sexta-feira, 17 de abril de 2020

A esquerda que não teme dizer seu nome (Parte II) – Vladimir Safatle

Editora: Três estrelas
ISBN: 978-85-6533-904-9
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 88
Sinopse: Ver Parte I



“Uma das questões mais delicadas sobre a esquerda diz respeito a sua maneira de lidar com o passado recente. Alain Badiou compreendeu bem que poderia enunciá-la de uma maneira sucinta: o que significou o século XX? Ou seja, como compreender as experiências de ruptura que marcaram a especificidade do século que passou? Longe de um simples problema histórico, tal questão expõe a maneira como nos vinculamos aos processos de efetivação de uma ideia que, com certeza, ainda guarda seu conteúdo de verdade.
Por exemplo, um dos mantras preferidos do pensamento conservador é a denúncia do século XX como a era da violência brutal feita em nome das promessas de redenção da vida social. Como se houvesse uma linha necessária e inevitável que iria da crítica da individualidade moderna e da reificação aos massacres de Pol Pot, linha que iria das lutas sindicais por justiça social aos gulags. Trata-se de impor, com isso, uma estratégia da resignação, que tem o propósito de nos fazer acreditar que toda ação visando à ruptura com formas de vida que aparecem, em certos momentos, como naturalizadas só poderá produzir catástrofes. Trata-se ainda de uma tentativa de desqualificar radicalmente a força produtiva das ideias de renovação e seu movimento trágico.
Sobre essa natureza trágica do movimento próprio às ideias de renovação, valeria a pena se perguntar se aqueles que desqualificam o século XX como era da violência desmedida em nome do novo estariam dispostos a responder a uma questão fundamental, a saber: quantas vezes uma ideia precisa fracassar para poder se realizar? A efetivação de uma ideia nunca é um processo que se realiza em linha reta. Por exemplo, durante séculos, o republicanismo foi considerado um retumbante fracasso. Ser republicano no século XIII significava defender uma ideia que havia apenas produzido catástrofes e enfraquecimento do Estado. Hoje, dificilmente encontraremos alguém para quem o republicanismo não seja um valor fundamental. Ou seja, o republicanismo precisou fracassar várias vezes para encontrar seu próprio tempo, para forçar o tempo a aproximar-se de sua realização ideal. Isso apenas demonstra como, graças à internalização de seus fracassos, ao fato de ela ter aparecido “cedo demais”, a ideia pôde efetivamente se realizar.
Não se trata aqui de ignorar os crimes e massacres que foram feitos em nome dos ideais de esquerda no século XX, nem de relativizá-los, lembrando que, se for para contar crimes e massacres, a esquerda certamente não fica na frente de seus oponentes. As duas estratégias são equivocadas. Trata-se, na verdade, de dizer que a melhor maneira de evitá-los é compreender o que deve ser conservado e reconstruído no interior de nossos ideais, aquilo que neles não se reduz à figura do crime e do massacre.
Como nos lembra Hegel, o conceito, ao tentar determinar a efetividade, produz necessariamente o contrário de sua intenção inicial. Essa inversão, no entanto, pode aparecer não como perda, e sim como momento tragicamente necessário para o desenvolvimento da capacidade do conceito em internalizar a contingência, orientar-se e assegurar sua realidade. Talvez possamos dizer o mesmo das lutas revolucionárias que animaram o século XX, pois uma das maiores características desse século foi a luta pela abertura do que ainda não tem figura, luta pelo advento daquilo que não se esgota na repetição compulsiva do homem atual e de seus modos.
Não se tratava apenas de um processo conflituoso de ampliação e universalização de direitos individuais ou de efetivação de demandas de redistribuição de riquezas. Embora tais aspectos sejam essenciais para compreendermos as lutas revolucionárias do século XX, perderemos uma dimensão importante de seu impulso se não compreendermos também que, “até o final, o século foi de fato o século do advento de outra humanidade, de mudança radical do que é o homem. E é nesse sentido que permaneceu fiel às extraordinárias rupturas mentais de seus primeiros anos”.14
Talvez seja o caso de lembrar aqui dessa crença que perpassa os movimentos mais relevantes no campo da política, da filosofia e da estética do século XX, a saber, a crença de que algo como o “homem novo” estava ao alcance. Há uma espécie de estranho acordo a respeito da necessidade de um tempo capaz de nos livrar do esgotamento da determinação essencial do homem. Tudo se passa como se, para além da defesa de uma sociedade mais justa, livre e igualitária, pulsasse, no interior da demanda revolucionária que animou o século XX, este obscuro desejo de nos livrarmos de nós mesmos, desejo de anular nossa própria imagem. Talvez seja o caso de dizer: não há luta revolucionária sem esse desejo. É possível afirmar que essas lutas podem ser encontradas nas discussões próprias aos campos da estética, da política, das clínicas da subjetividade, da filosofia. Em vários momentos de nossa história recente, elas mostraram grande força para mover a história, engajar sujeitos na capacidade de viver para além do presente. No entanto, vemos hoje um grande esforço em apagar essa história, isso quando não se trata de apenas criminalizá-la, como se as tentativas do passado em escapar das limitações da figura atual do homem devessem ser compreendidas, em sua integralidade, como a simples descrição de processos que necessariamente se realizariam como catástrofe. Como se não fosse mais possível olhar para trás e pensar em maneiras novas de recuperar os momentos nos quais o tempo para e as possibilidades de metamorfose do humano são múltiplas.
Assim, somos apresentados à cartilha do passado, que cheira ao enxofre da destruição, e do futuro, que não pode ser muito diferente daquilo que já existe. Talvez seja o caso, então, de dizer que tudo o que, brandos ou não, os defensores de tal cartilha conseguirão é bloquear nossa capacidade de agir a partir de uma humanidade por vir, acostumar-nos com um presente no qual ninguém acredita e do qual muitos já se cansaram. Ou seja, elevar o medo a afeto central da política.
Para responder a tal cartilha, devemos dizer que, se não há política sem o desejo de nos livrarmos de nós mesmos, de nos livrarmos de nossas limitações, sem o desejo de explorar o que ainda não tem figura, é certo que a história é o campo no interior do qual esse desejo aprende a se orientar melhor. Que esse aprendizado não seja em linha reta, que ele se equivoque e muitas vezes se perca, isso é apenas uma maneira de insistir em consequências próprias a todo e qualquer aprendizado. Com o aprendizado a respeito da força de nossa liberdade e nossa inventividade, não seria diferente.”
14 Badiou, Alain. O século. Aparecida: Ideias e Letras, 2007, p. 23.


