Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-184-0
Tradução: João Alexandre Peschanski
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 238
Sinopse: “O Partido de Wall Street teve seu tempo e
falhou miseravelmente. Como construir uma alternativa a partir de sua ruína é
tanto uma oportunidade imperdível quanto uma obrigação que nenhum de nós pode
ou deveria jamais procurar evitar.” É com essa máxima que o geógrafo acadêmico
mais citado do mundo, David Harvey, inicia seu novo livro, O enigma do
capital: e as crises do capitalismo, o primeiro de sua autoria a ser lançado pela
Boitempo Editorial.
Harvey parte da análise da crise do subprime imobiliário de
2008 para demonstrar que, apesar de seu alcance e tamanho, ela não difere das
crises passadas. Para tanto, o autor estuda as condições necessárias para a
acumulação do capital e utiliza rigoroso arsenal teórico ao expor o papel
fundamental que as crises têm na reprodução do capitalismo e os riscos
sistêmicos de longo prazo que o capital representa para a vida no planeta.
Riscos sistêmicos estes, inerentes ao capitalismo
de livre mercado, que os economistas não foram capazes de compreender quando a
crise estourou e até hoje parecem não ter ideia do que são ou do que fazer com
eles. “Quando os políticos e economistas especializados parecem tão
inconscientes e indiferentes à propensão do capitalismo a crises, quando tão
alegremente ignoram os sinais de alerta a seu redor e chamam os anos de
volatilidade e turbulência iniciados nos anos 1990 de ‘a grande moderação’,
então o cidadão comum pode ser perdoado por ter tão pouca compreensão em
relação ao que o atinge quando eclode uma crise e tão pouca confiança nas
explicações dos especialistas que lhe são oferecidas”, afirma o autor.
Nem sempre, porém, houve essa cegueira generalizada
entre os economistas. Segundo Harvey, nos primeiros anos do capitalismo,
economistas políticos de todos os matizes se esforçaram para entender os fluxos
do capital, mas nos últimos tempos se afastaram do exercício de compreensão
crítica para construir modelos matemáticos sofisticados, investigar planilhas e
analisar dados sem fim. Qualquer concepção do caráter sistêmico desses fluxos
foi perdida sob um monte de papéis, relatórios e previsões.
Com uma capacidade analítica singular, Harvey
dirige-se de forma didática e acessível ao leitor pouco familiarizado com o
jargão econômico ou marxista, sem ser simplista. Por meio da construção
detalhada de cada conceito, torna a leitura gradativamente mais complexa na
medida em que uma maior articulação é necessária para explicar a dinâmica do
fluxo do capital, seus caminhos sinuosos e sua estranha lógica de
comportamento, tarefa fundamental para explicar as condições em que vivemos
atualmente.
O enigma do capital: e as crises do
capitalismo desnuda as razões para o fracasso da sociedade de “livre mercado”,
jogando por terra o argumento de que a crise financeira mundial, que começou em
2008 e está longe de acabar, não tenha precedentes. “Tento restaurar algum
entendimento sobre o que o fluxo do capital representa. Se conseguirmos
alcançar uma compreensão melhor das perturbações e da destruição a que agora
estamos todos expostos, poderemos começar a saber o que fazer”, conclui o
autor.
“Um dos principais
obstáculos para o contínuo acúmulo de capital e a consolidação do poder de
classe capitalista na década de 1960 foi o trabalho. Havia escassez de mão de
obra, tanto na Europa quanto nos EUA. O trabalho era bem organizado,
razoavelmente bem pago e tinha influência política. No entanto, o capital
precisava de acesso a fontes de trabalho mais baratas e mais dóceis. Houve uma
série de maneiras para fazer isso. Uma delas foi estimular a imigração. O Ato
de Imigração e Nacionalidade de 1965, que aboliu as cotas de origem nacional,
permitiu o acesso ao capital dos EUA à população excedente global (antes apenas
europeus e caucasianos eram privilegiados). No fim dos anos 1960, o governo
francês começou a subvencionar a importação de mão de obra da África do Norte,
os alemães transportaram os turcos, os suecos trouxeram os iugoslavos, e os
britânicos valeram-se dos habitantes do seu antigo império.
