quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O enigma do capital: e as crises do capitalismo (Parte I), de David Harvey

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-184-0

Tradução: João Alexandre Peschanski

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 238

Sinopse: “O Partido de Wall Street teve seu tempo e falhou miseravelmente. Como construir uma alternativa a partir de sua ruína é tanto uma oportunidade imperdível quanto uma obrigação que nenhum de nós pode ou deveria jamais procurar evitar.” É com essa máxima que o geógrafo acadêmico mais citado do mundo, David Harvey, inicia seu novo livro, O enigma do capital: e as crises do capitalismo, o primeiro de sua autoria a ser lançado pela Boitempo Editorial.

Harvey parte da análise da crise do subprime imobiliário de 2008 para demonstrar que, apesar de seu alcance e tamanho, ela não difere das crises passadas. Para tanto, o autor estuda as condições necessárias para a acumulação do capital e utiliza rigoroso arsenal teórico ao expor o papel fundamental que as crises têm na reprodução do capitalismo e os riscos sistêmicos de longo prazo que o capital representa para a vida no planeta.

Riscos sistêmicos estes, inerentes ao capitalismo de livre mercado, que os economistas não foram capazes de compreender quando a crise estourou e até hoje parecem não ter ideia do que são ou do que fazer com eles. “Quando os políticos e economistas especializados parecem tão inconscientes e indiferentes à propensão do capitalismo a crises, quando tão alegremente ignoram os sinais de alerta a seu redor e chamam os anos de volatilidade e turbulência iniciados nos anos 1990 de ‘a grande moderação’, então o cidadão comum pode ser perdoado por ter tão pouca compreensão em relação ao que o atinge quando eclode uma crise e tão pouca confiança nas explicações dos especialistas que lhe são oferecidas”, afirma o autor.

Nem sempre, porém, houve essa cegueira generalizada entre os economistas. Segundo Harvey, nos primeiros anos do capitalismo, economistas políticos de todos os matizes se esforçaram para entender os fluxos do capital, mas nos últimos tempos se afastaram do exercício de compreensão crítica para construir modelos matemáticos sofisticados, investigar planilhas e analisar dados sem fim. Qualquer concepção do caráter sistêmico desses fluxos foi perdida sob um monte de papéis, relatórios e previsões.

Com uma capacidade analítica singular, Harvey dirige-se de forma didática e acessível ao leitor pouco familiarizado com o jargão econômico ou marxista, sem ser simplista. Por meio da construção detalhada de cada conceito, torna a leitura gradativamente mais complexa na medida em que uma maior articulação é necessária para explicar a dinâmica do fluxo do capital, seus caminhos sinuosos e sua estranha lógica de comportamento, tarefa fundamental para explicar as condições em que vivemos atualmente.

O enigma do capital: e as crises do capitalismo desnuda as razões para o fracasso da sociedade de “livre mercado”, jogando por terra o argumento de que a crise financeira mundial, que começou em 2008 e está longe de acabar, não tenha precedentes. “Tento restaurar algum entendimento sobre o que o fluxo do capital representa. Se conseguirmos alcançar uma compreensão melhor das perturbações e da destruição a que agora estamos todos expostos, poderemos começar a saber o que fazer”, conclui o autor.

 


“Um dos principais obstáculos para o contínuo acúmulo de capital e a consolidação do poder de classe capitalista na década de 1960 foi o trabalho. Havia escassez de mão de obra, tanto na Europa quanto nos EUA. O trabalho era bem organizado, razoavelmente bem pago e tinha influência política. No entanto, o capital precisava de acesso a fontes de trabalho mais baratas e mais dóceis. Houve uma série de maneiras para fazer isso. Uma delas foi estimular a imigração. O Ato de Imigração e Nacionalidade de 1965, que aboliu as cotas de origem nacional, permitiu o acesso ao capital dos EUA à população excedente global (antes apenas europeus e caucasianos eram privilegiados). No fim dos anos 1960, o governo francês começou a subvencionar a importação de mão de obra da África do Norte, os alemães transportaram os turcos, os suecos trouxeram os iugoslavos, e os britânicos valeram-se dos habitantes do seu antigo império.