“O pensamento liberal teme a reflexão sobre a impossibilidade de esgotar o sujeito nas determinações identitárias atualmente postas, porque isso quebra sua tentativa de defender, custe o que custar, a primazia do indivíduo. Uma das bases da teoria liberal sobre o político é a compreensão do vínculo social como uma espécie de contrato entre indivíduos. Nesse suposto contrato, os indivíduos fundariam instituições como o Estado mediante a garantia de que poderão agir, em larga medida e por meio de uma negociação astuta, em função de seus sistemas particulares de interesse.17 Ou seja, sob a forma contratualista, o vínculo social aparece como uma associação entre indivíduos. Algo muito próximo da maneira como o livre mercado aparecerá para o pensamento liberal como o espaço onde indivíduos podem trabalhar na defesa de seus sistemas particulares e egoístas de interesses.
Um dos traços fundamentais da esquerda, entretanto, está na recusa em compreender a sociedade como uma associação entre indivíduos que entram virtualmente em acordo a fim de realizar, da melhor maneira possível, seus interesses particulares. Para a esquerda, a consequência fundamental dessa distorção é a compreensão da “liberdade” simplesmente como o nome que damos para o sistema de defesa dos interesses particulares dos indivíduos, de suas propriedades privadas e de seus modos de expressão.
Em última instância, toda extensão do conceito de liberdade acaba por ser pensada como modulação do direito de propriedade. No entanto, essa noção de liberdade talvez seja uma forma muito difundida de patologia social, pois, ao impor uma atomização social desagregadora, nos impede de ver como, no interior do meu próprio interesse, pulsa algo mais do que a mera emulação de um sistema particularista. Ela impede a compreensão de como o sujeito é sempre habitado por algo que não se deixa pensar sob a forma do indivíduo.
O pensamento conservador procura criticar tal ideia ao tentar nos fazer acreditar que toda ditadura é necessariamente baseada na crítica do individualismo. Como se nossa democracia estivesse segura lá onde o individualismo impera. A prova disso seria o fato de situações de anomia, famílias desagregadas e crise econômica serem pretensamente o terreno fértil para ditaduras. Um pouco como quem diz: lá onde a família, a prosperidade e a crença na lei não funcionam bem, lá onde os esteios do indivíduo entram em colapso, a voz sedutora dos discursos totalitários está à espreita.
Se realmente quisermos pensar a extensão do totalitarismo, será interessante perguntar por que personalidades autoritárias aparecem também em famílias muito bem ajustadas e sólidas, em sujeitos muito bem adaptados a nossas sociedades e a nosso padrão de prosperidade. Teríamos surpresas interessantes se estudássemos o perfil psicológico daqueles que votam em governos que criam sistemas globais de fichamento e controle de populações, rondas contra imigrantes, alimentam a xenofobia e a lógica da fronteira.
Isso explica por que não foram poucos aqueles que, no século XX, insistiram que o indivíduo moderno é, na verdade, produzido pela internalização de profundos processos disciplinares e repressivos. A boa questão é: com o que preciso me conformar para poder ser reconhecido como indivíduo dotado de interesses “próprios”? O que preciso perder e fazer calar para que tudo o que se apresenta à minha experiência só possa ser pensado como experiência de um indivíduo?
Sofre-se muitas vezes por não ser um indivíduo, ou seja, por não ter à sua disposição as condições sociais necessárias para a afirmação de uma individualidade almejada. No entanto, sofre-se também por ser apenas um indivíduo. Há um sofrimento vindo da incapacidade em pensar aquilo que, dentro de si mesmo, não se submete à forma coerente de uma pessoa fortemente individualizada com sua identidade compulsivamente afirmada. Esta é uma das lições mais importantes de Sigmund Freud, com sua ideia de que o próprio processo de formação da individualidade, de constituição do Eu é indissociável de experiências patológicas de sofrimento.18 Nesse caso, sofre-se exatamente por ser um indivíduo. A esquerda deve ser sensível a tal modalidade de sofrimento social.
Infelizmente, esse sofrimento, em vez de funcionar como motor de desenvolvimento subjetivo, muitas vezes se exterioriza e se transforma em medo social compulsivo contra tudo o que parece colocar em xeque nossa “identidade”, as “crenças do nosso povo”. Ele acaba por servir como causa de um sistema paranoico de defesa contra toda alteridade real.
Não é por outra razão que onde há a insistência em compreender a sociedade como um mero conjunto de indivíduos surge sempre o outro lado da moeda: a necessidade de expulsar, de levantar fronteiras contra tudo o que não porta a minha imagem. O que nos explica por que sociedades fortemente individualistas, como aquelas que encontramos nos EUA e em certos países europeus, são sempre assombradas pelo fantasma do corpo estranho que está prestes a invadi-las, a destruir seus costumes e hábitos arraigados. Não há individualismo sem lógica social da exclusão.
Por outro lado, como todos sabemos que o atomismo de ser apenas um indivíduo é dificilmente suportável, esse isolamento tende, muitas vezes, a ser compensado com alguma forma de retorno a figuras de comunidades espirituais e religiosas. A vida contemporânea nos demonstrou que individualismo e religiosidade, liberalismo e restrições religiosas dogmáticas, longe de serem antagônicos, transformaram-se nos dois polos complementares e paradoxais do mesmo movimento pendular. Muito provavelmente, teremos de conviver com os resultados políticos dessa patologia social bipolar. Cada vez fica mais claro como o pensamento conservador se articula, em escala mundial, por meio da restrição da pauta do debate social apelando ora para as “liberdades individuais”, ora para “nossos valores cristãos”.”
17 Ver, por exemplo: Lebrun, Gerard. “Contrato social ou negócio de otário?”. ln: A filosofia e sua história. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 226.
18 Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin Companhia, 2011.


“Quantas vezes uma revolução parecia às portas, suas condições pareciam completamente dadas e, no entanto, ela fracassou? E quantas vezes revoltas absolutamente imprevistas acabaram por acontecer, como as que vemos agora no mundo árabe? Revoluções são sempre improváveis, fruto de uma série contingente de acontecimentos. Seria mais honesto reconhecer que a história é o processo que transforma contingências em necessidades. Uma transformação que só é visível a posteriori. Assim, o que devemos fazer é não recusar esses processos contingentes e inesperados que têm a força de romper o tempo. Não recusar já é muita coisa.
Por outro lado, deve-se entender que uma sequência de reformas profundas provoca um salto qualitativo a partir do qual dificilmente se volta para trás. Este era o caminho de uma das mais impressionantes experiências da esquerda no século XX, experiência sobre a qual ainda temos muito o que meditar, a saber, o socialismo democrático de Salvador Allende.
Hoje, defender uma sequência substantiva de reformas é muito mais difícil do que defender rupturas radicais de molde revolucionário, pois mais perigosa é uma mudança que está ao alcance de nossas mãos do que a que está fora do alcance de nossa visão. Lutar por reformas sem perder de vista o fato de que processos incalculáveis podem acontecer – mais do que um conselho político, isso talvez seja uma forma de vida.”


“Infelizmente, no entanto, quando não é o decisionismo que reina, encontramos na esquerda uma ingenuidade maior, a saber, a crença de que práticas do governo são um conjunto neutro de técnicas e técnicos que podem “funcionar bem” quando dirigidos de forma adequada. Um belo exemplo nesse sentido foi fornecido pelo finado Partido Comunista Italiano (PCI), o maior partido comunista fora do bloco soviético. Durante anos, ele esteve à margem do governo, conquistando prefeituras importantes (como Bolonha) a fim de se credenciar para comandar o Estado nacional.
Quando isso ocorreu, e seu secretário-geral, Massimo D’Alema, assumiu o cargo de primeiro-ministro, tudo o que passou em sua cabeça foi provar que era capaz de governar e de realizar os ajustes fiscais exigidos para que a Itália participasse da zona do euro. Ajustes que a direita nunca conseguiria fazer devido à oposição dos sindicatos, mas que o PCI fez (e a banca financeira europeia agradece com a mão no lado esquerdo do peito). O resultado foi a impressão de indistinção fundamental entre a lógica de governo da direita e da esquerda. Só que a conta pelo descontentamento com os ajustes foi paga pela esquerda (que hoje simplesmente não existe na Itália).
De fato, é preciso lembrar que nenhuma técnica é neutra. Por isso, uma das questões abertas que ainda merece resposta é: quais são as técnicas de governo à altura das aspirações de modernização política próprias à esquerda? Quando assumimos a lógica e o discurso de certa eficácia típicos da direita, já perdemos o jogo. Pois aí precisaremos jogar o jogo completo, um jogo cujas regras foram feitas para serem transgredidas “em silêncio”. Nesse caso, a pior técnica é aquela que mimetiza a lógica do adversário.
Quando isso acontece, vemos ou o patético espetáculo de um lento processo de degradação da governabilidade, com a famosa transformação dos governantes de esquerda em figuras que mimetizam as práticas de corrupção e os valores da direita, ou a guinada em direção ao centralismo totalitário (única forma de conservar o governo quando não se sabe como governar).”