Outra forma foi
buscar tecnologias que economizassem trabalho, como a robotização na indústria
automobilística, o que criou desemprego. Um pouco disso aconteceu, mas houve
muita resistência por parte do trabalho, que insistia em acordos de
produtividade. A consolidação do poder de monopólio das empresas também
enfraqueceu a implementação de novas tecnologias, porque custos laborais mais
elevados eram transferidos para o consumidor por meio de preços mais altos
(resultando em inflação estável). As Três Grandes empresas automobilísticas em
Detroit geralmente faziam isso. Seu monopólio acabou finalmente quebrado quando
os japoneses e alemães invadiram o mercado de automóveis dos EUA na década de
1980. O retorno às condições de uma maior concorrência, que se tornou um
objetivo político fundamental nos anos 1970, então forçou o uso de tecnologias
que economizassem trabalho. Mas isso entrou bem tarde em jogo.
Se tudo isso
falhasse, havia pessoas como Ronald Reagan, Margaret Thatcher e o general
Augusto Pinochet à espera, armados com a doutrina neoliberal, preparados para
usar o poder do Estado para acabar com o trabalho organizado. Pinochet e os
generais brasileiros e argentinos o fizeram com poderio militar, enquanto
Reagan e Thatcher orquestraram confrontos com o grande trabalho, quer
diretamente no caso do confronto de Reagan com os controladores de tráfego
aéreo e a luta feroz de Thatcher com os mineiros e os sindicatos de impressão,
quer indiretamente pela criação de desemprego. Alan Budd, conselheiro-chefe
econômico de Thatcher, mais tarde admitiu que “as políticas dos anos 1980 de
ataque à inflação com o arrocho da economia e gastos públicos foram um disfarce
para esmagar os trabalhadores”, e assim criar um “exército industrial de
reserva”, que minaria o poder do trabalho e permitiria aos capitalistas obter
lucros fáceis para sempre. Nos EUA, o desemprego subiu, em nome do controle da
inflação, para mais de 10% em 1982. Resultado: os salários estagnaram. Isso foi
acompanhado nos EUA por uma política de criminalização e encarceramento dos
pobres, que colocou mais de 2 milhões atrás das grades até 2000.”
““Globalizar-se”
foi facilitado por uma reorganização radical dos sistemas de transporte, que
reduziu os custos de circulação. A conteinerização – uma inovação fundamental –
permitiu que peças feitas no Brasil pudessem ser utilizadas para montar carros
em Detroit. Os novos sistemas de comunicações permitiram a organização rigorosa
da cadeia produtiva de mercadorias no espaço global (lançamentos da moda de
Paris puderam ser quase imediatamente enviados a Manhattan por meio das
maquiladoras de Hong Kong). Barreiras artificiais do comércio, como tarifas e
cotas, foram reduzidas. Acima de tudo, uma nova arquitetura financeira global
foi criada para facilitar a circulação do fluxo internacional de capital-dinheiro
líquido para onde fosse usado de modo mais rentável. A desregulamentação das
finanças, que começou no fim dos anos 1970, acelerou-se depois de 1986 e
tornou-se irrefreável na década de 1990.
A disponibilidade
do trabalho não é mais um problema para o capital, e não tem sido pelos últimos
25 anos. Mas o trabalho desempoderado significa baixos salários, e os
trabalhadores pobres não constituem um mercado vibrante. A persistente
repressão salarial, portanto, coloca o problema da falta de demanda para a
expansão da produção das corporações capitalistas. Um obstáculo para a
acumulação de capital – a questão do trabalho – é superado em detrimento da
criação de outro – a falta de mercado.”
“O sucesso da
política de repressão salarial depois de 1980 permitiu que os ricos ficassem
muito ricos. Dizem-nos que isso é bom porque os ricos vão investir em novas
atividades (depois de satisfazer sua necessidade competitiva de se deleitar com
o consumo conspícuo, é claro). Bem, sim, eles investem, mas não necessariamente
direto na produção. A maioria deles prefere investir em ações. Por exemplo,
eles colocam dinheiro no mercado de ações e o valor das ações sobe, então
colocam ainda mais dinheiro, independentemente de quão bem as empresas em que
investem estão de fato. (Você se lembra das previsões do fim dos anos 1990 da
Dow em 35 mil?) O mercado de ações tem um caráter Ponzi, mesmo sem os Bernies
Madoffs deste mundo precisarem organizá-lo explicitamente assim. Os ricos
apostaram alto em todo tipo de ativos, incluindo ações, propriedades, recursos,
petróleo e outras mercadorias futuras, bem como o mercado de arte. Eles também
investiram no capital cultural com o patrocínio de museus e todo o tipo de
atividades culturais (tornando assim a chamada “indústria cultural” uma
estratégia preferida para o desenvolvimento econômico urbano). Quando o Lehman
Brothers quebrou, o Museu de Arte Moderna de Nova York perdeu um terço de sua
receita de patrocínio.
