quinta-feira, 28 de novembro de 2019

O Estado na teoria política clássica: Platão, Maquiavel e os contratualistas – Doacir Gonçalves de Quadros

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-109-6
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 140
Sinopse: Com base nas ideias dos principais pensadores clássicos da política, esta obra serve como um guia introdutório à teoria política clássica. Veremos aqui grandes nomes como Platão, Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau e mostraremos como esses pensadores e suas propostas de reforma social e política influenciaram o governo da época em que viviam, defendendo formas de organizar o Estado politicamente para resolver conflitos de maneira harmônica e pacífica. Ao final desta leitura, você entenderá como essas ideias continuam válidas e atuais e por que esses pensadores seguem inspirando-nos.


“Não nos referimos (neste livro) à política restrita à prática partidária, como somos levados a entendê-la atualmente, mas no sentido de organização política como instrumento para canalizar os diferentes interesses defendidos pelos distintos grupos que compõem uma sociedade. (...)
João Ubaldo Ribeiro (Política: quem manda, por que manda, e como manda, 1985,) definiu o termo política de maneira simples e esclarecedora ao indicá-lo como portador de duas características que lhe são singulares: um interesse e uma decisão. Explicamos: por exemplo, vamos imaginar que você pretende influenciar o comportamento de outra pessoa, ou seja, você tem um interesse: levá-la a adotar uma determinada conduta ou a tomar uma decisão que seja de seu interesse. Se você conseguiu tal resultado, é porque você é quem tem, ou teve, poder na relação.
O termo política, assim conceituado, permite investigarmos quem tem poder, quais são as formas para se chegar ao poder e quais são as maneiras disponíveis para exercê-lo. Quando investigadas, as relações de poder revelam que é possível encontrar em toda e qualquer sociedade algumas fontes, ou recursos, úteis para se exercer o poder, as quais nos remetem à seguinte ideia: se dispomos de uma dessas fontes, somos potencialmente poderosos (Bobbio; Matteucci; Pasquino, Dicionário de política, 2004, p. 936). Entre algumas das fontes, ou recursos, que irradiam poder e são valorizadas atualmente, encontram-se os atributos pessoais (carisma, liderança, personalidade, beleza etc.), o conhecimento, a força, a informação, o prestígio, a popularidade, o dinheiro e as posses, bem como a ocupação de um posto nas organizações ou instituições sociais. Você já observou que é muito comum considerarmos como poderosas pessoas que possuem um ou mais recursos ou fontes de poder? E, ainda, que temos a percepção de que, pela posse de tais recursos, elas conseguem influenciar o comportamento de outras pessoas, levando-as a decidir em favor de quem detém o poder?
Essa percepção também vale para as pessoas potencialmente poderosas que ocupam postos ou cargos importantes dentro das hierarquias estabelecidas internamente nas instituições sociais presentes em toda e qualquer sociedade. No estudo da política, a análise de tais instituições e estruturas hierárquicas coloca o poder em evidência (Bobbio; Matteucci; Pasquino, 2004, p. 941). Referimo-nos a instituições sociais como a Igreja, a escola, a polícia, os partidos políticos, o governo, o Estado, bem como as que controlam meios de comunicação, entre outras. Nessas instituições, encontramos, respectivamente, o padre, o professor, o policial, o político, o presidente e o jornalista como pessoas que ocupam determinado cargo dentro da hierarquia interna daquelas instituições e são potencialmente poderosas, porque têm a capacidade, ou melhor, são virtualmente capazes de influenciar o comportamento de seus fiéis, alunos, seguidores, simpatizantes, leitores etc. Esse poder potencial, entendido como a habilidade de conseguir influenciar o comportamento de outras pessoas, reveste-se de uma virtualidade, de uma capacidade que esteja em condições de ser exercida a qualquer momento (Lebrun, O que é poder, 1984).
Você pode, então, perguntar: mas por que essas pessoas se colocam como potencialmente poderosas? É importante saber que sociologicamente as instituições sociais cumprem uma função importante perante o todo social. Segundo os cientistas sociais, as instituições sociais têm a função de fazer a programação do comportamento dos indivíduos, e tal programação é imposta pela sociedade. Ou seja, elas atuam no processo de socialização do indivíduo, de modo que ele aprende a ser um membro da sociedade. O sentido usual para o termo instituição é representado por uma organização formada por pessoas. Por exemplo, a instituição social família é a organização de determinadas pessoas que têm em comum o parentesco, e tal organização tem como função programar e controlar o comportamento da criança que ali chega para que ela se insira na defesa dos valores e dos comportamentos aceitos como corretos pela sociedade.”


“O cientista político canadense David Easton (Uma teoria de análise política, 1968), em seu livro Uma teoria de análise política, esclarece bem que a função do governo no âmbito político é receber os inputs sociais (as demandas) para, posteriormente, gerar os outputs (as decisões). O governo administra o Estado a partir do recolhimento das demandas e interesses provenientes dos grupos sociais que formam o todo social e processa as informações e as analisa para tomar as decisões. Depois de aprovadas as deliberações decorrentes do processo das demandas, as decisões tomadas passam a influenciar todos os membros da sociedade. Tal processo — administrado pelo governo — é designado como processo político e está presente em toda a sociedade, de modo que “Queiramos ou não, estamos submetidos a um processo político que penetra em todas as nossas atitudes, em toda a nossa maneira de ser ou de agir (Ribeiro, 1985, p. 21).
Vale destacar que esse processo político a que estamos submetidos tem um caráter estritamente público e, além disso, se coloca como socialmente necessário. Explicamos por quê: é público no sentido de que o processo político serve como um instrumento para se formularem decisões de interesse geral, comuns, e, quando as decisões são tomadas pelos governantes, elas impactam o comportamento de todas as pessoas que fazem parte da sociedade; é necessário porque tem como função organizar politicamente a sociedade, uma vez que os diferentes interesses pertencentes aos mais variados grupos inseridos no interior da sociedade geram tensões e, consequentemente, conflitos de interesses. Na teoria política e na filosofia política, o ideal é que tais tensões e conflitos, muito comuns nas sociedades, sejam solucionados por mecanismos que atuem na canalização e pacificação desses problemas. Segundo os pensadores políticos clássicos apresentados neste livro, essa é a função do Estado.”