“Por mais óbvio que isso possa parecer, o homem é este ser dividido que, por um lado, é sujeito de um desejo de ruptura, de reconfiguração de sua forma de vida e, por outro, precisa de geladeiras cheias.
Anular as geladeiras, ou seja, instaurar a política no solo de uma cruzada contra o “serviço dos bens”, dizer que a república não tem necessidades e simplesmente ignorar o peso dos sistemas particulares de interesse só vai nos fazer perder as condições de realizar nosso desejo de reconfiguração do campo do político e de nossas formas de vida.
Afirmar que o indivíduo não é a medida de todas as coisas não significa afirmar que ele não é medida de coisa alguma. Esse é um erro comum que encontramos em certa tradição da esquerda. Até porque vale a pena lembrar que o indivíduo nunca é apenas o indivíduo. Em certos momentos, ele é o ponto de reflexão a partir do qual a vida social se volta contra si mesma. Nesses casos, o sofrimento do individual serve para mostrar os impasses de um conceito abstrato de universal, pois desvela o ponto cego de processos que justificam sua violência servindo-se da perspectiva onisciente da realização da história. O indivíduo sabe que a violência da justificação é a maneira mais segura de tais processos não se realizarem.
Talvez este seja o verdadeiro sentido de uma afirmação capital de Lênin: “Comunismo é: todo o poder aos sovietes, mais a eletrificação de todo o país”. Seria o caso de acrescentar a seguinte ideia: com a eletrificação de todo o país, ou seja, com o reconhecimento da necessidade dos indivíduos, é possível que a população acredite nos sovietes; sem isso, os sovietes virarão palavra morta, pois não existe socialismo na miséria. Na miséria, existe apenas miséria.”


“Se há algo que a história nos ensinou é um pouco de humildade diante do acontecimento. A imprevisibilidade do acontecimento e a instabilidade da história deveriam nos economizar a tentativa de legislar sobre aquilo de que um sujeito é capaz, sobre o que pode ser uma humanidade por vir. Até porque, como dizia Hegel, cuja filosofia da história foi tão malcompreendida e cuja recuperação é tão urgente:
Na história mundial, por meio das ações dos homens, é produzido em geral algo outro do que visam e alcançam, do que imediatamente sabem e querem. Eles realizam seus interesses, mas com isso é produzido algo outro que permanece no interior, algo não presente em sua consciência e em sua intenção.21
Neste exato momento, não sabemos o que fazemos, mas sabemos que há um mundo que lentamente desaba. Muito desse desabamento é graças exatamente a essas ações que fazemos sem saber o que fazemos, pois o processo histórico que destrói os limites de uma época é sempre animado pelo que ainda não encontra forma para ser posto como representação da consciência ou da intenção.
No entanto, em certos momentos, estamos dispostos a confiar nesse “algo outro” cujo conteúdo ainda permanece subterrâneo, ainda não realizado na “existência presente” (“gegenwärtige Dasein”) e que, por isso, bate violentamente contra o mundo exterior como o que se bate contra uma casca.
Tal confiança descobre a força de transformar o que lhe aparece inicialmente como opaco, como páthos cujo objeto desconhece o regime de presença da consciência e da intenção, em acontecimento portador de uma nova ordem possível. É nesses momentos raros em que essa confiança sobe à cena do mundo que a história se faz.”
21 Hegel. Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte. Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 42. [tradução do autor]

A esquerda que não teme dizer seu nome (Parte I) – Vladimir Safatle

Editora: Três estrelas
ISBN: 978-85-6533-904-9
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 88
Sinopse: A esquerda que não teme dizer seu nome lança um desafio político de grande envergadura: reafirmar os princípios que orientam historicamente o pensamento da esquerda e renová-los, a partir das demandas da época.
Para o ensaísta e professor de filosofia Vladimir Safatle, a esquerda, nas últimas décadas, abriu mão dos fundamentos de sua luta política, acuada pelas críticas feitas às experiências comunistas no século XX, enfraquecida pelas políticas multiculturais e, quando no governo, seduzida pelos confortos do poder e pelas negociações do consenso.
Contra a acomodação e o esquecimento, o autor propõe que a esquerda recoloque no debate político tudo aquilo que é “inegociável”: a defesa radical do igualitarismo, da soberania popular e do direito à resistência.
Em contraposição às políticas multiculturalistas, ele postula a necessidade de a esquerda ser “indiferente às diferenças” e retomar o universalismo.
Polêmico, Safatle diz que a esquerda precisa entender as necessidades do sujeito contemporâneo e que não há equívoco maior, atualmente, que contrapor o desejo dos indivíduos ao igualitarismo.
A esquerda que não teme dizer seu nome é uma leitura urgente e essencial para todos os que não têm medo da política e buscam a justiça social.



“Somos obrigados a ouvir compulsivamente que “a divisão esquerda/direita não faz mais sentido”. Mesmo que ainda encontremos posições políticas e leituras dos impasses da vida social contemporânea radicalmente antagônicas, há uma clara estratégia de evitar dar a tais antagonismos seu verdadeiro nome. Ela é utilizada para fornecer a impressão de que nenhuma ruptura radical está na pauta do campo político ou, para ser mais claro, de que não há mais nada a esperar da política, a não ser discussões sobre a melhor maneira de administrar o modelo socioeconômico hegemônico nas sociedades ocidentais. Não se trata mais de pensar a modificação dos padrões de partilha de poder, de distribuição de riquezas e de reconhecimento social. Trata-se de uma questão de gestão de modelos que se reconhecem como defeituosos, mas que ao mesmo tempo se afirmam como os únicos possíveis.
A função atual da esquerda é, por isso, mostrar que tal esvaziamento deliberado do campo político é feito para nos resignarmos ao pior, ou seja, para nos resignarmos a um modelo de vida social que há muito deveria ter sido ultrapassado e que evidencia sinais de profundo esgotamento. Cabe à esquerda insistir na existência de questões eminentemente políticas que devem voltar a frequentar o debate social.
Uma maneira de iniciar a discussão é identificando quais são as posições que podem caracterizar, hoje, o pensamento de esquerda. Importante insistir que a plasticidade da política exige que a determinação dos problemas do presente defina a configuração de nossa posição. Isso significa que o pensamento político deve ter uma dimensão profundamente “estratégica”. Ele se move de acordo com os problemas postos pela vida social. Muitas vezes, várias correntes da esquerda ignoraram tal mobilidade, entrando assim em uma espécie de “petrificação do discurso” que acabou por afastá-los da capacidade de pautar a opinião pública.
Essa reflexão sobre as posições que caracterizam a esquerda pode nos mostrar como a política é, em seu fundamento, a decisão a respeito do que será visto como inegociável. Ela não é simplesmente a arte da negociação e do consenso, mas a afirmação taxativa daquilo que não estamos dispostos a colocar na balança. O que falta hoje à esquerda é mostrar o que, segundo seu ponto de vista, é inegociável. Por exemplo, quais processos e resultados são fundamentais para uma verdadeira coesão social que não seja submersa por clivagens e desigualdades.”


