a indiferença que, naqueles, era ingenuidade, neles se converte em afetação.
Em seguida vem a escola humanitária, que toma a peito o lado mau das relações de produção atuais. Procura, para desencargo de consciência, amenizar um pouco os contrastes reais; deplora sinceramente a infelicidade do proletariado, a concorrência desenfreada dos burgueses entre si, aconselha aos operários a sobriedade, o trabalho consciencioso e o controle de filhos, recomenda aos burgueses que se dediquem à produção com entusiasmo refletido. Toda a teoria da escola assenta sobre as distinções intermináveis entre a teoria e a prática, os princípios e os resultados, a ideia e a aplicação, o conteúdo e a forma, a essência e a realidade, o direito e o fato, os lados bom e mau.
A escola filantrópica é a escola humanitária aperfeiçoada. Ela nega a necessidade do antagonismo; quer tornar burgueses todos os homens e realizar a teoria na medida em que esta se distingue da prática e não contém nenhum antagonismo. E supérfluo dizer que, na teoria, é fácil abstrair das contradições que encontramos a cada passo na realidade. Essa teoria seria então a realidade idealizada. Assim, os filantropos querem conservar as categorias que exprimem as relações burguesas sem o antagonismo que as constitui e é inseparável delas. Imaginam combater seriamente a prática burguesa e são mais burgueses que os outros***.
Do mesmo modo que os economistas são os representantes científicos da classe burguesa, os socialistas e os comunistas são os teóricos da classe proletária. Enquanto o proletariado não estiver bastante desenvolvido para se constituir como classe e, consequentemente, sua luta com a burguesia não tiver ainda um caráter político; enquanto as forças produtivas não estiverem bastante desenvolvidas no próprio interior da burguesia para possibilitar uma antevisão das condições materiais necessárias à libertação do proletariado e à formação de uma sociedade nova, esses teóricos serão apenas utopistas que, para amenizar os sofrimentos das classes oprimidas, improvisam sistemas e correm atrás de uma ciência regeneradora. Mas, à medida que a história avança e, com ela, a luta do proletariado se desenha mais claramente, eles não precisam mais procurar a ciência em seu espírito: basta-lhes dar-se conta do que se passa diante de seus olhos e tornar-se porta-vozes disso. Enquanto procuram a ciência e apenas formulam sistemas, enquanto estão no início da luta, eles veem na miséria somente a miséria, não veem nela o lado revolucionário, subversivo, que derrubará a velha sociedade. A partir desse momento, a ciência produzida pelo movimento histórico, e associando-se a ele com pleno conhecimento de causa, deixa de ser doutrinária e se torna revolucionária.
Voltemos ao sr. Proudhon****
Cada relação econômica tem um lado bom e um lado mau, e esse é o único ponto em que o sr. Proudhon não se desmente. O lado bom ele o vê exposto pelos economistas; o mau, denunciado pelos socialistas. Toma emprestada dos economistas a necessidade das relações eternas; dos socialistas, a ilusão de ver na miséria apenas a miséria. Concorda com estes e aqueles quando quer se referir à autoridade da ciência. Esta, para ele, reduz-se às magras proporções de uma fórmula científica: é um homem à caça de fórmulas. Assim, o sr. Proudhon jacta-se de ter feito a crítica da economia política e do comunismo, mas está aquém de ambos. Está aquém dos economistas porque, como filósofo que tem na manga uma fórmula mágica, acreditou poder dispensar-se de entrar em pormenores puramente econômicos; aquém dos socialistas porque carece da coragem e da lucidez necessárias para se elevar, ainda que especulativamente, acima do horizonte burguês.
Ele quer ser a síntese, e é um erro composto.
Como homem de ciência, quer pairar acima de burgueses e proletários, mas não passa de um pequeno-burguês que oscila constantemente entre o capital e o trabalho, entre a economia política e o comunismo.”
* No exemplar oferecido a Natália Utina, figura esta anotação: “da classe trabalhadora”.
** Em seu exemplar, Proudhon fez várias anotações: “Marx tem a pretensão de apresentar, em oposição ao que eu teria escrito, tudo isso como sendo seu?”; “Tudo isso é da minha lavra”, “Eu disse tudo isso”.
*** Em seu exemplar, Proudhon anotou: “Marx faz como Vidal”. Em seus Carnets, Proudhon acusa Vidal dos mesmos “crimes” de Marx: incompreensão e plágio.
**** Em seu exemplar, junto das observações de Marx acerca dos utopistas, Proudhon anotou: “Plágio do meu primeiro capítulo”. Quanto à frase “Voltemos ao sr, Proudhon”, escreveu: “Mas como? Voltemos! Se as páginas precedentes são uma cópia do que redigi”.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Defesa do marxismo, polêmica revolucionária e outros escritos (Parte II) – José Carlos Mariátegui