Novos mercados
estranhos surgiram, liderados pelo que se tornou conhecido como “sistema de
banco às escuras”, permitindo o investimento em trocas de crédito, derivativos
de moeda e assim por diante. O mercado de futuros abarcou tudo desde o comércio
de direitos de poluição até apostas sobre o tempo. De quase nada em 1990, esses
mercados cresceram e passaram a circular aproximadamente 250 trilhões de
dólares em 2005 (a produção total mundial foi então de apenas 45 trilhões de
dólares) e talvez algo como 600 trilhões de dólares em 2008. Os investidores
puderam investir em derivativos de ativos e, finalmente, até mesmo em
derivativos de contratos de seguros de derivativos de ativos. Esse foi o
ambiente em que os fundos de cobertura floresceram, com enormes lucros para
quem investiu neles. Aqueles que o administravam acumularam grandes fortunas
(mais de 1 bilhão de dólares em remuneração pessoal por ano para vários deles
em 2007 e 2008, e algo como 3 bilhões de dólares para os que mais receberam).
A tendência de
investimento em ativos se tornou generalizada. De 1980 em diante vieram à tona
periodicamente relatórios sugerindo que muitas das grandes corporações não
financeiras geravam mais dinheiro de suas operações financeiras do que fazendo
coisas. Isso foi particularmente verdadeiro na indústria automobilística. Essas
corporações agora eram administradas por contadores e não por engenheiros, e
suas divisões financeiras que tratavam de empréstimos aos consumidores foram
altamente rentáveis. A General Motors Acceptance Corporation tornou-se logo uma
das maiores detentoras de hipotecas de propriedade privada, bem como um
lucrativo negócio de financiamento de compra de carros. Mas mais importante
ainda, o comércio interno dentro de uma corporação que produzia autopeças em todo
o mundo permitiu que preços e demonstrativos de lucros fossem manipulados em
diferentes moedas de forma a declarar lucro em países onde as taxas eram mais
baixas e usar flutuações de moeda para obter ganhos monetários.”
“Há um grave
problema subjacente, particularmente desde a crise de 1973 a 1982, sobre como
absorver montantes de capital excedente na produção de bens e serviços cada vez
maiores. Durante os últimos anos, as autoridades monetárias como o Fundo
Monetário Internacional têm comentado que “o mundo está inundado com excesso de
liquidez”, isto é, há uma massa crescente de dinheiro à procura de algo
rentável para colocar-se. Na crise dos anos 1970, grandes excedentes de dólares
ficaram empilhados nos Estados do Golfo como resultado do aumento dos preços do
petróleo. Foram então reciclados na economia mundial pelos bancos de
investimento de Nova York, que emprestaram imensamente para os países em
desenvolvimento, preparando o cenário para a eclosão da crise mundial da dívida
da década de 1980.
Cada vez menos
capital excedente tem sido absorvido na produção (apesar de tudo o que
aconteceu na China) porque as margens de lucro global começaram a cair depois
de um breve ressurgimento na década de 1980. Numa tentativa desesperada de
encontrar mais locais para colocar o excedente de capital, uma vasta onda de
privatização varreu o mundo, tendo sido realizada sob a alegação dogmática de
que empresas estatais são ineficientes e desengajadas por definição, e a única
maneira de melhorar seu desempenho é passá-las ao setor privado. O dogma não
resiste a qualquer análise pormenorizada. Algumas empresas estatais são de fato
ineficientes, mas outras não são. Basta viajar pela rede ferroviária francesa e
compará-la aos sistemas pateticamente privatizados nos EUA e Inglaterra. E nada
poderia ser mais ineficiente e perdulário do que o sistema de saúde privado nos
Estados Unidos (o Medicare, o segmento estadual, tem custos de manutenção muito
menores). Não importa. Indústrias administradas pelo Estado, assim seguiu o
mantra, tiveram de ser abertas ao capital privado, que não tinham para onde ir,
e serviços de utilidade pública como água, eletricidade, telecomunicações e
transporte – para não falar de habitação, educação e saúde – tiveram de ser
abertas para as bênçãos da iniciativa privada e a economia de mercado. Em
alguns casos pode ter havido ganhos de eficiência, mas em outros não. O que se
tornou evidente, no entanto, foi que os empresários que compraram esses bens
públicos, em geral com bons descontos, rapidamente se tornaram bilionários. O
mexicano Carlos Slim Helú, classificado como o terceiro homem mais rico do
mundo pela revista Forbes em 2009, teve seu grande êxito com a privatização
das telecomunicações do México no início dos anos 1990. A onda de privatizações
num país marcado por sua pobreza catapultou vários mexicanos para a lista de
mais ricos da Forbes em um curto prazo. A terapia de choque de mercado
na Rússia pôs sete oligarcas no controle de quase metade da economia dentro de
alguns anos (Putin tem lutado contra eles desde então).