“A sociedade capitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão de eles terem possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco como as decisões de consumo, cada vez mais “customizadas” e particularizadas. No entanto, talvez seja correto dizer que essa ação não é um verdadeiro agir, pois é incapaz de mudar as possibilidades de escolha, que já foram previamente determinadas. Ela não produz seus próprios objetos, apenas seleciona objetos e alternativas que já foram previamente postos na mesa. Por isso, essa ação não é livre.”


“Talvez a posição atual mais decisiva do pensamento de esquerda seja a defesa radical do igualitarismo. Juntamente com a defesa da soberania popular, a defesa radical do igualitarismo fornece a pulsação fundamental do pensamento de esquerda.
Tal defesa do igualitarismo traz orientações muito claras a respeito de questões centrais no campo social e econômico. Por “igualitarismo” devemos entender duas coisas. Primeiro, que a luta contra a desigualdade social e econômica é a principal luta política. Ela submete todas as demais.
Nossas sociedades capitalistas de mercado são sociedades “paradoxais” por produzirem, ao mesmo tempo, aumento exponencial da riqueza e pauperização de largas camadas da população. Quebrar esse paradoxo é tarefa da política.”


“De fato, nenhuma pessoa sensata poderia ser contrária à meritocracia e à recompensa pelo empreendedorismo. No entanto, tais valores apenas encobrem o pior cinismo quando não vêm associados à luta contra a desigualdade de oportunidades e condições. A diversidade de talentos é, muitas vezes, a capa que se usa para acobertar que a diversidade de riquezas é um problema que quebra a possibilidade de desenvolvimento individual por mérito.”


“A esquerda deve meditar um pouco sobre esta afirmação de Warren Buffet, um dos homens mais ricos do mundo: “É verdade que há uma guerra de classes, mas é a minha classe que está fazendo a guerra e ganhando”.”


“O Estado democrático excede os limites tradicionalmente atribuídos ao Estado de Direito. Experimenta direitos que ainda não lhe estão incorporados, é o teatro de uma contestação cujo objeto não se reduz à conservação de um pacto tacitamente estabelecido, mas que se forma a partir de focos que o poder não pode dominar inteiramente.” (Claude Lefort – A invenção democrática)


“Mesmo a tradição política liberal admite, ao menos desde John Locke, o direito que todo cidadão tem de se contrapor ao tirano, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o poder e impõe um estado de terror, de censura, de suspensão das garantias de integridade social. Nessas situações, a democracia reconhece o direito à violência, já que toda ação contra um governo ilegal é uma ação legal.


“Muitos gostam de dizer que, no interior da democracia, toda forma de violação contra o Estado de Direito é inaceitável. Mas e se, longe ser de um aparato monolítico, o Direito em sociedades democráticas for uma construção heteróclita, em que leis de vários matizes convivem, formando um conjunto profundamente instável e inseguro? A Constituição de 1988, por exemplo, não teve força para mudar vários dispositivos legais criados pela Constituição totalitária de 1967. Ainda somos julgados por tais dispositivos. Nesse sentido, não seriam certas “violações” do Estado de Direito condições para que exigências mais amplas de justiça se façam sentir?
Foi pensando em situações dessa natureza que Derrida afirmava ser o Direito objeto possível de uma desconstrução que visa a expor as superestruturas que “ocultam e refletem, ao mesmo tempo, os interesse econômicos e políticos das forças dominantes da sociedade”.12 Quem pode dizer em sã consciência que tais forças não agiram e agem para criar, reformar e suspender o Direito? Quem pode dizer em sã consciência que o embate social de forças na determinação do Direito termina necessariamente da maneira mais justa? Por isso, nenhum ordenamento jurídico pode falar em nome do povo. Ao contrário, o ordenamento jurídico de uma sociedade democrática reconhece sua própria fragilidade, sua incapacidade de ser a exposição plena e permanente da soberania popular.
A democracia admite, por essas razões, o caráter “desconstrutível” do Direito, e ela o admite pelo reconhecimento daquilo que poderíamos chamar de legalidade da “violação política”. Pacifistas que sentam na frente de bases militares a fim de impedir que armamentos sejam deslocados (afrontando assim a liberdade de circulação), ecologistas que seguem navios cheios de lixo radioativo a fim de impedir que ele seja despejado no mar, trabalhadores que fazem piquetes em frente a fábricas para criar situações que lhes permitam negociar com mais força exigências de melhoria de condições de trabalho, cidadãos que protegem imigrantes sem-papéis, ocupações de prédios públicos feitas em nome de novas formas de atuação estatal, trabalhadores sem-terra que invadem fazendas improdutivas, Antígona que enterra seu irmão: em todos esses casos, o Estado de Direito é quebrado em nome de um embate em torno da justiça.
No entanto, é graças a ações como essas que direitos são ampliados, que a noção de liberdade ganha novos matizes. Sem elas, com certeza nossa situação de exclusão social seria significativamente pior. Nesses momentos, encontramos o ponto de excesso da democracia em relação ao Direito.
Uma sociedade que tem medo de tais momentos, que não é mais capaz de compreendê-los, é uma sociedade que procura reduzir a política a um mero acordo referente às leis que temos e aos meios que dispomos para mudá-las (como se a forma atual da estrutura política fosse a melhor possível – se se leva em conta o que é o sistema político brasileiro, pode-se claramente compreender o caráter absurdo da colocação).
No fundo, essa é uma sociedade que tem medo da política e que gostaria de substituir a política pela polícia. A violação política nada tem a ver com a tentativa de destruição física ou simbólica do outro, do opositor, como vemos na violência estatal contra setores descontentes da população ou em golpes de Estado. Ela é, antes, a força da urgência de exigências de justiça”
12 Derrida, Jacques. Força de lei. São Paulo: Martins Fontes, 2007.


“Devemos insistir em que a esquerda não pode permitir que desapareça do horizonte de ação uma exigência profunda de modernização política que vise à reforma, não apenas das instituições, mas do processo decisório e de partilha do poder. Ela não pode ser indiferente àqueles que exigem a criatividade política em direção a uma democracia real.
Não deixa de ser dramático ver membros de certa esquerda citando Tocqueville, certos de que a democracia exige instituições fortes: a democracia não exige um poder instituído forte e não deve depender de instituições que sempre funcionaram mal. Do ponto de vista institucional, a democracia tem uma plasticidade natural. Ela depende, e isso é totalmente diferente, de um poder instituinte soberano e sempre presente. Ou seja, depende de um aprofundamento da transferência do poder para instâncias de decisão popular que podem e devem ser convocadas de maneira contínua.
Estamos muito acostumados com a ideia de que a democracia se realiza naturalmente como democracia parlamentar. Isso, no entanto, é falso. Uma esquerda que não tem medo de dizer seu nome deve falar com clareza que sua agenda consiste em superar a democracia parlamentar pela pulverização de mecanismos de poder de participação popular direta. Lembremos apenas que, com o desenvolvimento das novas mídias, é cada vez mais viável, do ponto de vista material, certa “democracia digital” que permita a implementação constante de mecanismos de consulta popular.”


“O verdadeiro desafio democrático consiste, desse modo, em institucionalizar tal poder instituinte, criando uma dinâmica plebiscitária de participação popular. Tal dinâmica é desacreditada pelo pensamento conservador, pois ele procura vender a ideia inacreditável de que o aumento da participação popular seria um risco à democracia – como se as formas atuais de representação fossem tudo o que podemos esperar da vida democrática. Contra essa política que tenta nos resignar às imperfeições da nossa democracia parlamentar, devemos dizer que a criatividade política em direção à realização da democracia apenas começou. Há muito ainda por vir.
Como dizia Derrida, eis a razão pela qual só podemos falar em democracia por vir, e nunca em democracia como algo que se confunde com a configuração atual do nosso Estado de Direito. Contra os arautos do Estado democrático de Direito, que procuram nos resignar às imperfeições atuais da democracia parlamentar, devemos afirmar os direitos de uma democracia por vir, que só poderá ser alcançada se assumirmos a realidade da soberania popular. Estas são, pois, as duas pernas de toda política de esquerda que não teme dizer seu nome: igualitarismo e soberania popular. Garantidos esses dois valores, o resto, como diz o Evangelho, virá por si mesmo.”