Outra forma foi buscar tecnologias que economizassem trabalho, como a robotização na indústria automobilística, o que criou desemprego. Um pouco disso aconteceu, mas houve muita resistência por parte do trabalho, que insistia em acordos de produtividade. A consolidação do poder de monopólio das empresas também enfraqueceu a implementação de novas tecnologias, porque custos laborais mais elevados eram transferidos para o consumidor por meio de preços mais altos (resultando em inflação estável). As Três Grandes empresas automobilísticas em Detroit geralmente faziam isso. Seu monopólio acabou finalmente quebrado quando os japoneses e alemães invadiram o mercado de automóveis dos EUA na década de 1980. O retorno às condições de uma maior concorrência, que se tornou um objetivo político fundamental nos anos 1970, então forçou o uso de tecnologias que economizassem trabalho. Mas isso entrou bem tarde em jogo.

Se tudo isso falhasse, havia pessoas como Ronald Reagan, Margaret Thatcher e o general Augusto Pinochet à espera, armados com a doutrina neoliberal, preparados para usar o poder do Estado para acabar com o trabalho organizado. Pinochet e os generais brasileiros e argentinos o fizeram com poderio militar, enquanto Reagan e Thatcher orquestraram confrontos com o grande trabalho, quer diretamente no caso do confronto de Reagan com os controladores de tráfego aéreo e a luta feroz de Thatcher com os mineiros e os sindicatos de impressão, quer indiretamente pela criação de desemprego. Alan Budd, conselheiro-chefe econômico de Thatcher, mais tarde admitiu que “as políticas dos anos 1980 de ataque à inflação com o arrocho da economia e gastos públicos foram um disfarce para esmagar os trabalhadores”, e assim criar um “exército industrial de reserva”, que minaria o poder do trabalho e permitiria aos capitalistas obter lucros fáceis para sempre. Nos EUA, o desemprego subiu, em nome do controle da inflação, para mais de 10% em 1982. Resultado: os salários estagnaram. Isso foi acompanhado nos EUA por uma política de criminalização e encarceramento dos pobres, que colocou mais de 2 milhões atrás das grades até 2000.”

 

 

““Globalizar-se” foi facilitado por uma reorganização radical dos sistemas de transporte, que reduziu os custos de circulação. A conteinerização – uma inovação fundamental – permitiu que peças feitas no Brasil pudessem ser utilizadas para montar carros em Detroit. Os novos sistemas de comunicações permitiram a organização rigorosa da cadeia produtiva de mercadorias no espaço global (lançamentos da moda de Paris puderam ser quase imediatamente enviados a Manhattan por meio das maquiladoras de Hong Kong). Barreiras artificiais do comércio, como tarifas e cotas, foram reduzidas. Acima de tudo, uma nova arquitetura financeira global foi criada para facilitar a circulação do fluxo internacional de capital-dinheiro líquido para onde fosse usado de modo mais rentável. A desregulamentação das finanças, que começou no fim dos anos 1970, acelerou-se depois de 1986 e tornou-se irrefreável na década de 1990.

A disponibilidade do trabalho não é mais um problema para o capital, e não tem sido pelos últimos 25 anos. Mas o trabalho desempoderado significa baixos salários, e os trabalhadores pobres não constituem um mercado vibrante. A persistente repressão salarial, portanto, coloca o problema da falta de demanda para a expansão da produção das corporações capitalistas. Um obstáculo para a acumulação de capital – a questão do trabalho – é superado em detrimento da criação de outro – a falta de mercado.”

 

 

“O sucesso da política de repressão salarial depois de 1980 permitiu que os ricos ficassem muito ricos. Dizem-nos que isso é bom porque os ricos vão investir em novas atividades (depois de satisfazer sua necessidade competitiva de se deleitar com o consumo conspícuo, é claro). Bem, sim, eles investem, mas não necessariamente direto na produção. A maioria deles prefere investir em ações. Por exemplo, eles colocam dinheiro no mercado de ações e o valor das ações sobe, então colocam ainda mais dinheiro, independentemente de quão bem as empresas em que investem estão de fato. (Você se lembra das previsões do fim dos anos 1990 da Dow em 35 mil?) O mercado de ações tem um caráter Ponzi, mesmo sem os Bernies Madoffs deste mundo precisarem organizá-lo explicitamente assim. Os ricos apostaram alto em todo tipo de ativos, incluindo ações, propriedades, recursos, petróleo e outras mercadorias futuras, bem como o mercado de arte. Eles também investiram no capital cultural com o patrocínio de museus e todo o tipo de atividades culturais (tornando assim a chamada “indústria cultural” uma estratégia preferida para o desenvolvimento econômico urbano). Quando o Lehman Brothers quebrou, o Museu de Arte Moderna de Nova York perdeu um terço de sua receita de patrocínio.

