segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Da República – Marco Túlio Cícero

Editora: Nova Cultura
Tradução e notas: Amador Cisneiros
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 58
Sinopse: As várias formas de governo são analisadas à luz do ecletismo filosófico de um dos maiores nomes do pensamento romano.


“A pátria não nos gerou nem educou sem esperança de recompensa de nossa parte, e só para nossa comodidade e para procurar retiro pacífico para a nossa incúria e lugar tranquilo para o nosso ócio, mas para aproveitar, em sua própria utilidade, as mais numerosas e melhores faculdades das nossas almas, do nosso engenho, deixando somente o que a ela possa sobrar para nosso uso privado.”


“– Quem se poderá julgar mais poderoso do que aquele que nada necessita do que deseja a sua natureza, ou mais rico do que o que vê serem maus todos os seus desejos, ou mais santo e feliz do que o que se vê livre de toda perturbação de ânimo, ou quem mais firme na sua fortuna do que aquele que pode levar consigo mesmo, embora no seu naufrágio, todos os seus bens? Que império, que magistratura, que reino pode superar o estado daquele que, contemplando da altura de sua sabedoria todas as coisas humanas a ela inferiores, só se ocupa com o eterno e o divino, persuadido de que, sendo todos homens, só o são propriamente os que reúnem os atributos da humanidade?”


“Os astrônomos nem sequer conseguem ver o que está sob seus próprios pés e querem perscrutar o espaço celeste. Somos incapazes de compreender esses mistérios, e, se chegássemos a compreendê-los, não seríamos nem melhores nem mais felizes.”


“– A República coisa do povo, considerando tal, não todos os homens de qualquer modo congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum. Pois bem: a primeira causa dessa agregação de uns homens a outros é menos a sua debilidade do que um certo instinto de sociabilidade em todos inato; a espécie humana não nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma disposição que, mesmo na abundância de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum.
– Assim, não deve o homem atribuir-se, como virtude, sua sociabilidade, que é nele intuitiva. Formadas assim naturalmente, essas associações, como expus, estabeleceram domicílio, antes de mais nada, num lugar determinado; depois esse domicílio comum, conjunto de templos, praças e vivendas, fortificado, já pela sua situação natural, já pelos homens, tomou o nome de cidade ou fortaleza. Todo povo, isto é, toda sociedade fundada com as condições por mim expostas; toda cidade, ou, o que é o mesmo, toda constituição particular de um povo, toda coisa pública, e por isso entendo toda coisa do povo, necessita, para ser duradoura, ser regida por uma autoridade inteligente que sempre se apoie sobre o princípio que presidiu à formação do Estado. Pois bem: esse governo pode atribuir-se a um só homem ou a alguns cidadãos escolhidos pelo povo inteiro. Quando a autoridade está em mãos de um só, chamamos a esse homem rei e ao poder monarquia; uma vez confiada a supremacia a alguns cidadãos escolhidos, a constituição se torna aristocrática; enfim, a sabedoria popular, conforme a expressão consagrada, é aquela em que todas as coisas residem no povo. Cada um desses três tipos de governo, se conservar aquele vínculo que uniu primitivamente os homens em sociedade, pode ser, não digo perfeito ou excelente, mas razoável; e qualquer um deles pode ser preferido a outro. De fato, um rei justo e sábio, um número eleito de cidadãos distintos, o próprio povo, embora tal suposição seja menos favorável, pode, se a injustiça e as paixões não o estorvam, formar um governo em condições de estabilidade.
– Mas, na monarquia, a generalidade dos cidadãos toma pouca parte no direito comum e nos negócios públicos; sob a dominação aristocrática, a multidão goza de muito pouca liberdade, pois está privada de participar nas deliberações e no poder; por último, quando o povo assume todo o poder, mesmo supondo-o sábio e moderado, a própria igualdade se torna injusta desigualdade, porque não há gradação que distinga o verdadeiro mérito. Por mais que Ciro, o Persa* tenha sido o melhor e o mais virtuoso dos reis, não me parece o ideal do governo, porque tal é a minha opinião acerca da coisa pública quando a rege um só homem. Da mesma forma, embora nossos clientes marselheses estejam governados com a maior justiça por alguns cidadãos eleitos, há, no entanto, em sua condição algo parecido com a servilidade. Quando os atenienses, em determinadas épocas, suprimiram o Areópago**, para só reconhecerem os atos e decretos do povo, não oferecendo a sua República ao mérito a distinção da linhagem e das honras, não tardou que chegassem à sua maior decadência.
– Falo assim dessas três formas de governo, não as considerando desordenadas e em confusão, mas na sua normalidade; e, no entanto, cada uma tem todos os defeitos que indiquei e outros muitos, pois todas arrastam a funestos precipícios. Depois de um rei tolerável, e mesmo digno de amor, como foi Ciro, por exemplo, aparece, como para legitimar seus escrúpulos, o tirano Faláride***, tipo odioso, ao qual os reis se podem assemelhar com demasiada facilidade; ao lado da sábia aristocracia de Marselha, aparece a opressão oligárquica, a fração dos Trinta****, em Atenas; enfim, sem procurar novos exemplos, a democracia absoluta dos atenienses não viu uma multidão ébria de licença e furor causar a ruína desse povo?
– Quase sempre o pior governo resulta de uma confusão da aristocracia, da tirania facciosa do poder real e do popular, que às vezes faz sair desses elementos um Estado de espécie nova; é assim que os Estados realizam, no meio de reiteradas vicissitudes, suas maravilhosas transformações. O sábio tem a obrigação de estudar essas revoluções periódicas e de moderar com previsão e destreza o curso dos acontecimentos; é essa a missão de um grande cidadão inspirado pelos deuses. Por minha parte, creio que a melhor forma política é uma quarta constituição formada da mescla e reunião das três primeiras.”
*: Fundador do império persa, notável por sua bravura e magnanimidade.
**: Tribunal supremo de Atenas, composto de trinta e um membros, encarregado de julgar as causas criminais mais importantes.
***: Tirano de Agrigento, famoso por sua extrema crueldade.
****: Os Trinta Tiranos formaram o conselho oligárquico que os espartanos impuseram aos atenienses depois da vitória de Lisandro.


“– A liberdade, por exemplo, só pode existir verdadeiramente onde o povo exerce a soberania; não pode existir essa liberdade, que é de todos os bens o mais doce, quando não é igual para todos.”


“– O Estado que escolhe ao acaso seus guias é como o barco cujo leme se entrega àquele dentre os passageiros que a sorte designa, cuja perda não se faz esperar.”


“– A monarquia nos solicita pela afeição; a aristocracia, pela sabedoria; o governo popular, pela liberdade, e, nessas condições, a escolha se torna muito difícil.”


