quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Um Diário do Ano da Peste (Parte II), de Daniel Defoe

Editora: Clube Literatura Clássica

ISBN: 978-65-87036-25-0

Tradução: Marcio Hack

Opinião: ★★★☆☆

Link para compraClique aqui

Análise em vídeoClique aqui

Páginas: 272

Sinopse: Ver Parte I



“Ora, quando digo que as autoridades paroquiais não fizeram um registro completo, ou que não podemos confiar em seus registros, que qualquer um reflita em como os homens poderiam fazer contagens precisas (do número de mortes) num tempo de tão pavorosa aflição, e quando muitos deles mesmos adoeceram e talvez morreram justo quando deveriam entregar os seus registros. Aqui me refiro aos escreventes das paróquias, além dos funcionários menores; pois, embora aqueles pobres homens corressem todos os riscos, ainda assim longe ficavam de estar isentos da calamidade geral, ainda mais considerando que era verdade a respeito da paróquia de Stepney que esta teve, no espaço de tempo daquele ano, 116 sacristãos, coveiros e assistentes, ou seja, os carregadores dos mortos, os sineiros e os cocheiros das carroças que levavam os cadáveres.

Na realidade, o trabalho não era de tal natureza que lhes permitisse o luxo de anotar uma contagem exata dos cadáveres, que eram amontoados todos juntos no escuro de uma vala; dessa vala ou fosso ninguém podia se aproximar, a não ser correndo o risco mais extremo. Observei muitas vezes que nas paróquias de Aldgate e Cripplegate, Whitechapel e Stepney, quinhentos, seiscentos, setecentos e oitocentos mortos apareceram nos avisos de uma semana, ao passo que, se podemos acreditar na opinião dos que, como eu, continuaram na cidade durante toda a epidemia, às vezes morriam 2.000 em uma semana naquelas paróquias; e vi, em papel assinado por uma pessoa que fez uma investigação tão rigorosa quanto possível dessa questão, que na verdade morreram cem mil pessoas da peste naquele ano, ao passo que dos avisos constavam, como vítimas da peste, somente 68.590 mortos.

Se me permitirem registrar a minha opinião, baseada no que vi com meus olhos e ouvi de outras pessoas que foram testemunhas, em verdade acredito no seguinte: que morreram ao menos 100.000 pessoas da peste, além dos vitimados por outras doenças, e além dos que morreram nos campos e nas estradas, e nos abrigos secretos, fora do âmbito da comunicação, como se costumava chamar, e que não foram anotados nos avisos, embora na verdade pertencessem ao corpo dos habitantes. Era conhecida por todos a abundância de pobres criaturas desesperadas, doentes da peste, e que a situação miserável levara à melancolia ou à imbecilidade, como aconteceu com muitos, que saíram vagando pelos campos e bosques, e adentraram em lugares secretos e estranhos, quase sem critério nenhum, rastejando até um arbusto ou sebe para MORRER.

Os habitantes dos vilarejos adjacentes, por pena, levavam-lhes alimentos, que deixavam a uma distância segura, para que os doentes viessem pegá-los, se pudessem. E às vezes não podiam, e quando tais habitantes retornavam, descobriam que os pobres infelizes estavam mortos e que a comida não fora tocada. O número daquelas figuras miseráveis era grande, e sei de tantos que pereceram dessa forma, e com tal exatidão em que lugar morreram, que acredito que poderia ainda hoje ir até lá e encontrar seus ossos sob a terra; pois as gentes do interior iam e cavavam um buraco a alguma distância dos mortos, e depois, com varas muito longas, e ganchos presos às extremidades destas, arrastavam os corpos até que caíssem naquelas valas, e depois as tapavam com terra, atirada da maior distância possível, para cobri-los, atentando para como soprava o vento, e se posicionando naquele lado que os marinheiros chamam de barlavento, para que o odor dos cadáveres soprasse para longe deles; e, assim, em grandes números, pessoas foram embora deste mundo das quais nunca se teve notícia, ou que nunca foram anotadas nos registros, nem dentro nem fora dos avisos de mortalidade.”

 

 

“Um dos piores dias que tivemos em toda aquela época, assim me pareceu, foi no início de setembro, quando pessoas de boa índole chegaram mesmo a acreditar que Deus havia resolvido acabar de uma vez por todas com os habitantes desta miserável cidade. Isso foi numa época em que a peste atingira em cheio as paróquias do leste. A paróquia de Aldgate, se posso dar a minha opinião, enterrou mais de mil pessoas por semana ao longo de duas semanas, embora os avisos não trouxessem número tão grande. A doença, porém, me cercava em proporções tão lúgubres que não havia uma casa em vinte que não estivesse infectada nas Minoritas, em Houndsditch, e naquelas partes da paróquia de Aldgate em volta de Butcher Row e nas vielas em frente à minha casa. Naqueles lugares, a morte imperava em todas as esquinas. A paróquia de Whitechapel encontrava-se na mesma condição, e, embora muito menos do que a paróquia em que eu vivia, enterrava perto de 600 por semana, segundo os avisos, e na minha opinião quase o dobro disso. Famílias inteiras, e em verdade as famílias de ruas inteiras, eram varridas ao mesmo tempo; tanto que era frequente os vizinhos chamarem o sineiro para ir a esta ou aquela casa de modo a recolher as pessoas, pois lá estavam todas mortas.

E, de fato, o trabalho de remover os cadáveres usando as carroças agora tornara-se de tal forma odioso e arriscado que começaram a correr reclamações de que os carregadores não tomavam o cuidado de limpar as casas51 em que todos os habitantes haviam morrido, e de que algumas vezes os corpos continuavam insepultos por muitos dias, até que as famílias vizinhas se incomodassem com o fedor, e eram consequentemente infectadas; e essa negligência das autoridades era tal que os fabricários e meirinhos foram intimados a cuidar da questão, e até mesmo os juízes das aldeias foram obrigados a arriscar a vida entre os carregadores, para animá-los e encorajá-los, pois inumeráveis carregadores morriam da peste, infectados pelos corpos dos quais eram obrigados a se aproximar tanto. E não fosse pelo fato de que a quantidade de pobres que precisavam de emprego e de pão (como já disse acima) era tão grande que a necessidade os impelia a aceitar qualquer coisa e a arriscar qualquer coisa, nunca teria sido possível encontrar gente a empregar naquela tarefa. E os corpos dos mortos teriam permanecido acima do chão, e teriam se deteriorado e apodrecido de modo pavoroso.

Mas no tocante a isso não é possível exagerar no louvor aos magistrados: mantiveram uma ordem tão excelente no enterro dos mortos que, tão cedo adoecesse ou morresse alguém que tinha o emprego de levar e enterrar os mortos, como era muito comum acontecer, os magistrados imediatamente forneciam novos trabalhadores aos locais relevantes –, coisa que, por razão do grande número de pobres que não tinham trabalho, como foi descrito acima, não era difícil. Isso fez com que, não obstante o número infinito de pessoas que morriam e que ficavam doentes quase ao mesmo tempo, elas ainda assim fossem apanhadas e levadas todas as noites, de modo que nunca se pôde dizer, a respeito de Londres, que os vivos não conseguiram enterrar os mortos.

Como a desolação foi maior durante aquela época terrível, também cresceu o assombro das pessoas, que faziam milhares de coisas inexplicáveis, impelidas pela violência do pavor que sentiam, assim como outros também faziam quando nas agonias da enfermidade, e isso era de comover o coração. Alguns saíam pelas ruas rugindo, e gritando, e retorcendo as mãos; outros saíam rezando e erguendo as mãos para o céu, rogando pela misericórdia de Deus. Não sei dizer, em verdade, se não faziam isso quando estavam fora de si, mas, mesmo assim, isso era indicativo de uma mente mais séria, quando estavam em perfeito juízo, e era coisa muito melhor, mesmo sendo terrível, do que os berros e gritos apavorantes que todos os dias, e especialmente ao anoitecer, se podia ouvir em algumas ruas.”