Novos mercados estranhos surgiram, liderados pelo que se tornou conhecido como “sistema de banco às escuras”, permitindo o investimento em trocas de crédito, derivativos de moeda e assim por diante. O mercado de futuros abarcou tudo desde o comércio de direitos de poluição até apostas sobre o tempo. De quase nada em 1990, esses mercados cresceram e passaram a circular aproximadamente 250 trilhões de dólares em 2005 (a produção total mundial foi então de apenas 45 trilhões de dólares) e talvez algo como 600 trilhões de dólares em 2008. Os investidores puderam investir em derivativos de ativos e, finalmente, até mesmo em derivativos de contratos de seguros de derivativos de ativos. Esse foi o ambiente em que os fundos de cobertura floresceram, com enormes lucros para quem investiu neles. Aqueles que o administravam acumularam grandes fortunas (mais de 1 bilhão de dólares em remuneração pessoal por ano para vários deles em 2007 e 2008, e algo como 3 bilhões de dólares para os que mais receberam).

A tendência de investimento em ativos se tornou generalizada. De 1980 em diante vieram à tona periodicamente relatórios sugerindo que muitas das grandes corporações não financeiras geravam mais dinheiro de suas operações financeiras do que fazendo coisas. Isso foi particularmente verdadeiro na indústria automobilística. Essas corporações agora eram administradas por contadores e não por engenheiros, e suas divisões financeiras que tratavam de empréstimos aos consumidores foram altamente rentáveis. A General Motors Acceptance Corporation tornou-se logo uma das maiores detentoras de hipotecas de propriedade privada, bem como um lucrativo negócio de financiamento de compra de carros. Mas mais importante ainda, o comércio interno dentro de uma corporação que produzia autopeças em todo o mundo permitiu que preços e demonstrativos de lucros fossem manipulados em diferentes moedas de forma a declarar lucro em países onde as taxas eram mais baixas e usar flutuações de moeda para obter ganhos monetários.”

 

 

“Há um grave problema subjacente, particularmente desde a crise de 1973 a 1982, sobre como absorver montantes de capital excedente na produção de bens e serviços cada vez maiores. Durante os últimos anos, as autoridades monetárias como o Fundo Monetário Internacional têm comentado que “o mundo está inundado com excesso de liquidez”, isto é, há uma massa crescente de dinheiro à procura de algo rentável para colocar-se. Na crise dos anos 1970, grandes excedentes de dólares ficaram empilhados nos Estados do Golfo como resultado do aumento dos preços do petróleo. Foram então reciclados na economia mundial pelos bancos de investimento de Nova York, que emprestaram imensamente para os países em desenvolvimento, preparando o cenário para a eclosão da crise mundial da dívida da década de 1980.