“– A terra firme denuncia, por meio de mil indícios, a marcha prevista, e até as surpresas do inimigo, que se descobre pelo ruído de seus passos; e não é atacada tão rapidamente como se pode supor, sabendo-se, por outra parte, quem é o agressor e de onde vem; por mar, pode desembarcar uma esquadra antes que se possa advertir a sua proximidade; sua marcha não denuncia nem sua personalidade, nem sua nação, nem seu objetivo; não se pode, enfim, distinguir com sinal algum se é ou não amiga.
– São também frequentes, nas cidades marítimas, a mudança e a corrupção dos costumes, pois os idiomas e comércios estranhos não importam unicamente mercadorias e palavras, mas também costumes, que tiram estabilidade às instituições dessas cidades. Os próprios habitantes são pouco afeitos aos seus lares; suas esperanças e pensamentos os arrastam para longe, e, quando o corpo descansa, vaga errante o espírito. Não foi outra a principal causa da decadência de Cartago e de Corinto senão essa vida errante, essa dispersão dos cidadãos, aos quais a ânsia de navegar e de enriquecer fez abandonar o cultivo dos campos e o prazer das armas. A proximidade do mar, com suas importações ou suas vitórias, facilita ao vício dessas cidades todas as seduções funestas, e o encanto dos sítios marítimos parece convidar à preguiça e ao fausto e a todas as corrupções enervadoras do ócio. Mas esses vícios apresentam, por sua vez, uma grande vantagem: a de que, de todos os pontos do mundo, trazem as ondas os produtos todos do universo, e, no refluxo, levam aos confins do mundo os produtos dos próprios campos.”


“– No mesmo momento em que um rei se deixa dominar pela injustiça, converte-se em tirano, e nada é mais horrível e repulsivo aos deuses e aos homens do que esse animal funesto que, embora com forma humana, sobrepuja, em ferocidade e crueldade, as mais desapiedadas feras. Quem dará o título de homem a um monstro que não reconhece comunidade de direitos para com os outros homens, nem laços que o unam à humanidade?”


“Cipião: – O político prudente é como aquele homem que vimos na África com frequência, o qual, montando um elefante gigantesco, o dirige e governa a seu capricho, mais com a vontade do que com os atos. Assim, um bárbaro, ou um cartaginês, consegue guiar uma fera, uma vez domesticada e afeita aos hábitos do homem. Mas esse algo que reside no espírito do homem e que dele faz parte com o nome de inteligência não deve domar somente uma fera dócil e submissa, mas outra muito mais indômita e terrível; fera pronta a todo excesso, ébria de sangue, disposta a toda crueldade e que necessita, para ser guiada, do férreo braço de um varão implacável e forte.
Lélio: – Agora compreendo o cargo destinado ao varão que eu esperava, e as condições de que necessita.
– Uma só exijo – disse Africano –, pois todas as outras já estão nele compreendidas: estudar sem descanso; trabalhar sem trégua pelo seu aperfeiçoamento; procurar que os outros o imitem; e ser, com o esplendor de sua alma e de sua vida, para os seus concidadãos, como um espelho aberto. Assim como os sons despertados nas liras e nas flautas, combinados com o canto e a voz, produzem um conjunto harmônico que agrada ao ouvido inteligente, ao passo que as dissonâncias o incomodam, assim também um Estado, prudentemente composto da mescla e equilíbrio de todas as ordens, concorda com a reunião dos elementos distintos; e o que no canto é chamado pelos músicos de harmonia é, no Estado, a concórdia, a paz, a união, vínculo sem o qual a República não permanece incólume, do mesmo modo que nenhum pacto pode existir sem a justiça.”


“Se Xerxes* fez incendiar os templos de Atenas, foi na firme crença de que era sacrilégio encerrar em estreitas paredes os deuses, cuja residência era a imensidade dos mundos.”
*: Rei da Pérsia, filho de Dario.


“– Todos os que usurpam o direito de vida e morte sobre o povo são tiranos; preferem, porém, chamar-se com o nome de reis, reservado a Júpiter Ótimo.
– Quando as riquezas ou o nascimento, ou qualquer coisa parecida, fazem predominar na República alguns homens, embora pretendam chamar-se aristocratas, não passam de facciosos. Quando o povo pode mais e rege tudo ao seu arbítrio, chama-se a isso liberdade; mas é, na verdade, licença. Quando um teme o outro, o homem ao homem, a classe à classe, forma-se entre o povo e os grandes, em consequência desse temor geral, uma aliança de que resulta o gênero de governo misto, que ontem Cipião tanto elogiava. A justiça não é filha da natureza, nem da vontade, mas de nossa fraqueza. Se fosse preciso escolher entre três coisas, cometer injustiças sem sofrê-las, cometê-las e sofrê-las, ou evitar ambas, o melhor seria cometê-las impunemente; se fosse possível, portanto, não fazê-las e não sofrê-las, ao passo que o estado mais miserável seria lutar sempre, quer como opressor, quer como vítima...
– Nenhum povo teria pátria se tivesse de devolver o que usurpou, exceto os árcades* e os atenienses, que, temerosos, na minha opinião, de que chegue o dia dessa justiça, supõem ter saído da terra, como os ratos da imundície dos campos.”
*: Povo de pastores que habitava a Arcádia, região montanhosa da velha Grécia.


“Se Roma existe, é por seus homens e seus hábitos.” (Moribus antiquis res stat romana virisque – verso de Ênio).


“– Nessas cidades, os melhores fogem da ignomínia e do menosprezo, procurando a estima e o elogio de seus concidadãos. Na verdade, não os aterram menos as penas mais cruéis, consignadas nas leis, do que a desonra que repugna à natureza do homem e faz brotar nela um temor espontâneo. O político hábil procura fortificar esse instinto com a opinião, com as instituições, com os costumes, para que a consciência do dever seja, antes que o temor, um poderoso freio.”


“– Contempla essas faixas que, como cingidouros, circundam a Terra; duas dessas faixas, diversas entre si, se apoiam em diferentes polos do céu, achando-se cobertas pelo gelo e a neve de um inverno perpétuo e cruel; em compensação, a que está no centro é maior e arde ao fogo do sol. Duas são as faixas ou zonas habitáveis: a austral, cujos habitantes são, por sua posição, opostos a vós, e tão estranhos que parecem não ser de vossa raça; essa outra parte, por vós habitada, estreita nos vértices e ampla no centro, não é mais do que uma diminuta ilha, rodeada pelo mar a que na terra chamais Grande Oceano Atlântico, tão pequeno como vês, apesar de tanto nome. Mas, no centro mesmo dessas terras conhecidas e habitadas, conseguiu o teu nome ou de algum dos nossos compatriotas transpor os cumes do Cáucaso ou as ribeiras do Ganges? Quem no extremo Oriente, ou nos confins de norte a sul do Ocidente, ouvirá pronunciar o teu nome? E, sobretudo, repara como é estreita a esfera em que vossa efêmera glória quer dilatar-se. Mesmo os que falam de vós, falarão muito tempo?”

domingo, 16 de agosto de 2015

O Quarteto de Alexandria: Mountolive, de Lawrence Durrell

Editora: Ediouro

ISBN: 978-85-0001-758-2

Tradução: Daniel Pellizzari

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 272

Sinopse: Intriga, mistério e sensualidade na cosmopolita e poliglota cidade de Alexandria no tempo da Segunda Guerra Mundial. Os quatro romances que compõem O Quarteto de Alexandria Justine, Balthazar, Mountolive e Clea – exploram a sociedade daquela cidade poliglota e cosmopolita, repleta de intrigas, mistério e sensualidade, retomando genericamente uma mesma história sob diferentes pontos de vista, acrescentando e refazendo pormenores e situações.