Editora: Boitempo
Tradução, organização, notas e índice onomástico: Yuri Martins Fontes
ISBN: 978-85-7559-181-9
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 232
Sinopse: Ver Parte I


“Antes de tudo, que espiritualização é a que se deseja? Se a civilização capitalista, em sua decadência – semelhante em tantos aspectos à civilização romana –, renuncia a seu próprio pensamento filosófico e abdica de sua própria certeza científica para buscar em ocultismos orientais e metafísicas asiáticas algo como um entorpecente, então o melhor sinal de saúde e potência do socialismo, como princípio de uma nova civilização, será sem dúvida a resistência a todos esses êxtases espiritualistas. Diante do retorno da burguesia, decadente e ameaçada, a mitologias que não a inquietaram em sua juventude, a afirmação mais sólida da força criadora do proletariado será o completo repúdio e o risonho desprezo pelas angústias e pesadelos de um espiritualismo de menopausa.”


“Conquistar a juventude não deixa de ser uma das necessidades mais evidentes e atuais dos partidos revolucionários. Mas com a condição de que os jovens saibam que amanhã caberá a eles cumprir sua missão, sem os álibis da juventude, com responsabilidade e capacidade de homens.”


“O segredo de Lenin está precisamente em ter prosseguido em seu trabalho de crítica e preparação sem deixar que seu empenho se afrouxasse depois da derrota de 1905 – época de pessimismo e desalento. Marx e Engels produziram a maior parte de sua obra – grande por seu valor espiritual e científico – independentemente de sua eficácia revolucionária em tempos que não eram de insurreições iminentes, como eram os primeiros a ponderar. Nem a análise os fazia se inibir diante da ação, nem a ação os inibia diante da análise.”


“Berl não quer que o intelectual seja um homem de partido. Tem, assim como Julien Benda, a idolatria do clerc*. E nisso levam vantagem sobre ele esses surrealistas contra os quais não economizam críticas e ironias. E não apenas os jovens surrealistas, mas também o velho Bernard Shaw, que, embora fabiano e heterodoxo, declarou na mais solene ocasião de sua vida: “Karl Marx fez de mim um homem”.
Berl pensa que o primeiro valor da inteligência, nesta época de transição e crise, deve ser a lucidez. Contudo, o que na verdade é dissimulado por suas preocupações é a tendência intelectual de se esquivar da luta de classes, a pretensão de se manter au-dessus de la mêlée**. Todos os intelectuais que reconhecem como seu o estado de consciência de Emmanuel Berl aderem abstratamente à Revolução, mas se detêm diante da Revolução concreta. Repudiam a burguesia, mas não se decidem a marchar ao lado do proletariado. No fundo dessa atitude, agita-se um desesperado egocentrismo. Os intelectuais desejariam substituir o marxismo – por demais técnico para uns e por demais materialista para outros – por uma teoria própria. Um literato mais ou menos ausente da história e mais ou menos estranho à Revolução em ato imagina-se suficientemente inspirado para fornecer às massas uma nova concepção de sociedade e política. Como as massas não lhe dão de imediato grande crédito – preferindo continuar com o método marxista-leninista, sem esperar pelo milagroso descobrimento –, o literato acaba por se desgostar do socialismo e do proletariado, uma doutrina e uma classe que ele mal conhece e das quais só se aproxima com todos os seus preconceitos de universidade de restaurante ou de cafés. Como escreve Berl:
O drama do intelectual contemporâneo é que gostaria de ser revolucionário, mas não consegue. Sente a necessidade de chacoalhar o mundo moderno, emaranhado nas redes dos nacionalismos e das classes, sente a impossibilidade moral de aceitar o destino dos trabalhadores da Europa...
(um destino mais inaceitável talvez que o de qualquer outro grupo humano em qualquer período da história)
...porque, se a civilização capitalista não os condena necessariamente à miséria integral em que Marx os via lançados, por outro lado não lhes pode oferecer nenhuma justificativa para sua existência, no tocante a um princípio ou a uma finalidade qualquer.
Os preconceitos de universidade, de restaurante e de cafés exigem que se flerte com os evangelhos do espiritualismo; impõe o gosto pelos mágicos e pelo obscuro; restituem um sentimento misterioso e sobrenatural ao espírito. E é lógico que esses sentimentos venham a estorvar a aceitação do marxismo. Mas é um absurdo enxergar neles outra coisa além de um humor reacionário, do qual não se deve esperar nenhuma cooperação ao esclarecimento dos problemas da Inteligência e da Revolução.”
*: Do francês: douto, intelectual.
** Expressão francesa: “acima da confusão”. (N. E. P.)