Cada vez menos capital excedente tem sido absorvido na produção (apesar de tudo o que aconteceu na China) porque as margens de lucro global começaram a cair depois de um breve ressurgimento na década de 1980. Numa tentativa desesperada de encontrar mais locais para colocar o excedente de capital, uma vasta onda de privatização varreu o mundo, tendo sido realizada sob a alegação dogmática de que empresas estatais são ineficientes e desengajadas por definição, e a única maneira de melhorar seu desempenho é passá-las ao setor privado. O dogma não resiste a qualquer análise pormenorizada. Algumas empresas estatais são de fato ineficientes, mas outras não são. Basta viajar pela rede ferroviária francesa e compará-la aos sistemas pateticamente privatizados nos EUA e Inglaterra. E nada poderia ser mais ineficiente e perdulário do que o sistema de saúde privado nos Estados Unidos (o Medicare, o segmento estadual, tem custos de manutenção muito menores). Não importa. Indústrias administradas pelo Estado, assim seguiu o mantra, tiveram de ser abertas ao capital privado, que não tinham para onde ir, e serviços de utilidade pública como água, eletricidade, telecomunicações e transporte – para não falar de habitação, educação e saúde – tiveram de ser abertas para as bênçãos da iniciativa privada e a economia de mercado. Em alguns casos pode ter havido ganhos de eficiência, mas em outros não. O que se tornou evidente, no entanto, foi que os empresários que compraram esses bens públicos, em geral com bons descontos, rapidamente se tornaram bilionários. O mexicano Carlos Slim Helú, classificado como o terceiro homem mais rico do mundo pela revista Forbes em 2009, teve seu grande êxito com a privatização das telecomunicações do México no início dos anos 1990. A onda de privatizações num país marcado por sua pobreza catapultou vários mexicanos para a lista de mais ricos da Forbes em um curto prazo. A terapia de choque de mercado na Rússia pôs sete oligarcas no controle de quase metade da economia dentro de alguns anos (Putin tem lutado contra eles desde então).

À medida que mais capital excedente entrou na produção na década de 1980, particularmente na China, a concorrência intensificada entre os produtores começou a colocar pressão sobre os preços (como visto no fenômeno do Wal-Mart com preços cada vez menores para os consumidores dos EUA). Os lucros começaram a cair depois de mais ou menos 1990, apesar da abundância de trabalhadores com baixos salários. Salários e lucros baixos são uma combinação peculiar. Como resultado, cada vez mais dinheiro entrou na especulação em ativos, porque era onde lucros eram passíveis de ser realizados. Por que investir em produção de baixo lucro, quando você pode tomar emprestado no Japão sem taxa de juros e investir em Londres a 7% com cobertura para seus investimentos em caso de uma possível e deletéria mudança na taxa de câmbio iene-libra? Em qualquer caso, foi mais ou menos nesse período que ocorreu a explosão da dívida e os novos mercados de derivativos decolaram, o que, juntamente com a infame bolha ponto.com da internet, sugou uma vasta quantidade de capital excedente. Quem precisava se preocupar com o investimento na produção quando tudo isso estava acontecendo? Esse foi o momento em que a financeirização da tendência de crise do capitalismo começou de fato.”

 

 

“A acumulação original do capital no fim da época medieval na Europa se fundamentou em violência, depredação, furto, fraude e roubo. Por esses meios extralegais, piratas, padres e comerciantes, complementados pelos usurários, reuniram “poder de dinheiro” inicial suficiente para começar a circular o dinheiro de forma sistemática sob a forma de capital. O roubo espanhol de ouro incaico foi o exemplo paradigmático. Nos estágios iniciais, porém, o capital não circulou diretamente por meio da produção. Assumiu uma variedade de outras formas, como capital agrário, comerciante, fundiário e, por vezes, mercantilista de Estado. Essas formas não eram adequadas para absorver os vastos fluxos de ouro. Ouro demais perseguia bens de menos. O resultado foi a “grande inflação” do século XVI na Europa. Foi só quando os capitalistas aprenderam a circular o capital através da produção empregando trabalho assalariado que o crescimento composto pôde começar, aproximadamente após 1750.

A burguesia em ascensão progressivamente usou seu poder do dinheiro para influenciar e reconstituir as formas do Estado, em última análise assumindo uma influência dominante sobre as instituições militares e administrativas, além dos sistemas jurídicos. Em seguida, ela pôde adotar meios sancionados legalmente para reunir o poder do dinheiro pela despossessão e destruição das formas pré-capitalistas de providência social. Fê-lo tanto dentro do Estado – ao lotear, por exemplo, terras comuns e monetarizar os aluguéis na Grã-Bretanha – quanto no exterior, por meio de práticas coloniais e imperialistas (a imposição de impostos sobre a terra na Índia). Uma relação estreita, em seguida, surgiu entre as finanças e o Estado, em especial por meio do aumento da dívida pública (geralmente para financiar guerras). (...)