51. Clear such houses..., isto é, retirar os cadáveres das casas. NE.

 

 

“Era realmente coisa deplorável ouvir as miseráveis lamentações das pobres criaturas moribundas, que chamavam aos gritos os sacerdotes para que as consolassem e rezassem com elas, para que as guiassem e aconselhassem, clamando a Deus por perdão e misericórdia, e confessando em voz altas os pecados cometidos. O mais robusto coração sangraria ao ouvir quantas advertências foram então dadas aos outros pelos penitentes à beira da morte, para que não adiassem e retardassem seu arrependimento para o Dia da Aflição; que uma época de calamidade como aquela não era hora de se arrepender, não era hora de clamar por Deus. Eu gostaria de poder repetir o som mesmo dos gemidos e exclamações que ouvi de algumas pobres criaturas moribundas quando estavam no auge de suas agonias e aflições; gostaria de fazer o leitor dessas palavras ouvir, como neste momento penso ouvi-lo, pois o som parece até hoje ressoar em meus ouvidos.”

 

 

“Assim como os mais ricos entraram em navios, os de classe mais baixa entraram em batelões, sumacas, fragatas e barcos de pesca; e muitos, em especial marinheiros, dormiam em seus barcos; mas muitos se conduziram de modo infeliz, especialmente estes últimos, pois, saindo para obter mantimentos, e talvez para conseguir sua subsistência, a infecção penetrou entre eles, causando uma temível devastação. Muitos dos marinheiros morreram sozinhos em seus botes enquanto navegavam por seus caminhos, tanto acima quanto abaixo da ponte, e às vezes não eram encontrados até que suas condições já não permitissem que alguém se aproximasse deles ou os tocasse.

Deveras, a aflição do povo naquela região da cidade em que tantos navegantes habitavam era verdadeiramente deplorável, e merecedora da maior comiseração. Mas, infelizmente, aquela era uma época em que a preocupação com a segurança pessoal era tão imediata para todos que a ninguém sobrava uma margem que permitisse apiedar-se das aflições dos outros, pois a morte, por assim dizer, batia à porta de todos, e já circulava inclusive em meio às famílias de muitos. E as pessoas não sabiam o que fazer ou onde encontrar refúgio.

Isso, como venho dizendo, nos levava toda a compaixão. A autopreservação naquele momento parecia ser, de fato, a primeira das leis. Pois os filhos fugiam dos pais enquanto estes definhavam em meio à aflição mais absoluta. E em alguns lugares, embora esse caso não fosse tão frequente quanto o anterior, os pais faziam o mesmo com os filhos. Mais ainda: houve alguns casos pavorosos, e especial dois deles numa semana, de mães aflitas, delirantes e fora de si, que mataram os próprios filhos. Um deles se deu não muito longe de minha própria casa, a pobre e lunática criatura não sobrevivendo por tempo o suficiente para aperceber-se do pecado que cometera, e menos ainda para ser punida por ele.

E não era, de fato, de se espantar: pois o perigo da nossa própria morte imediata nos desentranhava o amor, e toda a preocupação que podíamos ter pelos outros. Falo aqui em termos gerais, pois houve muitos exemplos de afeição, piedade e dever inamovíveis, em muitas pessoas, e alguns deles chegaram ao meu conhecimento, isto é, por ouvir dizer.

Pois não assumirei a responsabilidade de asseverar a verdade dos detalhes de cada caso.

Para apresentar um deles, deixem-me primeiro mencionar que um dos casos mais deploráveis em toda aquela calamidade foi o das mulheres grávidas, as quais, quando chegavam à hora do sofrimento, e eram tomadas pelas dores, não podiam contar nem com esta nem com aquela ajuda. Nem parteiras nem vizinhas se aproximavam. As parteiras, em sua maioria, estavam mortas, especialmente aquelas que trabalhavam para os pobres. E muitas, senão todas, as parteiras mais eminentes haviam fugido para o interior, de modo que era praticamente impossível para uma mulher pobre, que não tinha como arcar com um preço excessivo, ter uma parteira consigo, e, se tivesse, as parteiras que achava geralmente eram criaturas incompetentes e ignorantes; e a consequência disso foi que um número deveras incomum e incrível de mulheres foi reduzido à aflição mais absoluta. Algumas foram partejadas e prejudicadas pela imprudência e pela ignorância das que fingiam ajudá-las. Incontáveis crianças foram, posso dizê-lo, assassinadas pela mesma ignorância, mas de um tipo mais justificável: as parteiras fingiam que salvariam a mãe, não importando o que acontecesse à criança. E muitas vezes mãe e criança morriam da mesma forma. E especialmente quando a mãe tinha a peste, ninguém ousava aproximar-se e às vezes mãe e criança pereciam. Às vezes a mãe morria da peste, e a criança ainda não terminara de nascer, ou tinha nascido mas ainda não fora separada da mãe. Algumas morriam com as dores do parto, sem dar à luz. E tantos foram os casos desse tipo que é difícil dizer quantos. (...)

Não há margens para dúvida de que a miséria das que amamentavam era, proporcionalmente, da mesma dimensão. Nossos avisos de mortalidade pouca luz podiam lançar sobre esse fato, mas ainda assim esclareciam alguma coisa. Havia um número muito maior de crianças de peito que morriam de fome, mas isso não era nada. A miséria estava em, primeiro, passarem fome por falta de peito, tendo a mãe morrido, e toda a família e as crianças sendo encontradas mortas junto com elas, por simples carência. E, se posso dar minha opinião, acredito que muitas centenas de pobres e indefesos bebês pereceram dessa maneira. Em segundo lugar, morriam não de fome, mas envenenados pela ama de leite. E digo mais, mesmo quando a mãe podia amamentar, estando infectada, envenenava a criança, isto é, infectava-a com o seu leite antes mesmo que soubesse que ela própria estava infectada. E não raro a criança morria, nesses casos, antes da mãe. Impossível não me lembrar de deixar registrada essa advertência: se alguma vez no futuro uma visitação terrível como essa voltar a ocorrer na cidade, todas as mulheres que estiverem grávidas ou amamentando devem ir embora, se houver alguma possibilidade disso, pois o infortúnio delas, se forem infectadas, será muito maior que o das outras pessoas.

Eu poderia aqui contar lúgubres histórias de bebês que foram encontrados sugando os seios das mães, ou amas de leite, depois que estas haviam morrido da peste. De uma mãe, na paróquia em que eu morava, que, tendo uma criança que não estava bem, mandou vir um boticário para examiná-la. E quando ele chegou, segundo se conta, a mãe a amamentava, aparentemente estando muito bem de saúde. Mas quando o boticário se aproximou da mulher, viu os sinais da doença naquele seio com o qual ela dava de mamar à criança. Isso o surpreendeu, é certo, mas, não querendo assustar demais a pobre mulher, pediu que ela lhe entregasse a criança. Ele então a pegou no colo, e foi até um berço que havia no cômodo, e a deitou ali. Abrindo as roupas da criança, encontrou também nela os sinais da doença, e ambas morreram antes que ele pudesse chegar em casa para enviar um remédio preventivo ao pai da criança, ao qual informara sobre as condições de mãe e bebê. Se a criança infectou a mãe que a amamentava ou se a mãe infectou a criança, isso não se sabe, mas o segundo caso é o mais provável.

Poderia também contar de um bebê que foi devolvido à casa dos pais, vindo de uma ama que morrera da peste, mas mesmo assim a terna mãe não se recusou a aceitar a criança, e a colocou em seu peito, e por ela foi infectada, e morreu tendo a criança nos braços já morta.

O mais endurecido dos corações se comoveria perante os casos, que frequentemente se podia encontrar, de ternas mães que cuidavam e velavam por seus queridos filhos, e que chegavam até a morrer na frente deles, e às vezes pegando a doença do filho e morrendo, quando a criança pela qual o afetuoso coração fora sacrificado já se curara da doença e escapara da morte.