“A heresia individual é infecunda. Em geral, a sorte da heresia depende de seus elementos ou de suas possibilidades de se tornar dogma, de se incorporar num dogma. O dogma é entendido aqui como a doutrina de uma transformação histórica e, assim, enquanto a transformação se opera, isto é, enquanto ele não se torna um arquivo ou um código de uma ideologia do passado, nada garante como o dogma a liberdade criadora, a função germinal do pensamento. Em sua especulação, o intelectual precisa se apoiar em uma crença, em um princípio que faça dele um fator da história e do progresso. É nesse instante que sua potência de criação pode trabalhar com a máxima liberdade permitida por seu tempo. Shaw tem essa intuição quando diz: “Karl Marx fez de mim um homem, o socialismo fez de mim um homem”. O dogma não impediu que Dante, em sua época, fosse um dos maiores poetas de todos os tempos; o dogma, se assim prefere chamá-lo, ampliando a acepção do termo, não impediu que Lenin fosse um dos maiores revolucionários e um dos maiores estadistas. Um dogmático como Marx ou como Engels influi nos acontecimentos e nas ideias mais do que qualquer grande herético ou qualquer grande niilista. Somente esse fato deveria anular toda a apreensão e todo o temor em relação à limitação do dogmático. A posição marxista, para o intelectual contemporâneo, não é utopismo, mas sim a única posição que oferece uma via de liberdade e avanço. O dogma tem a utilidade de um roteiro, de uma carta geográfica: é a única garantia de não se repetir duas vezes o mesmo percurso com a ilusão de estar avançando e de não ficar preso por falta de informação em nenhum caminho sem saída. O livre-pensador, em geral, resolutamente se condena à mais estreita das servidões: sua especulação rodopia a uma velocidade louca, mas inútil, em torno de um ponto fixo. O dogma não é um itinerário, mas uma bússola na viagem. Para pensar com liberdade, a primeira condição é abandonar a preocupação com a liberdade absoluta. O pensamento tem uma necessidade estrita de rumo e de objeto. Pensar corretamente é, em grande medida, uma questão de rumo e de órbita.”


“Mas as razões substanciais das atuais impotência e ineficácia da Liga das Nações não são sua juventude nem sua insipiência. Elas procedem da causa geral da decadência e do desgaste do regime individualista. A posição histórica da Liga das Nações é, precisa e exatamente, a mesma posição histórica da democracia e do liberalismo. Os políticos da democracia trabalham por um acordo, por um compromisso entre a ideia conservadora e a ideia revolucionária. E a Liga, congruentemente com essa orientação, tende a conciliar o nacionalismo do Estado burguês com o internacionalismo da nova humanidade. O conflito entre nacionalismo e internacionalismo é a raiz da decadência do regime individualista. A política da burguesia é nacionalista; sua economia é internacionalista. A tragédia da Europa consiste justamente em estarem renascendo paixões e estados de ânimo nacionalistas e guerreiros, nos quais encalham todos os projetos de assistência e cooperação internacional encaminhados para a reconstrução europeia.”*
*: Texto de 1925, que prognosticava lugubremente a 2ª Guerra.


“Na prática, os liberais e os conservadores não se diferenciam em nada. A palavra liberal, em sua acepção e uso burgueses, é uma palavra vazia. A função da burguesia já não é liberal, mas conservadora.”