“Em Maquiavel, a centralização de poder por parte do Estado decorre da necessidade natural em conter os vícios desagregadores do todo social que o homem carrega em sua natureza humana. Você deve lembrar que, para Maquiavel, o homem é perverso, egoísta, individualista, e esses vícios justificam a coerção e a onipotência do Estado. Ou seja, os homens entregues a si mesmos tendem a se dizimar. Para evitar que o homem se autodestrua. São necessárias as leis impostas pelo Estado, as quais permitam fazer a contenção dos vícios e da animosidade natural da natureza humana. A segurança interna do Estado e a ordem pública exigem que o governante centralize o poder em suas mãos sob o respaldo da tradição de pensamento indicada como Razão de Estado. Segundo Bobbio, Matteucci e Pasquino (2004, p. 1067): “O ponto de partida se situa no limiar da Idade Moderna e é constituído pelas instituições geniais e inspiradoras de Maquiavel, com quem começa a emergir, em seus contornos mais gerais, o conceito de Razão de Estado [...]”.
Uma definição simples dessa tradição é que ela se fundamenta na ideia de que a segurança do Estado é prioridade pública e os governantes têm o livre-arbítrio para não seguir as leis jurídicas, morais e políticas, quando for necessário, para manter a segurança interna e externa do Estado.
Outro tema atual em Maquiavel é o combate que ele faz à moralidade universal, quando indica, no livro O príncipe, que o governante pode agir segundo uma moral diferente da dos indivíduos comuns (Bobbio, Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, 1997b). Nesse caso, o líder não está obrigado a agir com base em valores morais e éticos para conseguir seus objetivos e se manter no poder. Maquiavel ressaltou, já no século XVI, o problema que passaríamos a presenciar na relação entre o agir político e os valores morais (Chevallier, As grandes obras políticas, 1982).”


“Na teoria política, o modelo contratualista é uma das alternativas que podemos usar para entender a origem e o fundamento do Estado.
Entre os modelos alternativos ao contratualismo estão o modelo da sociedade natural ou familiar e o modelo da origem violenta1. No modelo da sociedade natural, como observamos ao refletirmos sobre o pensamento político de Aristóteles, a origem e a justificativa para a existência do Estado estão relacionadas à união entre agregados familiares, os quais, ao se juntarem às outras famílias formam o povoado e, posteriormente, a cidade. O Estado surge, então, para garantir a proteção e a sobrevivência dos membros que formam a cidade. Entre os pensadores que adotam esse modelo de explicação estão Aristóteles, Tomás de Aquino, Jean Bodin e Marsílio de Pádua. Outro modelo alternativo é caracterizado pela ênfase na violência como razão para a origem do Estado. Os teóricos desse modelo defendem que o Estado é uma organização que funciona como um instrumento de poder e de violência a serviço de uma minoria dominante sobre a maioria. O Estado assim descrito representa o domínio da classe vencedora sobre a classe vencida. Entre os pensadores desse modelo encontramos Karl Marx, Ludwig Gumplowicz e Franz Oppenheimer.
Neste capítulo, analisaremos o modelo contratualista, com destaque para três pensadores: Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Esses pensadores sustentavam que o Estado como poder central deveria colocar-se como a organização mais perfeita possível. Cada um deles, com seus projetos políticos, influenciou de algum modo as revoluções que ocorreram nos séculos XVII e XVIII: a Revolução Gloriosa (1688), a Revolução Norte-Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789).
O jusnaturalismo, primeiro ponto que merece destaque no modelo contratualista, foi elaborado por pensadores políticos que viveram entre os séculos XVII e XVIII e que tinham em seus escritos o objetivo de propor uma teoria racional para legitimar a necessidade da existência do Estado. Dessa teoria racional deriva uma teoria geral do homem e da sociedade. Como em Platão Aristóteles e Maquiavel, os teóricos do contratualismo também se mostram favoráveis à legitimação do poder do Estado tomando como base a descrição que fazem da teoria geral do homem e da sociedade sem o poder atuante do Estado.
A teoria racional do Estado que os pensadores políticos contratualistas elaboram parte de dois momentos sobre a existência do homem, denominados por eles estado de natureza e estado civil ou político (Bobbio, Thomas Hobbes, 1991). Encontramos o ponto de partida da existência do homem para justificar a necessidade da existência do Estado no estado de natureza, que é um estado não político ou apolítico no qual o homem tem como objetivo a autopreservação. No estado de natureza, o Estado como poder central não existe, e os homens estão entregues ao próprio livre-arbítrio para agirem em prol de sua conservação. Vivem individualmente, como não cooperados, desfrutam de plena liberdade para agir e pensar, e gozam de uma condição de igualdade em relação aos demais homens.
Os pensadores contratualistas que tomam como ponto de partida um estado de natureza pacífico e social tendem a considerá-lo como um estado imperfeito e inseguro, do qual o indivíduo retira motivos para fazer um contrato com os demais homens com o objetivo de fundar o estado civil ou político.
Nessa história hipotética e racional sobre a origem do Estado construída pelos pensadores contratualistas, a passagem do estado de natureza para o estado civil ocorre a partir do momento em que os homens decidem sair por vontade própria do estado de natureza. Os motivos que levam os homens a aderir ao estado civil e ficar sob a proteção do Estado são distintos em cada pensador contratualista, mas é comum entre eles a ideia de que a transição do estado de natureza para o estado civil se faz a partir do estabelecimento de um contrato ou pacto social fruto de um consenso entre os indivíduos.
Segundo Fiuza e Costa (Aulas de teoria do Estado, 2007, p. 47),
O termo Pacto Social é a expressão criada por Grócio (Hugo Van Groot, 1583/1645, holandês que escreveu: Do direito de guerra e paz). Dizia ele que para ser possível a vida em sociedade, só havia um caminho: um pacto, um pacto social, significando uma combinação, um acordo para viver em sociedade.
A ênfase que o modelo contratualista dá ao pacto como sendo a origem do Estado leva Bobbio (1991, p. 2) a afirmar o seguinte sobre o modelo contratualista: “a imagem de um Estado que nasce do consenso recíproco de indivíduos singulares, originariamente livres e iguais, é uma pura construção do intelecto”.”
1 Para saber quais sobre esse assunto, leia o primeiro livro Elementos de teoria geral do Estado, de Dalmo Dallari (2011).


