segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Fundação (03): Segunda Fundação, de Isaac Asimov

Editora: Aleph

ISBN: 978-85-7657-197-1

Tradução: Fábio Fernandes

Opinião: ★★☆☆

Páginas: 301

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Sinopse: Ver Primeiro livro



“O homem que não tinha outro nome a não ser Mulo e nenhum título a não ser Primeiro Cidadão olhava, através das paredes que eram como espelhos de face única, para a cidade brilhante e nobre no horizonte.

No fim de tarde, as estrelas surgiam e não havia nenhuma que não devesse obediência.

Ele sorriu com uma amargura fugaz, perante o pensamento. Elas deviam obediência a uma personalidade que poucos haviam visto.

Ele não era um homem para ser contemplado, o Mulo – não era um homem para ser contemplado sem desdém. Pouco mais de 50 quilos esticados em 1,70 m. Seus membros eram como pequenos caules ossudos que saíam de seu corpo esquelético em ângulos pouco graciosos. E seu rosto magro estava quase tomado pela proeminência de um bico carnudo que se projetava, chegando a sete centímetros.

Somente seus olhos desmentiam a comédia geral que era o Mulo. Na suavidade – algo estranho de se encontrar no maior conquistador da Galáxia – de seus olhos, a tristeza nunca estava de todo apagada.

Na cidade, encontrava-se toda a alegria de uma capital luxuosa de um mundo luxuoso. Ele poderia ter estabelecido sua capital na Fundação, o mais forte entre todos os seus inimigos conquistados, mas ela estava muito longe, na borda da Galáxia. Kalgan, mais centralmente localizada, com uma longa tradição de parque de diversões da aristocracia, servia melhor – estrategicamente.

Mas, em sua tradicional alegria, aumentada por uma prosperidade nunca antes vista, ele não encontrava paz.

Eles o temiam, obedeciam e, talvez, até respeitassem – de uma boa distância. Mas quem poderia olhar para ele sem desdém? Somente os que tinham sido convertidos. E de que valia essa lealdade artificial? Não tinha sabor. Ele poderia ter adotado títulos, imposto um ritual e inventado elaborações, mas mesmo isso não teria mudado nada. Melhor – ou menos pior – ser simplesmente o Primeiro Cidadão – e se esconder.

Houve uma repentina onda de rebelião dentro dele – forte e brutal. Nenhuma porção da Galáxia deveria ser negada a ele. Por cinco anos, permanecera silencioso e enterrado aqui em Kalgan por causa da ameaça eterna, mística, espalhada pelo espaço da nunca vista, nunca ouvida, nunca conhecida Segunda Fundação. Ele tinha trinta e dois anos. Não era velho – mas se sentia velho. Seu corpo, quaisquer que fossem seus poderes mentais mutantes, era fisicamente fraco.

Todas as estrelas! Todas as estrelas que ele podia ver – e todas as estrelas que não conseguia ver. Tudo devia ser dele!

Vingança contra todos. Contra uma humanidade da qual não fazia parte. Contra uma Galáxia onde não se encaixava.”

 

 

“– Onde a história se preocupa principalmente com as personalidades, os esboços podem ser tanto positivos quanto negativos, de acordo com os interesses do escritor.”

 

 

“– Um Orador deve ser capaz de discutir o Plano sem matemática. Se não o Plano em si, pelo menos sua filosofia e seus objetivos. Primeiro de tudo, qual é o objetivo do Plano? Por favor, diga-me em suas próprias palavras... e não fique procurando lindas palavras. Você não será julgado por polidez e suavidade, eu garanto.

Foi a primeira chance do Estudante de dizer mais de uma sentença, e ele hesitou antes de mergulhar no espaço cheio de expectativas que se abriu à sua frente. Começou a falar, com modéstia:

– Como resultado do que aprendi, acredito que é a intenção do Plano estabelecer uma civilização humana baseada em uma orientação inteiramente diferente de qualquer coisa que já existiu antes. Uma orientação na qual, de acordo com as descobertas da psico-história, nunca poderia espontaneamente chegar a existir...

– Pare! – insistiu o Primeiro Orador. – Você não deve falar “nunca”. Essa é uma difamação preguiçosa dos fatos. Na verdade, a psico-história prevê somente probabilidades. Um evento em particular pode ser infinitesimalmente provável, mas a probabilidade é sempre maior do que zero.

– Sim, Orador. A orientação desejada, se posso me corrigir, então, sabe-se muito bem que não possui nenhuma probabilidade significativa de acontecer espontaneamente.

– Melhor. Qual é a orientação?