“O obscurecimento do bom-senso ocidental não é uma causa da crise, mas um de seus sintomas, de seus efeitos, de suas expressões.”


“Os Estados Unidos, mantendo uma atitude imperialista, cumprem seu destino histórico. O imperialismo – como disse Lenin em um panfleto revolucionário – é a última etapa do capitalismo. E, como disse Spengler em uma obra filosófica e científica, é a última estação política de uma cultura. Os Estados Unidos são, mais do que uma grande democracia, um grande império. A forma republicana nada significa. O crescimento capitalista dos Estados Unidos tinha de desembocar em um final imperialista. O capitalismo estadunidense não pode mais se desenvolver dentro dos limites dos Estados Unidos e de suas colônias. Manifesta, por isso, uma grande força de expansão e de domínio. Wilson, de maneira nobre, quis combater por uma nova liberdade; mas, na verdade, combateu por um novo império. Uma força histórica, superior a seus desígnios, empurrou-o à guerra. A participação dos Estados Unidos na guerra mundial foi ditada por um interesse imperialista. Exaltando eloquente e solenemente seu caráter decisivo, o verbo de Wilson serviu à afirmação do Império. Os Estados Unidos, ao decidirem o êxito da guerra, converteram-se repentinamente em árbitros da sorte da Europa. Seus bancos e fábricas resgataram as ações e os títulos estadunidenses que a Europa possui. E, em seguida, começaram a acumular ações e títulos europeus. A Europa passou da condição de credora à de devedora dos Estados Unidos. Nos Estados Unidos foi acumulada mais da metade do ouro do mundo. Tendo alcançado esses resultados, os ianques sentiram instintivamente a necessidade de defendê-los e melhorá-los. Para tanto, precisaram licenciar Wilson. O verbo de Wilson os embaraçava e incomodava. O programa wilsoniano, útil em tempos de guerra, resultava inoportuno em tempos de paz. A nova liberdade proposta por Wilson convinha a todo mundo, menos aos Estados Unidos. Assim, os republicanos voltaram ao poder. (...)
Porém, é certo que, se os Estados Unidos são um império, são também uma democracia. Bem. Mas, atualmente, o que prevalece nos Estados Unidos é o império. Os democratas representam mais a democracia; os republicanos representam mais o império. Portanto, é natural e lógico que as eleições tenham sido ganhas pelos republicanos, e não pelos democratas.
O império ianque é uma realidade mais evidente – com mais contraste – do que a democracia ianque. Esse império ainda não tem muito perfil de que vá dominar o mundo com seus soldados; mas sim de que vai dominá-lo com seu dinheiro. E um império, hoje em dia, não precisa de mais do que isso. A organização ou a desorganização do mundo, nesta época, é mais econômica que política. O poder econômico confere poder político. Ali onde os impérios antigos desembarcavam seus exércitos, aos impérios modernos basta desembarcar seus banqueiros. Os Estados Unidos possuem atualmente a maior parte do ouro do mundo. São uma nação com abundância de ouro convivendo com nações desmonetarizadas, exaustas e quase mendicantes. Assim, podem ditar-lhes sua vontade em troca de um pouco de ouro.”