“A verdadeira democracia não é medida pela estabilidade de suas instituições e suas regras. Afinal, quantas vezes a França (só para ficar em um exemplo) mudou as regras de seu sistema eleitoral e de seu sistema de partilha de poder? Quantas vezes aquele país modificou o funcionamento da instituição presidencial? Lembremos como mesmo a “estável” Inglaterra debate hoje modificações profundas em seu próprio sistema.
A verdadeira democracia é medida, na verdade, pela possibilidade dada ao poder instituinte popular de manifestar-se e criar novas regras e instituições. Não é só em eleições que tal poder se manifesta. Há uma plasticidade política própria à vida democrática que só arautos do pensamento conservador compreendem como “insegurança jurídica”. O plebiscito é simplesmente a essência fundamental de toda vida democrática, e falar em “golpe plebiscitário” é uma das maiores aberrações que se possa imaginar. O dia em que um plebiscito equivaler a um golpe de Estado, então nossa noção de democracia estará completamente esvaziada. Ela perderá todo seu valor.”


“Talvez seja o caso de dizer claramente que a alternativa chavista é apenas uma deriva populista e bonapartista da esquerda. De fato, o conceito de “populismo” existe e não é apenas um dispositivo de desqualificação política, embora muitas vezes seja usado apenas para isso. Populista é um governo profundamente personalista e centralizado cuja figura do mandatário do Executivo encarna o ideal de condução e, por isso, confunde-se com a figura do poder;13 é um governo incapaz de permitir o desenvolvimento de mecanismos de transferência do poder em direção à democracia direta, pois, nesse caso, a democracia direta é subordinada ao poder central. O populismo esquece que o verdadeiro líder democrático é aquele que não tem medo de expor sua própria efemeridade, sua própria contingência. O líder democrático é aquele que nos ensina como a contingência pode habitar o cerne do poder.”
13 Por isso há algo de piada de mau gosto na afirmação de que o Brasil conheceu, entre 1945 e 1964, uma “república populista”. Só mesmo uma historiografia revisionista, que visa a desqualificar o único momento na história brasileira em que a participação popular foi efetiva, poderia dizer algo dessa natureza. Nesse caso, nota-se como “populista” não é usado como descrição analítica, mas como injúria. Gostaria que alguém explicasse, por exemplo, em que Dutra e Juscelino eram “populistas” e em que João Goulart encarnava o ideal de condução que se confunde com a figura do poder estatal.


““Por fim, vale a pena lembrar que a noção de soberania popular implica processo institucionalizado de transferência de poderes em direção à democracia direta. Ele não é uma simples arma utilizada pelo Executivo em situações de conflito de poderes. Sua melhor figura é a institucionalização de decisões que só poderiam, a partir de então, ser tomadas por meio da manifestação direta da soberania popular. Isso significa transferência de poder tanto do Legislativo quanto do Executivo. (...)
A Islândia tem algo a nos ensinar sobre isso.
Um dos primeiros países atingidos pela crise econômica de 2008, a Islândia decidiu que o uso de dinheiro público para indenizar bancos seria objeto de plebiscito. O resultado foi o apoio maciço ao calote. Mesmo sabendo dos riscos de tal decisão, o povo islandês preferiu realizar um princípio básico da soberania popular. Se a conta vai para a população, é ela quem deve decidir o que fazer, e não um conjunto de tecnocratas que terão seus empregos garantidos nos bancos, tampouco parlamentares cujas campanhas são financiadas por esses bancos.
Como disse o presidente islandês, Ólafur Ragnar Grímsson, “a Islândia é uma democracia, não um sistema financeiro”. Alguns poderiam contra-argumentar que é absurdo que decisões de inegável complexidade técnica passem para a democracia direta. Bem, outros diriam apenas que quem paga a orquestra escolhe a música. Esta é uma boa maneira de se perguntar: afinal, no caso de nosso Parlamento e de nosso Executivo, quem paga a orquestra?”

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Religião em debate (Parte II) – José Pedro Luchi (org.)

Editora: Aquarius
ISBN: 978-85-6057-434-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 360



Artigos presentes no livro:
Fé, Razão e o Debate público – Agnaldo Cuoco Portugal / A crítica de Tobias Barreto à religião natural de Jules Simon – Antônio Vidal Nunes / O problema de Deus e a questão da religião em Xavier Zubiri – Everaldo Cescon / Pensamento pós-metafisico e Sociedade pós-secular: uma recente entrevista de Habermas sobre Religião – José Pedro Luchi / A Filosofia da religião em John Caputo. Uma primeira aproximação – Júlio Zabatiero / Religião na esfera pública – Marcelo Martins Barreira / Equívocos sobre a morte de Deus na Fenomenologia do Espírito de Hegel – Vítor Hugo de Oliveira Fieni / O projeto iluminista e a religião em Kant – Rafael Pimenta Machado / O conceito de Religião como meio de crítica interpretativa da religião no pensamento de E. Kant – Ernesto José Caetano / Atualidade da filosofia kantiana da religião – Robson Ferreira Lima / A crítica de Kant à História como pretensa legitimadora da Religião – Rafael Hygino Meggiolaro / A felicidade como destino do homem na crítica kantiana da religião – João Batista da Silva Junior / O conceito de Salvação em Lutero e Kant – Ludmila Portela / O Agir entre finito e infinito: Críticas de Hegel a Kant – Márcio Lourenço Garcia / A crítica de Hegel à Ética de Kant na Fenomenologia do Espírito – Cleiton Barbosa / O Irracionalismo de R. Otto em resposta ao racionalismo kantiano da religião – Edson Kretle dos Santos / O conceito de Naturalismo em Habermas – Elaine Cristina Borges / O Cristianismo na Idade da Interpretação segundo G. Vattimo – Marcony Uliana


