sábado, 2 de janeiro de 2021

Manuscritos econômico-filosóficos (Parte I), de Karl Marx

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-002-7

Tradução: Jesus Rainieri

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 176

Link para compra: Clique aqui

Sinopse: Com tradução, introdução e notas de Jesus Ranieri e uma cronologia da vida de Karl Marx, a Boitempo Editorial está lançando os Manuscritos econômico-filosóficos, dentro do seu projeto de publicar no Brasil a obra completa de Marx, em novas traduções direto do alemão.

Publicados apenas após sua morte, os Manuscritos foram escritos em 1844, quando Marx tinha apenas 26 anos e antes do seu célebre encontro com Engels. Os Manuscritos econômico-filosóficos ou Manuscritos de Paris apresentam a planta fundamental do pensamento de Marx: a concentração de sua filosofia na crítica da economia nacional de Adam Smith, J.B. Say e David Ricardo. Na obra, Marx expõe a discrepância entre moral e economia, denunciando a radicalidade da exploração do homem pela empresa capitalista. Enquanto a reprodução do capital é o único objetivo da produção, o trabalhador ganha apenas para sustentar suas necessidades mais vitais, ou seja, para não morrer e poder continuar produzindo.

O fundamento da teoria da mais-valia, desenvolvida mais tarde em O Capital, já é antecipado nos Manuscritos. O estranhamento do mesmo trabalhador, fazedor de um produto que não lhe pertence, também é esboçado.

Aqui, Marx dá sinais de sua passagem do idealismo hegeliano ao materialismo dialético e declara a necessidade de “uma ação comunista efetiva” a fim de superar a propriedade privada. Se muitos dos capítulos da obra são apenas esboços, ela não deixa de oferecer um desenvolvimento quase absoluto da compreensão geral de Marx acerca das relações íntimas entre liberdade, economia e sociedade, em ensaios às vezes geniais – e inclusive acabados – como é o caso de “Dinheiro”, o último capítulo dos Manuscritos.

 


“Somente para o trabalhador a separação de capital, propriedade da terra e trabalho é uma separação necessária, essencial e perniciosa. Capital e propriedade fundiária não precisam estacionar nessa abstração, mas o trabalho do trabalhador, sim.

Para o trabalhador, portanto, a separação de capital, renda da terra e trabalho é mortal.

 

 

“O capital é trabalho acumulado.”

 

 

“A elevação do salário desperta no trabalhador a obsessão do enriquecimento típica do capitalista que, contudo, ele apenas pode satisfazer mediante o sacrifício de seu espírito e de seu corpo. A elevação do salário pressupõe o acúmulo de capital, e conduz a ele. Torna, portanto, o produto do trabalho cada vez mais estranho perante o trabalhador. De igual modo, a divisão do trabalho torna-o cada vez mais unilateral e dependente, assim como acarreta a concorrência não só dos homens, mas também entre máquinas. Posto que o trabalhador baixou à condição de máquina, a máquina pode enfrentá-lo como concorrente.”

 

 

“Coloquemo-nos agora totalmente do ponto de vista do economista nacional* e comparemos, segundo ele, as reivindicações teóricas e práticas do trabalhador.

Ele nos diz que, originária e conceitualmente, o produto total do trabalho pertence ao trabalhador21. Mas ele nos diz, ao mesmo tempo, que, na realidade efetiva, ao trabalhador pertence a parte mínima e mais indispensável do produto; somente tanto quanto for necessário para ele existir, não como ser humano, mas como trabalhador, não para ele continuar reproduzindo a humanidade, mas sim a classe de escravos que é a dos trabalhadores22.

Diz-nos o economista nacional que tudo é comprado com trabalho, e que o capital nada mais é do que trabalho acumulado23. Mas ele nos diz, simultaneamente, que o trabalhador, longe de poder comprar tudo, tem de vender-se a si próprio e a sua humanidade. (...)

Segundo o economista nacional, enquanto o trabalho é o único meio pelo qual o homem aumenta o valor dos produtos da natureza, enquanto o trabalho é sua propriedade ativa, na opinião da mesma economia nacional o proprietário fundiário e o capitalista – que, enquanto proprietário fundiário e capitalista, são meramente deuses privilegiados e ociosos – sobrepujam por toda parte o trabalhador e lhe ditam leis.

