sábado, 11 de maio de 2019

A condição pós-moderna – Jean-François Lyotard

Editora: José Olympio
ISBN: 978-85-0300-638-5
Tradução: Ricardo Corrêa Barbosa
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 150
Sinopse: O francês Jean-François Lyotard trata em A condição pós-moderna (1979), principalmente, da nova maneira de se entender o saber, produção científica, no avanço da sociedade capitalista no mundo, sob a nova forma do neoliberalismo e da pós-modernidade. O autor utiliza-se das mais variadas fontes, especialmente as contemporâneas, para discutir a questão da produção do saber na contemporaneidade.
Para Lyotard, a pós-modernidade, que faz o saber mudar de estatuto, “designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX”



“Simplificando ao extremo, considera-se “pós-moderna” a incredulidade em relação aos metarrelatos.”


“A verdadeira finalidade do sistema, aquilo que o faz programar-se a si mesmo como uma máquina inteligente, é a otimização da relação global entre os seus input (informações ou modificações obtidas) e output (energia despendida), ou seja, o seu desempenho. Mesmo quando suas regras mudam e inovações se produzem, mesmo quando suas disfunções, como as greves, as crises, o desemprego ou as revoluções políticas podem fazer acreditar numa alternativa e levantar esperanças, não se trata senão de rearranjos internos e seu resultado só pode ser a melhoria da “vida” do sistema, sendo a entropia a única alternativa a este aperfeiçoamento das performances, isto é, o declínio.”


“Considerando-se em particular o estado da ciência, um homem não é feito senão do que se diz que ele é ou que se faz com o que ele é. É um mundo no qual os eventos vividos tornam-se independentes do homem (...). É um mundo do futuro, o mundo daquilo que acontece sem que isto afete ninguém, e sem que ninguém seja responsável.” (J. Bouveresse)


“O si mesmo é pouco, mas não está isolado: é tomado numa textura de relações mais complexa e mais móvel do que nunca. Está sempre, seja jovem ou velho, homem ou mulher, rico ou pobre colocado sobre os “nós” dos circuitos de comunicação, por ínfimos que sejam. É preferível dizer: colocado nas posições pelas quais passam mensagens de natureza diversa. E ele não está nunca, mesmo o mais desfavorecido, privado de poder sobre estas mensagens que o atravessam posicionando-o, seja na posição de remetente, destinatário ou referente. Pois seu deslocamento em relação a estes efeitos de jogos de linguagem (compreende-se que é deles que se trata) é tolerável pelo menos dentro de certos limites (e mesmo estes são instáveis) e ainda suscitado pelas regulagens, sobretudo pelos reajustamentos através dos quais o sistema é afetado a fim de melhorar suas performances. Convém mesmo dizer que o sistema pode e deve encorajar estes deslocamentos, na medida em que luta contra sua própria entropia e que uma novidade correspondente a um “lance” não esperado e ao deslocamento correlato de tal parceiro ou de tal grupo de parceiros que nele se encontra implicado, pode fornecer ao sistema este suplemento de desempenho que ele não cessa de requisitar e de consumir.”


“O saber não é a ciência, sobretudo em sua forma atual; e esta, longe de poder ocultar o problema de sua legitimidade, não pode deixar de apresentá-lo em toda sua amplitude, que não é menos sociopolítica que epistemológica.”


“Primeiro, estas histórias populares contam o que se pode chamar de formações (Bildungen) positivas ou negativas, isto é, os sucessos ou os fracassos que coroam as tentativas dos heróis; e estes sucessos ou fracassos ou dão sua legitimidade às instituições da sociedade (função dos mitos) ou representam modelos positivos ou negativos (heróis felizes ou infelizes) de integração às instituições estabelecidas (lendas, contos). Estes relatos permitem então, por um lado, definir os critérios de competência que são os da sociedade nas quais eles são contados e, por outro lado, avaliar, graças a estes critérios, as performances que aí se realizam, ou podem se realizar.
Em segundo lugar, a forma narrativa, diferentemente das formas desenvolvidas dos discursos de saber, admite nela mesma uma pluralidade de jogos de linguagem: encontram facilmente lugar no relato dos enunciados denotativos, que versam, por exemplo, sobre o céu, as estações, a flora e a fauna; dos enunciados deônticos que prescrevem o que deve ser feito quanto a estes mesmos referentes ou quanto ao parentesco, à diferença dos sexos, às crianças, aos vizinhos, aos estrangeiros, etc.; dos enunciados interrogativos que estão implicados, por exemplo, nos episódios de desafio (responder a uma questão, escolher um elemento em um lote); dos enunciados avaliativos, etc. As competências cujos critérios o relato fornece ou aplica encontram-se aí misturadas umas às outras num tecido cerrado, o do relato, e ordenadas numa perspectiva de conjunto, que caracteriza este gênero de saber.”