“Hegel viu, assim, no nascimento e na morte de Cristo a aproximação absoluta entre Deus e o homem, uma humanização de Deus, de forma que este mostra, por meio da sua encarnação (Mensclawerdung), que a consciência do homem guarda em-si a luz da divindade. Jesus une, para o filósofo, aquele Em-si do Pai, inacessível e eterno, à corporalidade e realidade física humana em sua perenidade. É, para Hegel, o Deus feito homem, o Verbo que se fez carne que entre nós veio habitar. Diz o Cristo: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo, 14-9), trazendo assim para a sua vida humana a presença de toda a essencialidade abstrata e divina do Deus de Abraão e de Moisés. Diferente de Kant, para o qual a vida efetiva e real do Cristo não era tão importante e para o qual a moralidade do Cristo, e somente esta, era o que realmente importava; para Hegel a moralidade, juntamente com a vida física de Jesus, a sua verdadeira passagem histórica pelo mundo, era o que realmente importava1. Para o autor da Fenomenologia do Espírito (2005) a vida do Cristo era uma etapa pela qual a consciência humana deveria passar necessariamente, ou seja, era preciso que em algum período da história houvesse este fenômeno através do qual o homem se identificaria plenamente com aquilo que é a sua essência e substância, de um modo que uma diferenciação ontológica entre ambos não poderia mais ser possível. Jesus é o personagem na ciência da experiência da consciência, representa a síntese perfeita e absoluta entre toda abstração e toda efetividade. O Nazareno realiza, pela primeira vez na história, mas, ainda, em caráter religioso, a deificação humana, ou seja, a essencialização e substancialização da consciência por um lado e, por outro, a humanização divina, a saber, a personificação da essência.
Em Cristo, o homem efetivo se faz Deus abstrato e o Deus abstrato se faz homem efetivo. Este é o movimento feito pela religião cristã que a concede status de religião absoluta, pois nela homem e Deus, inessência e essência, mutável e eterno, perfeito e imperfeito, ou seja, os contrários, se reconciliam plenamente. Em Cristo 0 mal (a corporalidade humana em sua realidade deteriorável) se reconcilia com o bem (a eternidade perfeita e pura de Deus) perfeitamente. O Filho de Deus realiza desta forma, na Fenomenologia, um estágio fundamental na caminhada da formação que a consciência humana vai fazendo através dos séculos em sua peregrinação no mundo. Nesse homem divino se cumpre a meta do espírito; fazer com que o Eu se entenda como um Nós e que o Nós se entenda, tenha um saber-de-si, como Eu. Assim, podemos dizer que, em Cristo, Deus se faz homem em um movimento religioso que, no desdobramento da jornada do espírito no mundo, deve evoluir até o ponto em que, um dia, em uma época particular, o homem também possa fazer-se Deus, ou seja, deificar-se em um movimento a-religioso, por meio do qual Deus é reconhecido (na filosofia) como vivo no próprio homem, no ser-humano que move e transforma a história de modo consciente, de acordo com a sua vontade e destino.
Mas não nos retenhamos neste último, que é o movimento final descrito na Fenomenologia do Espírito, mas atenhamo-nos ao que tange à vida divina encarnada no homem de Nazaré, pois é preciso ainda pontuar algo muito significativo e que é, na verdade, aquilo de que aqui queremos tratar.
Cristo é a representação do Deus que se faz homem, mas que também morre na cruz. Hegel vê, então, na pessoa de Jesus um momento onde a essência abstrata se faz carne e passa a viver no meio dos homens como homem e vê também aí um momento no qual esta mesma carne, que é habitáculo da substância eterna, morre na cruz fazendo, assim, com que o Deus etéreo, que habitava aquele humano, possa também ser dado como morto. É isso que nos anuncia o filósofo quando escreve de modo bastante claro em sua Fenomenologia que
a morte do mediador (Cristo) não é só a morte do seu lado natural, ou de seu ser-para-si particular; não morre somente o invólucro já morto, despojado da essência, mas morre também a abstração da essência divina (HEGEL, 2005, p.526).”
1 É o que nos diz o próprio Hegel em sua Filosofia da História (2008) ao afirmar que não é “adequado que nos lembremos de Cristo apenas como uma pessoa histórica. Nesse caso, pergunta-se então: o que significaram o seu nascimento, seu pai, sua mãe, sua educação, seus milagres, etc.? Ou seja, o que é ele sob um ponto de vista superficial? Se o observamos também só pelos seus talentos, caráter e moralidade objetiva, como mestre, etc., nós o colocamos no mesmo nível de Sócrates e outros, mesmo estimando a sua moral como mais elevada. Mas, primor de caráter, moral, etc., tudo isso não é a necessidade última do espírito, ou seja, que o homem adquira o conceito especulativo do espírito em sua representação. Se cristo deve ser só um excelente indivíduo, sem pecados e somente isso, então a representação da ideia especulativa, da verdade absoluta, é negada” (HEGEL, 2008, p. 275).
(Vítor Hugo de Oliveira Fieni)


“Acredito no Deus que criou o homem, e não no Deus que os homens criaram.” (Diderot)


“Estas ideias, Deus e Religião, ganham no pensamento de Kant conceitos totalmente diferentes daqueles que são usualmente empregados pelo senso-comum. Enquanto a religião aparece como uma consequência dos atos morais praticados pelo homem, ou seja, como algo que promana da moral como um fim, daí o sentido teleológico, ao mesmo tempo ela depende da ideia de um ser superior que possibilite a síntese entre os dois âmbitos representados pela moral e a religião, isto é, o universal e o histórico (ou empírico), síntese que é o sumo bem (hõchsten Gutes) e que só é possível se for considerado como provindo deste ser supremo (Deus) que não está sujeito às limitações humanas e que, por isso, contém em si a forma lógica de todos os at0s conformes à lei moral. Em outras palavras, o homem, dada a sua natureza sensível, não pode ser um ser estritamente moral, pois mesmo alcançando o bem em sua existência ele nunca deixa de ser assediado pelo mal, de modo que a efetivação do sumo bem se dá para ele mais no sentido de uma meta, de um caminho, e é neste sentido que a religião desempenha um papel pedagógico em sua formação, e Deus – em concordância com os resultados alcançados na Crítica da Razão Pura – aparece como uma Ideia da razão, que tem o sentido prático de orientar a ação, e não o sentido cognitivo de ampliar o conhecimento.
Esta cisão que se dá no âmbito da razão entre o universal e o histórico corresponde, na religião, à cisão entre a Religião racional e a Religião eclesial.
A Religião eclesial é a igreja histórica, a qual é, no melhor dos casos, fundada com base na revelação. Tal igreja histórica estimula entre seus seguidores à fé em um culto a Deus que se dá por meio de atos muitas vezes desprovidos de sentido moral, apesar de poder ser atribuído a ela um caráter pedagógico, e traz também, em sua efetivação, a limitação de ser uma fé apenas local, não chegando igualmente a todos os homens. Já a religião racional é fundada unicamente na lei moral, a qual está presente igualmente no coração de todo homem, portanto, esta religião não depende de dados empíricos ou revelados para poder ser conhecida por todos, apesar de poder estar em pleno acordo com a revelação.
Mas, apesar da natureza fenomênica do homem, o qual pode facilmente inverter a máxima de suas ações colocando o amor-de-si no lugar do puro seguimento da lei moral, apesar desta limitação, o homem deve buscar pelas suas próprias forças alcançar a síntese entre religião histórica e religião racional, entre Igreja visível e Igreja invisível, ou seja, deve buscar a efetivação de um Reino de Deus na terra, deve buscar efetivar o sumo bem, e tal projeto só pode ser alcançado através da ereção do que Kant chama de uma comunidade ética, a qual é uma comunidade histórica, porém fundada no puro seguimento da lei moral, e não apenas na positividade das leis humanas. Tal comunidade deve partir do princípio de que o mal não está presente no homem de uma forma natural, pois assim este não teria escolha no momento de sua decisão. Ao contrário, o mal é uma inversão ou uma deflexão da lei moral, ou melhor, das máximas que orientam o agir – e esta inversão ou deflexão não pode ser simplesmente extirpada do coração do homem, motivo pelo qual o mal é chamado por Kant de radical – e este ato é assumido livremente pelo homem, mas a sua ativação, segundo Kant, tem como causa a comparação mesmo a simples relação que o homem guarda com os outros homens, o que dá um aspecto social ao mal radical.3
3 HERRERO. F. J. Religião e História em Kant. São Paulo: Edições Loyola, 1991, p. 89. Na nota 44 lê-se: “Pelo fato de o mal ser social, não basta a conversão individual. Kant diz que se não se pudesse encontrar qualquer meio para edificar uma união social que evite o mal e promova o bem, então o mal ‘por mais que o homem individual possa ter domíni0, o manteria sem cessar no perigo de recair em seu domínio’”.
(Robson Ferreira Lima)