Enquanto, segundo o economista nacional, o trabalho é unicamente o preço constante das coisas, nada é mais acidental, nada está exposto a maiores flutuações do que o preço do trabalho.

Enquanto a divisão do trabalho eleva a força produtiva do trabalho, a riqueza e o aprimoramento da sociedade, ela empobrece o trabalhador até a condição de máquina. Enquanto o trabalho suscita o acúmulo de capitais e, com isso, o progressivo bem-estar da sociedade, a divisão do trabalho mantém o trabalhador sempre mais dependente do capitalista, leva-o a maior concorrência, impele-o à caça da sobreprodução, que é seguida por uma correspondente queda de intensidade.

Enquanto o interesse do trabalhador, segundo o economista nacional, nunca se contrapõe ao interesse da sociedade27, a sociedade contrapõe-se, sempre e necessariamente, ao interesse do trabalhador. (...)

Afirmo, porém, que o trabalho – não apenas sob as condições atuais, mas também na medida em que, em geral, sua finalidade é a mera ampliação da riqueza – é pernicioso, funesto. Isso decorre, sem que o economista nacional o saiba, de seus próprios desenvolvimentos.

Segundo o conceito, renda fundiária e ganho de capital são deduções que o salário sofre. Mas, na realidade efetiva, o salário é uma dedução que terra e capital permitem chegar ao trabalhador, uma concessão do produto do trabalho ao trabalhador, ao trabalho.

Mas, na situação em progresso da sociedade, o declínio e o empobrecimento do trabalhador são o produto de seu trabalho e da riqueza por ele produzida. A miséria que resulta, portanto, da essência do trabalho hodierno mesmo.

A situação mais rica da sociedade – um ideal que é, contudo, aproximadamente alcançado, é pelo menos a finalidade da economia nacional, assim como da sociedade burguesa – é miséria estacionária para os trabalhadores. É evidente por si mesmo que a economia nacional considere apenas como trabalhador o proletário, isto é, aquele que, sem capital e renda da terra, vive puramente do trabalho, e de um trabalho unilateral, abstrato. Ela pode, por isso, estabelecer a proposição de que ele, tal como todo cavalo, tem de receber o suficiente para poder trabalhar. Ela não o considera como homem no seu tempo livre-de-trabalho, mas deixa, antes, essa consideração para a justiça criminal, os médicos, a religião, as tabelas estatísticas, a política e o curador da miséria social.

* A opção por “economia nacional” (e economista nacional), em vez de “economia política” (ou economista político) é do próprio Marx. Economistas burgueses ingleses e franceses utilizavam, correntemente, political economy e économie politique, mas aos alemães era mais próximo o termo Nationalokonomie. O próprio Marx teria pronunciado, também nos Anais franco-alemães, quando da caracterização da diversidade de desenvolvimentos das diferentes cidades francesas e inglesas, comparadas às alemãs, algo a respeito da oposição entre economia política e economia nacional. Somente mais tarde ele irá converter, nos seus escritos, o conceito de “economia nacional” para “economia política”. Importa salientar igualmente que “economia nacional” diz respeito, dependendo do contexto, tanto ao sistema econômico quanto às suas teorizações.

21 Vide Marx, Karl. Exzerpte aus Adam Smith: Recherches Recherches sur la nature et les causes de la richesse des nations, MEGA, IV/2, p. 341.16-21, 344.34-36 e 346.4-6.

22 lbid., p. 347.9-14 e 348.1-2.

23 lbid., p. 338.27-341.15 e 360.8-9.

27 lbid., p. 356.26-27

 

 

“Mas a economia nacional conhece o trabalhador apenas como animal de trabalho, como uma besta reduzida às mais estritas necessidades corporais.”

 

 

“O capital é, portanto, o poder de governo sobre o trabalho e os seus produtos. O capitalista possui esse poder, não por causa de suas qualidades pessoais ou humanas, mas na medida em que ele é proprietário do capital. O poder de comprar do seu capital, a que nada pode se opor, é o seu poder.”

 

 

“Os ganhos do capital também sobem mediante a facilitação ou baixa dispendiosidade dos meios de circulação (por exemplo, papel-moeda).”