Trotski
Trotski não é apenas um protagonista, mas também um filósofo, um historiador e um crítico da Revolução. Naturalmente, nenhum líder da Revolução pode carecer de uma visão panorâmica e certeira de suas raízes e sua gênese. Lenin, por exemplo, distinguiu-se por uma singular faculdade de perceber e entender a direção da história contemporânea e o sentido de seus acontecimentos. Contudo, os penetrantes estudos de Lenin não abarcaram senão as questões políticas e econômicas. Trotski, ao contrário, interessou-se também pelas consequências da Revolução na filosofia e na arte.
Trotski polemiza com os escritores e artistas que anunciam a chegada de una nova arte – o surgimento de uma arte proletária. A Revolução possui uma arte própria? Trotski balança a cabeça. “A cultura – escreve – não é a primeira fase de um bem-estar: é um resultado final.” O proletariado gasta atualmente suas energias na luta por abater a burguesia e no trabalho de resolver seus problemas econômicos, políticos e educacionais. A nova ordem é ainda por demais embrionária e incipiente. Encontra-se em um período de formação. Uma arte do proletariado não pode surgir ainda. Trotski define o desenvolvimento da arte como o mais alto testemunho de vitalidade e valor de uma época. A arte do proletariado não será aquela que descrever os episódios da luta revolucionária; antes, será aquela que descrever a vida emanada da revolução de suas criações e seus frutos Não é pois, o caso de se falar em uma nova arte. A arte. assim como a nova ordem social, atravessa um período de ponderações e ensaios. “A revolução encontrará na arte sua imagem quando cessar de ser para o artista um cataclismo estranho a ele.” A arte nova será produzida por homens de uma nova espécie. O conflito entre a realidade moribunda e a nascente durará longos anos. Estes serão de combate e mal-estar. Somente depois de transcorridos esses anos, quando a nova organização estiver cimentada e assegurada, poderão existir as condições necessárias para o desenvolvimento de uma arte do proletariado. Quais serão os traços essenciais da arte futura? Trotski formula algumas previsões. A arte futura será, em sua opinião, “inconciliável com o pessimismo, com o ceticismo e com todas as outras formas de prostração intelectual. Estará cheia de fé criadora, cheia de uma fé sem limites no porvir”. Certamente, essa não é uma tese arbitrária. A desesperança, o niilismo e a morbidez, que em diversas doses a literatura contemporânea contém, são sinais característicos de uma sociedade fatigada, esgotada e decadente. A juventude é otimista, afirmativa e alegre; a velhice é cética, negativa e rabugenta. A filosofia e a arte de uma sociedade jovem terão, por conseguinte, um acento diferente da filosofia e da arte de uma sociedade senil.
O pensamento de Trotski, por esses caminhos, envereda por outras conjunturas e interpretações. Os esforços da cultura e da inteligência burguesas estão dirigidos principalmente para o progresso da técnica e do mecanismo de produção. A ciência é aplicada, sobretudo, à criação de um maquinismo cada dia mais perfeito. Os interesses da classe dominante são adversos à racionalização da produção; e são adversos, por fim, à racionalização dos costumes. As preocupações da humanidade são, portanto, antes de tudo, utilitárias.
Os ideais de nossa época são o lucro e a poupança. A acumulação de riquezas aparece como a maior finalidade da vida humana. E então. A nova ordem, a ordem revolucionária, racionalizar e humanizar os costumes. Resolverá os problemas que, devido à sua estrutura e função, a ordem burguesa é impotente para solucionar. Consentirá a libertação da mulher da servidão doméstica; assegurará a educação social para as crianças; libertará o matrimônio das preocupações econômicas. O socialismo, em suma, tão satirizado e acusado de materialista, vem a ser, desse ponto de vista, uma reivindicação, um renascimento de valores espirituais e morais – oprimidos pela organização e pelos métodos capitalistas. Se na época capitalista prevaleceram ambições e interesses materiais, na época proletária suas modalidades e instituições se inspirarão em interesses e ideais éticos.