– É a de uma civilização baseada na ciência mental. Em toda a história conhecida da Humanidade, avanços foram feitos primeiramente na tecnologia física; na capacidade de lidar com o mundo inanimado. O controle do ego e da sociedade foi deixado ao acaso, ou aos esforços vagos de sistemas éticos intuitivos baseados na inspiração e na emoção. Como resultado, jamais existiu uma cultura com estabilidade maior do que 55% e, mesmo estas, foram resultado de uma grande miséria humana.

– E por que a orientação da qual estamos falando é não espontânea?

– Porque uma grande minoria de seres humanos está mentalmente equipada para participar dos avanços na ciência física, e todos recebem os benefícios crus e visíveis desses avanços. Somente uma minoria insignificante, no entanto, é intrinsecamente capaz de levar o Homem através de um envolvimento maior com a Ciência Mental; e os benefícios derivados disso, apesar de durarem mais, são mais sutis e menos aparentes. Além disso, já que tal orientação levaria ao desenvolvimento de uma ditadura benevolente dos que são mentalmente superiores... virtualmente, uma subdivisão superior da Humanidade... isso causaria muito ressentimento e não seria estável sem a aplicação de uma força que deprimiria o resto da Humanidade para o nível da brutalidade. Tal desenvolvimento é repugnante para nós, e deve ser evitado.

– Qual, então, é a solução?

– A solução é o Plano Seldon. As condições foram organizadas e mantidas de forma que, em um milênio a partir de seu começo... seiscentos anos contando a partir de agora... um Segundo Império Galáctico terá sido estabelecido no qual a Humanidade estará pronta para a liderança da Ciência Mental. Nesse mesmo intervalo, a Segunda Fundação, em seu desenvolvimento, terá criado um grupo de psicólogos pronto para assumir a liderança. Ou, como eu sempre penso, a Primeira Fundação fornece a estrutura física de uma única unidade política, e a Segunda Fundação fornece a estrutura mental de uma classe dominante já pronta.

– Estou vendo. Bastante adequado. Você acha que qualquer Segundo Império, mesmo se formado na época prevista por Seldon, completaria seu Plano?

– Não, orador, não acho. Há vários possíveis Segundos Impérios que podem ser formados no período de tempo que vai dos novecentos aos 1.700 anos depois do princípio do Plano, mas somente um desses é o Segundo Império.

– E, em vista de tudo isso, por que é necessário que a existência da Segunda Fundação fique escondida... sobretudo, da Primeira Fundação?

O Estudante procurou um sentido oculto na questão, mas não conseguiu encontrá-lo. Estava preocupado com sua resposta:

– Pela mesma razão que os detalhes do Plano, como um todo, devem ser escondidos da Humanidade em geral. As leis da psico-história são estatísticas por natureza, e se tornam inúteis se as ações de indivíduos não são aleatórias por natureza. Se um grupo grande de seres humanos aprender os detalhes-chave do Plano, suas ações serão governadas por aquele conhecimento e não serão mais aleatórias no sentido dos axiomas da psico-história. Em outras palavras, eles não serão mais perfeitamente previsíveis. Perdoe-me, Orador, mas sinto que a resposta não é satisfatória.

– E faz bem em se sentir assim. Sua resposta é bastante incompleta. É a própria Segunda Fundação que deve ser escondida, não simplesmente o Plano. O Segundo Império ainda não foi formado. Ainda temos uma sociedade que se ressentiria de uma classe dominante de psicólogos, que temeria seu desenvolvimento e lutaria contra ela. Você entende isso?”

 

 

“Não valia a pena pedir para que ela esquecesse o acontecido. Em relação ao inimigo, “esquecer” era uma palavra sem sentido; e o conselho ajudava a tornar o assunto mais importante, tendo, assim, o efeito contrário.”

 

 

“– Você nunca ganhará o respeito acadêmico, a menos que conte toda a história.

– Ah, besteira. Quem se importa com respeito acadêmico? – ela o achava encantador. Ele não tinha deixado de chamá-la de Arkady durante todo o tempo. – Meus romances serão interessantes e vão vender, e serei famosa. Qual o sentido de escrever livros, se não for para vendê-los e se tornar bem conhecida? Não quero que somente alguns velhos professores me conheçam. Precisa ser todo mundo.”

 

 

“O encanto do poder nunca desaparece completamente.”

 

 

“Arcádia Darell, vestida com roupas emprestadas, parada em um planeta emprestado em uma situação emprestada de uma vida que também parecia emprestada, queria ardentemente a segurança do útero. Ela não sabia que era isso o que queria. Ela só sabia que a própria abertura do mundo aberto era um grande perigo. Ela queria um ponto fechado em algum lugar... algum lugar distante... em algum canto inexplorado do universo... onde ninguém a procuraria.