À medida que mais e mais excedente criado ontem é convertido em capital novo hoje, mais e mais dinheiro investido hoje vem dos lucros obtidos ontem. Isso poderia levar a pensar que a acumulação violenta praticada em tempos anteriores é redundante. Mas a “acumulação por despossessão” continua a desempenhar um papel na reunião do poder do dinheiro inicial. Meios tanto legais quanto ilegais – como violência, criminalidade, fraude e práticas predatórias do tipo das que foram descobertas nos últimos tempos no mercado de hipotecas subprime ou de forma ainda mais significativa no comércio de drogas – são implementados. Os meios legais incluem a privatização do que antes era considerado como recursos de propriedade comum (como a água e a educação), o uso do poder público para apreender bens, as práticas generalizadas de aquisições, as fusões e outros mecanismos similares que resultam no “desmembramento de ativos” e o cancelamento de obrigações de pensão e saúde, por exemplo, num processo de falência. As perdas de ativos que muitos têm experimentado durante a crise recente podem ser vistas como uma forma de despossessão, que pode ser transformada em mais acumulação na medida em que os especuladores compram os ativos mais baratos hoje pensando em vendê-los com lucro quando o mercado melhorar. Isso é o que os banqueiros e os fundos de cobertura fizeram durante o crash de 1997 a 1998 no Leste e Sudeste Asiático. As grandes perdas nessa parte do mundo alimentaram os cofres dos principais centros financeiros.”

 

 

“O nexo Estado-finanças funciona há muito tempo como o “sistema nervoso central” da acumulação do capital. Quando os sinais internos de seu funcionamento derem errado, então, obviamente, as crises surgirão. Boa parte do que acontece dentro dos bancos centrais e ministérios das finanças dos Estados contemporâneos é ocultada e envolta em mistério. Não foi à toa que William Greider chamou sua investigação exaustiva de 1989 sobre como funciona o Federal Reserve de “Segredos do Templo”. Marx retratou o mundo das finanças como o “Vaticano” do capitalismo. No mundo de hoje poderia ser ainda mais irônico chamá-lo de “Kremlin”, já que o mundo parece mais propenso a acabar sendo governado pela ditadura de seus banqueiros centrais do que pelos trabalhadores. O nexo Estado-finanças tem todas as características de uma instituição feudal, repleta de intrigas e passagens secretas, exercendo um poder estranho e totalmente antidemocrático, não apenas sobre como o capital circula e se acumula, mas sobre quase todos os aspectos da vida social. A fé cega nos poderes corretivos residentes no nexo Estado-finanças é consistente com a confiança e as expectativas que Keynes considerou tão cruciais para a sustentação do capitalismo.”

 

 

“O que eles também mostraram foi que as crises são, de fato, não apenas inevitáveis, mas também necessárias, pois são a única maneira em que o equilíbrio pode ser restaurado e as contradições internas da acumulação do capital, pelo menos temporariamente, resolvidas. As crises são, por assim dizer, os racionalizadores irracionais de um capitalismo sempre instável. Durante uma crise, como esta em que estamos agora, é sempre importante manter esse fato em mente. Temos sempre a perguntar: o que está sendo racionalizado aqui e que direção estão tomando as racionalizações, uma vez que isso é o que vai definir não apenas a nossa forma de saída da crise, mas o caráter futuro do capitalismo? Em tempos de crise há sempre opções. Qual delas é escolhida depende criticamente da relação das forças de classe e das concepções mentais sobre o que poderia ser possível. Não havia nada de inevitável no New Deal de Roosevelt, na mesma medida em que a contrarrevolução de Reagan e Thatcher de 1980 não era inevitável. Mas as possibilidades não são infinitas.”

 

 

“Na base da longa cadeia da oferta que traz os meios de produção para o capitalista, esconde-se um problema mais profundo de limites naturais em potencial. O capitalismo, como qualquer outro modo de produção, baseia-se no usufruto da natureza. O esgotamento e a degradação da terra e dos chamados recursos naturais não fazem mais sentido no longo prazo do que a destruição dos poderes coletivos de trabalho, pois ambos estão na raiz da produção de toda a riqueza. Mas os capitalistas individuais, que trabalham em seus próprios interesses de curto prazo e são impelidos pelas leis coercitivas da competição, estão perpetuamente tentados a tomar a posição de après moi le déluge* com respeito ao trabalhador e ao solo. Mesmo sem isso, a corrida pela acumulação perpétua coloca enormes pressões sobre a oferta de recursos naturais, enquanto o inevitável aumento da quantidade de resíduos testa a capacidade dos sistemas ecológicos de absorvê-los sem transformá-los em tóxicos. Aqui, também, é provável que o capitalismo encontre limites e barreiras que se tornarão cada vez mais difíceis de contornar.”