Em Mountolive, o terceiro livro da tetralogia, o autor apresenta os acontecimentos narrados em Justine e Balthazar sob uma nova perspetiva. A guerra faz a sua aparição e a trama gira agora em torno do embaixador britânico, David Mountolive, tendo como ponto de partida as recordações da sua paixão por Leila, a mãe de Nessim. Darley regressa a Alexandria a pedido de Nessim, levando a menina para que o pai e Justine a conheçam.



“A juventude é a era dos desesperos.”

 

 

“Enfermidades inspiram desprezo. Um homem doente bem o sabe.”

 

 

“– Oh, o que vamos fazer quando você for embora? – Mountolive ficou terrivelmente satisfeito consigo mesmo. Seria possível imaginar um tempo em que eles não mais se abraçariam ou ficariam sentados de mãos dadas, sentindo o coração do outro marcando o tempo em meio ao silêncio? Por quanto tempo duraria a memória das experiências passadas? Desviou a mente desse pensamento, resistindo como podia à aguda verdade. Então Leila disse: – Não tema. Já planejei os próximos anos de nossa relação; não ria, pode ficar ainda melhor quando deixarmos de fazer amor e começarmos a... o quê? Ainda não sei, talvez a pensar no outro de forma neutra; digo, como amantes forçados a separar-se; que talvez nunca deveriam ter se tornado amantes; escreverei a você com frequência. Um novo tipo de relacionamento terá início.

– Pare, por favor – pediu Mountolive, sentindo o abraço da desesperança.

– Por quê? – ela quis saber, sorrindo e beijando sua têmporas. – Sou mais experiente que você. Veremos.

Por sob aquela tranquilidade, Mountolive reconheceu a presença de algo forte, resistente e durável – o caráter de uma experiência que lhe faltava. Leila era uma criatura nobre e somente os nobres conseguem ficar serenos diante da adversidade. Na noite anterior à partida de Mountolive, porém, Leila não cumpriu as promessas de ir ao seu quarto. Era mulher o bastante para render-se ao desejo de aguçar as dores da separação, torná-las mais duradouras. E no desjejum, ao ver os olhos cansados e o ar esgotado de Mountolive e constatar a obviedade de seu sofrimento, foi tomada por um prazer inenarrável.

Foi com ele até a balsa, mas a presença de Naruz e Nessim impossibilitava qualquer conversa particular. Isso quase chegou a alegrá-la. Na verdade, não havia mais nada a ser dito. Inconscientemente, Leila desejava evitar as repetições tão características do amor, que por fim acabam por arruiná-lo. Queria manter nítida e impecável sua imagem de Mountolive. Reconhecia aquela partida como o padrão, de certa forma um modelo, de uma partida mais definitiva e final; uma partida que, caso sua comunicação realmente fosse limitada a palavras sobre o papel, poderia significar a perda de seu Mountolive. É impossível escrever mais de uma dezena de cartas de amor sem ficar ansioso por mudar de assunto; a mais rica das experiências humanas é também a mais limitada em sua expressão. Palavras matam o amor, assim como matam todo o resto. Leila já havia planejado transferir suas relações para um plano mais rico, porém Mountolive ainda era jovem demais para tirar proveito do que ela tinha para oferecer – os tesouros da imaginação. Seria preciso ter paciência até que ele crescesse. Leila tinha consciência de que, ao mesmo tempo em que o amava sinceramente, era capaz de resignar-se a nunca mais vê-lo. Seu amor já havia contemplado e superado o ocaso de seu objeto – sua própria morte! Essa ideia, tão clara em sua mente, dava a Leila uma imensa vantagem sobre Mountolive. Enquanto ele ainda chafurdava no mar agitado da confusão e da falta de lógica de suas emoções, seu desejo e seu amor-próprio – todas as dificuldades infantis características de um amor imaturo –, ela retirava forças e segurança da própria irremediabilidade daquela situação. Seu orgulho e sua inteligência concediam-lhe uma força nova, insuspeita. E ainda que parte de si lamentasse vê-lo ir embora tão cedo, outra estava contente em vê-lo sofrer, pronta a nunca mais revê-lo. Por saber-se possuidora dele, paradoxalmente, despedir-se era quase simples.”

 

 

“É verdade que cheguei a pensar em casar-me com ela. Estava apaixonado, sem dúvida. Mas ela curou-me a tempo.”

 

 

“A obra do artista constitui a única relação satisfatória que lhe é possível estabelecer com seus semelhantes, já que busca seus verdadeiros amigos entre os mortos e os que ainda estão por nascer. É por isso que ele não pode se envolver com política, não é essa a sua função. Precisa concentrar-se em valores, não em política.” 

 

 

“– Ah, Mountolive! Olhe para tudo isso! Terra dos excêntricos e dos sexualmente incapazes. Londres! Vossa comida, tão apetitosa quanto um mingau de bário, vossos desconfortos saborosos, vossas causas não apenas perdidas, mas ultrapassadas. Ela é nossa, e é maior do que a soma de seus defeitos. Ah, Inglaterra! Inglaterra, onde os membros da Real Sociedade de Prevenção à Crueldade Animal comem carne duas vezes por dia e os nudistas devoram frutas importadas em meio à neve. O único país que se envergonha da pobreza.”

 

 

“O homem será feliz quando seus deuses se aperfeiçoarem.”

 

 

“– Na Inglaterra, quase todas as coisas deliciosas que podem ser feitas a uma mulher são crimes, motivos de divórcio.”

 

 

“Que pretende o céu com todas estas leis?”

 

 

“Assim como a emoção, a pressa é sempre deplorável, pois sugere que os impulsos ou os sentimentos estão dominando quando somente a razão poderia estar no comando. (...) Felizmente as batidas de nosso próprio coração não podem ser ouvidas por outras pessoas.”