À medida que mais
capital excedente entrou na produção na década de 1980, particularmente na
China, a concorrência intensificada entre os produtores começou a colocar
pressão sobre os preços (como visto no fenômeno do Wal-Mart com preços cada vez
menores para os consumidores dos EUA). Os lucros começaram a cair depois de
mais ou menos 1990, apesar da abundância de trabalhadores com baixos salários.
Salários e lucros baixos são uma combinação peculiar. Como resultado, cada vez
mais dinheiro entrou na especulação em ativos, porque era onde lucros eram
passíveis de ser realizados. Por que investir em produção de baixo lucro,
quando você pode tomar emprestado no Japão sem taxa de juros e investir em
Londres a 7% com cobertura para seus investimentos em caso de uma possível e
deletéria mudança na taxa de câmbio iene-libra? Em qualquer caso, foi mais ou
menos nesse período que ocorreu a explosão da dívida e os novos mercados de
derivativos decolaram, o que, juntamente com a infame bolha ponto.com da
internet, sugou uma vasta quantidade de capital excedente. Quem precisava se
preocupar com o investimento na produção quando tudo isso estava acontecendo?
Esse foi o momento em que a financeirização da tendência de crise do capitalismo
começou de fato.”
“A acumulação
original do capital no fim da época medieval na Europa se fundamentou em
violência, depredação, furto, fraude e roubo. Por esses meios extralegais,
piratas, padres e comerciantes, complementados pelos usurários, reuniram “poder
de dinheiro” inicial suficiente para começar a circular o dinheiro de forma
sistemática sob a forma de capital. O roubo espanhol de ouro incaico foi o
exemplo paradigmático. Nos estágios iniciais, porém, o capital não circulou
diretamente por meio da produção. Assumiu uma variedade de outras formas, como
capital agrário, comerciante, fundiário e, por vezes, mercantilista de Estado.
Essas formas não eram adequadas para absorver os vastos fluxos de ouro. Ouro
demais perseguia bens de menos. O resultado foi a “grande inflação” do século
XVI na Europa. Foi só quando os capitalistas aprenderam a circular o capital
através da produção empregando trabalho assalariado que o crescimento composto
pôde começar, aproximadamente após 1750.
A burguesia em
ascensão progressivamente usou seu poder do dinheiro para influenciar e
reconstituir as formas do Estado, em última análise assumindo uma influência
dominante sobre as instituições militares e administrativas, além dos sistemas
jurídicos. Em seguida, ela pôde adotar meios sancionados legalmente para reunir
o poder do dinheiro pela despossessão e destruição das formas pré-capitalistas
de providência social. Fê-lo tanto dentro do Estado – ao lotear, por exemplo,
terras comuns e monetarizar os aluguéis na Grã-Bretanha – quanto no exterior, por
meio de práticas coloniais e imperialistas (a imposição de impostos sobre a
terra na Índia). Uma relação estreita, em seguida, surgiu entre as finanças e o
Estado, em especial por meio do aumento da dívida pública (geralmente para
financiar guerras). (...)
À medida que mais
e mais excedente criado ontem é convertido em capital novo hoje, mais e mais
dinheiro investido hoje vem dos lucros obtidos ontem. Isso poderia levar a
pensar que a acumulação violenta praticada em tempos anteriores é redundante.