Coisa semelhante ocorreu a um comerciante de East Smithfield, cuja esposa estava já nos últimos tempos da gravidez do primeiro filho, e entrou em trabalho de parto, estando doente da peste. Ele não conseguiu encontrar parteira que pudesse prestar ajuda à esposa ou enfermeira que cuidasse dela, e as duas criadas que ele tinha fugiram ambas da patroa. Ele correu de casa em casa como se estivesse fora de si, mas não conseguiu encontrar ajuda. O máximo que conseguiu foi que um vigia, responsável por uma casa infectada que fora fechada, prometesse mandar uma enfermeira na manhã seguinte. O pobre homem, com o coração partido, voltou para casa, ajudou a mulher até onde podia, fazendo o papel de parteiro, deu à luz a criança já morta, e a esposa, dentro de uma hora, morreu em seus braços. Em seu abraço segurou firmemente 0 cadáver da esposa até o amanhecer, quando apareceu o vigia trazendo a enfermeira, como havia prometido. E, ao subir as escadas (pois o homem deixara a porta aberta, ou destrancada), toparam com o homem sentado segurando a esposa nos braços, e tão devastado pela tristeza que morreu dentro de poucas horas, sem apresentar em si nenhum sinal da infecção; mas simplesmente oprimido pelo peso de seu pesar.”

 

 

“Sei que os habitantes das cidades adjacentes a Londres foram muito responsabilizados pela crueldade no tratamento dado aos pobres que fugiam do contágio, aflitos que estavam, e muitas medidas extremamente severas foram tomadas, como se pode ver pelo que relatei acima. Mas não posso me omitir de dizer também que, onde havia margem para a caridade e para o socorro às pessoas, sem que isso implicasse num perigo evidente para os que ajudavam, eles tinha a boa vontade de ajudar e socorrer. Mas, como acontecia de cada cidade ser a juíza de seu próprio caso, os pobres que viajavam fugindo, e se encontravam em situações extremas, muitas vezes eram maltratados e forçados a retornar à cidade. E, isso causou infinitas exclamações e protestos contra as cidades as cidades do interior, e fez com que esse clamor fosse muito difundido entre o povo.”

 

 

“Deve-se aqui, contudo, observar que, depois que os funerais passaram a ser tão numerosos que as pessoas não podiam tocar o sino, lamentar ou chorar, ou vestir o negro umas pelas outras, como faziam antes – não, nem sequer caixões podiam fazer para todos os que morriam –; assim, passado um tempo, a fúria da infecção pareceu ter se intensificado de tal maneira que, em suma, as casas deixaram de ser trancadas. Parecia suficiente que todas as medidas daquele tipo tivessem sido usadas até o momento em que se percebeu que eram inúteis, e que a peste tivesse se propagado com uma fúria irresistível. De modo que, assim como o incêndio do ano seguinte se propagou, e queimou com tal violência que os cidadãos, em desespero, desistiram de seus esforços para extingui-lo, também a peste alcançou enfim tal violência que as pessoas se reduziram a ficar sentadas, em silêncio, olhando umas para as outras, parecendo totalmente entregues ao desespero. Ruas inteiras pareciam despovoadas: não apenas as casas estavam cerradas, como também pareciam esvaziadas de seus habitantes. Portas eram deixadas abertas, as janelas se estilhaçavam com o vento em casas vazias, pois não havia ninguém ali para fechá-las. Em suma, as pessoas começaram a se entregar a seus medos, e a acreditar que todos os procedimentos e métodos eram em vão, e que não se podia ter esperança alguma, pois o único fim possível era uma desolação universal. E foi exatamente no auge desse desespero generalizado que Deus achou por bem suster a própria Mão, e arrefecer a fúria do contágio de tal maneira que chegou a ser surpreendente, assim como fora o seu início, e demonstrou tratar-se de sua própria Mão, e ela acima de tudo, ainda que não sem a agência dos meios, como tratarei de observar quando for adequado.”

 

 

“Mas, retornando às observações específicas que fiz durante essa parte terrível da visitação: cheguei agora, como já disse, ao mês de setembro, que foi o mais terrível dos meses, acredito eu, que Londres já viu. Pois, segundo todos os cálculos que vi a respeito das visitações anteriores ocorridas em Londres, nada foi como aquele mês, com o numero no aviso semanal chegando a quase 40.000 no período de 22 de agosto a 26 de setembro, composto de apenas cinco semanas. (...)

Já era um número prodigioso em si mesmo, mas se eu acrescentasse os motivos que tenho para acreditar que esse cálculo era deficiente, e em que medida era deficiente, o leitor, junto comigo, não hesitaria em acreditar que morreram cerca de dez mil pessoas por semana durante todas aquelas semanas, uma seguida da outra, e uma boa porção desse número durante várias semanas tanto antes quanto depois. A confusão que naquela época reinava entre as pessoas, em especial na City, era inexprimível. O terror finalmente chegara a tal dimensão que a coragem das pessoas encarregadas de levar os mortos embora começou a faltar-lhes; e digo mais, muitos deles morreram, embora houvessem adoecido antes da infecção e se recuperado, e alguns deles caíram mortos enquanto carregavam os cadáveres, até mesmo à beira da vala comum, prontos para ser atirados lá dentro. E essa confusão era maior na City, pois ali se haviam lisonjeado com a esperança de escapar à doença, e acreditavam que o amargor da morte já era passado. Uma carroça, nos contaram que subia por Shoreditch, foi privada dos carroceiros, ou lhe restou um único homem para guiá-la, que morreu em plena rua; os cavalos, seguindo caminho, fizeram tombar a carroça, e deixaram para trás os corpos, alguns arremessados para aquele lado, outros para este, de um modo terrível. Outra carroça foi, ao que parece, encontrada na grande vala de Finsbury Fields, o carroceiro estando morto, ou tendo ido embora e a abandonado, e, como os cavalos corriam próximos demais à vala, a carroça caiu lá dentro, arrastando consigo também os cavalos. Sugeriu-se que o carroceiro teria sido atirado lá dentro também, e que a carroça teria caído sobre ele, já que viram o seu chicote na vala em meio aos corpos, mas isso, suponho, não podia ser afirmado com certeza.

Em nossa paróquia de Aldgate, as carroças de mortos foram muitas vezes, segundo me contaram, encontradas às portas do cemitério, cheias de corpos, mas não havia sineiro, ou carroceiro, ou ninguém mais junto dela. Tampouco nesses casos ou em muitos outros eles sabiam que cadáveres transportavam na carroça, pois estes eram às vezes descidos, por meio de cordas, das janelas e varandas, e às vezes os carregadores os levavam até a carroça, e as vezes eram outras pessoas que carregavam. Tampouco, como um dos próprios homens afirmou, eles se incomodavam em manter alguma conta de quantos cadáveres transportavam.”

 

 

“Aqui devo também acrescentar uma observação que pode ser útil à posteridade, a respeito de que modo as pessoas se infectaram umas às outras. Isto é, não foi apenas dos doentes que a peste foi imediatamente recebida pelos que estavam saudáveis, mas dos que tinham boa saúde também. Explico-me: quando falo dos doentes, refiro-me àqueles que se sabiam doentes, que estavam acamados, em processo de cura, ou que então tinham em si os inchaços e tumores, e sintomas do tipo. Quanto a estes, todos podiam acautelar-se; estavam ou acamados ou em condições tais que não podiam ser ocultadas.

Quando falo dos que tinham boa saúde, me refiro àqueles que tinham sofrido o contágio, e realmente traziam a peste consigo e em seu sangue, mas não mostravam as consequências dela em seus aspectos; não, não chegavam sequer a estar cientes do próprio estado, como acontecia a muitos, por períodos de muitos dias. Estes espalhavam a morte pelo hálito em toda parte, e sobre todos que deles se aproximassem. Mais ainda, suas próprias roupas retinham a infecção, suas mãos infectavam os objetos tocados, em especial se estivessem suados e com o corpo quente, e geralmente costumavam estar suados.

Ora, era impossível saber quem eram essas pessoas, e tampouco elas, às vezes, como já relatei, sabiam estar infectadas. Essas eram as pessoas que tantas vezes tombavam ao chão e desmaiavam pelas ruas; pois era comum que saíssem as ruas até o dia em que morriam, até que, subitamente, tivessem uma crise de suor, sentissem tontura, se sentassem na soleira de uma porta e morressem. É verdade que, vendo-se nessas condições, buscavam com todas as forças voltar à porta da própria casa, ou, em outros casos, conseguiam apenas entrar em casa e imediatamente morrer. Em outros casos ainda, continuavam circulando até que os sinais surgissem em seus corpos, e ainda assim de nada sabiam, e morriam em uma ou duas horas depois de retornarem à casa, tendo estado em boas condições durante todo o tempo em que circulavam. Essa era a gente perigosa; esses eram os que os verdadeiramente sãos deveriam ter temido. Todavia, era impossível saber quem eram.