 

 

“Alugar o seu trabalho é começar a sua escravidão.” (Constantine Pecqueur)

 

 

“Sob o domínio da propriedade privada, o interesse que um indivíduo tem na sociedade está precisamente em relação inversa ao interesse que a sociedade tem nele, tal como o interesse do agiota pelo perdulário não é, de maneira nenhuma, idêntico ao interesse do perdulário.”

 

 

TRABALHO ESTRANHADO E PROPRIEDADE PRIVADA

Partimos dos pressupostos da economia nacional. Aceitamos sua linguagem e suas leis. Supusemos a propriedade privada, a separação de trabalho, capital e terra, igualmente do salário, lucro de capital e renda da terra, da mesma forma que a divisão do trabalho, a concorrência, o conceito de valor de troca etc. A partir da própria economia nacional, com suas próprias palavras, constatamos que o trabalhador baixa à condição de mercadoria e à de mais miserável mercadoria, que a miséria do trabalhador põe-se em relação inversa à potência e à grandeza da sua produção, que o resultado necessário da concorrência é a acumulação de capital em poucas mãos, portanto a mais tremenda restauração do monopólio, que no fim a diferença entre o capitalista e o rentista fundiário desaparece, assim como entre o agricultor e o trabalhador em manufatura, e que, no final das contas, toda a sociedade tem de decompor-se nas duas classes dos proprietários e dos trabalhadores sem propriedade.

A economia nacional parte do fato dado e acabado da propriedade privada. Não nos explica o mesmo. Ela percebe o processo material da propriedade privada, que passa, na realidade, por fórmulas gerais, abstratas, que passam a valer como leis para ela. Não concebe estas leis, isto é, não mostra como têm origem na essência da propriedade privada. A economia nacional não nos dá esclarecimento algum a respeito do fundamento da divisão entre trabalho e capital, entre capital e terra. Quando ela, por exemplo, determina a relação do salário com o lucro de capital, o que lhe vale como razão última é o interesse do capitalista; ou seja, ela supõe o que deve desenvolver. Do mesmo modo, a concorrência entra por toda parte. É explicada a partir de circunstâncias exteriores. Até que ponto estas circunstâncias exteriores, aparentemente casuais, são apenas a expressão de um desenvolvimento necessário, sobre isto a economia nacional nada nos ensina. Vimos como inclusive a troca parece a ela um fato meramente acidental. As únicas rodas que o economista nacional põe em movimento são a ganância e a guerra entre os gananciosos, a concorrência.

Justamente pelo fato de a economia nacional não compreender a conexão do movimento, ela pôde novamente opor, por exemplo, a doutrina da concorrência à doutrina do monopólio, a doutrina da liberdade industrial à doutrina da corporação, a doutrina da divisão da posse da terra à doutrina da grande propriedade fundiária, pois concorrência, liberdade industrial, divisão da posse da terra eram desenvolvidas e concebidas apenas como consequências acidentais, deliberadas, violentas, e não como consequências necessárias, inevitáveis, naturais do monopólio, da corporação e da propriedade feudal.

Agora temos, portanto, de conceber a interconexão essencial entre a propriedade privada, a ganância, a separação de trabalho, capital e propriedade da terra, de troca e concorrência, de valor e desvalorização do homem, de monopólio e concorrência etc., de todo este estranhamento com o sistema do dinheiro.

Não nos desloquemos, como faz o economista nacional quando quer esclarecer algo, a um estado primitivo imaginário1. Um tal estado primitivo nada explica. Ele simplesmente empurra a questão para uma região nebulosa, cinzenta. Supõe na forma do fato, do acontecimento, aquilo que deve deduzir, notadamente a relação necessária entre duas coisas, por exemplo entre divisão do trabalho e troca. Assim o teólogo explica a origem do mal pelo pecado original, isto é, supõe como um fato dado e acabado, na forma da história, o que deve explicar.

Nós partimos de um fato nacional-econômico, presente.

O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral.

Este fato nada mais exprime, senão: o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisal, é a objetivação do trabalho. A efetivação do trabalho é a sua objetivação. Esta efetivação do trabalho aparece ao estado nacional-econômico como desefetivação do trabalhador, a objetivação como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento (Entfremdung), como alienação (Entäusserung).