Mas a “acumulação por despossessão” continua a desempenhar um papel na reunião
do poder do dinheiro inicial. Meios tanto legais quanto ilegais – como
violência, criminalidade, fraude e práticas predatórias do tipo das que foram
descobertas nos últimos tempos no mercado de hipotecas subprime ou de forma ainda
mais significativa no comércio de drogas – são implementados. Os meios legais
incluem a privatização do que antes era considerado como recursos de
propriedade comum (como a água e a educação), o uso do poder público para
apreender bens, as práticas generalizadas de aquisições, as fusões e outros
mecanismos similares que resultam no “desmembramento de ativos” e o
cancelamento de obrigações de pensão e saúde, por exemplo, num processo de
falência. As perdas de ativos que muitos têm experimentado durante a crise
recente podem ser vistas como uma forma de despossessão, que pode ser
transformada em mais acumulação na medida em que os especuladores compram os
ativos mais baratos hoje pensando em vendê-los com lucro quando o mercado
melhorar. Isso é o que os banqueiros e os fundos de cobertura fizeram durante o
crash de 1997 a 1998 no
Leste e Sudeste Asiático. As grandes perdas nessa parte do mundo alimentaram os
cofres dos principais centros financeiros.”
“O nexo
Estado-finanças funciona há muito tempo como o “sistema nervoso central” da
acumulação do capital. Quando os sinais internos de seu funcionamento derem
errado, então, obviamente, as crises surgirão. Boa parte do que acontece dentro
dos bancos centrais e ministérios das finanças dos Estados contemporâneos é
ocultada e envolta em mistério. Não foi à toa que William Greider chamou sua
investigação exaustiva de 1989 sobre como funciona o Federal Reserve de
“Segredos do Templo”. Marx retratou o mundo das finanças como o “Vaticano” do
capitalismo. No mundo de hoje poderia ser ainda mais irônico chamá-lo de
“Kremlin”, já que o mundo parece mais propenso a acabar sendo governado pela
ditadura de seus banqueiros centrais do que pelos trabalhadores. O nexo
Estado-finanças tem todas as características de uma instituição feudal, repleta
de intrigas e passagens secretas, exercendo um poder estranho e totalmente
antidemocrático, não apenas sobre como o capital circula e se acumula, mas
sobre quase todos os aspectos da vida social. A fé cega nos poderes corretivos
residentes no nexo Estado-finanças é consistente com a confiança e as
expectativas que Keynes considerou tão cruciais para a sustentação do
capitalismo.”
“O que eles também
mostraram foi que as crises são, de fato, não apenas inevitáveis, mas também
necessárias, pois são a única maneira em que o equilíbrio pode ser restaurado e
as contradições internas da acumulação do capital, pelo menos temporariamente, resolvidas.
As crises são, por assim dizer, os racionalizadores irracionais de um
capitalismo sempre instável. Durante uma crise, como esta em que estamos agora,
é sempre importante manter esse fato em mente. Temos sempre a perguntar: o que
está sendo racionalizado aqui e que direção estão tomando as racionalizações,
uma vez que isso é o que vai definir não apenas a nossa forma de saída da
crise, mas o caráter futuro do capitalismo? Em tempos de crise há sempre
opções. Qual delas é escolhida depende criticamente da relação das forças de
classe e das concepções mentais sobre o que poderia ser possível. Não havia
nada de inevitável no New Deal de Roosevelt, na mesma medida em que a
contrarrevolução de Reagan e Thatcher de 1980 não era inevitável. Mas as possibilidades
não são infinitas.”
“Na base da longa
cadeia da oferta que traz os meios de produção para o capitalista, esconde-se
um problema mais profundo de limites naturais em potencial. O capitalismo, como
qualquer outro modo de produção, baseia-se no usufruto da natureza. O
esgotamento e a degradação da terra e dos chamados recursos naturais não fazem
mais sentido no longo prazo do que a destruição dos poderes coletivos de
trabalho, pois ambos estão na raiz da produção de toda a riqueza. Mas os capitalistas
individuais, que trabalham em seus próprios interesses de curto prazo e são
impelidos pelas leis coercitivas da competição, estão perpetuamente tentados a
tomar a posição de après moi le déluge* com respeito ao
trabalhador e ao solo. Mesmo sem isso, a corrida pela acumulação perpétua
coloca enormes pressões sobre a oferta de recursos naturais, enquanto o
inevitável aumento da quantidade de resíduos testa a capacidade dos sistemas
ecológicos de absorvê-los sem transformá-los em tóxicos. Aqui, também, é
provável que o capitalismo encontre limites e barreiras que se tornarão cada
vez mais difíceis de contornar.”