A dialética de Trotski nos conduz a uma previsão otimista do porvir do Ocidente e da humanidade. Spengler anuncia a decadência total do Ocidente. O socialismo, segundo sua teoria, não é mais que uma etapa da trajetória da civilização. Trotski constata unicamente a crise da cultura burguesa, a transposição da sociedade capitalista. Essa cultura e sociedade envelhecidas, enfastiadas, desaparecem; e uma nova cultura e sociedade emergem de suas entranhas. A ascensão de uma nova classe dominante – muito mais extensa em suas raízes e mais vital em seu conteúdo do que a anterior – renovará aumentará as energias mentais e morais da humanidade. O progresso da humanidade aparecerá então dividido nas seguintes etapas principais: Antiguidade (regime escravista); Idade Média (regime de servidão); Capitalismo (regime de salários): Socialismo (regime de igualdade social). Os vinte, trinta ou cinquenta anos que durará a revolução proletária, diz Trotski, marcarão uma época de transição.
Mas esse homem que tão sutil e profundamente teoriza é o mesmo que discursava e passava em revista o Exército Vermelho? Algumas pessoas não conhecem senão o Trotski de perfil marcial de tantos retratos e caricaturas. O Trotski do trem blindado, o Trotski ministro da Guerra e generalíssimo, o Trotski que ameaça a Europa com uma invasão napoleônica. E esse Trotski, na verdade, não existe. É quase unicamente uma invenção da imprensa. O Trotski real, o Trotski verdadeiro, é aquele que nos revelam seus escritos. Um livro fornece sobre um homem uma imagem sempre mais exata e verídica do que um uniforme. Um generalíssimo não pode filosofar tão humana e humanitariamente. Vós podei imaginar Foch, Ludendorff ou Douglas Haig com a atitude mental de Trotski?
A ficção do Trotski marcial, do Trotski napoleônico, procede de um só aspecto do rol desse célebre revolucionário da Rússia dos sovietes: o comando do Exército Vermelho. Como é notório, Trotski ocupou primeiramente o Comissariado de Negócios Estrangeiros. Porém, o final enviesado das negociações do Tratado de Brest-Litovski* obrigou-o a abandonar esse ministério. Trotski quis que a Rússia se opusesse ao militarismo alemão com uma atitude tolstoiana**: que rechaçasse a paz que lhe era imposta e cruzasse os braços, indefesa diante do adversário. Lenin, com maior sensibilidade política, preferiu a capitulação. Transladado ao Comissariado de Guerra, Trotski recebeu o encargo de organizar o Exército Vermelho. Nessa função, Trotski mostrou sua capacidade de organizador e realizador. O exército russo estava dissolvido. A queda do czarismo, o processo da revolução e a liquidação da guerra produziram seu aniquilamento. Os sovietes careciam de elementos para reconstruí-lo. Apenas sobraram dispersos alguns materiais bélicos. Os chefes e oficiais monarquistas, por causa de sua evidente disposição reacionária, não podiam ser utilizados. Momentaneamente, Trotski tratou de se servir do auxilio técnico das missões militares aliadas, explorando o interesse da Entente em recuperar a ajuda da Rússia contra a Alemanha. Mas essas missões desejavam, antes de tudo, a queda dos bolcheviques. E, se fingem fazer um pacto com eles, era para melhor miná-los. Nas missões aliadas, Trotski encontrou somente um colaborador leal: o capitão Jacques Sadoul, membro da embaixada francesa que acabou por aderir à Revolução, fascinado por seus ideais e por seus homens. Os sovietes, por fim, tiveram de expulsar da Rússia os diplomatas e militares da Entente. E, dominando todas as dificuldades, Trotski chegou a criar um poderoso exército, que defendeu vitoriosamente a Revolução dos ataques de seus inimigos externos e internos. O núcleo inicial desse exército foram 200 mil voluntários da vanguarda e juventude comunistas. Contudo, no período de maior risco para os sovietes, Trotski comandou um exército de mais de 5 milhões de soldados.
E, assim como o seu ex-generalíssimo, o Exército Vermelho é um caso novo na história militar do mundo. É um exército que sente seu papel de exército revolucionário e não se esquece que seu fim é a defesa da Revolução. Dentre suas motivações, finalmente, está excluído todo sentimento específico e marcialmente imperialista. Sua disciplina, organização e estrutura são revolucionárias. E talvez, enquanto o generalíssimo escrevia um artigo sobre Romain Rolland, os soldados evocassem Tolstói ou lessem Kropotkin.”
* Tratado de paz assinado entre o governo bolchevique e as potências centrais (a Bulgária e os impérios alemão, austro-húngaro c otomano) na cidade de mesmo nome, hoje simplesmente Brest (na Bielorrússia). (N. T.)
** Na velhice, o escritor Leon Tolstoi tornou-se pacifista, pregando uma vida simples e próxima da natureza. (N.T)