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Da Natureza (Os Pensadores) – Tito Lucrécio Caro

Editora: Nova Cultura
Tradução: Agostinho da Silva
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 116
Sinopse: Num longo e belo poema, Lucrécio expõe a doutrina atomista criada por Leucipo e Demócrito e desenvolvida por Epicuro.



“Deste tom sério e enérgico eleva-se o poeta ao sublime quando, depois de ter provado cientificamente que a morte nenhum mal traz ao homem, dá a palavra à própria natureza para castigar a presunção e a loucura daquele que se prende à vida: “Por que é que tu não sais da vida como um conviva saciado? Nada tenho que te oferecer; isto é sempre a mesma coisa. Mas tu desejas sempre o que te falta (diz ela a um velho), tu desdenhas o que tens à mão; e foi por isso que a tua vida decorreu imperfeita e sem encanto. É tempo de deixar lugar aos filhos, porque assim o quer a lei da natureza: ninguém recebe a vida como propriedade plena; dela apenas temos o usufruto”.”
(Citação de G. Ribbeck)


““E tu queres te revoltar, tu cuja vida está quase extinta ainda com teu corpo vivo, tu que dormes a maior parte do tempo e que sonhas quando estás acordado?”
Com o temor da morte, os homens serão libertados ao mesmo tempo das angústias que lhes inspiram as torturas infernais, a não ser que o Inferno esteja no seu próprio coração.”
(Citação de G. Ribbeck)


“Que pode haver para nós de mais seguro que os sentidos para distinguir o verdadeiro e o falso?”


“É indubitável que a matéria não forma um todo compacto, visto vermos que tudo se gasta e por assim dizer se desfaz ao longo dos tempos e se oculta na velhice aos nossos olhos; o conjunto, no entanto, parece permanecer intato, pois o que se retira de qualquer corpo, e por aí o diminui, vai aumentar aquele a que se junta: obrigam uns a envelhecer, outros a prosperar; e não param nesse ponto. Assim continuamente se renova o Universo e vivem os mortais de trocas mútuas. Aumentam umas espécies, diminuem outras, e em breve espaço se substituem as gerações de seres vivos e, como os corredores, passam uns aos outros o facho da vida.
Se julgas que podem parar os princípios das coisas e parando gerar seus novos movimentos, andas desviado e muito longe de um verdadeiro raciocínio.”


“Mas parece, quando pensam que tudo fizeram os deuses por causa dos mortais, que andam muito longe da verdade. Efetivamente, embora eu ignorasse quais são os princípios das coisas, ousaria afirmar, pelas próprias leis do céu e por outros fatos numerosos, que de modo algum o mundo foi criado para nós por um ato divino: tanto é o mal que o macula.”


“É fora de dúvida que os deuses, por sua própria natureza, gozam da eternidade com paz suprema e estão afastados e remotos de tudo o que se passa conosco. Sem dor nenhuma e sem nenhuns perigos, apoiados em seus próprios recursos, nada precisando de nós, não os impressionam os benefícios nem os atinge a ira.”


“A constância das leis naturais é, segundo a opinião de Lucrécio, o argumento mais forte a favor da tese de que os deuses não intervêm no governo do mundo e passam o tempo na paz inalterável de uma contemplação bem-aventurada. E, assim como nada fizeram para que ele surgisse, também nada poderão fazer para lhe sustar a velhice e impedir a morte. Para Lucrécio, o mundo não é eterno, embora o seja o conjunto dos átomos que formam o Universo; o mundo — mar, terra, céus — é um corpo que nasceu como os outros, existe como os outros, e como os outros se há de dispersar, de modo a que os seus átomos possam entrar em novas formações. Segundo o que pensa, o mundo, por já dele se desprenderem mais elementos do que aqueles que a ele vêm, está numa fase de decadência, de fraqueza, como o prova o fato de criar com dificuldade animais pequenos quando já os criou de imenso corpo e o de a terra não produzir as opulentas searas de outros tempos. É uma ideia a que voltará no Livro V e que de certo modo se liga com a da Idade de Ouro e do presente envilecimento do homem.” (Agostinho da Silva)


“É conveniente observar os homens nos perigos e nas provas, e conhecer na adversidade aquilo que são; é nesses momentos que se lançam do íntimo do peito as palavras verdadeiras: arranca-se a máscara e surge a realidade.”


““Já agora não te receberá uma casa alegre, nem uma esposa excelente, nem os filhos queridos correrão a roubar-te beijos e a acariciar-te o peito com silenciosa ternura. Já não poderás ter negócios florescentes, já não poderás ser a guarda dos teus. Ó infeliz de ti, ó infeliz”, dirão ainda, “um dia nefasto te roubou todas as vantagens da vida.” Mas não acrescentam a seguir: “Também já não te seguirá a saudade de tudo isto”. Porque se o vissem claramente em seu espírito e se cumprissem estas palavras, já libertariam a mente da grande angústia, do grande medo.
“E tu, adormecido como estás na morte, assim ficarás por todo o tempo, isento de todas as cruéis dores. Mas nós, perto da horrível pira, te choramos incessantemente, a ti já feito em cinzas, e dia algum nos arrancará do peito essa dor eterna.” Tem, por conseguinte, de se perguntar a quem assim fala para que é necessária uma tal amargura; se tudo vem a dar em dormir e estar em sossego, quem há de consumir-se num eterno luto?
Outros homens, ainda, quando se sentam à mesa e seguram os copos e sombreiam o rosto de grinaldas, dizem convictos: “Breve é o gozo para os pobres homens; depressa passará e depois nunca mais poderemos ressuscitar”. Como se o primeiro mal na morte fosse esse de a sede abrasar os miseráveis e de cálida os queimar ou de haver com eles a saudade de qualquer outra coisa. Ninguém, realmente, se lamenta a si e à vida quando repousam por igual o espírito e o corpo.
Pode haver, pelo que nos respeita, um sono eterno e nenhuma saudade de nós nos vem afligir. Todavia, os elementos espalhados pelos nossos membros não vagueiam de modo algum longe dos movimentos sensíveis quando o homem se levanta do sono e se recobra. Tem, portanto, de se crer que a morte é ainda menos para nós, se alguma coisa pode ser menos do que aquilo que vemos nada ser: segue- se à morte uma dispersão maior da quantidade de matéria e ninguém torna a acordar depois que a gelada suspensão da vida o tocou uma vez.”