* “Depois de mim o dilúvio”, expressão francesa que
significa a total indiferença de quem a profere pelo desenlace de determinada
situação, mesmo sendo uma catástrofe.
“Qualquer quebra
de confiança pode tornar-se catastrófica. Os recentes acontecimentos no setor
dos serviços financeiros ilustram exatamente esse problema. Em meados dos anos
1980 os computadores eram raros e primitivos em Wall Street. Os mercados ainda
eram relativamente simples, transparentes e bem regulados. Os especuladores
baseavam suas atividades em alguns compêndios de informações (de insiders, se você não
fosse pego e condenado, como de fato aconteceu) e intuição. Vinte anos depois,
mercados de opções e derivativos totalmente novos com negociações ilegais e com
frequência não regulamentadas dominavam o comércio (600 trilhões de dólares em
negócios em 2008 em relação à produção total de bens e serviços na economia
mundial de cerca de 55 trilhões de dólares!). Um dos propósitos dessa onda de
inovação foi evitar a regulamentação e criar novas arenas em que os excedentes
de capital poderiam ser rentavelmente aplicados em mercados “livres” (ou seja,
não regulamentados) sem qualquer preocupação. As inovações foram pontuais e
privadas, o que correspondeu mais às atividades do “bricoleur” do que do sistematizador. Essa foi a
maneira de evitar a regulação e liberar o mercado. Os especuladores eram em
meados da década de 1990 muitas vezes matemáticos e físicos altamente
capacitados (muitos chegaram com doutorados nessas áreas diretamente do MIT),
que se encantaram com os complexos modelos dos mercados financeiros, seguindo
as linhas pioneiras de 1972, quando Fischer Black, Myron Scholes e Robert
Merton (que mais tarde se tornou famoso por seu papel no acidente do Long-Term
Capital Management e no socorro financeiro de 1998) escreveram uma fórmula
matemática – pela qual ganharam um Prêmio Nobel de Economia – sobre a forma de
dar valor a uma opção. A negociação identificava e explorava ineficiências nos
mercados e distribuía os riscos, mas, dado o seu padrão totalmente novo,
permitiu manipulações a rodo que eram extremamente difíceis de controlar ou
mesmo de identificar, porque estavam encobertas por uma caixa-preta de
matemática intrincada dos programas informatizados dos acordos comerciais não
regulados.”
“Quando
trabalhadores gastam seu salário, isso se configura numa fonte de demanda
efetiva. Mas a massa salarial é sempre menor do que o capital total em
circulação (senão, não haveria lucro), assim a compra dos bens de sobrevivência
que sustentam a vida diária (mesmo com um estilo de vida suburbano) nunca é
suficiente para a venda com lucro da produção total. Uma política de repressão
salarial só aumenta a possibilidade de uma crise de subconsumo. Muitos
analistas chegaram a considerar a crise dos anos 1930 como uma crise
essencialmente de subconsumo. Eles apoiaram, portanto, a sindicalização e
outras estratégias do Estado (como a assistência social) para reforçar a
demanda efetiva nas classes trabalhadoras. Em 2008, o governo federal dos EUA
liberou um desconto fiscal de seiscentos dólares para a maioria dos
contribuintes abaixo de um determinado nível de renda com o mesmo intuito.
Teria sido muito melhor ter revertido a política de repressão salarial posta em
prática a partir de meados da década de 1970 e elevado o salário real. Isso
teria impulsionado permanentemente a demanda e a confiança dos consumidores.
Mas muitos capitalistas, assim como os ideólogos da direita, não estavam
dispostos a contemplar tal solução. Os republicanos no Congresso bloquearam o
plano inicial para socorrer as montadoras de Detroit sob a justificação de que
não reduzia os salários e benefícios dos trabalhadores sindicalizados ao nível
daqueles encontrados nas montadoras sem sindicatos japonesas e alemãs
localizadas no Sul americano. Assim, viram a crise como uma oportunidade de levar
a cabo outro ataque de repressão salarial, o que era exatamente a receita
errada para a doença da falta de demanda efetiva.”