“Com a ciência moderna, duas novas componentes aparecem na problemática da legitimação. De início, para responder à questão: como provar a prova?, ou, mais geralmente: quem decide sobre o que é verdadeiro?, desvia-se da busca metafísica de uma prova primeira ou de uma autoridade transcendente, reconhece-se que as condições do verdadeiro, isto é, as regras de jogo da ciência, são imanentes a este jogo, que elas não podem ser estabelecidas de outro modo a não ser no seio de um debate já ele mesmo científico, e que não existe outra prova de que as regras sejam boas, senão o fato delas formarem o consenso dos experts.”


“O saber não encontra aí sua validade em si mesmo, num sujeito que se desenvolve atualizando suas possibilidades de conhecimento, mas num sujeito prático que é a humanidade. O princípio do movimento que anima o povo não é o saber em sua autolegitimação, mas a liberdade em sua autofundação ou, se se prefere, em sua autogestão. O sujeito é um sujeito concreto ou suposto como tal, sua epopeia é a de sua emancipação em relação a tudo aquilo que o impede de se governar a si mesmo. Supõe-se que as leis que para si mesmo estabelece sejam justas, não porque elas estarão ajustadas a determinada natureza exterior e sim pelo fato de que, por constituição, os legisladores não são outros senão cidadãos submetidos às leis e que, em consequência, a vontade de que a lei faça justiça, que é a do cidadão, coincide com a vontade do legislador, que é a de que a justiça seja lei.”


“Na sociedade e na cultura contemporânea, sociedade pós-industrial, cultura pós-moderna, a questão da legitimação do saber coloca-se em outros termos. O grande relato perdeu sua credibilidade, seja qual for o modo de unificação que lhe é conferido: relato especulativo, relato da emancipação.”


“Uma ciência que não encontrou sua legitimidade não é uma ciência verdadeira; ela cai no nível o mais baixo, o de ideologia ou de instrumento de poder, se o discurso que deveria legitimá-la aparece ele mesmo como dependente de um saber pré-científico, da mesma categoria que um relato “vulgar”. O que não deixa de acontecer se se volta contra ele as regras do jogo da ciência que ele denuncia como empírica.”


“Os aparelhos que otimizam as performances do corpo humano visando administrar a prova exigem um suplemento de despesa. Portanto, nada de prova e de verificação de enunciados, e nada de verdade, sem dinheiro. Os jogos de linguagem científica vão tornar-se jogos de ricos, onde os mais ricos têm mais chances de ter razão. Traça-se uma equação entre riqueza, eficiência, verdade.
O que se produz ao final do século XVIII, quando da primeira revolução industrial, é a descoberta da recíproca: não há técnica sem riqueza, mas não há riqueza sem técnica. Um dispositivo técnico exige um investimento; mas visto que otimiza a performance à qual é aplicado, pode assim otimizar a mais-valia que resulta desta melhor performance. Basta que esta mais-valia seja realizada, quer dizer, que o produto da performance seja vendido. E pode-se bloquear o sistema da seguinte maneira: uma parte do produto desta venda é absorvida pelo fundo de pesquisa destinado a melhorar ainda mais a performance. É neste momento preciso que a ciência torna-se uma força de produção, isto é, um momento na circulação do capital.
É mais o desejo de enriquecimento que o de saber que impõe de início aos técnicos o imperativo da melhoria das performances e de realização dos produtos. A conjunção “orgânica” da técnica com o lucro precede a sua junção com a ciência. As técnicas não assumem importância no saber contemporâneo senão pela mediação do espírito de desempenho generalizado. Mesmo hoje, a subordinação do progresso do saber ao do investimento tecnológico não é imediata.”