A efetivação do trabalho tanto aparece como desefetivação que o trabalhador é desefetivado até morrer de fome. A objetivação tanto aparece como perda do objeto que o trabalhador é despojado dos objetos mais necessários não somente à vida, mas também dos objetos do trabalho. Sim, o trabalho mesmo se torna um objeto, do qual o trabalhador só pode se apossar com os maiores esforços e com as mais extraordinárias interrupções. A apropriação do objeto tanto aparece como estranhamento que, quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital.

Na determinação de que o trabalhador se relaciona com o produto de seu trabalho como com um objeto estranho estão todas estas consequências. Com efeito, segundo este pressuposto está claro: quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando, tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio, que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, e tanto menos o trabalhador pertence a si próprio. É do mesmo modo na religião. Quanto mais o homem põe em Deus, tanto menos ele retém em si mesmo. O trabalhador encerra a sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a ele, mas sim ao objeto. Por conseguinte, quão maior esta atividade, tanto mais sem-objeto é o trabalhador. Ele não é o que é o produto do seu trabalho. Portanto, quanto maior este produto, tanto menor ele mesmo é. A exteriorização do trabalhador em seu produto tem o significado não somente de que seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa, mas, bem além disso, que se torna uma existência que existe fora dele, independente dele e estranha a ele, tornando-se uma potência autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e estranha.

Examinemos agora mais de perto a objetivação, a produção do trabalhador, e nela o estranhamento, a perda do objeto, do seu produto.

O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensível. Ela é a matéria na qual o seu trabalho se efetiva, na qual o trabalho é ativo, e a partir da qual e por meio da qual o trabalho produz.

Mas como a natureza oferece os meios de vida, no sentido de que o trabalho não pode viver sem objetos nos quais se exerça, assim também oferece, por outro lado, os meios de vida no sentido mais estrito, isto é, o meio de subsistência física do trabalhador mesmo.

Quanto mais, portanto, o trabalhador se apropria do mundo externo, da natureza sensível, por meio do seu trabalho, tanto mais ele se priva dos meios de vida segundo um duplo sentido: primeiro, que sempre mais o mundo exterior sensível deixa de ser um objeto pertencente ao seu trabalho, um meio de vida do seu trabalho; segundo, que o mundo exterior sensível cessa, cada vez mais, de ser meio de vida no sentido imediato, meio para a subsistência física do trabalhador.

Segundo este duplo sentido, o trabalhador se torna, portanto, um servo do seu objeto. Primeiro, porque ele recebe um objeto do trabalho, isto é, recebe trabalho; e, segundo, porque recebe meios de subsistência. Portanto, para que possa existir, em primeiro lugar, como trabalhador e, em segundo, como sujeito físico. O auge desta servidão é que somente como trabalhador ele pode2 se manter como sujeito físico e apenas como sujeito físico ele é trabalhador.

(O estranhamento do trabalhador em seu objeto se expressa, pelas leis nacional-econômicas, em que quanto mais o trabalhador produz, menos tem para consumir; que quanto mais valores cria, mais sem-valor e indigno ele se torna; quanto mais bem formado o seu produto, tanto mais deformado ele fica; quanto mais civilizado seu objeto, mais bárbaro o trabalhador; que quanto mais poderoso o trabalho, mais impotente o trabalhador se torna; quanto mais rico de espírito o trabalho, mais pobre de espírito e servo da natureza se torna o trabalhador.)

A economia nacional oculta o estranhamento na essência do trabalho porque não considera a relação imediata entre o trabalhador (o trabalho) e a produção. Sem dúvida. O trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Produz palácios, mas cavernas para o trabalhador. Produz beleza, mas deformação para o trabalhador. Substitui o trabalho por máquinas, mas lança uma parte dos trabalhadores de volta a um trabalho bárbaro e faz da outra parte máquinas. Produz espírito, mas produz imbecilidade, cretinismo para o trabalhador.

A relação imediata do trabalho com os seus produtos é a relação do trabalhador com os objetos da sua produção. A relação do abastado com os objetos da produção e com ela mesma é somente uma consequência desta primeira relação. E a confirma. (...) Se portanto perguntamos: qual a relação essencial do trabalho, então perguntamos pela relação do trabalhador com a produção.