E esse é o motivo pelo qual, em uma visitação, é impossível prevenir o contágio da peste até mesmo pela mais extrema vigilância humana: ou seja, é impossível diferenciar os infectados dos saudáveis, ou os infectados conhecerem perfeitamente as próprias condições. Eu soube de um homem que manteve contato livremente com os outros em Londres, durante toda a temporada da peste de 1665, e que levava consigo um antídoto ou tônico com o propósito de tomá-lo quando acreditasse correr algum risco; sua regra para reconhecer o risco ou dele ser alertado era tal que jamais encontrei antes ou depois. Até que ponto se pode confiar nela, eu não sei. Ele tinha um ferimento na perna, e sempre que se via em meio a pessoas que não estivessem saudáveis, e sempre que a infecção começava a afetá-lo, ele afirmava poder sabê-lo por aquele sinal, isto é, 0 de que sentia fisgadas em seu ferimento, que empalidecia e ganhava um aspecto branco; dessa forma, assim que ele sentia a fisgada, era hora de retirar-se, ou então de precaver-se, tomando de sua poção, que ele sempre carregava consigo para aquele propósito. Ora, ao que parece, sentia sua ferida fisgar muitas vezes quando estava em companhia de pessoas que se acreditavam saudáveis, e que aparentavam saúde aos olhos dos outros. Mas ele imediatamente se levantava e dizia em alto e bom tom: “Amigos, há alguém aqui nesta sala que está com a peste”, e então imediatamente se afastava daquela companhia. Isso era, de fato, uma fiel advertência para todas as pessoas de que não há como evitar a peste quando promiscuamente se mantém contato com os outros em uma cidade infectada, e de que as pessoas têm a doença quando não o sabem, e de que, da mesma forma, a transmitem às outras pessoas quando elas próprias não sabem que a carregam. E, nesse caso, fechar a fonte ou remover os doentes não é o bastante, a menos que possam voltar e isolar todos aqueles com os quais os doentes tiveram contato antes que eles próprios se soubessem doentes, e ninguém sabe até qual momento do passado essa prática deveria estender-se, ou em que ponto parar, pois ninguém sabe quando, ou onde, ou como, podem ter recebido a infecção, ou de quem.

Esse é o motivo, no meu entendimento, para que muitos falem da corrupção e infecção do ar, e de não precisarem ser cautelosos a respeito dos contatos que mantinham – pois o contágio estaria no ar. Já as vi tomadas de estranhas surpresas e inquietações no tocante a isso. “Nunca me aproximei de nenhum infectado”, diz a pessoa perturbada. “Não tive contato senão com os sãos e saudáveis, mas ainda assim peguei a infecção !” “Estou certo de que fui atingido pelos Céus”, diz outro, e esse é dos mais sérios. Novamente, o primeiro segue exclamando: “Não me aproximei de nenhuma infecção ou pessoa infectada. Tenho certeza de que a infecção está no ar. Ao respirar, inspiramos a morte, e portanto a coisa é um ato de Deus. Não há como resistir.” E isso terminou por fazer com que muitos, já insensíveis ao perigo, se preocupassem menos com ele, e passassem a ser menos cautelosos nos últimos tempos da infecção, quando esta chegou ao auge, do que eram no início. E então, com uma espécie de predestinacionismo turco*, diziam que, se Deus achava por bem abatê-las, pouca diferença fazia permanecerem em casa ou saírem às ruas. Não era possível escapar à doença, e portanto circulavam com arrojo por todos os lugares, entrando mesmo em casas infectadas e mantendo a companhia de gente infectada; visitavam os doentes, e, em suma, deitavam na cama com suas mulheres ou parentes quando estes tinham a infecção. E qual foi a consequência disso, se não a mesma consequência que houve na Turquia, e naqueles países em que se age da mesma forma – isto é, que outra coisa, senão serem eles infectados também, e morrerem às centenas e aos milhares?”

*: Os europeus sempre foram críticos do suposto “fatalismo” islâmico, segundo o qual tudo está escrito e determinado por Deus. – N.E.

 

 

“Sob todas essas observações devo dizer que, embora a Providência parecesse dirigir minha conduta para outro rumo, ainda assim tenho a opinião – e devo deixá-la aqui como uma prescrição – de que o melhor remédio contra a peste é correr para longe dela. Sei que as pessoas buscam se encorajar dizendo que Deus pode nos salvar quando estamos em meio ao perigo, e pode nos alcançar quando já nos imaginamos fora dele. E esse pensamento manteve na cidade milhares de pessoas cujas carcaças foram para as grandes valas depois de encher muitas carroças, e que, se tivessem fugido do perigo, acredito, se poriam a salvo do desastre. Pelo menos, isso é provável.

E se esse aspecto muito fundamental for devidamente considerado pelas pessoas que passarem por ocasiões futuras dessa mesma natureza, estou persuadido de que isso as faria tomar, para lidar com as pessoas, medidas inteiramente diferentes daquelas tomadas em 1665, ou de qualquer medida que tenha sido tomada no exterior, entre as que chegaram ao meu conhecimento. Em uma palavra, elas considerariam a ideia de separar as pessoas em agrupamentos menores, e os distanciariam um do outro em tempo hábil – e não deixariam que um contágio como esse, que é principalmente perigoso para agrupamentos de pessoas, encontrasse um milhão de pessoas num agrupamento só, como anteriormente passou muito perto de acontecer, e certamente aconteceria se a peste aparecesse de novo.

A peste, assim como um grande incêndio, se houver apenas algumas casas contíguas umas às outras onde ela aparecer, pode queimar somente algumas poucas casas. Ou, se começar em uma casa sozinha, ou, como dizemos, solitária, poderá queimar apenas aquela casa solitária em que tiver início. Mas se começar em uma cidade, pequena ou grande, em que as construções são próximas umas das outras, e tiver prosseguimento, lá a sua fúria será maior: devastará o lugar inteiro, e consumirá tudo o que puder alcançar.”

 

 

“A peste é um inimigo formidável, e vem armada de terrores que nem todo homem é forte ou preparado o bastante para suportar.”

Um Diário do Ano da Peste (Parte I), de Daniel Defoe

Editora: Clube Literatura Clássica

ISBN: 978-65-87036-25-0

Tradução: Marcio Hack

Opinião: ★★★☆☆

Link para compra: Clique aqui

Análise em vídeo: Clique aqui

Páginas: 272

Sinopse: Disse o antigo sábio que não há nada de novo debaixo do sol. As experiências humanas repetem-se continuamente ao longo da história: guerras, desastres naturais – e epidemias.

Como depositária das nossas experiências, tanto individuais quanto coletivas, não nos surpreende que, entre os grandes monumentos da literatura, encontremos obras que relatem os traumas e angústias de viver sob a devastação de uma doença.

Entre esses monumentos encontra-se UM DIÁRIO DO ANO DA PESTE, de Daniel Defoe.

Nessa obra, o autor recria ficcionalmente a Grande Peste de Londres de 1665, e, em forma de um diário-reportagem, somos levados a um emaranhado de recordações, anedotas, estatísticas oficiais e relatos de sobreviventes de uma epidemia de peste bubônica que marcou definitivamente a história da Inglaterra. O escritor, aliando rigor jornalístico à exuberância da forma, dramatiza magistralmente aquela que podemos descrever como situação-limite.



“Anoto com tanta riqueza de detalhes este caso particular porque talvez seja valioso para os que vierem depois de mim, caso sejam forçados a passar pela mesma aflição e pelo mesmo impasse, e portanto desejo que este relato seja recebido como uma história de minhas próprias ações, visto que talvez de nada valha para eles saber o que se passou comigo.”