“No estado de natureza encontramos os argumentos para a efetivação do contrato social que levará, em Hobbes, à criação do Estado-Leviatã. No Capítulo XIII do Leviatã estão os principais argumentos para que o homem saia desse estado e passe para a sociedade civil ou política. Os argumentos hobbesianos se sustentam em algumas condições objetivas e subjetivas que o homem desfruta no estado de natureza para conseguir sua autopreservação. Como condições objetivas, devemos entender aquelas situações que independem da vontade do homem. Uma dessas condições apontadas por Hobbes é a igualdade que os homens experimentam entre eles no estado de natureza, como indica o trecho a seguir: “[Da] igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Portanto, se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo, que é impossível ela ser gozada por ambos, eles se tornam inimigos” (Hobbes, Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil, 1983, p, 74).
Na passagem citada, além da menção de Hobbes à igualdade, também chama a atenção outra condição objetiva que o homem vivencia no estado de natureza, que é a escassez de bens, revelando que não há bens necessários em quantidade suficiente para todos. Essa situação descrita por Hobbes já denta (sic) que no estágio inicial em que o homem está inserido há o nascedouro de um permanente estado de desconfiança recíproca. Bobbio (1991, p. 34) sintetiza bem essa situação descrita pelo estado de natureza hobbesiano:
as condições objetivas bastariam por si sós para explicar a infelicidade do estado de natureza: a igualdade de fato unida à escassez dos recursos e ao direito sobretudo se destina por si só a gerar um estado de impiedosa concorrência que ameaça converter-se continuamente em luta violenta.
A possibilidade da autopreservação do homem no estado de natureza é reduzida ainda mais por Hobbes, no decorrer do Capítulo XIII, quando acrescenta que o homem é dominado por paixões e vícios, os quais o levam à insociabilidade.
Os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito. Porque cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais de desprezo ou de subestimação, naturalmente se esforça, na medida em que tal se atreva (Hobbes, 1983, p. 75)
Hobbes destaca, entre os vícios da natureza humana, a vanglória. O vício humano, como vimos anteriormente ao examinarmos os pensadores políticos gregos, manifesta-se quando os homens sentem a necessidade de buscar a superioridade em relação aos seus pares. Comentamos, no primeiro capítulo deste livro, que os vícios apetitosos e passionais dos homens são a razão da degeneração do Estado. Em Hobbes, identificamos a mesma abordagem presente em Platão e Aristóteles: a de que os vícios e as paixões dos homens os levarão, inevitavelmente, a viver em eterno conflito, em estado de guerra.
Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar; mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. (Hobbes, 1983, p. 75)
A simples ameaça de guerra já é suficiente para o homem presenciar o estado de guerra hobbesiano como aquele estágio em que não há um poder comum para manter os homens em respeito mútuo. Essa situação é bem sintetizada por Chevallier (1982, p. 69-70, grifo do original), quando trata do pensamento hobbesiano:
Uma guerra assim impede qualquer indústria, agricultura, navegação, conforto, ciência, literatura, sociedade, e, o pior de tudo, é aquele temor continuo e o contínuo perigo de morte violenta. A vida é “solitária, pobre, grosseira, animalizada e breve”. Em tal guerra, nada é injusto, nem o pode ser; “onde há poder comum, há lei; onde não há lei, não há injustiça. Na guerra, a força e a astúcia são as duas virtudes cardeais”.
Para sair do estado de natureza, o homem deve, segundo Hobbes consultar a própria razão, a qual o orienta a seguir os meios adequados para chegar aos fins pretendidos. Para a teoria contratualista, o fim maior a ser atingido pelo homem é a autopreservação. Desse modo, ele racionalmente entenderá que deve procurar a paz para conservar sua vida:
é um preceito ou regra geral da razão, que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A primeira parte desta regra encerra a lei primeira e fundamental de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-la. A segunda encerra a suma do direito de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos defendermo-nos a nós mesmos. (Hobbes, 1983, p. 78)
Hobbes sugere que a lei da natureza é a condição primordial para o homem sair do estado de guerra e conseguir a paz. A lei da natureza destaca que a melhor forma para o homem sair do estado de natureza é fazer um acordo com os demais homens para instituírem o Estado. Por esse argumento defendido por Hobbes, o Estado-Leviatã nasce como uma criação do próprio homem para corrigir seus próprios defeitos de natureza humana. São os vícios e as paixões humanas em combinação com a liberdade, a igualdade e a escassez de bens que fazem os homens agirem sem respeito mútuo entre eles.
O pensador inglês prossegue enfatizando que o contrato entre os homens tem a função de remover a falta de um poder comum, a qual se coloca como a causa principal para a manutenção do estado de guerra.
A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantido-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens [...]. O que equivale a dizer: designar um homem ou a uma assembleia de homens como representante de suas pessoas [...] todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. (Hobbes, 1983, p. 105).
Para cumprir sua função — dar totais garantias à vida do homem —, o Estado-Leviatã deve ser um poder irrevogável, indivisível e absoluto. É indivisível porque deve estar nas mãos de uma única pessoa, detentora de um mandato irrevogável sem limites de tempo, e é um poder absoluto porque essa pessoa pode exercê-lo sem limites.