Até aqui examinamos o estranhamento, a exteriorização do trabalhador sob apenas um dos seus aspectos, qual seja, a sua relação com os produtos do seu trabalho. Mas o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas também, e principalmente, no ato da produção, dentro da própria atividade produtiva. Como poderia o trabalhador defrontar-se alheio ao produto da sua atividade se no ato mesmo da produção ele não se estranhasse a si mesmo? O produto é, sim, somente o resumo da atividade, da produção. Se, portanto, o produto do trabalho é a exteriorização, então a produção mesma tem de ser a exteriorização ativa, a exteriorização da atividade, a atividade da exteriorização. No estranhamento do objeto do trabalho resume-se somente o estranhamento, a exteriorização na atividade do trabalho mesmo.

Em que consiste, então, a exteriorização do trabalho?

Primeiro, que o trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína o seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si quando fora do trabalho e fora de si quando no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua estranheza evidencia-se aqui de forma tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de autossacrifício, de mortificação. Finalmente, a externalidade do trabalho aparece para o trabalhador como se o trabalho não fosse seu próprio, mas de um outro, como se o trabalho não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro. Assim como na religião a autoatividade da fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, atua independentemente do indivíduo e sobre ele, isto é, como uma atividade estranha, divina ou diabólica, assim também a atividade do trabalhador não é a sua autoatividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo.

Chega-se, por conseguinte, ao resultado de que o homem (o trabalhador) só se sente como ser livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adornos etc., e em suas funções humanas só se sente como animal. O animal se torna humano, e o humano, animal.

Comer, beber e procriar etc., são também, é verdade, funções genuinamente humanas. Porém na abstração que as separa da esfera restante da atividade humana, e faz delas finalidades últimas e exclusivas, são funções animais.

Examinamos o ato do estranhamento da atividade humana prática, o trabalho, sob dois aspectos. 1) A relação do trabalhador com o produto do trabalho como objeto estranho e poderoso sobre ele. Esta relação é ao mesmo tempo a relação com o mundo exterior sensível, com os objetos da natureza como um mundo alheio que se lhe defronta hostilmente. 2) A relação do trabalho com ato da produção no interior do trabalho. Esta relação é a relação do trabalhador com a sua própria atividade como uma atividade estranha não pertencente a ele, a atividade como miséria, a força como impotência, a procriação como castração. A energia espiritual e física própria do trabalhador, a sua vida pessoal – pois o que é vida senão atividade – como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente dele, não pertencente a ele. O estranhamento-de-si, tal qual acima o estranhamento da coisa.

Temos agora ainda uma terceira determinação do trabalho estranhado a extrair das duas vistas até aqui.

O homem é um ser genérico, não somente quando prática e teoricamente faz do gênero, tanto do seu próprio quanto do restante das coisas, o seu objeto, mas também – e isto é somente uma outra expressão da mesma coisa – quando se relaciona consigo mesmo como com o gênero vivo, presente, quando se relaciona consigo mesmo como com um ser universal, e por isso livre.

A vida genérica, tanto no homem quanto no animal, consiste fisicamente, em primeiro lugar, nisto: que o homem (tal qual o animal) vive da natureza inorgânica, e quanto mais universal o homem é do que o animal, tanto mais universal é o domínio da natureza inorgânica da qual ele vive. Assim como plantas, animais, pedras, ar, luz etc., formam teoricamente uma parte da consciência humana, em parte como objetos da ciência natural, em parte como objetos da arte – sua natureza inorgânica, meios de vida espirituais, que ele tem de preparar prioritariamente para a fruição e para a digestão –, formam também praticamente uma parte da vida humana e da atividade humana. Fisicamente o homem vive somente destes produtos da natureza, possam eles aparecer na forma de alimento, aquecimento, vestuário, habitação etc. Praticamente, a universalidade do homem aparece precisamente na universalidade que faz da natureza inteira o seu corpo inorgânico, tanto na medida em que ela é 1) um meio de vida imediato, quanto na medida em que ela é o objeto/matéria e o instrumento de sua atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza enquanto ela mesma não é corpo humano. O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do homem está interconectada com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza.

Na medida em que o trabalho estranhado 1) estranha do homem a natureza, 2) e o homem de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital; ela estranha do homem o gênero humano. Faz-lhe da vida genérica apenas um meio da vida individual. Primeiro, estranha a vida genérica, assim como a vida individual. Segundo, faz da última em sua abstração um fim da primeira, igualmente em sua forma abstrata e estranhada.