 

 

“No geral, a face das coisas, como dizia, sofrera grandes alterações. O pesar e a tristeza instalavam-se em todos os rostos, e, embora parte das pessoas ainda não se sentisse opressa, todos demonstravam uma preocupação profunda. E, como víamos a aparente aproximação da doença, cada um se via a si mesmo, e á própria família, como vulneráveis ao pior dos perigos. Fosse possível representar aquela época com exatidão para os que a não viram, e passar ao leitor uma noção mais exata do horror que se apresentava por todos os lados, tal horror certamente causaria justas impressões em suas mentes, e os encheria de surpresa. Poder-se-ia muito bem dizer que Londres se afogava em lágrimas. Os que choravam os mortos em verdade não circulavam pelas ruas; os gritos das mulheres e crianças às janelas, e às portas das de suas casas, onde estavam seus parentes mais queridos, talvez moribundos, ou simplesmente mortos, eram coisa tão frequente de se ouvir, quando andávamos pelas ruas, que o som bastava para traspassar o coração mais robusto do mundo. Lágrimas e lamentos eram vistos em quase todas as casas, em especial na primeira parte da visitação*, pois, mais para o final, os corações dos homens haviam endurecido, e a morte estava tão constantemente diante dos seus olhos que eles não se preocupavam muito com perderem os amigos, pois esperavam que eles próprios seriam convocados na hora seguinte.”

*: Visitation: Deus “visita” os homens trazendo-lhes o seu castigo. Optou-se, na tradução, por “visitação”, vocábulo pouco usual (como a própria palavra inglesa), mas dicionarizado e amplamente atestado. – N. T.

 

 

“As apreensões das pessoas foram da mesma forma estranhamente intensificadas pelo engano característico daquele tempo: me parece que as pessoas, por meio de qual princípio não consigo imaginar, estavam mais viciadas em profecias, conjurações astrológicas, sonhos e histórias da carochinha do que estavam antes ou ficariam depois. Se esse infeliz humor foi originalmente causado pelas tolices de alguns dos com eles lucravam, isto é, ao imprimir previsões e prognósticos, isso não sei dizer.”

 

 

“Além dessas coisas públicas, havia os sonhos das velhas. Ou, devo dizer, as interpretações que as velhas faziam dos sonhos alheios; e estas fizeram uma abundância de gente chegar até a perder o juízo. Uns ouviam vozes que os avisavam para fugir, pois haveria em Londres uma tal peste que os vivos não teriam como enterrar os mortos. Outros viam aparições nos ares, e devo ter a liberdade de dizer de ambos – espero que sem faltar com a caridade – que ouviam vozes que nunca falavam, e enxergavam visões que jamais apareciam. A imaginação das pessoas realmente se descontrolara e ficara possuída, e não era de espantar se elas, que continuamente observavam as nuvens, nelas enxergassem formas e figuras, representações e aparições, que não tinham substância outra que a dos ares e vapores. Aqui, nos diziam ter visto uma espada flamejante erguida por mão que emergia de uma nuvem, cuja ponta pendia diretamente sobre a cidade. Ali, viam cortejos fúnebres, e caixões que pairavam nos ares, levando gente pra enterrar. E ali novamente viam montes de cadáveres insepultos, e coisas semelhantes, conforme a imaginação daquelas pobres pessoas aterrorizadas lhes fornecia matéria-prima com que trabalhar.

Assim a imaginação hipocondríaca representa

Navios, exércitos, batalhas no firmamento

Até que os olhos firmes as exalações dissolvam

E tudo à sua matéria-prima, as nuvens, reduzam24

 

Eu poderia encher este livro com os estranhos relatos que tais pessoas faziam todos os dias do que tinham visto. E todos tinham tanta certeza de ter visto o que fingiam ver que não havia como contradizê-los, sem com isso faltar com a amizade, ou ser visto como rude e descortês por um lado, e iconoclasta e de mente fechada por outro. Certa vez, antes que a peste tivesse início (excetuando, como eu disse, os mortos de St. Giles), creio ter sido em março, ao ver uma multidão passando na rua, juntei-me a ela para satisfazer minha curiosidade, e vi que todas as pessoas encaravam os ares, para ver o que uma mulher lhes dizia aparecer claramente aos seus olhos: um anjo com vestes brancas, trazendo na mão uma espada flamejante, agitada ou brandida sobre o alto da própria cabeça. Ela descreveu cada parte da figura, criando uma imagem vívida. Mostrou-lhes o movimento e a forma, e as pobres pessoas aceitaram o que era dito com muita avidez, e muita prontidão. Sim, vejo claramente, disse um. Lá está a espada, só não vê quem não quer. Um outro viu o anjo. Um viu o rosto do mesmo anjo, e gritou: Que gloriosa criatura! Um via uma coisa, outro via outra. Observei com tanta avidez quanto os outros, mas talvez sem tanta solicitude para sofrer sugestões, e, como já disse, em verdade nada vi exceto por uma nuvem branca, iluminada de um lado pelo brilho do sol que lhe chegava pelo outro. A mulher esforçou-se para me mostrar o anjo, mas não conseguiu obrigar-me a confessar que o tivesse visto, o que, de fato, se tivesse confessado, seria mentira. Mas a mulher, voltando-se para mim, olhou-me na cara, e imaginou que eu ria, e nisso também ela foi ludibriada pela imaginação, pois a verdade é que não ri, e vinha, ao contrário, mui seriamente refletindo sobre como aquelas pobres pessoas estavam aterrorizadas pela força da sua própria imaginação. Contudo, ela me deu as costas, me chamou de sujeito profano, e de escarnecedor; disse-me que era o tempo da Fúria de Deus, e que julgamentos temíveis se aproximavam, e que desprezadores como eu deviam maravilhar-se e perecer.25

22. Jonas 3, 4. N T.

23. Na Guerra dos Judeus VI, 5, 3, Flávio Josefo relata que, poucos anos antes da destruição de Jerusalém, apareceram muitos presságios e sinais. Entre eles, certo Jesus, filho de Ananias, começou a profetizar a queda de Jerusalém na Festa dos Tabernáculos. Levado ao procurador romano, fustigado e despido de suas roupas, foi solto, tido como louco, continuando a lamentar pela cidade: “Mas ele, até o tempo da guerra, não se aproximava de nenhum dos cidadãos nem fora visto falando, mas todo dia, como uma imprecação premeditada, lamentava: 'Ai, ai de Jerusalém!' Nem maldizia os que lhe espancavam cotidianamente nem era afável com quem lhe dava comida: a única resposta para todos era esse melancólico presságio.”) – NE.

24 “So Hypocondriae Fancy's represent / Skips, Armies, Battles, in the Firmament; / Till steady Eyes, the Exhalations solve, / And all to its first Matter, Cloud, resolve”. Defoe cita os versos de seu próprio poema, A New Discovery of na Old Intreague (1691). – NT.

25. Wonder andperish. Alusão a Atos 13, 41, segundo a+luthorised Version (King James Bible): Behold, yee despisers, and wonder, andperis/L “Vede, ó desprezadores, e maravilhai-vos, e perecei.” NE.

 

 

“Um mal sempre abre caminho para outro: esses terrores e apreensões das pessoas as levaram a mil atos de fraqueza, tolice e malignidade, para cujo encorajamento não faltava um tipo de gente realmente maligno.”