* “Depois de mim o dilúvio”, expressão francesa que significa a total indiferença de quem a profere pelo desenlace de determinada situação, mesmo sendo uma catástrofe.

 

 

“Qualquer quebra de confiança pode tornar-se catastrófica. Os recentes acontecimentos no setor dos serviços financeiros ilustram exatamente esse problema. Em meados dos anos 1980 os computadores eram raros e primitivos em Wall Street. Os mercados ainda eram relativamente simples, transparentes e bem regulados. Os especuladores baseavam suas atividades em alguns compêndios de informações (de insiders, se você não fosse pego e condenado, como de fato aconteceu) e intuição. Vinte anos depois, mercados de opções e derivativos totalmente novos com negociações ilegais e com frequência não regulamentadas dominavam o comércio (600 trilhões de dólares em negócios em 2008 em relação à produção total de bens e serviços na economia mundial de cerca de 55 trilhões de dólares!). Um dos propósitos dessa onda de inovação foi evitar a regulamentação e criar novas arenas em que os excedentes de capital poderiam ser rentavelmente aplicados em mercados “livres” (ou seja, não regulamentados) sem qualquer preocupação. As inovações foram pontuais e privadas, o que correspondeu mais às atividades do “bricoleur” do que do sistematizador. Essa foi a maneira de evitar a regulação e liberar o mercado. Os especuladores eram em meados da década de 1990 muitas vezes matemáticos e físicos altamente capacitados (muitos chegaram com doutorados nessas áreas diretamente do MIT), que se encantaram com os complexos modelos dos mercados financeiros, seguindo as linhas pioneiras de 1972, quando Fischer Black, Myron Scholes e Robert Merton (que mais tarde se tornou famoso por seu papel no acidente do Long-Term Capital Management e no socorro financeiro de 1998) escreveram uma fórmula matemática – pela qual ganharam um Prêmio Nobel de Economia – sobre a forma de dar valor a uma opção. A negociação identificava e explorava ineficiências nos mercados e distribuía os riscos, mas, dado o seu padrão totalmente novo, permitiu manipulações a rodo que eram extremamente difíceis de controlar ou mesmo de identificar, porque estavam encobertas por uma caixa-preta de matemática intrincada dos programas informatizados dos acordos comerciais não regulados.”

 

 

“Quando trabalhadores gastam seu salário, isso se configura numa fonte de demanda efetiva. Mas a massa salarial é sempre menor do que o capital total em circulação (senão, não haveria lucro), assim a compra dos bens de sobrevivência que sustentam a vida diária (mesmo com um estilo de vida suburbano) nunca é suficiente para a venda com lucro da produção total. Uma política de repressão salarial só aumenta a possibilidade de uma crise de subconsumo. Muitos analistas chegaram a considerar a crise dos anos 1930 como uma crise essencialmente de subconsumo. Eles apoiaram, portanto, a sindicalização e outras estratégias do Estado (como a assistência social) para reforçar a demanda efetiva nas classes trabalhadoras. Em 2008, o governo federal dos EUA liberou um desconto fiscal de seiscentos dólares para a maioria dos contribuintes abaixo de um determinado nível de renda com o mesmo intuito. Teria sido muito melhor ter revertido a política de repressão salarial posta em prática a partir de meados da década de 1970 e elevado o salário real. Isso teria impulsionado permanentemente a demanda e a confiança dos consumidores. Mas muitos capitalistas, assim como os ideólogos da direita, não estavam dispostos a contemplar tal solução. Os republicanos no Congresso bloquearam o plano inicial para socorrer as montadoras de Detroit sob a justificação de que não reduzia os salários e benefícios dos trabalhadores sindicalizados ao nível daqueles encontrados nas montadoras sem sindicatos japonesas e alemãs localizadas no Sul americano. Assim, viram a crise como uma oportunidade de levar a cabo outro ataque de repressão salarial, o que era exatamente a receita errada para a doença da falta de demanda efetiva.”