3.2.2 Algumas lições de Hobbes para os dias atuais
Os argumentos que Hobbes desenvolve no livro Leviatã para justificar o Estado o caracterizam como um pensador conservador (Bobbio, 1991). Entre os excessos de liberdade e autoridade, o filósofo inglês elege a manutenção da autoridade como sendo mais viável para a autopreservação do homem. Perceba que a síntese do argumento conservador hobbesiano é que a sociedade só pode sustentar-se na oposição — representada pela “desigualdade” hierárquica soberana — entre autoridade e súdito, isto é, quem manda versus quem obedece.
Ao defender um governo absoluto, Hobbes se mostra avesso à teoria constitucionalista, que defende a criação de limites jurídicos a fim de evitar o abuso do poder por parte do governante (Bobbio, 1991). Esse posicionamento é atualmente assumido por aqueles que entendem que o Estado deve agir de acordo com as normas exemplificadas na Constituição Nacional. Hobbes também é conservador ao defender que o governante goza de um poder irrevogável e que não pode ser rescindido ou anulado, contrapondo-se, assim, aos defensores da teoria do mandato, os quais alegam que o poder do governante deve ser temporário e regido por mandatos, para que, assim, não se incorra em abuso de poder.
Além disso, a irrevogabilidade do poder do governo proposta por Hobbes se apresenta como uma garantia contra a revolução da sociedade diante de seu soberano. Por fim, a defesa de Hobbes ao poder indivisível, o qual deve pertencer a um homem, ou a uma assembleia, que terá totais poderes para autorizar atos e decisões, posiciona o filósofo como um pensador contrário à separação de poderes ou ao governo misto, como defendido por Montesquieu em sua célebre obra O espírito das leis, escrita em 1748. A tese central de Montesquieu (1996) sobre essa separação sustenta que a melhor forma de evitar o abuso de poder por parte do governante é fragmentar e distribuir tal poder entre diferentes pessoas, as quais passarão a comandar os diferentes órgãos que formam o Estado e deverão fiscalizar-se mutuamente.
Em resumo, prezado leitor, podemos entender que Hobbes defende a irrevogabilidade e a indivisibilidade do poder do governante, que terá, consequentemente, um poder sem limites. Hobbes é um defensor de um Estado absolutista para disciplinar as paixões e os vícios humanos causadores do conflito e da discórdia, motivos da ruína da sociedade.”


“Jean-Jacques Rousseau compõe o conjunto de pensadores que durante os séculos XVIII e XIX defenderam a constituição como instrumento para limitar o poder do Estado nos moldes do absolutismo. A teoria política de Rousseau, como em Locke e Hobbes, também é devota do modelo contratualista para fundamentar a origem do Estado e da sociedade política.
Rousseau propõe que o exercício do poder soberano esteja nas mãos do povo ou da vontade geral. Segundo Chevallier (1982, p. 162), essas características o diferenciam de Hobbes e Locke porque “Rousseau é assim levado a uma distinção radical que, do ponto de vista em que a apresenta, é inteiramente sua, a distinção entre soberano e o governo”. Como vimos anteriormente, para Hobbes, o poder soberano da sociedade civil pertence ao governante (um homem ou uma assembleia) e, para John Locke, está nas mãos do parlamento. No entanto, para Rousseau a vontade geral “é a expressão global dos interesses e dos sentimentos da sociedade e do cidadão” (Bobbio, 1997b, p. 23).
Outra característica do pensamento político de Rousseau e que merece destaque é seu empenho em conjugar a liberdade do cidadão com o Estado, de modo que o cidadão só é considerado livre se viver em sociedade civil. Essa preocupação não está presente em Hobbes nem em Locke. No pensamento hobbesiano, o homem perde a liberdade ao aderir à sociedade civil, mas ganha em troca a segurança e a proteção. Já para o filósofo inglês, ao aderir à sociedade civil, o homem não perde a liberdade, a qual é intocável pelo Estado. Entende-se, portanto, que ele não precisa aderir à sociedade civil para ter a liberdade, uma vez que esta já lhe pertence. Mas em Rousseau o argumento é outro, pois, conforme Chevallier (1982, p. 164, grifo do autor) em sua análise do livro O contrato social,
a liberdade e a igualdade, cuja existência no estado de natureza é tradicionalmente afirmada, Rousseau pretende reencontrá-las no estado de sociedade, mas transformadas, tendo sofrido urna espécie de modificação química, “desnaturadas” “criação de uma ordem inteiramente nova e de uma ordem necessariamente justa pelo contrato”.”