“Finalmente, se de súbito a natureza proferisse palavras e viesse ela própria increpar algum de nós: “Que tens tu, ó mortal, que te abandonar de tal modo a dores tão excessivas e amargas? Por que choras e te lamentas sobre a morte? Efetivamente, se a vida anterior te foi agradável e se todos os prazeres não foram como acumulados num vaso furado e não correram e se perderam inutilmente, por que razão não hás de, tolo, retirar-te da vida como um conviva farto e aceitar com equanimidade um repouso seguro? Mas se tudo aquilo de que gozaste se perdeu em vão e a vida te pesa, por que buscas aumentá-la mais, para que tudo de novo tenha um mau fim e desapareça sem proveito? Não seria melhor pôr fim à vida e ao tormento? Não posso imaginar e inventar agora coisa alguma que te agrade: tudo é sempre o mesmo. Se o teu corpo já não está decrépito com os anos, se os membros não estão lânguidos de cansaço, tudo fica, no entanto, igual, mesmo que persistas em viver, vencendo todos os tempos, e, ainda mais, mesmo que nunca viesses a morrer”. Que haveríamos de responder senão que a natureza nos intenta um processo justo e defende uma causa verdadeira?
Se é já um homem mais velho, adiantado em anos, que se queixa e lamenta a morte, fazendo-se mais infeliz do que seria justo, não tem ela razão em clamar ainda mais e em o increpar com acre voz? “Limpa daí as lágrimas, meu pateta, e cala-me essas queixas. Envelheces depois de ter gozado de todos os bens da vida. Mas, como sempre desejas o que está longe e desprezas o presente, passou-te a vida incompleta e sem gosto, e chegou-te a morte à cabeceira, sem tu a esperares, antes de poderes retirar-te saciado, cheio das coisas. Mas abandona agora tudo o que não vai com a tua idade e retira-te, vamos, diante dos outros: eis o que é necessário.”
É justo, creio eu, que assim proceda, justo que censure e increpe. Sempre a velhice se retira expulsa pela novidade, e é necessário que umas coisas se renovem à custa de outras: ninguém é entregue ao báratro e aos tenebrosos infernos. É preciso que haja material de que se desenvolvam as gerações futuras; e estas também te seguirão depois de terem gozado da vida; cairão como caíram as que vieram antes de ti.
Nunca deixará de haver alguma coisa que de outra nasça e a vida não é dada como propriedade a ninguém: a todos vem como usufruto. Vê, olhando para trás, como nada significou para nós toda a velha porção de eternidade que se passou antes que nascêssemos. Eis o espelho que a natureza nos apresenta do tempo futuro, do que virá depois da nossa morte. Surge nisto algum horror, alguma tristeza? Não é tudo muito mais seguro do que o sono?
E é fora de dúvida que tudo o que se diz existir no profundo Aqueronte nos acontece realmente na vida. Não há nenhum infeliz Tântalo que receie, como é fama, o enorme rochedo suspenso nos ares, e esteja paralisado por um medo sem objeto real; é antes na vida que o vão pavor dos deuses atormenta os mortais: é nela que se temem os acasos que a sorte traz a cada qual. Nenhumas aves atacam um Títio prostrado no Aqueronte e é certo que não lhe poderiam encontrar no vasto peito nada que perscrutassem durante toda a eternidade; embora fosse enorme a extensão do corpo derrubado e não cobrisse apenas nove jeiras com seus membros despedaçados, mas todo o orbe terrestre, não poderia, mesmo assim, suportar uma dor eterna, nem dar sempre alimento com seu próprio corpo.
Mas, para nós, Títio existe aqui: prostrado de amor, dilaceram-no aves, devora-o a ansiosa angústia ou despedaçam-no os cuidados de qualquer outra paixão. Também na vida e diante dos olhos temos nós um Sísifo: é aquele que se esforça por conseguir do povo os feixes e os temíveis machados e sempre se retira vencido e abatido. Efetivamente, procurar o poder, que é sempre vão e jamais nos é dado, e nisto sofrer sempre um duro trabalho, é o mesmo que fazer subir com esforço, por um monte acima, um rochedo que, mal no alto, logo rola e rapidamente busca os plainos de um campo aberto.
Depois, apascentar sempre um espírito de ingrata natureza e enchê-lo de bens sem nunca o saciar — exatamente como sucede com as estações do ano que voltam de novo trazendo os vários frutos e as várias alegrias, sem que, no entanto, jamais nos enchamos dos gozos da vida —, eis o que, segundo me parece, significa o que dizem das meninas na flor da idade que lançam água num vaso sem fundo, o qual de modo algum se poderia encher. E o mesmo acontece com o Cérbero e as Fúrias, a falta de luz (Lacuna) e o Tártaro que vomita das fauces chamas horríveis. Não existem em parte alguma nem poderão certamente existir.
É na vida, porém, que existe o grande medo de castigo por causa de grandes malefícios e que há expiação para o crime; há prisão e o horrível lançamento do alto do rochedo e a flagelação, os verdugos, o tronco, o pez, as lâminas e as tochas; mesmo que tudo isto esteja ausente, há o espírito consciente do que fez e que, temeroso, se aplica o aguilhão e se abrasa às chicotadas, sem ver entretanto que termo possa haver para os seus males ou qual seja o fim dos castigos, antes temendo que ainda mais se agravem com a morte. É aqui, na realidade, que a vida dos tolos se torna um Aqueronte.
Também poderias alguma vez dizer-te a ti próprio: “Também o bom Anco os olhos à luz do dia, ele que era, meu patife, muito melhor do que tu”. Depois morreram muitos outros reis e poderosos do mundo que governaram grandes povos. E aquele que outrora lançou estrada sobre o grande mar, abriu caminho às legiões por entre as vagas e as ensinou a ir a pé pelos abismos salgados, e insultante desprezou com os cavalos os rugidos das águas, também ele, privado de luz, exalou a alma do corpo moribundo.
Cipião, o raio da guerra, o terror de Cartago, deu os ossos à terra como se fosse um escravo ínfimo. Junta-lhe os descobridores das doutrinas e das artes, junta-lhe os da comitiva das Heliconíades; destes, Homero, o único, depois de ter empunhado o cetro repousou com os outros. Finalmente, Demócrito, depois que a madura velhice lhe mostrou que se retardavam no espírito os movimentos da memória, de livre vontade foi ao encontro da morte e lhe apresentou a cabeça.
O próprio Epicuro morreu, extinta a luz da vida, ele que superou pelo engenho a condição humana, e a todos mergulhou na sombra como o sol etéreo, ao nascer, faz às estrelas. E tu ainda hás de duvidar e ainda te hás de indignar porque vais morrer? Estás ainda vivo e vendo e, no entanto, a tua vida é morta porque estragas, dormindo, a maior parte do tempo e acordado ressonas, não deixas de ver sonhos, trazes a alma atormentada por vãos receios e não podes encontrar nunca a origem do mal quando, pobre de ti, te perseguem inúmeros cuidados e vagueias, como flutuando, ao sabor dos erros do teu espírito.
Se os homens pudessem, assim como parecem sentir no fundo do espírito uma carga que os fatiga com seu peso, conhecer quais são as causas que a geram e por que razão tão grande fardo de desgraça se lhes mantém no peito, não levariam a vida que levam agora, na maior parte, sem saber o que querem e procurando sempre mudar de lugar como se pudessem, assim, ver-se livres da carga.
Muitas vezes, aquele que sai de grandes paços, porque se aborreceu de estar em casa, a eles volta de súbito, por nada haver fora que sinta ser melhor; corre precipitado para a sua casa de campo, incitando os garranos, como se fosse levar socorro a um incêndio em casa; mas, logo que passa o limiar, boceja, ou, pesado, se deita a dormir e procura o esquecimento; ou então, a toda pressa, dirige-se à cidade para a tornar a ver.
Deste modo, cada um foge a si próprio, mas como se vê não lhe é possível escapar-se, e fica preso à força e odeia, porque, estando doente, não compreende a causa da enfermidade. Mas, se bem a vissem, todos, abandonando as outras coisas, procurariam conhecer primeiro a natureza, porque a origem de tudo vem da eternidade, não de uma só hora: e é na eternidade que os mortais terão de passar todo o tempo que lhes resta após a morte.
E, então, por que tremer tanto em perigos e dúvidas? Que enorme e maléfico desejo de viver nos subjuga? Há para os mortais um fim de vida certo e próximo; ninguém pode evitar aparecer diante da morte. Depois, sempre estamos e insistimos no mesmo, e não é por vivermos que nos surge qualquer novo prazer. Só enquanto está longe o que desejamos nos parece exceder o resto; depois, logo que o alcançamos, desejamos outra coisa; a mesma sede de vida nos mantém sempre anelantes.
Também ficamos em dúvida quanto à sorte que nos trará o futuro, que nos dará o acaso ou quanto ao fim que se aproxima. Não é por prolongarmos a vida que diminuímos num mínimo que seja o tempo da morte; não podemos tirar nada que nos faça escapar do aniquilamento. Podes, portanto, durante o tempo da vida, enterrar quantas gerações queiras; nem por isso a morte ficará menos eterna: não existe menos aquele que hoje vê o termo da vida do que outro que já morreu há muitos meses, há muitos anos.”