 

 

“Desde mais ou menos 1950, e de forma mais acentuada desde a década de 1970, a capacidade das práticas imperialistas desse tipo de desempenhar o papel de grande estabilizador tem sido seriamente prejudicada. Com o capitalismo (de algum modo) agora implantado com firmeza em todo o Leste e Sudeste Asiático e se desenvolvendo fortemente na Índia e Indonésia, para não falar de todo o resto do mundo, o problema da demanda global e eficaz dos consumidores está colocado numa base inteiramente diferente. A demanda efetiva que estabiliza o crescimento atual da China, por exemplo, é agora em grande parte localizada nos Estados Unidos, o que explica por que a China se sente tão obrigada a cobrir os déficits dos EUA, pois o colapso do consumismo nos EUA teria (e tem) efeitos devastadores nos empregos industriais e nas taxas de lucro na China. A resposta óbvia é a China desenvolver seu próprio mercado interno, mas isso exigiria a elevação dos salários e enfraqueceria sua própria vantagem competitiva na economia global. Significaria também usar mais de seu superávit para o desenvolvimento interno, o que se traduziria em ter menos disponível para emprestar para os EUA. Isso diminuiria ainda mais a demanda efetiva de produtos chineses nos Estados Unidos. O que isso prenuncia, como vimos anteriormente, é uma inversão histórica dos 150 anos ou mais da transferência de riquezas do Leste e Sul Asiático para os Estados Unidos e a Europa e uma mudança radical na capacidade de os EUA dominarem o capitalismo global como fazem desde 1945.”

 

 

“Há, acredito, uma maneira muito melhor de pensar a formação de crises. A análise da circulação do capital aponta para vários limites e barreiras potenciais. A escassez de capital-dinheiro, os problemas trabalhistas, as desproporcionalidades entre os setores, os limites naturais, as mudanças tecnológicas organizacionais desequilibradas (incluindo a concorrência versus o monopólio), a indisciplina no processo de trabalho e a falta de demanda efetiva encabeçam a lista. Qualquer uma dessas condições pode retardar ou interromper a continuidade do fluxo do capital e assim produzir uma crise que resulta na desvalorização ou perda do capital. Quando um limite é superado, a acumulação muitas vezes depara-se com outro em algum lugar. Por exemplo, ações feitas para aliviar uma crise da oferta de trabalho e reduzir o poder político do movimento sindical na década de 1970 diminuíram a demanda efetiva por produtos, o que criou dificuldades para a realização do excedente no mercado durante a década de 1990. Ações para aliviar esse último problema pelas extensões do sistema de crédito para os trabalhadores levou essa classe ao sobre-endividamento em relação à renda, que, por sua vez, levou a uma crise de confiança na qualidade dos instrumentos da dívida (como começou a acontecer em 2006). As tendências de crise não são resolvidas, apenas deslocadas.

Acho que está mais de acordo com a frequente invocação de Marx sobre o caráter fluido e flexível de desenvolvimento capitalista identificar esse reposicionamento perpétuo de uma barreira à custa de outra e, assim, reconhecer as múltiplas formas em que as crises podem se formar em diferentes situações históricas e geográficas. Também é vital lembrar-se de que as crises assumem um papel fundamental na geografia histórica do capitalismo como “racionalizadores irracionais” de um sistema inerentemente contraditório. As crises são, em suma, tão necessárias para a evolução do capitalismo como o dinheiro, o poder do trabalho e o próprio capital. É preciso, no entanto, acompanhamento cuidadoso e análise materialista para localizar a fonte ou fontes exatas do bloqueio em qualquer lugar ou tempo.

A visão sinóptica da crise atual diria: embora o epicentro se encontre nas tecnologias e formas de organização do sistema de crédito e do nexo Estado-finanças, a questão subjacente é o empoderamento capitalista excessivo em relação ao trabalho e à consequente repressão salarial, levando a problemas de demanda efetiva acentuados por um consumismo alimentado pelo crédito em excesso em uma parte do mundo e por uma expansão muito rápida da produção em novas linhas de produtos na outra parte.”