“Disso se conclui que essas leis estatutárias são prescrições puramente arbitrárias, [...] solenidades, confissões de fé referentes a leis reveladas e por meio da observância das prescrições relativas à forma da Igreja”.30 Contudo, Kant não despreza completamente a crença das igrejas estatutárias, ele as vê como “[...] um simples meio.”31 Ele afirma: “De fato, o que a fé de igreja tem de teórico não poderia nos interessar moralmente se não contribuir para o cumprimento de todos os deveres humanos enquanto mandamentos de Deus (o que constitui o essencial em toda religião).”32 Outra função da tradição parece ser torná-la acessível ao povo, uma vez que a fé popular não poderia ser negligenciada, porque nenhuma doutrina baseada somente na razão, parece convir ao povo como norma invariável [...]”33. As Escrituras, as “teorias” de cada igreja e seu conteúdo histórico fundador são reduzidos à sua função alegórica,34 atribuídos às “primeiras manifestações grosseiras para uso de culto, dando lugar a pretensas revelações”.35
Nesse sentido, Kant diz que devemos fazer uma leitura das Escrituras buscando preceitos morais, mesmo que isso signifique interpretar certas passagens no seu limite, “contanto, porém, que seja possível que o texto o admita [...]”.36 Não é o bem moral que deve se adequar à religião, mas ao contrário, a religião deve ser adaptada pelo homem ao que este considera bom, num esforço racional. Esse pensamento coloca um obstáculo entre Kant e as religiões tradicionais, mas não buscaremos sanar essa contradição nesse artigo, para nós, nesse momento, basta considerá-la como argumento para afirmar que Kant não despreza completamente esses elementos numa religião, mas os vê como meios potenciais37 para a comunicação do bem moral.”
30 Id. p.95
31 Id. p.95
32 Id.p.99
33 Id.p.101
34 Interessante notar que Kant cita como apoio a esse argumento outras religiões. Os filósofos clássicos teriam chegado a mesma conclusão em relação a seu politeísmo. Os judeus fariam “interpretações desse gênero, em parte muito forçadas, mas [...] em vista de fins incontestavelmente bons e necessários a todos os homens.” Os maometanos dariam descrições agradáveis do paraíso, inclusive com elementos sensuais, o que parece ser para Kant uma construção em vista de tornar esse fim mais desejável. KANT, Op. Cit., p. 100
35 Id.p. 100
36 Nessa página existe uma nota de rodapé em que Kant oferece um exemplo de interpretação desejável para um trecho da Escritura. Id., p. 99.
37 Algumas vezes a crença histórica é vista como um fio condutor (KANT, op. cit., p. 104)
(Rafael Hygino Meggiolaro)


“A “guinada kantiana” é a inversão do posicionamento tradicional, que coincidia a moral com a felicidade, para o princípio da moralidade independente de qualquer conteúdo, seja a felicidade ou qualquer outro; o princípio da moral passa a residir apenas na sua forma, o dever. Para Kant, conhecemos primeiro lei moral (o dever) como “fato da razão” e depois dela inferimos a liberdade como seu fundamento e como sua condição. O aspecto positivo da liberdade é a própria autonomia moral do homem, ou virtude de determinar a si mesmo a sua própria lei. O que a lei moral expressa é justamente isso, a autonomia da razão pura prática, da liberdade como condição de todas as máximas. Assim sendo, todas as morais que se baseiam em conteúdos, como a dos eudaimonistas e todos os filósofos anteriores a Kant, comprometem a autonomia da vontade.”
(João Batista da Silva Junior)


“Ao contrário do que afirmava Aristóteles e todos os pensadores eudaimonistas, para Kant virtude não é felicidade, nem a felicidade é virtude. Deve-se obedecer a lei moral como uma condição necessária a priori, mas pode-se deduzir a felicidade do fim último do homem, do seu agir moral, pois o virtuoso que combate incessantemente o mal radical, ele é sim digno de felicidade. Aristóteles, um dos pilares da ética clássica, entendia que o princípio de todas as coisas, inclusive da vontade humana, possuem o caráter natural da busca de um fim (virtude) para agir, e o fato determinante do agir é executar a ação que é por si o bem, um estado de felicidade, porque toda ação dessa natureza terá como fim o bem; a virtude (areté) aristotélica se encontra num justo meio entre aqueles extremos. Para Aristóteles, a felicidade (eudemonia) não consiste nem nos prazeres, nem nas riquezas e nem nas honras, mas numa vida virtuosa.
Todo conhecimento e todo trabalho visa a algum bem, quais afirmamos ser os objetivos da ciência política e qual é o mais alto de todos os bens que se pode alcançar pela ação. Verbalmente quase todos estão de acordo, pois tanto o vulgo quanto os homens de cultura superior dizem ser esse fim a felicidade e identificam o bem viver e o bem agir com o ser feliz. (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1984, p. 51.)
Segundo Kant, somente a vontade é boa em si mesma pois, “neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade”1. Dessa maneira, a vontade, não em função daquilo que realiza, tampouco por sua utilidade, mas somente pelo seu querer que coincide com a lei moral pode ser concebida como boa em si mesma. Kant levou o seu formalismo às últimas consequências, prescindindo, dessa maneira, de qualquer conceito de “fim”, pois concebe que “a natureza racional existe como fim em si”. Neste sentido, a vontade deve ser determinada a priori, objetivamente, pelo imperativo categórico, o que significa dizer que para Kant a razão pura em si mesma é prática porque determina a vontade sem que entrem em jogo outros fatores, como a felicidade, bastando a pura forma da lei moral. É a partir do conceito de dever que a ética deve investigar os fins e, em relação a eles, determinar aquelas máximas que os homens devem adotar para si mesmos, em concordância com princípios morais. Essa proposição é claramente expressa com a lei fundamental da razão prática que diz:
Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal. (KANT, 1991, p. 42.)
O mal, segundo Kant, é uma natureza não do homem, mas se esconde por trás da razão, mais precisamente uma propensão da sociabilidade humana, da vida em sociedade, porque “a inveja, a ânsia de domínio, a avareza e as inclinações hostis a elas associadas assaltam a sua natureza, em si moderada, logo que se encontra no meio dos homens, e nem sequer é necessário pressupor que estes já estão mergulhados no mal e constituem exemplos sedutores; basta que estejam aí, que o rodeiem, e que sejam homens, para mutuamente se corromperem na sua disposição moral e se fazerem maus uns aos outros.”2 O bem sim é a disposição originária do homem, afirma Kant, o que não fere o princípio de não-contradição pois, em última instância, o homem sem a sociabilidade vai possuir a alma e a razão (prática ou teórica), seu componentes naturais da disposição ao bem, mas sem a sociabilidade não há propensão para o mal.”
1 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 21, (BA 1).
(João Batista da Silva Junior)