 

 

“Mas até mesmo aquelas meditações saudáveis e justas – que, se fossem levadas com correção, teriam felizmente levado as pessoas a caírem de joelhos, confessarem os seus pecados, e voltarem o olhar para o piedoso Salvador, pedindo perdão, implorando que tivesse compaixão delas, naquele tempo da sua aflição, de tal forma que poderíamos ser como uma segunda Nínive33 – causavam um extremo muito contrário entre as pessoas comuns, que, ignorantes e estúpidas em suas reflexões assim como antes eram estouvadas e de uma maldade estúpida, agora eram levadas pelo seu temor aos extremos da tolice, e, como eu já disse, corriam para os feiticeiros e bruxos, e buscavam toda espécie de impostor, para saber o que lhes aconteceria, os quais alimentavam os seus medos, e as mantinham sempre alarmadas, e atentas, com o propósito de iludi-las, e bater-lhes as carteiras. Estavam, pois, loucas quando corriam atrás de curandeiros e charlatães, e de todas as velhas do ofício, buscando antídotos e remédios, fazendo estoque de uma tal imensidão de pílulas, poções e preservativos, como eram chamados, que não só gastavam seu dinheiro, como também se envenenavam de antemão, por medo do veneno da infecção, e preparavam seus corpos para a peste, em vez de se preservarem contra ela. Por outro lado, é incrível, e difícil de imaginar, a que ponto os postigos das casas e as esquinas das ruas estavam recobertos de avisos médicos e panfletos de sujeitos ignorantes, que se fingiam e brincavam de médicos, e convidavam as pessoas a vir até eles para receber remédios; avisos que normalmente começavam com floreios assim: “INFALÍVEIS pílulas preventivas contra a peste. NÃO TEM ERRO: preservativos contra a infecção. Tônico SOBERANO contra a corrupção dos ares. Instruções EXATAS para o tratamento do corpo no caso de infecção: pílulas antipestilenciais. INCOMPARÁVEL poção contra a peste, nunca antes vista Um remédio UNIVERSAL para a peste. O ÚNICO tônico EFICAZ contra a peste. O ANTÍDOTO IMPERIAL contra todos os tipos de infecção.” E tantos mais que eu não saberia contar. E, se soubesse, precisaria de um livro inteiro para anotá-los.”

33. Após ouvirem a pregação de Jonas, o povo ninivita, desde o mais pobre até o rei, se arrependeu e se converteu. Cf. Jonas 3:5-10. N E.

 

 

“Tudo isso efeito do rebuliço que as pessoas tiveram, depois que entre elas começou a correr pela primeira vez a noção de que a peste batia às portas. Podemos dizer que isso aconteceu por volta do dia de São Miguel36 de 1664, porém mais particularmente depois que os dois homens morreram em St. Giles, no início de dezembro. E novamente após mais um alarme em fevereiro. Pois quando a peste se espalhava com toda evidência, eles logo começaram a perceber a tolice que era confiar naquelas criaturas inúteis, que lhes haviam arrancado dinheiro por meio de fraude; e aí seus medos começaram a trabalhar em outra direção, isto é, a da perplexidade e da estupidez, não sabendo que caminho tornar, ou o que fazer, para se ajudarem ou conseguirem algum alívio. Corriam de lá para cá, da casa de um vizinho para a casa de outro, e até mesmo pelas ruas, de porta em porta, repetindo o grito: Senhor, tende piedade de nós, o que haveremos de fazer?

De fato, os pobres eram dignos de dó num aspecto particular, no qual tiveram pouco ou nenhum socorro, e que desejo mencionar num espírito de sério respeito e séria reflexão; um aspecto que talvez nem todos os leitores apreciem: isto é, que a morte agora começava não só, como podemos dizer, a pairar sobre as cabeças de todos, como também a espiar suas casas e quartos, e a olhar-lhes nos olhos. Embora pudesse haver alguma estupidez, e torpor da mente, (e houve, em grande medida), ainda assim havia uma medida muito grande de simples alarme, que soava no mais profundo da alma, se é que assim posso falar a respeito dos outros. Muitas consciências foram despertadas, muitos corações endurecidos se desfizeram em lágrimas, muitas confissões penitentes foram feitas de crimes há muito ocultados. Qualquer cristão teria a alma ferida ao ouvir os gemidos de morte de muitas criaturas desesperadas, e ninguém ousava se aproximar para oferecer-lhes conforto: muitos roubos, muitos assassinatos foram naquele tempo confessados em voz alta, sem que ninguém sobrevivesse para registrar a prestação de contas. Podia-se ouvir até mesmo nas ruas, quando passávamos por elas, as pessoas pedindo misericórdia a Deus por meio de Jesus, e dizendo, fui ladrão, fui adúltero, fui assassino, e coisas semelhantes. E ninguém ousava parar e investigar minimamente tais coisas, ou então confortar as pobres criaturas, que, angustiadas em corpo e alma, assim gritavam. Alguns dos ministros realmente visitaram os doentes no início, e por pouco tempo, mas era coisa que não havia como continuar fazendo. Entrar em algumas das casas seria morte certa. Os próprios coveiros dos mortos, as mais endurecidas criaturas da cidade, às vezes se amedrontavam, e ficavam tão aterrorizados que não ousavam entrar nas casas, onde famílias inteiras eram dizimadas ao mesmo tempo, e onde as circunstâncias eram mais particularmente horríveis, como acontecia no caso de algumas. Mas isso se deu no primeiro surto da enfermidade.

O tempo os acostumou a tudo, e depois disso não havia lugar em que não se arriscassem a entrar, sem hesitações, como terei ocasião de descrever longamente no futuro.

Estou supondo agora que a peste havia iniciado, e que os magistrados haviam começado a considerar seriamente as condições em que se encontravam as pessoas. Sobre o que fizeram no que diz respeito à regulamentação dos habitantes, e também das famílias infectadas, disso falarei separadamente. Mas no que diz respeito à questão da saúde, é apropriado mencionar aqui que, havendo atentado para o humor estulto do povo, que o fazia correr atrás de charlatões e curandeiros, feiticeiros e videntes, coisa que faziam como descrito acima, chegando ao ponto da loucura, o Senhor Prefeito, um cavalheiro muito sóbrio e muito religioso, nomeou médicos e cirurgiões para o socorro dos pobres, quero dizer, dos pobres infectados, e, particularmente, ordenou que o Colégio de Médicos publicasse receitas de remédios baratos para os pobres que se encontravam em todas as circunstâncias da enfermidade. Esta, de fato, foi uma das coisas mais caridosas e judiciosas que se podiam fazer naquela época, pois assim se fez com que os pobres passassem a assombrar menos as portas de todos os distribuidores de receitas, e com que engolissem cegamente, e sem reflexão, veneno por remédio, e morte em vez de vida.”

36. 29 de setembro. N E.

 

 

“Mas retorno ao assunto das famílias infectadas e trancadas em casa pelos magistrados. Não é possível exprimir o sofrimento de tais famílias e era geralmente de tais casas que vinham os gritos e brados das pobres pessoas, amedrontadas e até mesmo aterrorizadas até a morte pela visão do estado em que se encontravam sues familiares mais queridos, e pelo terror de estarem aprisionadas como estavam.

Eu me lembro, e enquanto escrevo esta história parece-me poder ouvir o som, de uma certa senhora com uma única filha – uma jovem donzela de cerca de dezenove anos – e que possuía uma fortuna muito considerável. Eram as únicas habitantes da casa em que moravam. A senhorita, a mãe e a criada tinham viajado por algum motivo, não lembro qual, pois a casa não estava trancada. Mas cerca de duas horas depois que voltavam para casa, a senhorita reclamou de não estar se sentindo bem. Passados outros quinze minutos, vomitou e sentiu uma violenta dor de cabeça. “Queira Deus”, disse a mãe, terrivelmente assustada, “que minha filha não tenha a infecção!” A dor de cabeça tendo aumentado, a mãe mandou que se aquecesse a cama, e decidiu ali deitar a filha, e preparou coisas que ajudassem a filha a suar – o que era o tratamento habitualmente usado quando começavam as primeiras apreensões da enfermidade.

Enquanto a cama era aquecida, a mãe tirou as roupas da moça, e justo quando ela foi colocada na cama, a mãe, examinando o corpo da filha com a ajuda de uma vela, imediatamente descobriu os fatídicos sinais da doença na parte de dentro de suas coxas. A mãe, não conseguindo se conter, atirou a vela ao chão e gritou de maneira tão terrível que bastaria para levar o horror ao mais intrépido coração do mundo. E tampouco foi apenas um grito, ou um brado, mas, tendo o terror se apossado do seu espírito, ela primeiramente desmaiou, e depois se recuperou, e depois correu pela casa inteira, subindo e descendo as escadas, como louca, e de fato estava louca, e continuou a guinchar e a berrar por muitas horas, totalmente sem juízo, ou ao menos sem o governo dos sentidos. Segundo me disseram, ela nunca mais voltou inteiramente a si depois disso. Quanto à jovem donzela, a partir daquele momento já era um cadáver, pois a gangrena que ocasiona as manchas havia se espalhado por todo o seu corpo, e ela morreu em menos de duas horas. Mas a mãe continuou a berrar, não sabendo mais nada do que acontecia com a filha, isso muitas horas depois que a filha já havia morrido. Isso já faz tanto tempo que não sei dizer com certeza, mas creio que a mãe nunca mais se recuperou, e morreu duas ou três semanas depois.”