 

 

“As forças que surgiram com o advento do capitalismo refizeram muitas vezes o mundo desde 1750. Se tivéssemos sobrevoado a região central da Inglaterra em 1820, teríamos visto algumas cidades industrializadas compactas (com pequenas chaminés expelindo fumaça nociva), separadas por grandes áreas de atividade agrícola, nas quais as formas tradicionais da vida das zonas rurais foram preservadas em aldeias e fazendas, por mais que os senhores de terra comentassem com lirismo as novas práticas agrícolas que sustentavam o aumento da produtividade da agricultura (e o dinheiro crescente das rendas). Centros industriais compactos, com nomes como Manchester e Birmingham, estavam ligados uns aos outros e às principais cidades comerciais portuárias, Liverpool e Bristol, bem como à abundante capital Londres, por estradas sujas e canais estreitos. Barcaças cheias de carvão e matérias-primas eram laboriosamente rebocadas ao longo dos canais, por cavalos suados ou, como registrou Marx em O capital, por mulheres à beira da fome. A locomoção era lenta.

Se tivéssemos sobrevoado o delta do rio Pérola em 1980, teríamos visto vilas e cidades minúsculas, com nomes como Shenzhen e Dongguan, aninhadas em uma paisagem agrária amplamente autossuficiente de arroz, vegetais, produção pecuária e piscicultura, e socializadas em municípios governados com mão de ferro por funcionários locais do partido, que armazenavam suprimentos numa “tigela de ferro de arroz” contra a ameaça da fome.

Se tivéssemos sobrevoado essas duas áreas em 2008, as paisagens de extensa urbanização abaixo seriam totalmente irreconhecíveis, assim como seriam as formas de produção e transporte, as relações sociais, as tecnologias, as formas da vida cotidiana e as formas de consumo. Se, como Marx certa vez afirmou, nossa tarefa não é tanto compreender o mundo como transformá-lo, então, tem de ser dito, o capitalismo tem feito um bom trabalho em seguir seu conselho. A maioria dessas mudanças dramáticas aconteceu sem que ninguém se incomodasse em descobrir, primeiro, como o mundo funcionava e, segundo, quais as consequências dessas mudanças. Repetidamente, o imprevisto e o inesperado aconteceram, deixando para trás uma vasta empreitada intelectual e prática na tentativa de limpar as consequências desordenadoras do que já estava preparado por mais que não se soubesse.

A saga do capitalismo é cheia de paradoxos, por mais que a maioria dos tipos de teoria social – a teoria econômica em particular – não os leve de modo algum em consideração. Do lado negativo, temos não só as crises econômicas periódicas e muitas vezes localizadas que têm pontuado a evolução do capitalismo, incluindo as guerras mundiais intercapitalistas e interimperialistas, os problemas da degradação ambiental, a perda de biodiversidade, a espiral da pobreza entre as populações em crescimento, o neocolonialismo, as graves crises na saúde pública, a abundância de alienações e exclusões sociais e as angústias da insegurança, violência e desejos não realizados. No lado positivo, alguns de nós vivemos em um mundo onde os padrões de vida material e o bem-estar nunca foram maiores, onde as viagens e as comunicações foram revolucionadas e as barreiras espaciais físicas (embora não sociais) das interações humanas foram reduzidas, onde os conhecimentos médicos e biomédicos oferecem para muitos uma vida mais longa, onde cidades enormes e espetaculares, que seguem se alastrando, foram construídas, onde o conhecimento prolifera, a esperança é eterna e tudo parece possível (da autoclonagem à viagem espacial).

Que esse é o mundo contraditório em que vivemos, e que continua a evoluir em um ritmo acelerado de modo imprevisível e aparentemente incontrolável, é inegável. No entanto, os princípios que sustentam essa evolução continuam obscuros, em parte porque nós, seres humanos, lidamos mais com essa história com base em caprichos de algum tipo de desejo humano coletivo e às vezes individual, em vez de buscar princípios evolutivos dominantes do tipo que Darwin descobriu no campo da evolução natural. Se quisermos mudar o mundo coletivamente em uma configuração mais racional e humana por meio de intervenções conscientes, temos primeiro de aprender a compreender muito melhor do que compreendemos agora o que estamos fazendo com o mundo e com quais consequências.”

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