“(No livro Discurso sobre a desigualdade dos homens, Rousseau defende que no) estágio inicial do estado de natureza, o homem vive solitário, errante pelos campos, mas, segundo Rousseau, ao desenvolver suas habilidades do corpo e do espírito, passa a adquirir sentimentos que dão razão para formar famílias, tribos e hordas.
Os primeiros progressos do coração resultaram de uma situação nova que reunia numa habitação comum os maridos e as mulheres, os pais e os filhos. O hábito de viver junto deu origem aos mais doces sentimentos conhecidos pelos homens: o amor conjugal e o amor paterno. Cada família se tornou uma pequena sociedade ainda mais unida. [...] Através de uma vida mais suave, os dois sexos começaram a perder alguma coisa de sua ferocidade e de seu vigor. Mas se cada um isoladamente se tornou menos apto para combater os animais selvagens, em compensação ficou mais fácil se reunirem para, em comum, resistirem a eles. (Rousseau, O contrato social, 2015, p. 204)
Acrescentamos que, no estágio inicial do estado de natureza, o homem dispunha de propriedades, terras para plantar o necessário para a sua conservação, havendo área suficiente para todos. As terras não eram demarcadas nem privadas.
Esse estágio inicial do estado de natureza descrito por Rousseau começa a mudar a partir do momento em que a propriedade, que antes era de todos os homens, passa a ser privada e deixa de ter como origem a pura e simples força do trabalho humano.
É somente o trabalho que, dando ao cultivador um direito sobre o produto da terra que ele trabalhou, dá-lhe consequentemente direito a gleba, pelo menos até a colheita e, desta forma, de ano a ano — o que, tornando-se uma posse contínua, transforma-se facilmente em propriedade. [...]
As coisas teriam continuado sempre nesse estado se os talentos fossem iguais [...] mas a proporção que em nada se apoiava logo se rompeu; o mais forte trabalhava mais, o mais esperto tirava melhor partido do seu trabalho [...]. Assim, a desigualdade natural insensivelmente se desenvolve com a desigualdade de combinação, e as diferenças entre os homens tornam-se mais sensíveis [...]. (Rousseau, 2015, p. 209-210)
O argumento de Rousseau presente nesse excerto é que, com o surgimento da propriedade privada, o homem é tomado por sentimentos perversos, como ostentação, astucia, ambição, inveja e usurpação, os quais se manifestam também na busca pelo lucro. Para o pensador suíço, esses sentimentos se tornam os inconvenientes que o homem passa a experimentar no estado de natureza e se mostram como obstáculos para a autoconservação, uma vez que conduzem os homens a um estado de eterna competição e conflito. Nas palavras de Rousseau (2015, p. 207):
Enquanto os homens se contentaram com suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a coser suas roupas com pele, com espinhos e cerdas, a se enfeitar de plumas e de conchas [...]; em uma palavra, enquanto se dedicaram apenas às obras que um único homem podia criar, e a artes que não necessitavam do concurso de várias mãos, eles viveram livres, sãos, bons e felizes, [...] mas desde o momento em que um homem teve necessidade do auxílio de um outro, desde que se apercebeu de que seria útil a um só indivíduo contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, a propriedade se introduziu [...] viu-se logo a escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as colheitas.
A partir da instituição da propriedade privada, o homem se torna prisioneiro de seus vícios humanos, que o levam a procurar cada vez mais a glória, a ostentação, buscando sobrepujar o outro. Instala-se, então, segundo Rousseau, o estado de guerra.
Assim, os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou de suas necessidades uma espécie de direito ao bem alheio, equivalente, segundo eles, ao de propriedade, a igualdade rompida foi seguida da mais indigna desordem; assim as usurpações dos ricos, as extorsões dos pobres, as paixões desenfreadas de todos, abafando a piedade natural e a voz ainda fraca da justiça, tornaram os homens avaros, ambiciosos e maus. [...] A sociedade nascente foi colocada no mais horrível estado de guerra (Rousseau, 2015, p. 211).
A exemplo do que vimos nos pensadores políticos analisados até este ponto, o estado de guerra em Rousseau é fruto dos vícios e das inclinações do homem. Como pode o indivíduo sair desse estado de natureza? Essa é a questão que Rousseau irá responder em outra de suas obras: O contrato social.

3-4.2 O Estado a serviço da soberania popular
No livro O contrato social Rousseau propõe a formação de um poder político para extinguir o estado de guerra em que o próprio homem se colocou. Nas palavras do filósofo:
Reduzamos todo esse balanço a termos de fácil comparação. O que o homem perde pelo contrato social é a sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o seduz e que ele pode alcançar. O que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui [...] impõe-se distinguir entre a liberdade natural, que só conhece limites nas forças do indivíduo, e a liberdade civil, que se limita pela vontade geral [...] (Rousseau, 1986, p. 26)
O argumento de Rousseau se sustenta na necessidade de fazer um pacto legítimo entre os homens, pelo qual estes devem abrir mão da liberdade natural, a qual não encontra limites, pois não é controlada por leis, contribuindo, assim, para a instauração do estado de guerra. Ao abrirem mão da liberdade natural, os homens recebem em troca a liberdade civil, que é a submissão às leis, de cuja elaboração também participam.
No Capítulo VI do Livro I de O contrato social, Rousseau expõe as cláusulas do contrato em que o homem abre mão da liberdade natural e ganha a liberdade civil.
Imediatamente, em vez da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantos são os votos da assembleia, o qual recebe, por esse mesmo ato, sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade.
Essa pessoa pública, assim formada pela união de todas as demais, tomava outrora o nome de Cidade, e hoje o de República ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado [...] (Rousseau, 1986, p. 22, grifo do autor)
O contrato representa a união dos homens, estabelecendo um conjunto de força para a formação de um corpo político, moral e coletivo que constitui, para Rousseau, o Estado. A partir da formação do Estado, o homem ficará submetido às leis deste (vontade geral/soberania popular). Segundo Rousseau, o Estado, ao representar a vontade geral, terá como finalidade social atender ao interesse comum.
No primeiro capítulo do Livro III de O contrato social, Rousseau prossegue em sua descrição sobre como deve ser a constituição do poder político:
Quando me dirijo a um objeto, é preciso, primeiro, que eu queira ir até ele e, em segundo lugar, que meus pés me levem ate lá. Que um paralítico queira correr, que um homem ágil não o queira, ambos ficarão no mesmo lugar. O corpo político tem os mesmos móveis; nele se distinguem a força e a vontade, esta sob o nome de poder legislativo e aquela sob o nome de poder executivo. Nada se faz nele, ou não se deve fazer, sem seu concurso. (Rousseau, 1986, p. 71, grifo do original)
O poder político descrito na passagem citada é constituído pelos Poderes Legislativo e Executivo, os quais têm como função primordial a manifestação da vontade geral ou soberania popular. O Poder Executivo representa a força e é encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade civil; cabe ao Poder Legislativo, que representa a vontade da sociedade, o papel de elaborar as leis que são os atos autênticos da vontade geral ou soberania popular.”