Pois primeiramente o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva mesma aparece ao homem apenas como um meio para a satisfação de uma carência, a necessidade de manutenção da existência física. A vida produtiva é, porém, a vida genérica. É a vida engendradora de vida. No modo da atividade vital encontra-se o caráter inteiro de uma species, seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem. A vida mesma aparece só como meio de vida.

O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinidade com a qual ele coincide imediatamente. A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal. Justamente, e só por isso, ele é um ser genérico. Ou ele somente é um ser consciente, isto é, a sua própria vida lhe é objeto, precisamente porque é um ser genérico. Eis por que a sua atividade é atividade livre. O trabalho estranhado inverte a relação a tal ponto que o homem, precisamente porque é um ser consciente, faz da sua atividade vital, da sua essência, apenas um meio para sua existência.

O engendrar prático de um mundo objetivo, a elaboração da natureza inorgânica é a prova do homem enquanto um ser genérico consciente, isto é, um ser que se relaciona com o gênero enquanto sua própria essência ou se relaciona consigo enquanto ser genérico. É verdade que também o animal produz. Constrói para si um ninho, habitações, como a abelha, castor, formiga etc. No entanto, produz apenas aquilo de que necessita imediatamente para si ou sua cria; produz unilateralmente, enquanto o homem produz universalmente; o animal produz apenas sob o domínio da carência física imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da carência física, e só produz, primeira e verdadeiramente, na sua liberdade com relação a ela; o animal só produz a si mesmo, enquanto o homem reproduz a natureza inteira; no animal, o seu produto pertence imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o homem se defronta livremente com o seu produto. O animal forma apenas segundo a medida e a carência da species à qual pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer species, e sabe considerar, por toda a parte, a medida inerente ao objeto; o homem também forma, por isso, segundo as leis da beleza.

Precisamente por isso, na elaboração do mundo objetivo é que o homem se confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico. Esta produção é a sua vida genérica operativa. Através dela a natureza aparece como a sua obra e a sua efetividade. O objeto do trabalho é portanto a objetivação da vida genérica do homem: quando o homem se duplica não apenas na consciência, intelectualmente, mas operativa, efetivamente, contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele. Consequentemente, quando arranca do homem o objeto de sua produção, o trabalho estranhado arranca-lhe sua vida genérica, sua efetiva objetividade genérica e transforma a sua vantagem com relação ao animal na desvantagem de lhe ser tirado o seu corpo inorgânico, a natureza.

Igualmente, quando o trabalho estranhado reduz a autoatividade, a atividade livre, a um meio, ele faz da vida genérica do homem um meio de sua existência física.

A consciência que o homem tem do seu gênero se transforma, portanto, mediante o estranhamento, de forma que a vida genérica se torna para ele um meio.

O trabalho estranhado faz, por conseguinte:

3) do ser genérico do homem, tanto da natureza quanto da faculdade genérica espiritual dele, um ser estranho a ele, um meio da sua existência individual. Estranha do homem o seu próprio corpo, assim como a natureza fora dele, tal como a sua essência espiritual, a sua essência humana.

4) uma consequência imediata disto, de o homem estar estranhado do produto do seu trabalho, de sua atividade vital e de seu ser genérico é o estranhamento do homem pelo próprio homem. Quando o homem está frente a si mesmo, defronta-se com ele o outro homem. O que é produto da relação do homem com o seu trabalho, produto de seu trabalho e consigo mesmo, vale como relação do homem com outro homem, como o trabalho e o objeto do trabalho de outro homem.

Em geral, a questão de que o homem está estranhado do seu ser genérico quer dizer que um homem está estranhado do outro, assim como cada um deles está estranhado da essência humana.

O estranhamento do homem, em geral toda a relação na qual o homem está diante de si mesmo, é primeiramente efetivado, se expressa, na relação em que o homem está para com o outro homem.

Na relação do trabalho estranhado cada homem considera, portanto, o outro segundo o critério e a relação na qual ele mesmo se encontra como trabalhador.

Partimos de um factum nacional-econômico, do estranhamento do trabalhador e de sua produção. Expressamos o conceito deste factum, o trabalho estranhado, exteriorizado. Analisamos este conceito, analisamos, por conseguinte, apenas um factum nacional-econômico.