“Nesse sentido, Lutero entende as boas outras do homem não como causa de sua salvação, mas como consequência de sua fé. As obras são, portanto, prática natural para o cristão possuidor de uma fé verdadeira e não induzem a salvação, dado o caráter pecador de todas as ações humanas. Aquele que crê é praticante de boas obras, sendo aquele que não as pratica, servidor da descrença. A salvação não vem pelo mérito das obras, mas as obras nascem como consequência da fé, verdadeira fonte de eleição:
Pois a justiça de Deus não é adquirida através de atos frequentemente repetidos, como ensinou Aristóteles7, mas é infundida pela fé. [...] Daí quero que aquela expressão sem obras seja entendida não no sentido de que o justo nada opere, mas no sentido de que as suas obras não fazem a sua justiça. Antes, é a sua justiça que faz as obras. Pois é sem a nossa obra que a graça e a fé são infundidas, ao que, de imediato, se seguem as obras.8
7 Em ocasião da reunião do Capítulo de Heidelberg, em 1518, Lutero formulou e apresentou 40 teses violentamente dirigidas contra a metafísica aristotélica. O monge buscou defender a ideia de que mesmo as melhores obras humanas são, perante Deus, fruto do pecado imanente ao ser humano. Ele qualifica como tola a afirmação do livre-arbítrio como categoria de justificação do homem perante Deus, pois, de acordo com os escritos bíblicos, “o livre-arbítrio é sempre escravo do pecado”. Dessa forma “somente está apto para conseguir a graça de Cristo quem desesperar totalmente de si mesmo e colocar sua confiança totalmente em Cristo.” DREHER, Martin N. Introdução. In: LUTERO, Martinho. Obras selecionadas: Os primórdios Escritos de 1517 a 1519. v. 1, São Leopoldo: Sinodal, 1987, P. 36.
8 LUTERO, Martinho. Demonstração das Teses debatidas no Capítulo de Heidelberg. In: Obras selecionadas: Os primórdios Escritos de 1517 a 1519. v. 1, São Leopoldo: Sinodal, 1987, p. 52.
(Ludmila Portela)


“O sumo bem é a união da felicidade e moralidade. A virtude é o que nos torna dignos de sermos felizes, para Kant. Mas já que não é possível ser moralmente perfeito, não é possível exigir a felicidade se não por sorte e graça. Hegel faz uma crítica ferrenha a Kant por essa contradição, que na verdade é apenas uma dissimulação, de nunca sermos morais e a moralidade ser o que nos faz dignos da felicidade: “a não-moralidade aqui exprime exatamente o que ela é: que não se trata da moralidade, mas da felicidade em si e para si, sem referência à moralidade”. (HEGEL, Fenomenologia do Espírito, 2005, p. 426). Quer dizer que nunca se pensou em ser moral, só se pensara em ser feliz e a consciência moral é uma dissimulação hipócrita dessa finalidade. O juízo de que “as coisas vão mal para o indivíduo moral, e bem para o indivíduo imoral” nunca fez sentido, não é possível julgar alguém por ser imoral, pois a moralidade mesma é imperfeita. Logo, diz Hegel “Por isso, o sentido, e conteúdo do juízo da experiência é apenas este: que a felicidade em si e para si não deveria caber a certa gente. Quer dizer é a inveja que se cobre com o manto da moralidade”. Se todos somos necessariamente imorais então ser digno de ser feliz não é nada além de se autoconceder esse direito, e negá-lo a outros, ou seja, aos que agradam e aos que desagradam respectivamente. Então Deus é exigido como sendo aquele do qual emana a consciência de uma moral perfeita, aquele em que está a perfeição moral em-si e para-si, e aquele que vai garantir a felicidade pelo cumprimento da lei moral. O que mais uma vez demonstra a hipocrisia da consciência moral ao exigir a existência de Deus para que se possa garantir a união da felicidade e moralidade para entes nunca morais.”
(Cleiton Barbosa)


“A consciência moral enquanto pertencente a um ente sensível, é afetada por essa sensibilidade, como já foi dito. Ser afetado pela sensibilidade, em um outro aspecto, quer dizer romper a sacralidade do dever puro com o uno. O dever puro essencial, presente na consciência moral, na verdade não está de forma imediata pois a consciência se sabe afetada peta sensibilidade, é antes de tudo oriundo de uma outra consciência: o Sagrado Legislador. No ser-aí sensível, o dever puro essencialmente uno deve tomar a forma de deveres determinados, deixar de ser o puro indeterminado e apenas formal para se tornar conteúdo determinado e fim singular, pois não há apenas um dever e sim vários deveres morais; logo o dever puro em-si e para-si não pertence à consciência do ente e sim a de outro. A relação com a natureza se torna pelo agir uma relação positiva, não de puro negativo, assim, a efetivação da moralidade é antes o que torna contingente o que deveria ser necessário, o que era essencial se torna inessencial: o dever puro perde sua sacralidade de se saber puro, e passa a ser obra contingente. No puro formalismo da moral kantiana, não há conteúdo, ou seja o essencial é somente essencial e portanto vazio de determinação, vazio de conteúdo, não é suficiente para fundamentar o agir. Mesmo admitindo-se que seria possível uma moralidade que não deva se tornar efetiva, isso seria mais uma dissimulação, pois consciência moral é como pressuposto uma consciência de determinação da vontade, logo é uma violação do conceito de moralidade o não agir. Mas o que quer dizer uma m0ralidade corrompida pelo agir? No mundo, a consciência moral cai em perplexidade, pois tem em-si a consciência do dever puro como, uma virtude, um imperativo categórico: “Age de tal modo a querer que tua máxima se torne lei universal”. Mas por conta da multidão de deveres” que a existência no mundo sensível faz surgir, Hegel diz “Por eles no caso concreto do agir efetivo, a consciência cai em perplexidade, pois cada caso é uma concreção de muitas relações morais”. Cada caso em que se exija uma atitude ou um posicionamento, 0 imperativo categórico não se faz suficiente dar suporte para um agir.
As relações morais se entrelaçam e se multiplicam tornando impossível distinguir, ou mesmo julgar, um posicionamento que seja universalmente moral, tendo em vista também que uma ação moral para Kant, nunca o é em relação aos seus efeitos e sim em sua intenção, assim se abstém da relação com as consequências e por outro lado não prescreve o modo correto de agir, nem de julgar. Por exemplo, e esse exemplo vem do filme “Obrigado por fumar”: um lobista da indústria do cigarro que faz propaganda contra a demonização do produto, mas ao mesmo tempo tem que educar o filho. Pelo imperativo categórico posso apoiar tanto a posição de continuar o trabalho de propaganda do cigarro quanto abandonar essa posição em nome da educação do filho. A favor seria “Tendo em vista a defesa da liberdade individual de escolha de fumar ou não, devo continuar meu trabalho”, ou seja, em nome da defesa da liberdade individual foi cumprido o imperativo categórico e foi uma ação moral. Contra poderia ser “Tenho deveres para com a educação do meu filho, não devo apoiar 0 mau exemplo de fumar”, nesse caso também se agir moralmente.”
(Cleiton Barbosa)


“Assim a tarefa moral é como bem diz Hegel “uma tarefa que deve permanecer tarefa, e contudo ser cumprida” (HEGEL, 2005, p. 415). Não podendo tomar para-si como verdade essa moral racional, a consciência segue na Fenomenologia do Espírito o caminho em busca de sua verdade, e anuncia a partir de agora uma outra. Essa nova consciência que se forma com a dissolução da consciência moral é a chamada “boa consciência”, a consciência romântica, de Goethe e Schiller. A verdade de um dever que não mais se baseia em um dever puro racional exterior, sacralizado por um outro ser.”Agora é a lei que é por causa do Si e não o Si que é por causa da lei” (HEGEL, 2005, p. 435) Agora, um dever sacralizado pela própria consciência, o saber dessa consciência é 0 saber total, pois é o que está em suas possibilidades. Não mais é ditada uma regra que traz para si toda a contingência e a normalizada em um imperativo, não mais é procurada a universalidade abstrata do dever puro. O próximo passo da consciência é a “boa consciência” aquele que tem o seu agir por Universal, e o critério para agir que seja idêntico em todas as situações é apenas a identidade consigo mesma, podendo assim agir diferente em uma mesma situação se com isso esteja agindo conforme consigo mesma e seu querer, que é seu saber, imediato.”
(Cleiton Barbosa)


“Há um lado na igreja que diz: ‘Onde há caridade e amor, ali há Deus’. A presença de Deus é isto.” (G. Vattimo)