“Nada é mais difícil do que distinguir as coisas verdadeiras das duvidosas que o nosso espírito por si mesmo junta.
Finalmente, se há aí alguém que julgue nada saber, isto mesmo ele ignora, se pode saber, visto que diz nada saber. Portanto, não me darei ao trabalho de discutir com ele, visto que resolveu trocar a cabeça pelos pés. Todavia, concederei que sabem alguma coisa, com a condição de lhes perguntar, visto nada terem encontrado de verdadeiro nas coisas, donde lhes vem o saber que sabe que sabe ou que não sabe, que fato deu sinal do verdadeiro e do falso, que fato prova distinguir-se o duvidoso do seguro?
Descobrir-se-á que é pelos sentidos que primeiro se revela a nós o sinal da verdade e que os sentidos não se podem refutar. Efetivamente, deve-se aceitar com mais fé aquilo que espontaneamente pode fazer que o verdadeiro triunfe sobre o falso. Ora, que pode merecer maior fé do que os sentidos? Por acaso poderá a razão depor contra eles, quando é falsa a sensação, ela que inteiramente nasceu dos sentidos? Se eles não são verdadeiros, também a razão se torna inteiramente falsa. Ou poderão os ouvidos retificar os olhos ou o tato ou os ouvidos? Acaso o gosto convencerá de erro o tato, acaso o nariz refutará, acaso vencerão os olhos? Claro que não, segundo o que penso.
Efetivamente, o poder está dividido entre todos e tem cada um a sua força; torna-se, portanto, necessário que haja um sentido próprio para o que é mole, outro para o que é gélido e fervente, e que outros sintam as várias cores dos corpos e vejam tudo aquilo que se relaciona com as cores. Do mesmo modo, tem o sabor a sua própria força e por si mesmo nascem os odores, por si próprios os sons. É, portanto, de concluir que não podem os sentidos corrigir-se uns aos outros; não poderão também ter mais verdade um que outro, visto que os devemos considerar dignos de fé a todos por igual. Por conseguinte, é verdadeira toda sensação que eles têm em qualquer momento.”


“Há sempre uma esperança de que o corpo, que é origem do furor, possa ele próprio extinguir a chama. No entanto, a natureza é inteiramente contra isto; é o amor o único objeto que, quanto mais possuímos, tanto mais incendeia o nosso peito com terríveis desejos.”


“De fato, é mais fácil evitar o sermos lançados aos males do amor do que depois de presos sair daquelas redes e quebrar os fortes nós de Vênus.
E contudo, mesmo estando-se preso e enlaçado, ainda se poderia fugir ao inimigo se a própria pessoa se não pusesse obstáculos passando em claro todos os defeitos do espírito e do corpo daquela que se deseja e quer. É isto o que fazem na maior parte os homens cegos de desejo, atribuindo qualidades àquelas que realmente as não têm. Por isso vemos que muitas que são más e feias vivem em delícias e prosperam no meio de supremas honras. No entanto, eles riem-se uns dos outros e aconselham a que aplaquem Vênus, porque os sentem afligidos por um amor vergonhoso, sem que, pobres deles, vejam os seus males, muito maiores.
Uma negra tem a cor do mel; a imunda e fedorenta é apenas maltratada; a de olhos verdes, uma Palas; a nervosa e lenhosa, uma gazela; a baixinha, a anãzinha, uma das graças, um puro grão de sal; a grande, a colossal, uma maravilha plena e majestosa. A tartamuda que não sabe falar chilreia; a muda é pudica; a incendiária, a odiosa, a tagarela, torna-se uma chama; aquela que nem pode viver de magreza é um delicado amorzinho e a que morre de tosse é realmente um mimo. A avantajada, de grandes seios, é a própria Ceres, depois de nascido Baco; a de nariz achatado é uma silena, é uma sátira; a de grandes lábios, um puro beijo. E seria muito longo se eu tentasse enumerar as outras coisas da mesma espécie.
Mas, suponhamos que ela tem na face toda a beleza que se queira e que em todos os membros surge a força de Vênus; há outras iguais e sem ela vivemos até hoje; faz todas as coisas, bem o sabemos, que fazem as feias: sufoca-se a pobre de cheiros terríveis quando as criadas a evitam de longe e a furto se riem. Mas o namorado, posto fora e chorando, cobre muitas vezes de flores e de grinaldas o limiar da porta e unge o soberbo portão de perfume da manjerona e cobre, o mísero, a entrada com seus beijos. Ora, se o tivessem deixado entrar, o cheiro o atacaria logo de início, de tal modo que procuraria motivos excelentes de se ir embora e lhe cairia das mãos a queixa meditada e preparada há muito tempo; ele próprio condenaria a sua estupidez por lhe ter atribuído mais qualidades do que aquelas que pode ter um ser mortal.
Nem isto engana as nossas Vênus; põem todos os seus cuidados em ocultar estes bastidores da vida, quando os querem reter e prender a si por meio do amor; e tudo inútil porque se pode, pela força do espírito, trazer tudo à luz e averiguar o que causa riso; depois, se ela tem bom espírito e não é odiosa, pode-se perdoar alguma coisa e fazer concessões aos defeitos humanos.”