Continuemos agora a observar como tem de se enunciar e expor, na efetividade, o conceito de trabalho estranhado, exteriorizado.

Se o produto do trabalho me é estranho, se ele defronta-se comigo como poder estranho, a quem pertence então?

Se minha própria atividade não me pertence, é uma atividade estranha, forçada, a quem ela pertence, então?

A outro ser que não eu.

Quem é este ser?

Os deuses? Evidentemente nas primeiras épocas a produção principal, como por exemplo a construção de templos etc., no Egito, na Índia, México, aparece tanto a serviço dos deuses, como também o produto pertence a eles. Sozinhos, porém, os deuses nunca foram os senhores do trabalho. Tampouco a natureza. E que contradição seria também se o homem, quanto mais subjugasse a natureza pelo seu trabalho, quanto mais os prodígios dos deuses se tornassem obsoletos mediante os prodígios da indústria, tivesse de renunciar à alegria na produção e à fruição do produto por amor a esses poderes.

O ser estranho ao qual pertence o trabalho e o produto do trabalho, para o qual o trabalho está a serviço e para a fruição do qual está o produto do trabalho, só pode ser o homem mesmo.

Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, um poder estranho que está diante dele, então isto só é possível pelo fato de o produto do trabalho pertencer a um outro homem fora o trabalhador. Se sua atividade lhe é martírio, então ela tem de ser fruição para um outro e alegria de viver para um outro. Não os deuses, não a natureza, apenas o homem mesmo pode ser este poder estranho sobre o homem.

Considere-se ainda a proposição colocada antes, de que a relação do homem consigo mesmo lhe é primeiramente objetiva, efetiva, pela sua relação com o outro homem. Se ele se relaciona, portanto, com o produto do seu trabalho, com o seu trabalho objetivado, enquanto objeto estranho, hostil, poderoso, independente dele, então se relaciona com ele de forma tal que um outro homem estranho a ele, inimigo, poderoso, independente dele, é o senhor deste objeto. Se ele se relaciona com a sua própria atividade como uma atividade não-livre, então ele se relaciona com ela como a atividade a serviço de, sob o domínio, a violência e o jugo de um outro homem.

Todo autoestranhamento do homem de si e da natureza aparece na relação que ele outorga a si e à natureza para com os outros homens diferenciados de si mesmo. Por isso o autoestranhamento religioso aparece necessariamente na relação do leigo com o sacerdote ou também, visto que aqui se trata do mundo intelectual, de um mediador etc. No mundo prático-efetivo o autoestranhamento só pode aparecer através da relação prático-efetiva com outros homens. O meio pelo qual o estranhamento procede é ele mesmo um meio prático. Através do trabalho estranhado o homem engendra, portanto, não apenas sua relação com o objeto e o ato de produção enquanto homens que lhe são estranhos e inimigos; ele engendra também a relação na qual outros homens estão para a sua produção e o seu produto, e a relação na qual ele está para com estes outros homens. Assim como ele engendra a sua própria produção para a sua desefetivação, para o seu castigo, assim como engendra o seu próprio produto para a perda, um produto não pertencente a ele, ele engendra também o domínio de quem não produz sobre a produção e sobre o produto. Tal como estranha de si a sua própria atividade, ele apropria para o estranho a atividade não própria deste. (...)

Através do trabalho estranhado, exteriorizado, o trabalhador engendra, portanto, a relação de alguém estranho ao trabalho – do homem situado fora dele – com este trabalho. A relação do trabalhador com o trabalho engendra a relação do capitalista (ou como se queira nomear o senhor do trabalho) com o trabalho.

A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado, a consequência necessária do trabalho exteriorizado, da relação externa do trabalhador com a natureza e consigo mesmo.

A propriedade privada resulta portanto, por análise, do conceito de trabalho exteriorizado, isto é, de homem exteriorizado, de trabalho estranhado, de vida estranhada, de homem estranhado.

Herdamos certamente o conceito de trabalho exteriorizado (de vida exteriorizada) da economia nacional como resultado do movimento da propriedade privada. Mas evidencia-se na análise desse conceito que, se a propriedade privada aparece como fundamento, como razão do trabalho exteriorizado, ela é antes uma consequência do mesmo, assim como também os deuses são, originariamente, não a causa, mas o efeito do erro do entendimento humano. Mais tarde esta relação se transforma em ação recíproca.