“Desde mais ou
menos 1950, e de forma mais acentuada desde a década de 1970, a capacidade das
práticas imperialistas desse tipo de desempenhar o papel de grande
estabilizador tem sido seriamente prejudicada. Com o capitalismo (de algum
modo) agora implantado com firmeza em todo o Leste e Sudeste Asiático e se
desenvolvendo fortemente na Índia e Indonésia, para não falar de todo o resto
do mundo, o problema da demanda global e eficaz dos consumidores está colocado
numa base inteiramente diferente. A demanda efetiva que estabiliza o
crescimento atual da China, por exemplo, é agora em grande parte localizada nos
Estados Unidos, o que explica por que a China se sente tão obrigada a cobrir os
déficits dos EUA, pois o colapso do consumismo nos EUA teria (e tem) efeitos
devastadores nos empregos industriais e nas taxas de lucro na China. A resposta
óbvia é a China desenvolver seu próprio mercado interno, mas isso exigiria a
elevação dos salários e enfraqueceria sua própria vantagem competitiva na
economia global. Significaria também usar mais de seu superávit para o
desenvolvimento interno, o que se traduziria em ter menos disponível para
emprestar para os EUA. Isso diminuiria ainda mais a demanda efetiva de produtos
chineses nos Estados Unidos. O que isso prenuncia, como vimos anteriormente, é
uma inversão histórica dos 150 anos ou mais da transferência de riquezas do
Leste e Sul Asiático para os Estados Unidos e a Europa e uma mudança radical na
capacidade de os EUA dominarem o capitalismo global como fazem desde 1945.”
“Há, acredito, uma
maneira muito melhor de pensar a formação de crises. A análise da circulação do
capital aponta para vários limites e barreiras potenciais. A escassez de
capital-dinheiro, os problemas trabalhistas, as desproporcionalidades entre os
setores, os limites naturais, as mudanças tecnológicas organizacionais
desequilibradas (incluindo a concorrência versus o monopólio), a indisciplina
no processo de trabalho e a falta de demanda efetiva encabeçam a lista.
Qualquer uma dessas condições pode retardar ou interromper a continuidade do
fluxo do capital e assim produzir uma crise que resulta na desvalorização ou
perda do capital. Quando um limite é superado, a acumulação muitas vezes
depara-se com outro em algum lugar. Por exemplo, ações feitas para aliviar uma
crise da oferta de trabalho e reduzir o poder político do movimento sindical na
década de 1970 diminuíram a demanda efetiva por produtos, o que criou
dificuldades para a realização do excedente no mercado durante a década de
1990. Ações para aliviar esse último problema pelas extensões do sistema de
crédito para os trabalhadores levou essa classe ao sobre-endividamento em
relação à renda, que, por sua vez, levou a uma crise de confiança na qualidade
dos instrumentos da dívida (como começou a acontecer em 2006). As tendências de
crise não são resolvidas, apenas deslocadas.
Acho que está mais
de acordo com a frequente invocação de Marx sobre o caráter fluido e flexível
de desenvolvimento capitalista identificar esse reposicionamento perpétuo de
uma barreira à custa de outra e, assim, reconhecer as múltiplas formas em que
as crises podem se formar em diferentes situações históricas e geográficas.
Também é vital lembrar-se de que as crises assumem um papel fundamental na
geografia histórica do capitalismo como “racionalizadores irracionais” de um
sistema inerentemente contraditório. As crises são, em suma, tão necessárias
para a evolução do capitalismo como o dinheiro, o poder do trabalho e o próprio
capital. É preciso, no entanto, acompanhamento cuidadoso e análise materialista
para localizar a fonte ou fontes exatas do bloqueio em qualquer lugar ou tempo.
A visão sinóptica
da crise atual diria: embora o epicentro se encontre nas tecnologias e formas
de organização do sistema de crédito e do nexo Estado-finanças, a questão
subjacente é o empoderamento capitalista excessivo em relação ao trabalho e à
consequente repressão salarial, levando a problemas de demanda efetiva
acentuados por um consumismo alimentado pelo crédito em excesso em uma parte do
mundo e por uma expansão muito rápida da produção em novas linhas de produtos
na outra parte.”