“E se acaso julgamos mais importantes os feitos de Hércules, muito longe andamos de um raciocínio exato. Em que nos seria hoje um obstáculo aquela grande fauce do leão da Neméia e o horrendo javali da Arcádia? Que poderiam o touro de Creta, o flagelo de Lerna, a hidra defendida por cobras venenosas? Que nos ofenderiam os três peitos vigorosos do tríplice Gerião (Lacuna) e os habitantes do Estinfalo e os cavalos de Diomedes soprando fogo pelas ventas, na Trácia, junto das praias da Bistônia, perto do Ismar?
Em que seria contra nós a serpente que guardava os fulgentes frutos das Hespérides, furiosa, de cruel olhar, e cujo corpo enorme enlaçava o tronco da árvore, lá perto do litoral do Atlas e das cóleras do oceano, lá onde nenhum dos nossos e nenhum dos bárbaros ousa chegar? E todos os outros monstros desta espécie, que foram aniquilados, em que nos prejudicariam, vivos, se não tivessem sido aniquilados? Em nada, creio eu: efetivamente, a terra inteira agora está cheia de monstros e estremece de horror, pelos bosques e pelos altos montes e pelas profundas florestas; mas estes lugares, todos nós os podemos evitar sem nenhum custo.”


“Talvez tu, refreado pela religião, penses que as terras e o Sol e o céu e o mar e as estrelas e a Lua devem, por seu corpo divino, permanecer eternos, e julgues que é justo punir, como sucedeu com os gigantes, com todas as penas dignas de um imenso crime, aqueles que pelo seu raciocínio perturbam os fundamentos do mundo e quereriam extinguir o claríssimo sol do céu, marcando os imortais com palavras mortais; no entanto, todas estas coisas se acham tão distantes do poder divino, e são tão indignas de serem levadas à conta dos deuses, que mais se poderia julgar terem sido apresentadas para mostrar o que é um corpo completamente privado de movimento e sensibilidade vitais. (...)
Do mesmo modo, é impossível acreditar estejam as sagradas mansões dos deuses colocadas em qualquer parte do mundo. Efetivamente é sutil a natureza dos deuses e muito afastada dos nossos sentidos: até difícil de perceber com o espírito; ora, como foge ao contato e ao toque das mãos, também não pode tocar nada daquilo que para nós é tátil. De fato, aquilo que em si próprio não pode ser tocado também não pode tocar. Por isso as mansões deles devem ser diferentes das nossas casas e delicadas como seu corpo: o que mais adiante provarei com largo discurso.
Dizer ainda que foi por causa dos homens que eles quiseram preparar a maravilhosa natureza do mundo e que, por conseguinte, convém louvar a louvável obra dos deuses e julgá-la eterna e imortal; dizer que não é lícito abalar jamais nos seus fundamentos, seja qual for a razão, ou atacá-la com palavras ou derrubá-la inteiramente, apenas porque foi fundada para a raça humana e por toda a eternidade pela antiga sabedoria dos deuses; imaginar outras coisas deste gênero e vir apresentá-las é, ó Mêmio, perfeita loucura.
Em que importaria realmente o nosso agradecimento a seres imortais e felizes para que por nossa causa empreendessem fosse o que fosse? Que novidade pôde levá-los, depois de estarem tanto tempo sossegados, ao desejo de mudarem a sua vida anterior?
Com efeito, parece que a novidade deve agradar a quem encontra obstáculos nos tempos antigos; mas aquele a quem nada aconteceu de desagradável no tempo já passado, aquele que ia levando uma bela vida, como o pôde inflamar de tal modo o amor da novidade? Que mal haveria para nós em não termos sido criados? Ou é que por acaso a vida jazia nas trevas e na dor até a ter iluminado a origem genésica das coisas? Realmente, todo aquele que nasceu deve querer conservar-se na vida enquanto o retiver o doce prazer. Mas, para quem jamais provou o amor da vida nem esteve no número dos vivos, que importa não ter sido criado?
Depois, para gerar as coisas tem de haver um modelo; donde tiraram os deuses a primeira ideia de homens, para saberem o que desejavam fazer e o verem claramente no espírito? De que modo reconhecerem eles a força dos princípios e a possibilidade de lhes trocarem a disposição, se a própria natureza lhes não tivesse dado o modelo que haviam de criar?
Os elementos dos corpos em número e feitios inumeráveis e batidos pelos choques desde tempos infinitos foram sempre arrastados, levados pelos seus pesos, a juntar-se de todas as maneiras e a tudo experimentar, tudo o que podia criar-se pela sua junção; não é, pois, de admirar que tivessem chegado a tais disposições, que tivessem vindo a movimentos como aqueles pelos quais o Universo, deslocando-se, eternamente se renova.
Mesmo que eu ignorasse quais são os elementos das coisas, ousaria, no entanto, e só pelo estudo das leis celestes, afirmar e mostrar, até por outras coisas ainda, que de nenhum modo a natureza foi preparada para nós por vontade dos deuses: tão grandes são os seus defeitos!
Primeiro, de toda a terra coberta pelo imenso ímpeto do céu possuem os montes e os bosques da terra uma ávida parte; ocupam outra as rochas e os brejos desertos e outra ainda o mar que largamente separa os litorais, e as terras. Depois, perto de duas partes, roubam-nas aos mortais o fervente ardor e a incessante queda da neve.
Quanto ao que sobra de terra cultivada, a natureza por sua própria força a esconderia sob as silvas, se a energia humana não resistisse e se por causa da vida a não tivesse habituado a gemer sob o forte enxadão e não tivesse rasgado a terra pesando sobre o arado. Se nós não revolvêssemos com a relha as fecundas glebas, se não preparássemos o solo para o que tem de nascer, nada poderia por si mesmo subir no límpido ar; e todavia muitas vezes o que foi obtido com grande trabalho, quando já tudo se cobre de folhas e floresce pela terra, ou o abrasa o sol etéreo com o calor demasiado ou o destroem as súbitas chuvas e a fria geada, e o arrebatam os flagelos do vento em violento turbilhão.
Por que razão, além disso, alimenta e multiplica a natureza, em mar e terra, a raça terrível das feras inimigas do gênero humano? Por que razão trazem doenças as estações do ano? Por que razão vagueia a morte prematura?
Depois, a criança, que, tal o marinheiro arremessado pelas ondas terríveis, jaz nu sobre o solo, sem falar, sem nenhum auxílio para a vida, logo que a natureza o lança num esforço, do ventre da mãe às praias da luz, enche o lugar de queixosos vagidos, como é natural para quem tem ainda de passar tantos males durante a vida.
Mas crescem os variados animais, os de rebanho e as feras, sem que sejam necessários guizos nem as palavras balbuciadas e suaves da ama criadora; não têm de procurar vestuários diferentes segundo a época do céu, nem necessidade de armas e de altas muralhas para proteger as suas coisas: a terra e a natureza criadora a todos dão de tudo, e largamente.
Visto que a substância da terra, e a água, e os leves sopros do vento e os cálidos vapores de que parece compor-se todo o Universo, tudo isso consiste em matéria sujeita a nascimento e morte, deve considerar-se que dessa mesma matéria é formada a natureza de todo o mundo. De fato, tudo o que nos aparece com partes e membros constituídos por elementos sujeitos a nascimento e morte é também, segundo vemos, de natureza sujeita a nascimento e morte. Por isso, quando vejo os enormes membros e as partes do mundo serem consumidos e renascerem, é lícito concluir que também o céu e a Terra tiveram algum tempo em que principiaram e que serão destruídos no futuro.”