“Ao considerarem as formas possíveis de se exercer e de se organizar o poder, Platão e Aristóteles nos fornecem alguns dos critérios para melhor compreender o Estado e suas atividades. Platão, no livro A república, desenvolve sua classificação com base na observação histórica e a formula de acordo com os seguintes critérios: quem governa; a paixão dominante; o motivo da corrupção; e a moléstia do Estado. Na aplicação desses critérios, conhecemos a classificação platônica de governo, caracterizada por formas de governo corrompidas ou imperfeitas. O motivo da imperfeição do governo está no próprio governo, mais especificamente nos vícios da natureza humana dos governantes e dos governados.
Aristóteles faz uma classificação de governo distinta da feita por Platão, baseando-se em dois critérios: quem governa e como governa. Para o filósofo grego, as boas formas de governo são aquelas em que os governantes no poder orientam suas ações e tomadas de decisão para atender ao bem comum. Nas formas corrompidas de governo, o governante lidera sucumbindo aos seus vícios e paixões pessoais de modo a atender aos próprios interesses em detrimento dos interesses coletivos.
Nicolau Maquiavel, nos livros O príncipe e Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, também defende que a ruína do governo é fruto dos vícios oriundos da natureza humana. Por ser pérfido e interesseiro, o homem terá o conflito como uma realidade natural e sempre possível de existir na convivência com seus semelhantes. É com base nessa descrição sobre a natureza humana que Maquiavel justifica a existência de um Estado que governe por meio da coerção, pelo uso da força e da lei.
Examinamos a história hipotética e racional da origem do Estado construída pelos pensadores contratualistas. Na teoria do contrato, a passagem do estado de natureza para o estado civil ocorre a partir do momento em que os homens decidem, por vontade própria, sair do estado de natureza. Os motivos que levam os indivíduos a aderir ao estado civil e a viver sob a proteção do Estado são distintos em cada pensador contratualista.
Vimos que Thomas Hobbes defende a unidade do Estado em detrimento da preservação da liberdade do indivíduo, o qual é retratado como um ser não social, ganancioso, traiçoeiro e que, desfrutando da liberdade, entraria inevitavelmente em um estado de natureza anárquico, prevalecendo o estado de guerra.
Diferentemente de Hobbes, John Locke, em sua obra Segundo tratado sobre o governo, posiciona-se a favor de um Estado nos moldes liberais com prerrogativas de ser um poder limitado de acordo com os direitos naturais e invioláveis dos indivíduos. Para Locke, não é a falta de um juiz que coloca os homens em estado de guerra, mas a não execução da lei da natureza pelo homem, um ser frágil que fatalmente declinaria aos seus interesses pessoais, tendendo a violar as propriedades dos outros sujeitos — violação sem direito e com base na força.
Refletimos sobre a proposta de Jean-Jacques Rousseau de que o exercício do poder soberano deve estar nas mãos do povo ou da vontade geral. O argumento do pensador suíço é que, a partir da instituição da propriedade o homem passou a ser prisioneiro de seus vícios humanos, fato que o levou a procurar cada vez mais a glória e a ostentação e a sobrepujar o outro, contribuindo, assim, para a instalação do estado de guerra. Para sair desse estado, o homem deve ficar submetido às leis do Estado ou à vontade geral.
Portanto, prezado leitor, a interpretação sugerida neste livro é que, com base nos respectivos diagnósticos a respeito da natureza humana, os pensadores políticos abordados fundamentaram suas propostas para a origem e a legitimação do poder do Estado. Se por um lado, eles mostraram que o Estado nasce para proteger o próprio homem de si mesmo, por outro lado, seus diagnósticos nos alertam para o fato de que os abusos do governo ou do Estado decorrem da própria natureza pérfida do homem e que, fatalmente todo e qualquer governo tende a se corromper.
O corpo político, tal como o corpo do homem, começa a morrer desde o seu nascimento e traz em si mesmo as causas de sua destruição. Mas um e outro podem ter uma constituição mais ou menos robusta e capaz de conservá-lo por mais tempo. A constituição do homem é obra da natureza, a do Estado, é obra de arte. (Rousseau, 1986, p. 107)
O que nos resta, então? Rousseau, defensor da participação ampla e irrestrita do povo nos assuntos de interesse público, é quem melhor responde a essa questão ao sugerir, no Capítulo XI do Livro III de O contrato social, que depende do homem o prolongamento da vida do Estado. E, para que isso aconteça, é necessário que ele fiscalize seus governantes, evitando a apatia política e o individualismo.”

sábado, 9 de novembro de 2019

Seleção de textos espirituais (Parte II) – Leonardo Boff

Editora: Vozes
ISBN: 978-85-3260-683-9
Compilação: Cláudia Zarvos, Jânio Savoldi, Márcia Monteiro Miranda e Waldemar Boff
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 136 

“As religiões, em sua significação mais original e positiva, constituem as formas institucionais que traduzem o relacionamento do homem com o Absoluto. A religião é sempre re-ação a uma ação prévia; é sempre resposta humana à proposta divina. É um fenômeno originário, não redutível a outro mais fundamental, que testemunha a abertura do homem a um Transcendente, a Algo de definitivamente Importante e a um Sentido que transfigura toda a realidade com todas as suas contradições. (...) Semelhante valorização teológica da religião não implica numa legitimação de tudo o que ocorre nela. Nela pode haver elementos diabólicos que traduzem mal, no nível do discurso, do gesto e da ética, as exigências do Mistério de Deus e do mistério do homem. A despeito de todas as ambiguidades que se possam apontar nas religiões do mundo (e também na religião bíblica e cristã), elas constituem os veículos comunicadores da graça, do perdão e do futuro que Deus promete aos homens.”


“A salvação anunciada pelo cristianismo constitui um conceito englobante; não se limita às libertações econômicas, políticas, sociais e ideológicas, mas tampouco se realiza sem elas.”