E lá estava ela, pouco mais de catorze anos, cansada como se tivesse mais de oitenta, amedrontada como se tivesse menos de cinco.”

 

 

“Trantor era um mundo de restos e renascimentos. Como uma joia sem brilho no meio de uma desconcertante multidão de sóis no centro da Galáxia – entre os muitos e pródigos grupos de estrelas – ele sonhava, alternadamente, com o passado e o futuro.

Já fazia tempo que suas fitas insubstanciais de controle tinham se esticado desde seu revestimento metálico até os domínios mais distantes das estrelas. Trantor tinha sido uma única cidade, abrigando quatrocentos bilhões de administradores; a mais poderosa capital que já havia existido.

Até que a decadência do Império, no final, o alcançou e, no Grande Saque de um século atrás, suas forças foram repelidas e quebradas para sempre. Nas ruínas da morte, a camada de metal que circulava o planeta se enrugara numa dolorosa paródia de sua própria grandeza.

Os sobreviventes rasgaram o revestimento de metal e venderam-no a outros planetas, em troca de sementes e gado. O solo estava descoberto mais uma vez, e o planeta voltou ao princípio. Na disseminação das áreas de agricultura primitiva, ele esquecia seu passado intricado e colossal.

Ou teria esquecido, se não fossem os ainda poderosos fragmentos com suas ruínas maciças que subiam até o céu, em um silêncio amargo e digno.”

 

 

“Galáxia! Quando um homem pode saber com certeza que não é uma marionete? Como um homem pode saber que não é uma marionete?”

domingo, 7 de janeiro de 2024

A casa dos espíritos, de Isabel Allende

Editora: Bertrand Brasil

ISBN: 978-65-5838-000-9

Tradução: Carlos Martins Pereira

Opinião: ★★★★★

Páginas: 506

Sinopse: Seu primeiro romance, publicado em 1982, A casa dos espíritos se tornou em pouquíssimo tempo um sucesso absoluto de crítica e vendas, e é hoje um dos títulos míticos da literatura latino-americana.

A casa dos espíritos é tanto uma emblemática saga familiar quanto um relato acerca de um período turbulento na história de um país latino-americano indefinido. Isabel Allende constrói um mundo conduzido pelos espíritos e o enche de habitantes expressivos e muito humanos. As paixões, lutas e segredos da família Trueba abrangem três gerações e um século de transformações violentas, que culminaram em uma crise que levam o patriarca e sua amada neta para lados opostos das barricadas. Em um pano de fundo de revolução e contrarrevolução, Isabel Allende traz à vida uma família cujos laços privados de amor e ódio são mais complexos e duradouros do que as lealdades políticas que os colocam uns contra os outros.

Uma década depois de seu lançamento, foi adaptado para o cinema, numa superprodução estrelada por ícones como Meryl Streep, Glenn Close, Winona Ryder, Jeremy Irons e Antonio Banderas.



“– Estou pensando em ir para o campo, para Las Tres Marías.

– Aquilo é uma ruína, Esteban. Sempre lhe disse que é melhor vender aquela terra, mas você é teimoso como uma mula.

– Nunca se deve vender terra. É só o que fica quando todo o resto se acaba.

– Não concordo. A terra é uma ideia romântica; o que enriquece os homens é o bom faro para os negócios – argumentou Férula. – Mas você sempre disse que algum dia iria morar no campo.

– Esse dia chegou. Odeio esta cidade.

– Por que não diz logo que odeia esta casa?

– Também – respondeu ele rudemente.

– Gostaria de ter nascido homem para poder ir também – disse ela, cheia de ódio.

– Eu não gostaria de ter nascido mulher – contrapôs ele.”

 

 

“Nesse sentido as mulheres são muito estúpidas. São filhas da necessidade. Precisam de um homem para se sentir seguras e não se dão conta de que a única coisa que há a temer são os próprios homens.”

 

 

““As irmãs Mora tinham razão”, disse para si. “Não se pode encontrar quem não quer ser encontrado”.”

 

 

“– Em quase todas as famílias há algum tonto ou louco, filhinha – assegurou Clara enquanto prestava atenção em seu tricô, porque em todos aqueles anos não aprendera a tecer sem olhar. – Às vezes não são vistos, porque todos os escondem, como se fossem uma vergonha. Trancam-nos nos quartos mais isolados para que as visitas não os vejam! Na verdade, porém, não há de que se ter vergonha, pois eles também são obra de Deus.

– Mas em nossa família não há nenhum, vovó – observou Alba.

– Não. Aqui a loucura distribuiu-se por todos, e não sobrou nada para termos o nosso louco varrido.”