“A uma revolução não se pode exigir tribunais nem códigos-modelo. A revolução formula os princípios de um novo direito; mas não codifica a técnica de sua aplicação.”


“Ortega y Gasset diz que a juventude “poucas vezes tem razão no que nega, mas sempre tem razão no que afirma”. A isso se poderia acrescentar que a força propulsora da história são as afirmações, e não as negações.”


“Não se pode predizer uma revolução segundo prazos fixos – e, sobretudo, uma revolução não acontece de um só golpe. É uma obra de multidões. É uma obra da história. Os comunistas sabem bem disso. Sua teoria e sua práxis se formaram na escola e na experiência do materialismo histórico. Portanto, não é provável que se alimentam de ilusões.”


“Em sua vaidosa juventude, a civilização ocidental tratou os povos orientais altaneira e desdenhosamente. O homem branco considerou necessário, natural e lícito seu domínio sobre o homem de cor. Usou as palavras oriental e bárbaro como equivalentes. Pensou que apenas o que era ocidental era civilizado. A exploração e a colonização do Oriente nunca foram ofício de intelectuais, mas de comerciantes e guerreiros. Os ocidentais desembarcavam no Oriente suas mercadorias e metralhadoras, mas não suas organizações nem suas aptidões espirituais para pesquisa, interpretação e entendimento. O Ocidente se preocupou em consumar a conquista material do mundo oriental; mas não em buscar sua conquista moral. E assim o mundo oriental conservou intactas sua mentalidade e sua psicologia. Até hoje seguem frescas e vitais as raízes milenares do islamismo e do budismo. O hindu* ainda veste seu velho khaddar. O japonês – que é o mais saturado de ocidentalismo dentre os orientais – guarda algo de sua essência samurai.”
*: Note-se que Mariátegui, por vezes, refere-se ao indiano como hindu, no sentido mais amplo dessa denominação, a qual também, mais estritamente, pode ser usada para designar os hinduístas (seguidores do hinduísmo) – ainda que na Índia haja diversas outras religiões minoritárias, como o islamismo. (N. T.)


“O utopista não é um verdadeiro revolucionário, por mais subversivas que sejam suas ações contra a ordem.” (Henri Barbusse)


“O problema de hoje é mundial. Nenhum povo pode encontrar sua saúde separando-se dos outros. Ou salvam-se todos juntos ou desaparecem juntos.” (Romain Rolland)


“Mas, se a democracia burguesa não efetivou o feminismo, criou involuntariamente as condições e premissas morais e materiais para sua realização. Valo rizou a mulher como elemento produtor – como fator econômico – ao fazer seu trabalho ter a cada dia um uso mais amplo e intenso. O trabalho muda radicalmente a mentalidade e o espírito femininos. Em virtude do trabalho, a mulher adquire uma nova noção de si mesma. Antigamente, a sociedade destinava a mulher ao matrimônio ou ao concubinato. Atualmente, destina-a antes de tudo ao trabalho. Esse fato modificou e elevou a posição da mulher na vida. Os que contestam o feminismo e seus progressos com argumentos sentimentais ou tradicionalistas têm a pretensão de que a mulher seja educada apenas para o lar. Na prática, porém, isso significa que ela deveria ser educada somente para as funções de fêmea e mãe. A defesa da poesia do lar, na realidade, é uma defesa da servidão da mulher. Em vez de enobrecer e dignificar o papel da mulher, isso o diminui e rebaixa. A mulher é algo mais do que uma mãe ou uma fêmea, assim como o homem é algo mais do que um macho.
O tipo de mulher que vier a produzir uma civilização nova tem de ser substancialmente diferente daquele que formou a civilização que ora declina. Em um artigo sobre a mulher e a política, examinei assim alguns aspectos desse tema:
Aos trovadores e apaixonados pela frivolidade feminina, não faltam razões para se inquietar. O tipo de mulher criado por um século de refinamento capitalista está condenado à decadência e à superação. Um literato italiano – Pitigrilli – classifica esse tipo de mulher contemporânea como um mamífero de luxo.
Mas, bem, esse mamífero de luxo tende a se esgotar pouco a pouco. À medida que o sistema coletivista substituir o sistema individualista, decairão o luxo e a elegância femininos. A humanidade perderá alguns mamíferos de luxo; mas ganhará muitas mulheres. Os trajes da mulher do futuro serão menos caros e suntuosos; mas a condição dessa mulher será mais digna. E o eixo da vida feminina será deslocado do individual ao social. A moda, então, já não consistirá na imitação de uma moderna Madame de Pompadour*, adornada por [Madame] Paquin. Mas talvez consiste na imitação de uma Madame Kollontai**. Em suma, uma mulher custará menos, mas valerá mais.”
* Jeanne-Antoinette Poisson: cortesã francesa do século XVIII, tida como mulher refinada, bela e fria. (N. T.)
** Alexandra Mikhailovna Kollontai: revolucionária bolchevique e líder do movimento feminista. (N. T.)