“Quem professa Deus e está longe da justiça, quem crê em Deus e não cria fraternidade, não professa nem crê no Deus verdadeiro, mas num ídolo.”



“Os teólogos da libertação não negam nenhum dogma; doutrinariamente, são até tradicionais; o que fazem é, à luz da verdade evangélica e também dogmática, tirar as consequências sociais em favor dos oprimidos que sempre estiveram à margem da história. A questão fundamental é a do pobre. Os que nos combatem na Igreja têm dificuldade em aceitar a centralidade dos pobres no processo da revelação e da salvação; escandalizam-se ao ouvir que os pobres, pelo fato de serem pobres e não pelo fato de serem bons, são os privilegiados de Deus. Deus é o Deus da vida. Ele toma sempre partido por aqueles que têm sua vida ameaçada ou são obrigados a morrer antes do tempo. É o caso dos pobres. Por isso, o Deus da libertação é o Deus dos pobres e marginalizados, cujo grito Ele sempre escuta, desde o grito dos oprimidos no Egito, até o grito desesperado de Jesus na cruz.”


“Maria não se comportou passivamente diante da iniciativa de Deus. Ela agiu dentro da especificidade própria da mulher. E é aqui que Maria ganha uma relevância universal. Não está só na história da salvação. Junto a ela está toda a humanidade feminina. Maria prolonga toda a grandeza, profundidade, capacidade de escuta e acolhida, de entrega e doação que as mulheres, ao longo de toda a história, viveram sob a força do Espírito.”


“A gente está tão cansado de ouvir e de dizer — o Verbo se fez carne — que nem chega a refletir o que isto significa. Ele quis realmente ser como um de nós, como eu e como tu, menos no pecado: um homem limitado que cresce, que aprende e que pergunta; um homem que sabe ouvir e pode responder. Deus não assumiu uma humanidade abstrata, animal racional. Ele assumiu, desde o seu primeiro momento de concepção, um ser histórico, Jesus de Nazaré, um judeu de raça e de religião, que se formou na estreiteza do seio materno, que cresceu na estreiteza de uma pátria insignificante, que amadureceu na estreiteza de um povinho de vila interiorana, que trabalhou num meio limitado e pouco inteligente, que não sabia grego nem latim, as línguas da época, que falava um dialeto, o aramaico, com sotaque galilaico, que sentiu a opressão das forças de ocupação de seu país, que conheceu a fome, a sede, a saudade, as lágrimas pela morte do amigo, a alegria da amizade, a tristeza, o temor, as tentações e o pavor da morte e que passou pela noite escura do abandono de Deus. Tudo isso Deus assumiu em Jesus Cristo. A nada foi poupado. Assumiu tudo o que é autenticamente humano e pertence à nossa condição como a ira justa e a alegria sã, a bondade e a dureza, a amizade e o conflito, a vida a morte. Tudo isto está presente na figura franzina do Menino que começa a choramingar no presépio entre o boi e o asno.”


“O homem Jesus de Nazaré revelou em sua humanidade tal grandeza e profundidade que os Apóstolos e os que o conheceram, no final de um longo processo de decifração, só puderam dizer: humano assim como Jesus só pode ser Deus mesmo. E começaram então a chamá-lo de Deus. A partir deste momento, os Apóstolos, que eram judeus, deixaram de ser judeus para tomarem-se cristãos.”


“O sentido universal da vida e da morte de Cristo está, pois, em que suportou até o fim o conflito fundamental da existência humana: de querer realizar o sentido absoluto deste mundo diante de Deus, a despeito do ódio, da incompreensão, da traição e da condenação à morte. O mal para Jesus não estava aí para ser compreendido, mas para ser assumido e vencido pelo amor. Esse comportamento de Jesus abriu uma possibilidade nova para a existência humana, exatamente, uma existência de fé num sentido absoluto, mesmo frente ao absurdo, como foi a morte conferida pelo ódio a quem só amou e só buscou fazer o bem entre os homens.”


“Jesus não procurou a morte; esta lhe foi imposta de fora e ele a aceitou não resignadamente, mas como expressão de sua liberdade e fidelidade à causa de Deus e dos homens.”


“Jesus não está só na cruz. Estão os seus seguidores. Assumem sua causa, imitam sua vida e o seguem em seu destino.”


“A cruz é invenção humana. Foi excogitada para torturar o corpo dos profetas e ferir os membros que produzem a prática libertadora, as mãos, os pés e o coração. A cruz é instrumento de opressão.
Mas ela é também bênção. Jesus abraçou a cruz para ser senhor sobre a dor e a morte produzida pelo desprezo. Por ela quis solidarizar-se, não, quis identificar-se com os crucificados da história. Eles nunca mais morrerão sós. Jesus morre crucificado com eles.”


“Para o religioso manter sua identidade religiosa, para levar a sua contribuição específica deverá permanentemente ser alimentado pela oração, pela meditação e pelo doloroso processo de interiorização. Contudo, a oração e a meditação deverão emergir de um olhar contemplativo da ação. O engajamento somente é verdadeiro se nascer de um dinamismo evangélico e de uma profunda experiência interior de Deus e de Jesus Cristo, alimentada e expressa na oração pessoal e comunitária.”


“Rezar — seja feita a vossa vontade — equivale a rezar: que se faça como Deus quiser! Nisso não há lamúria nem desesperança, mas entrega confiante como uma criança se entrega aos braços da mãe. Deus é Pai e Mãe de infinita bondade. Ele tem seu Desígnio eterno; nós apenas temos projetos.”


“O cristianismo da pequena burguesia e da classe média abastada apresenta-se, não raro, como puramente sacramentalista. É uma fé de uma hora por semana, por ocasião da missa dominical ou de alguns momentos importantes da vida, como por exemplo de um batizado, de algum casamento, ou de um sepultamento. Fazem-se ritos, mas não se vive uma fé viva. Na vida concreta vivem-se valores opostos à fé; prossegue a exploração do homem pelo homem; campeia ganancia de acumular mais e mais.”