“O tempo modifica a natureza de todo o mundo, um estádio se sucede a outro, segundo uma ordem determinada, e nada fica semelhante a si próprio: tudo passa, a tudo a natureza muda e obriga a transformar-se. Apodrece um corpo e se enfraquece de velhice e logo outro cresce e sai daquilo que se desprezava. Assim, pois, modifica o tempo a natureza de todo o mundo e passa a terra de um estádio a outro: acaba por não poder o que já pôde e por ser capaz do que lhe era impossível.”


“Não é piedade alguma mostrar-se muitas vezes aproximando-se velado duma pedra e a correr a todos os altares e deitar-se prostrado no solo e abrir as mãos diante dos templos dos deuses ou espargir os altares com muito sangue de quadrúpedes ou atar votos aos votos: o que vale é poder olhar tudo com um espírito pacífico.”


“Sem dúvida, existe escondida qualquer força que destrói as coisas humanas e que parece ter gosto em calcar os belos feixes e as machadas cruéis. E quando toda a terra vacila debaixo dos pés e caem abaladas as cidades, ou estremecem e ameaçam ruína, que há de estranhável em que as gerações mortais se humilhem e deixem às forças dos deuses o poder grande e admirável capaz de governar tudo no mundo?”


“Efetivamente aquilo que temos à mão antes de conhecermos alguma coisa de mais agradável é o que nos dá mais prazer e o que parece ser mais forte; depois, uma coisa melhor faz perder as descobertas antigas e modifica o que sentimos a seu respeito. Assim começou a aborrecer a bolota, assim se abandonaram as camas feitas de ervas e guarnecidas de ramagens. Também do mesmo modo caiu no desprezo o vestuário feito da pele das feras; e, no entanto, creio que despertou ao aparecer uma tal inveja que o primeiro que o usou deve ter sido vítima duma cilada; mas naturalmente se perdeu entre eles, despedaçado e coberto de sangue, e não veio a servir para ninguém.
Naquele tempo eram as peles, agora é o ouro e a púrpura que fazem que os homens passem a vida em cuidados e a esgotem com as guerras; mas creio que a culpa nos cabe sobretudo a nós próprios. Com efeito, o frio apanhando-os nus, sem peles, torturava os filhos da terra; mas a nós nada nos prejudica carecer duma veste purpúrea e dourada enfeitada de grandes bordados, contanto que tenhamos um vestuário da plebe com que possamos defender-nos.
Portanto, trabalha a raça dos homens em vão e inutilmente, e sempre em vãos cuidados consome a sua idade; nada há nisto de admirar, porque não sabe que fim se tem de pôr às posses e até onde vai o prazer verdadeiro. E foi isto que a pouco e pouco levou a nossa vida para o mar alto e fez mover profundamente as grandes tempestades da guerra.”


“Tem de se supor que o raio se origina a partir de nuvens espessas acumuladas a uma grande altura; com efeito, não há nenhum que seja lançado de um céu sereno e de nuvens pouco densas. Disto nos dá a realidade uma prova manifesta, porque é nessa altura que as nuvens se acumulam por todo o ar, como para crermos que as trevas deixaram todas o Aqueronte e vieram encher as grandes abóbadas do céu. Quando a tempestade começa a agitar os seus raios, uma noite temerosa sai das nuvens e lá de cima nos ameaça a face do terror. (...)
Se, realmente, é Júpiter e os outros deuses que abalam com o terrível som os resplandecentes espaços do céu, e lançam o fogo para toda parte que lhes apeteceu, por que razão não fazem que aqueles que cometeram um crime abominável, sem temor algum, não exalem do peito trespassado as chamas do raio que os fulminou, servindo assim de terrível ensinamento para os mortais, e por que razão aquele que não tem crime algum na consciência se vê envolvido inocente nas chamas e é levado e arrebatado subitamente pelo turbilhão daquele fogo celeste? Por que razão atacam lugares desertos e trabalham inutilmente? Acaso estão dando exercício aos braços e fortificando os músculos? Por que razão permitem que o ardor de seu pai venha embotar-se na Terra? Por que razão o consente ele próprio e não o poupa para os inimigos? Finalmente, por que é que Júpiter não lança dum céu inteiramente limpo e não espalha pelas terras o raio e seu trovão? Então, é quando lhe passam as nuvens por debaixo que ele desce para elas e daí determina o lançamento do dardo? Nesse caso, por que os atira para o mar? Que censura ele às ondas e à massa líquida e às flutuantes planícies?
Além disso, se ele quer que nos acautelemos com o choque do raio, por que razão hesita em fazer que possamos dar pelo seu lançamento? Se quer, no entanto, que venha o fogo cair sobre aqueles que o não esperam, por que razão troveja nesse ponto, para que possamos evitá-lo, por que razão concita anteriormente as trevas, os frêmitos, os rugidos? Acaso se poderia acreditar que ele os lança para vários pontos? Ousar-se-ia sustentar que jamais ao mesmo tempo tivessem caído vários raios? Mas se é o que já tem acontecido inúmeras vezes: assim como chove e cai a água em vários pontos, assim também chegam, ao mesmo tempo, vários raios.
Finalmente, por que motivo destrói ele os sagrados templos dos deuses e, com raio inimigo, as suas preclaras moradias, por que razão quebra as excelentes estátuas dos deuses e, com a violenta ferida, diminui o prestígio das suas imagens? E por que motivo ataca ele os lugares elevados e encontramos nós nos altos montes a maior parte dos sinais dos seus fogos?”