“A expansão da ciência não se faz graças ao positivismo da eficiência. É o contrário: trabalhar na prova é pesquisar e inventar o contra-exemplo, isto é, o ininteligível; trabalhar na argumentação é pesquisar o “paradoxo” e legitimá-lo com novas regras do jogo de raciocínio. Nos dois casos, a eficiência não é visada por si mesma, ela vem por acréscimo, por vezes tarde, quando os financiadores se interessam enfim pelo caso. Mas, o que não pode deixar de vir e voltar com uma nova teoria, uma nova hipótese, um novo enunciado, uma nova observação, é a questão da legitimidade. Pois é a própria ciência que a si mesma levanta esta questão, e não a filosofia à ciência.
O que está ultrapassado não é perguntar-se o que é verdadeiro e o que é justo, e sim considerar-se a ciência como positivista e condenada a este conhecimento ilegitimado, a este meio-saber de acordo com os idealistas alemães. A questão: O que vale o seu argumento, o que vale a sua prova? faz de tal modo parte da pragmática do saber científico que é ela que assegura a metamorfose do destinatário do argumento e da prova em questão em destinador de um novo argumento e de uma nova prova, donde a simultânea renovação dos discursos e das gerações científicas. A ciência se desenvolve, e ninguém contesta que ela se desenvolve, desenvolvendo esta questão. E esta mesma questão, desenvolvendo-se, conduz à questão, isto é, à metaquestão ou questão da legitimidade: O que vale o seu “o que vale”?
Como já se disse, o traço surpreendente do saber pós-moderno é a imanência a si mesmo, mas explícita, do discurso sobre as regras que o legitimam. O que pôde passar ao final do século XIX por perda de legitimidade e decadência no “pragmatismo” filosófico ou no positivismo lógico não foi senão um episódio, por meio do qual o saber ergueu-se pela inclusão no discurso filosófico do discurso sobre a validação de enunciados com valor como leis. Viu-se que esta inclusão não é uma operação simples, ela dá lugar a “paradoxos” assumidos como eminentemente sérios e a “limitações” no alcance do saber que são, de fato, modificações de sua natureza.”

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Posfácio – Silviano Santiago

“Lyotard acredita ser justo aconselhar que o processo de abordagem da modernização pós-industrial seja feito pelo viés técnico-científico. O acesso à nova revolução industrial está na aquisição de um saber, que é vendido ou negado pelos países avançados aos consumidores periféricos, quando não lhes é simplesmente escamoteado ou sonegado. As sociedades periféricas só terão pleno acesso a ele se os respectivos governos ou as empresas nacionais delegarem às suas instituições de saber, ao alocar-lhes fundos generosos, a indispensável tarefa de aprimoramento de um corpo de pesquisadores e de docentes de altíssimo nível. A pesquisa de ponta é o alicerce indispensável para que se afirme o poder econômico na competitiva era pós-industrial.
Unindo estas três ponderações, está uma outra frase da introdução ao livro, que diz ter sido ele escrito no momento muito pós-moderno, em que a Universidade de Vincennes desaparece. Em Paris, o campus de Vincennes, desde os anos 70, foi o baluarte da imaginação no poder à chinesa, lugar por excelência da revolta cultural maoísta contra o império esclerosado da Sorbonne. Na homenagem póstuma ao santuário da emancipação humana, lê-se que a almejada transformação social se fará de maneira lenta e gradual, pelo aperfeiçoamento das instituições, com vistas a uma sociedade plural e democrática, mas ao mesmo tempo eficiente. Modernização e democracia se tornam o casal 20 dos anos 80, assim como revolução cultural e guerrilha o foram dos anos 60. Se naqueles anos, o poder era o mal e o acesso ao lugar dele significava a mais terrível das traições, nos nossos dias, o poder é o cimento de uma possível melhoria tecnológica, vale dizer: uma possível melhoria econômica e social dos cidadãos. O estado do bem-estar social (welfare state) joga para escanteio a insatisfação radical que existe por trás do desejo utópico. Nas sociedades avançadas, o seguro-desemprego garante o silêncio conivente, alimentando com desocupados os clubes noturnos e os estádios de futebol.”