 

 

“—Alegro-me por ter escolhido essa profissão. Se o que você quer é andar armado, entre ser delinquente e ser da polícia, é melhor ser policial, porque tem impunidade.”

 

 

“Clara não acreditava que o mundo fosse um vale de lágrimas, mas, ao contrário, uma pilhéria de Deus, e, por isso, seria estupidez levá-lo a sério, se Ele próprio não o fazia.”

 

 

“Jaime exercia seu ofício com vocação de apóstolo e, com a mesma tenacidade com que o pai resgatara Las Tres Marías do abandono e juntara uma fortuna, ele deixava suas forças trabalhando no hospital e atendendo os pobres gratuitamente nas horas livres.

– Você é um perdedor irremediável, filho – suspirava Trueba. – Não tem noção da realidade. Ainda não se deu conta de como é o mundo. Aposta em valores utópicos que não existem.

– Ajudar o próximo é um valor que existe, pai.

– Não. A caridade, tal como seu socialismo, é uma invenção dos fracos para persuadir e utilizar os fortes.

– Não acredito em sua teoria de fortes e fracos – respondia Jaime.

– É sempre assim na natureza. Vivemos numa selva.

– Sim, porque os que determinam as regras são os que pensam como você, mas não será sempre assim.”

 

 

“Blanca, por seu lado, acostumara-se a viver sozinha. Conseguiu encontrar paz nos afazeres do casarão da esquina, em sua oficina de cerâmica e em seus presépios de animais inventados, nos quais os únicos seres que correspondiam às leis da biologia eram os membros da Sagrada Família, perdidos em meio a uma multidão de monstros. O único homem de sua vida era Pedro Terceiro, porque tinha vocação para um só amor. A força desse sentimento imutável salvou-a da mediocridade e da tristeza de seu destino. Permanecia fiel mesmo nos momentos em que ele se perdia atrás de algumas ninfas de cabelo escorrido e ossos grandes, sem o amar menos por isso. A princípio, acreditava morrer cada vez que ele se afastava, mas logo se deu conta de que suas ausências duravam o tempo de um suspiro e que, invariavelmente, ele regressava mais apaixonado e mais meigo. Blanca preferia aqueles furtivos encontros com seu amante em hospedarias à rotina de uma vida em comum, ao cansaço de um casamento e ao pesadelo de envelhecer juntos, compartilhando as penúrias do final do mês, o mau hálito da boca ao acordar, o tédio dos domingos e os achaques da idade. Era uma romântica incurável. Algumas vezes quase sucumbiu à tentação de pegar sua maleta de palhaço e o que restava das joias da meia de lã, e ir com sua filha viver com ele, mas sempre se acovardava. Talvez temesse que aquele grandioso amor, que a tantas provações resistira, não pudesse sobreviver à mais terrível de todas: a convivência.”

 

 

“Alba olhou por uma fresta da janela, lacrada com tábuas e sacos de terra, e viu os tanques alinhados na rua e uma fila dupla de homens em pé de guerra, com capacetes, cassetetes e máscaras. Compreendeu que seu avô não exagerara. Os outros também os tinham visto, e alguns tremiam. Alguém lembrou que havia um tipo novo de bombas, pior do que as lacrimogêneas, que provocava uma incontrolável caganeira, capaz de dissuadir o mais valente com a pestilência e o ridículo. Alba considerou a ideia aterradora. Precisou de um grande esforço para não chorar. Sentia pontadas no ventre e supôs que eram de medo. Miguel abraçou-a, mas isso não lhe serviu de consolo. Estavam os dois cansados e começavam a sentir a noite maldormida nos ossos e na alma.

– Não creio que se atrevam a entrar – ponderou Sebastián Gómez. – O governo já tem problemas suficientes. Não vai se meter conosco.

– Não seria a primeira vez que atacaria os estudantes – observou alguém.

– A opinião pública não permitirá – respondeu Gómez. – Estamos numa democracia. Isto não é uma ditadura e nunca será.

– Acreditamos sempre que essas coisas só acontecem em outros lugares – disse Miguel. – Até que aconteçam também conosco.”

 

 

“Fazia frio. O único que não se queixava de nada, nem sequer da sede, era Sebastián Gómez. Parecia tão incansável quanto Miguel, apesar de ter o dobro da idade e o aspecto de tuberculoso.

Fora o único professor que ficara ao lado dos estudantes quando tomaram o edifício. Dizia-se que suas pernas paralisadas eram consequência de uma rajada de metralhadora na Bolívia. Era o ideólogo que fazia arder em seus alunos a chama que a maioria viu apagar-se quando terminou a universidade e se incorporou ao mundo que, em sua primeira juventude, acreditara poder mudar.”