Somente no derradeiro ponto de culminância do desenvolvimento da propriedade privada vem à tona novamente este seu mistério, qual seja: que é, por um lado, o produto do trabalho exteriorizado e, em segundo lugar, que é o meio através do qual o trabalho se exterioriza, a realização desta exteriorização.

Este desenvolvimento lança luz imediatamente sobre diversos conflitos até agora insolúveis.

1) A economia nacional parte do trabalho como sendo propriamente a alma da produção, e, apesar disso, nada concede ao trabalho e tudo à propriedade privada. Proudhon, a partir desta contradição, concluiu em favor do trabalho e contra a propriedade privada3. Nós reconhecemos, porém, que esta aparente contradição é a contradição do trabalho estranhado consigo mesmo, e que a economia nacional apenas enunciou as leis do trabalho estranhado.

Por isso também reconhecemos que salário e propriedade privada são idênticos, pois o salário (onde o produto, o objeto do trabalho, paga o próprio trabalho) é somente uma consequência necessária do estranhamento do trabalho, assim como no salário também o trabalho aparece não como fim em si, mas como o servidor do salário. Desenvolveremos isto mais tarde e agora apenas nos limitamos a deduzir algumas consequências.

Uma violenta elevação do salário (abstraindo de todas as outras dificuldades, abstraindo que, como uma anomalia, ela também só seria mantida com violência) nada seria além de um melhor assalariamento do escravo e não teria conquistado nem ao trabalhador nem ao trabalho a sua dignidade e determinação humanas.

Mesmo a igualdade de salários, como quer Proudhon, transforma somente a relação do trabalhador contemporâneo com o seu trabalho na relação de todos os homens com o trabalho. A sociedade é, nesse caso, compreendida como um capitalista abstrato.

Salário é uma consequência imediata do trabalho estranhado, e o trabalho estranhado é a causa imediata da propriedade privada. Consequentemente, com um dos lados tem também de cair o outro.

2) Da relação do trabalho estranhado com a propriedade privada depreende-se, além do mais, que a emancipação da sociedade da propriedade privada etc., da servidão, se manifesta na forma política da emancipação dos trabalhadores, não como se dissesse respeito somente à emancipação deles, mas porque na sua emancipação está encerrada a emancipação humana universal. Mas esta última está aí encerrada porque a opressão humana inteira está envolvida na relação do trabalhador com a produção, e todas as relações de servidão são apenas modificações e consequências dessa relação.

Assim como encontramos, por análise, a partir do conceito de trabalho estranhado, exteriorizado, o conceito de propriedade privada, assim podem, com a ajuda destes dois fatores, ser desenvolvidas todas as categorias nacional-econômicas, e haveremos de reencontrar em cada categoria, como por exemplo do regateio, da concorrência, do capital, do dinheiro, apenas uma expressão determinada e desenvolvida desses primeiros fundamentos.”

1 Vide Marx, Karl. Exzerpte aus Adam Smith: Recherches..., cit., p. 336.28-32.

2 Colchetes da edição alemã. O verbo auxiliar não foi adotado por Marx, ficando a correção a cargo do editor da publicação original que serve de base para esta tradução. (N.T.)

3 Proudhon, Pierre-Joseph. Qu’est-ce que la propriété?..., cit. Vide, por exemplo, todo o capítulo 3: §4: Du Travail. – Que le travail n’a par lui-même, sur les choses de la nature, aucune puissance d’appropriation. §5: Que le travail conduit à l’égalité des propriétés. §6: Que dans la société tous les salaires sont égaux. §7: Que l’inégalité des facultés est la condition nécessaire de l’ égalité des fortunes. §8: Que dans l’ ordre de la justice, le travail détruit la propriété.

Um comentário:

Doney disse...

- Havia lido este livro em 2013 e agora o reli no final de 2020, sete anos depois. Substituí então na lista a postagem anterior, posto que esta é mais completa.
- Por questões de espaço, infelizmente não agreguei o interessante e polêmico comentário de Marx sobre Hegel, que se dá entre as páginas 127 e 137, mas fica aqui o destaque.
- A tradução de “economia (economista) política” por “economia (economista) nacional” não foi interessante. Até há uma nota explicativa (também aqui inserida), mas acabou sendo uma tradução literalista e infeliz.