 

 

“Digo que já tinham cavado diversas valas em outro terreno quando a enfermidade começou a espalhar-se por nossa paróquia, e especialmente quando as carroças dos mortos começaram a circular, o que não aconteceu, em nossa paróquia, antes do início de agosto. Em cada uma dessas valas, tinham colocado talvez cinquenta ou sessenta corpos; depois disso fizeram buracos maiores, onde enterraram todos os que a carroça tinha trazido em uma semana, o que, quando estávamos na metade de agosto, variava entre 200 e 400 por semana; e não podiam simplesmente cavar buracos maiores, devido à ordem dos magistrados, que os obrigava a deixar corpos acima dos sete palmos subterrâneos. E como a água aparecia a aproximadamente cinco metros de profundidade, eles não poderiam simplesmente, como eu dizia, colocar mais mortos em uma vala. Mas agora, no início de setembro, com a peste se alastrando terrivelmente, e o número de enterros em nossa paróquia aumentando e até mesmo superando a quantidade de mortos enterrados de qualquer paróquia de Londres que fosse menor ou do mesmo tamanho, ordenaram que aquele apavorante golfo fosse cavado – pois era mais um golfo do que uma vala.

Tinham imaginado que essa vala seria suficiente para um mês ou mais do que isso quando a cavaram, e alguns culparam os fabricários* por tolerarem coisa tão medonha, dizendo-lhes que estavam se preparando para enterrar a paróquia inteira, e coisas afins. Mas o tempo fez transparecer que os fabricários conheciam as condições da paróquia melhor do que os que reclamaram. Pois, a vala tendo sido concluída no dia 4 de setembro, creio eu, começaram a enterrar no dia 6, e quando chegou o dia 20 – um período de apenas duas semanas – haviam jogado lá dentro 1.114 corpos quando foram obrigados a tapá-la, sendo que os corpos haviam alcançado a linha dos sete palmos subterrâneos. Não duvido que existam alguns anciãos até hoje vivos nesta paróquia que podem confirmar o fato, e podem mostrar até mesmo o local do cemitério em que a vala está, melhor do que eu poderia. A marca da vala durante muitos anos também permaneceu visível na superfície do cemitério, estando em comprimento paralela à passagem que ladeia o muro oeste do cemitério, que começa em Houndsditch e vai novamente para leste, entrando por Whitechapel, saindo perto da estalagem das Três Freiras.

Foi por volta do dia 10 de setembro que a minha curiosidade me levou, ou, melhor dizendo, me impeliu, a ir ver novamente essa vala, quando haviam sido enterradas nela quase 400 pessoas. E não me contentei com vê-la à luz do dia, como fizera antes, pois assim não haveria nada a ser visto senão a terra solta; pois todos os corpos jogados lá dentro eram imediatamente cobertos de terra por aqueles que eram chamados de enterradores,46 que em outras épocas eram chamados de carregadores. Assim, resolvi ir à noite e ver alguns mortos sendo atirados lá dentro.

Havia uma ordem estrita de impedir as pessoas de se aproximar daquelas valas, e isso era apenas para prevenir a infecção. Mas depois de algum tempo essa ordem tornou-se mais necessária, pois pessoas infectadas e próximas do fim, e também delirantes, corriam até essas valas, envoltas em cobertores ou tapetes, e se jogavam lá dentro, e, como dizia o povo, se enterravam a si mesmas. Não posso dizer que os funcionários tenham permitido deliberadamente que alguma pessoa ficasse lá dentro; mas ouvi dizer que, uma grande vala de Finsbury, na paróquia de Cripplegate, estando aberta para o lado dos campos, pois ainda não havia muros em volta, muitos vinham e se atiravam lá dentro, e lá morriam, antes que alguma terra fosse jogada em cima deles. E que quando chegavam para enterrar outros corpos e os encontravam lá, estavam já inteiramente mortos, embora ainda não frios.

Isso pode servir um pouco para descrever a terrível situação que encontrei naquele dia, embora seja impossível dizer algo capaz de passar uma verdadeira ideia de como era a situação para quem não a viu, exceto por isto: que era, de fato, muito, muito, muito apavorante, e tal que língua nenhuma seria capaz de exprimir.

Permitiram a minha entrada no cemitério porque eu conhecia o sacristão que trabalhava ali; o qual, embora não tenha de forma alguma se negado a me atender, contudo tentou com fervor me persuadir a não fazê-lo, dizendo-me com muita seriedade (pois era um homem bom, religioso e sensato) que era de fato trabalho e dever deles se aventurar, e correr todos os riscos, e que nisso eles poderiam ter a esperança de ser preservados; mas que eu não tinha nada que me chamasse claramente a ir, exceto pela minha curiosidade, a qual, disse ele, acreditava que eu não fingiria ser suficiente para justificar que eu corresse aquele risco. Disse a ele que andava aflito para ir ver, e que talvez fosse algo instrutivo, e talvez não inútil. “Assim”, disse o bom homem, “se esse é o motivo de vossa ousadia, por Deus, entrai, pois, tenha certeza que vos será um sermão, talvez o melhor que já ouvistes em vossa vida. É uma visão que fala”, disse ele, “e que tem uma voz, sim, uma voz alta, para nos convocar a todos ao arrependimento.” E, dizendo isso, abriu a porta e disse: “Ide, se quiserdes.”

O discurso dele estremecera um pouco a minha determinação, e fiquei hesitando por um bom tempo, mas justamente nesse tempo vi duas tochas se aproximando do final da Minoritas,47 e ouvi o sineiro, e depois apareceu a carroça dos mortos, como a chamavam, vindo pelas ruas. Então não pude mais resistir ao meu desejo de ver, e entrei. Não havia ninguém, ao que pude perceber de início, no cemitério, ou que estivesse entrando nele, exceto pelos enterradores e pelo sujeito que dirigia a carroça, ou melhor dizendo, que guiava cavalo e carroça. Mas quando se aproximaram da vala, viram um homem que ia e voltava, encoberto por um manto marrom, e fazia movimentos com as mãos sob o manto, como se estivesse em grande agonia; os coveiros imediatamente o cercaram, supondo que se tratasse de uma daquelas pobres criaturas, delirantes ou desesperadas, que costumavam tentar, como já disse, se enterrar a si mesmas. Ele nada disse quando passei por ali, mas duas ou três vezes gemeu muito alto e profundamente, e suspirou como se o coração lhe estivesse a ponto de se fazer em pedaços.

Quando se aproximaram dele, os enterradores logo descobriram que não se tratava de uma pessoa infectada e em desespero, como observei acima, ou de uma pessoa mentalmente desequilibrada – mas sim de alguém oprimido por um fardo de sofrimento deveras pavoroso, estando a sua esposa e muitos dos seus filhos todos na carroça que acabara de chegar junto com ele, que a seguira, agoniado, esmagado pela tristeza. Ele se lamentava vigorosamente, como era fácil de ver, mas com uma espécie de desolação viril, que não podia encontrar vazão em lágrimas; e calmamente desafiando os enterradores a que o deixassem em paz, disse que ficaria até ver os corpos atirados lá dentro, depois do que iria embora, de modo que eles desistiram de importuná-lo. Mas logo que a carroça foi colocada de ré e os corpos atirados promiscuamente à vala, o que foi para ele uma surpresa, pois ele ao menos esperava que seriam pousados respeitosamente lá dentro embora depois tenha entendido que tal coisa era impraticável –, como eu dizia, assim que viu aquilo, gritou, incapaz de conter-se. Não pude ouvir o que dizia, mas vi que recuou dois ou três passos e caiu para trás, desmaiado. Os coveiros correram até ele e o ergueram, e em pouco tempo voltou a si; eles o levaram à Pye-Tavern, do outro lado do final da rua Houndsditch, onde, ao que parece, o homem era conhecido, e onde cuidaram dele. Ele lançou um novo olhar para dentro da vala ao ir embora, mas os enterradores haviam encoberto os corpos tão imediatamente com a terra que jogaram lá dentro que, embora iluminação não faltasse, pois havia lanternas, e velas nas lanternas, que durante toda a noite circundavam as margens da vala – lanternas sobre montes de terras, sete ou oito deles, talvez mais que isso – ainda assim, nada pôde ser visto.