“As forças que
surgiram com o advento do capitalismo refizeram muitas vezes o mundo desde
1750. Se tivéssemos sobrevoado a região central da Inglaterra em 1820, teríamos
visto algumas cidades industrializadas compactas (com pequenas chaminés
expelindo fumaça nociva), separadas por grandes áreas de atividade agrícola,
nas quais as formas tradicionais da vida das zonas rurais foram preservadas em
aldeias e fazendas, por mais que os senhores de terra comentassem com lirismo
as novas práticas agrícolas que sustentavam o aumento da produtividade da
agricultura (e o dinheiro crescente das rendas). Centros industriais compactos,
com nomes como Manchester e Birmingham, estavam ligados uns aos outros e às
principais cidades comerciais portuárias, Liverpool e Bristol, bem como à
abundante capital Londres, por estradas sujas e canais estreitos. Barcaças
cheias de carvão e matérias-primas eram laboriosamente rebocadas ao longo dos canais,
por cavalos suados ou, como registrou Marx em O capital, por mulheres à beira da fome. A locomoção
era lenta.
Se tivéssemos
sobrevoado o delta do rio Pérola em 1980, teríamos visto vilas e cidades
minúsculas, com nomes como Shenzhen e Dongguan, aninhadas em uma paisagem
agrária amplamente autossuficiente de arroz, vegetais, produção pecuária e
piscicultura, e socializadas em municípios governados com mão de ferro por
funcionários locais do partido, que armazenavam suprimentos numa “tigela de
ferro de arroz” contra a ameaça da fome.
Se tivéssemos
sobrevoado essas duas áreas em 2008, as paisagens de extensa urbanização abaixo
seriam totalmente irreconhecíveis, assim como seriam as formas de produção e
transporte, as relações sociais, as tecnologias, as formas da vida cotidiana e
as formas de consumo. Se, como Marx certa vez afirmou, nossa tarefa não é tanto
compreender o mundo como transformá-lo, então, tem de ser dito, o capitalismo
tem feito um bom trabalho em seguir seu conselho. A maioria dessas mudanças
dramáticas aconteceu sem que ninguém se incomodasse em descobrir, primeiro,
como o mundo funcionava e, segundo, quais as consequências dessas mudanças.
Repetidamente, o imprevisto e o inesperado aconteceram, deixando para trás uma
vasta empreitada intelectual e prática na tentativa de limpar as consequências
desordenadoras do que já estava preparado por mais que não se soubesse.
A saga do
capitalismo é cheia de paradoxos, por mais que a maioria dos tipos de teoria
social – a teoria econômica em particular – não os leve de modo algum em
consideração. Do lado negativo, temos não só as crises econômicas periódicas e
muitas vezes localizadas que têm pontuado a evolução do capitalismo, incluindo
as guerras mundiais intercapitalistas e interimperialistas, os problemas da
degradação ambiental, a perda de biodiversidade, a espiral da pobreza entre as
populações em crescimento, o neocolonialismo, as graves crises na saúde
pública, a abundância de alienações e exclusões sociais e as angústias da
insegurança, violência e desejos não realizados. No lado positivo, alguns de
nós vivemos em um mundo onde os padrões de vida material e o bem-estar nunca
foram maiores, onde as viagens e as comunicações foram revolucionadas e as
barreiras espaciais físicas (embora não sociais) das interações humanas foram
reduzidas, onde os conhecimentos médicos e biomédicos oferecem para muitos uma
vida mais longa, onde cidades enormes e espetaculares, que seguem se
alastrando, foram construídas, onde o conhecimento prolifera, a esperança é eterna
e tudo parece possível (da autoclonagem à viagem espacial).
Que esse é o mundo
contraditório em que vivemos, e que continua a evoluir em um ritmo acelerado de
modo imprevisível e aparentemente incontrolável, é inegável. No entanto, os
princípios que sustentam essa evolução continuam obscuros, em parte porque nós,
seres humanos, lidamos mais com essa história com base em caprichos de algum
tipo de desejo humano coletivo e às vezes individual, em vez de buscar
princípios evolutivos dominantes do tipo que Darwin descobriu no campo da
evolução natural. Se quisermos mudar o mundo coletivamente em uma configuração
mais racional e humana por meio de intervenções conscientes, temos primeiro de
aprender a compreender muito melhor do que compreendemos agora o que estamos
fazendo com o mundo e com quais consequências.”
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