Foi mesmo uma cena pesarosa, e que me afetou quase tanto quanto todo o resto. Mas a outra cena foi medonha e cheia de terror. A carroça trazia dezesseis ou dezessete corpos; alguns estavam enrolados em lençóis de linho, outros em trapos, outros ainda por pouco não estavam nus, ou tão frouxo estava o tecido que os cobria que se separava dos corpos quando estes eram atirados da carroça, e caíam inteiramente nus sobre os outros; mas a questão não era muito séria para eles, ou a indecência muito grande para qualquer outra pessoa, visto que estavam todos mortos, e que seriam amontoados na cova comum da humanidade, como podemos chamá-la, pois não se faziam distinções, e os pobres iam junto com os ricos. Não havia outro modo de enterrar, e nem era possível que houvesse, pois não era possível conseguir caixões que bastassem para os prodigiosos números dos que eram abatidos por tal calamidade.

Correu uma notícia que gerava escândalo a respeito dos coveiros: a de que, se um cadáver lhes era entregue decentemente atado, como dizíamos então, numa mortalha com nós na cabeça e nos pés, coisa que alguns faziam, e geralmente em linho de qualidade; como eu dizia, correu a notícia de que os coveiros eram perversos a ponto de desvestir os corpos na carroça e enterrá-los inteiramente nus. Mas como não me é fácil atribuir tal vilaneza aos cristãos, e ainda numa época tão cheia de terrores como aquela, só o que posso fazer é relatar sem afiançamentos.”

*: Responsáveis pela administração das igrejas. N E.

46. Buryers. Há um trocadilho com bearers, a seguir. A palavra inglesa para “coveiro”, diga-se, é gravediggrer. – NE.

47. Rua da City, cujo nome deriva da antiga abadia que abrigou irmãs clarissas (minoritas) até a reforma de Henrique VIII. – NE.

 

 

“Mal se consegue acreditar nos casos pavorosos que todos os dias aconteciam nesta ou naquela família. Pessoas no furor da enfermidade, ou atormentadas pelos próprios inchaços – coisa que era de fato intolerável –, perdendo o controle de si mesmas, delirantes e enlouquecidas, e muitas vezes cometendo violência contra si mesmas, jogando-se das janelas, atirando em si mesmas &c.; mães que em sua loucura assassinavam os próprios filhos, algumas morrendo de simples tristeza, que era como uma paixão; outras morriam de simples susto e surpresa, sem sofrer infecção nenhuma; outras o pavor idiotizara e as fazia cometer tolas loucuras; havia algumas que o pavor desesperava e tornava lunáticas, outras ainda que por ele eram levadas a uma loucura melancólica.

A dor do inchaço era, em especial, muito violenta, e para alguns, intolerável. Dos médicos e cirurgiões pode-se dizer que torturaram muitas pobres criaturas até a morte. Os inchaços em alguns endureciam, e eles aplicavam violentos emplastros para extraí-los, ou cataplasmas para rompê-los, e quando esses não funcionavam, cortavam e escarificavam os inchaços de um modo terrível. Em alguns, tais inchaços endureciam em parte pela força da enfermidade, e em parte pelas tentativas muito violentas de extraí-los, e endureciam tanto que não havia instrumento capaz de cortá-los; nesses casos, queimavam-nos com substancias cáusticas, de modo que muitos morreram delirantes de loucura com esse tormento, e alguns durante o próprio procedimento feito sobre o inchaço. Nessas aflições, alguns, por não terem quem os segurassem na cama, ou quem lhes cuidasse, tratavam-se com as próprias mãos, como mencionado acima. Alguns disparavam pelas ruas, às vezes nus, e corriam diretamente para o rio, se não fossem detidos pelo vigia ou por outras autoridades, e mergulhavam n'água onde quer que a encontrassem.

Muitas vezes sentia-me traspassado até a alma ao ouvir os gemidos e gritos dos que sofriam tais tormentos, mas das duas formas que a doença assumia, essa era considerada a mais promissora de toda a infecção, pois se fosse possível deter tais inchaços, e rompê-los e fazer com que escorressem, ou, então, como dizem os cirurgiões, digeri-los, o paciente geralmente se recuperava. Já os que, como a filha daquela senhora, eram atingidos pela morte logo no início, e nos quais os sinais da doença apareciam, muitas vezes seguiam vivendo sem perceberem nada, com tranquilidade e indiferença, até pouco antes de morrerem, e alguns até o momento em que caíam mortos, como muitas vezes acontece nas apoplexias e nas epilepsias. Estes se sentiam mal repentinamente, e corriam até um banco ou a um muro, ou até qualquer lugar conveniente que se oferecesse, ou até às próprias casas se fosse possível, como mencionei anteriormente, e lá se sentavam, desmaiavam e morriam. Esse tipo de morte era praticamente o mesmo que acontecia com aqueles que morrem de gangrenas comuns, que morrem desmaiando, e, por assim dizer, se vão como que sonhando. Os que morriam assim tinham muito pouco conhecimento de estarem infectados até que a gangrena estivesse espalhada por todo o corpo; e tampouco os próprios médicos conseguiam saber ao certo o que havia acontecido com elas até que lhe abrissem os peitos ou outras partes do corpo e vissem os sinais.

Nesse tempo nos contavam uma imensa quantidade de histórias pavorosas sobre as enfermeiras e os vigias que cuidavam dos moribundos. Isto é, enfermeiras contratadas, que cuidavam dos infectados, e que os tratavam de maneira bárbara, deixando que passassem fome, ou que os sufocavam, ou que por outros meios apressavam o seu fim, isto é, os assassinavam. E dos vigias, postos para guardar as casas que eram trancadas quando lá dentro restava apenas uma pessoa, que talvez estivesse doente e de cama, dizia-se que invadiam a casa e assassinavam aquela pessoa, e imediatamente a jogavam para dentro da carroça dos mortos! E assim foram para a cova, seus corpos mal tendo esfriado.

Não posso negar que alguns assassinatos assim foram cometidos, e acho que dois culpados foram presos, mas morreram antes que pudessem ir a julgamento. E ouvi dizer que três outros, em momentos distintos, foram perdoados por assassinatos dessa espécie. Mas devo dizer que não acredito nem um pouco que este fosse um crime tão comum quanto alguns desde então insistem em dizer, e tampouco parecia ser um ato muito racional nos casos em que as pessoas estavam doentes a ponto de não conseguirem se defender, pois estas pessoas raramente se recuperavam, e não havia a tentação de cometer um assassinato, ao menos não uma tentação que correspondesse ao fato, quando se tinha certeza de que as pessoas morreriam em tão pouco tempo, sem chance de sobreviverem.

Que muitos roubos e práticas iníquas foram cometidos até mesmo naquela época terrível eu não nego. O poder da cobiça era em alguns tão forte que corriam todos os riscos para poder roubar e saquear. E particularmente nas casas em que todas as famílias ou todos os habitantes já haviam morrido e sido levados, eles invadiam, não importando a que preço, e sem considerar o perigo da infecção, e tiravam até as roupas dos cadáveres e os lençóis de sob os corpos.

Este, suponho, deve ter sido o caso de uma família de Houndsditch, em que um homem e a filha – o resto da família já tendo sido, suponho, levado embora pela carroça dos mortos – foram encontrados inteiramente nus, cada um em seu quarto, mortos e deitados no chão, e as roupas de cama, do que se imagina que tenham sido recolhidas pelos ladrões, tinham desaparecido, e não se encontravam em lugar nenhum.”