“Devemos, seguramente, ajudar a Igreja para que não se converta num reduto de machismo, de pretenso monopólio da salvação, de dominação clerical, mas em espaço onde a humanidade se sinta ainda mais humana, porque se vê potenciada em suas aspirações e encontra um lugar para alimentar seus sonhos de um mundo, finalmente, mais reconciliado consigo mesmo e com a própria natureza.”


“É coisa de Deus gostar dos últimos e pisoteados.”


“Se Deus tem um lugar nesse mundo, é ao lado dos pobres, dos que não aceitam a pobreza e se organizam na solidariedade para superar a pobreza (...) Deus não quer ricos nem pobres, quer pessoas que trabalhem, que vivam na solidariedade e na justiça. Para isso o marxismo nos ajudou a entender que o pobre não é somente um pobre, mas é um oprimido e que essa opressão é produzida por um processo de exploração do trabalho pelo capital. A pobreza não é inocente, não é produto da natureza, não é querida por Deus: é o resultado de um processo que produz de um lado riqueza e de outro, pobreza.”


“Aceitar o pobre como pobre é aceitar o Jesus pobre. Ele se esconde, incógnito, atrás de cada face humana. A fé nos manda olhar com profundeza no rosto do irmão, amá-lo, dar-lhe de comer, de beber, de vestir e visitá-lo no cárcere, porque visitando-o, vestindo-o, dando-lhe de beber e de comer, estamos hospedando e servindo ao próprio Cristo. Por isso que o homem é a maior aparição, não só de Deus, mas também do Cristo ressuscitado no meio do mundo. Quem rejeita seu irmão rejeita o próprio Cristo, porque quem repele a imagem e semelhança de Deus e de Cristo repele o próprio Deus e o próprio Cristo (cf. Gn 9,6; Mt 25,42-43). Sem o sacramento do irmão, ninguém poderá salvar-se. Por aqui transparece a identidade do amor ao próximo com o amor a Deus.”


“A celebração da eucaristia não pode ser feita no espírito de Jesus se junto com ela não estiver a fome e sede de justiça. Traímos a memória do Senhor se por ela ocultamos ou tornamos irrelevante a presença de relações injustas na comunidade dos fiéis que celebram e assistem à eucaristia.”


“A prática de Jesus é instauradora do Reino porque é uma prática de comunhão com os pobres, de reconciliação com os pecadores, de convivência com todos, particularmente com os marginalizados, e de serviço indiscriminado a cada um que encontra.”


“O pobre não existe como fatalidade; sua existência não é politicamente neutra, nem eticamente inocente. O pobre é o subproduto do sistema no qual vivemos e do qual somos responsáveis. Na verdade o pobre é um empobrecido, isto é, um esbulhado, roubado e defraudado do fruto do seu trabalho e de sua dignidade. Este empobrecimento cria um apelo para o amor cristão, não apenas para aliviar o fardo aviltante da pobreza pobre mas para criar condições de superação desta situação.”


“A solidariedade com o pobre por causa do Evangelho leva o religioso a romper com um tipo de vida e de relações próprias dos setores privilegiados da sociedade. Sua presença no mundo se torna um sinal crítico e profético. O pobre com o qual se solidariza não é simplesmente pobre: é um empobrecido, aquele a quem lhe foram tirados os meios para ser um membro da sociedade, e dela foi posto à margem. Um amor inteligente ao pobre obriga a compreender a fundo a estrutura social que gera a pobreza, como subproduto da riqueza das minorias opulentas. Daí a necessidade de o religioso ser crítico e não ingênuo e de estar sempre atento às manipulações que o status quo pode continuamente fazer na instrumentalização da vida religiosa para um assistencialismo que acalma a consciência e cria a ilusão de estar servindo realmente ao mundo dos pobres. A presença crítica do religioso implica por um lado denúncia de uma situação que contradiz o plano de Deus e a mensagem evangélica e por outro anúncio de real fraternidade e de repartição dos bens e dos encargos e pesos a serem carregados por todos.”


“Para mim ser franciscano é um desafio para ser simples, para o encontro com Deus na terra, no irmão, especialmente no pobre, na fidelidade ao sangue e às raízes telúricas de nossa existência visitada pelo Filho de Deus que se fez nosso irmão nisso tudo e não apesar disto tudo.”


Natal: A eterna criança que vive em nós
O Natal é muito mais que uma festa do calendário cristão. É uma festa universal do coração humano, da fé pura e simples. Esta fé nos assegura: não precisamos ter medo de Deus. Ele é uma criança. Seu choro meigo não afugenta ninguém. Seus braços estão enfaixados. Eles não são ameaçadores. Mais que o senhor dos exércitos e o Onipotente que tudo cria ou destrói, Deus é ternura e humanidade. Ele não quis nos visitar apenas. Ele decidiu morar conosco. Ter pele, sentidos, sentimentos, coração, alegria e saudades. Por isso o Natal é a festa da reconciliação com um dos desejos mais profundos do ser humano: o de sentir-se aceito definitivamente, de não ser ameaçado por ninguém, de encontrar o coração caloroso de Deus.
O Natal é também a festa de uma fé muito humana que se transforma em esperança. A fé-esperança reside nisso: a última palavra não a tem o interesse, o lucro, 0 conflito e a dura luta pela vida. Mas a ternura, a gratuidade, o jogo, a bem-querença e o amor. Neste sentido, a Criança que jaz entre o boi e o asno no presépio não representa o começo da vida. É: o seu símbolo e a sua plenitude. A fé-esperança nos garante que, apesar de todas as camadas de cinzas que acumulamos sobre o nosso coração, ele sempre pode vibrar. Ele conserva uma inocência original. Nele habita uma criança que um dia fomos e que nunca deixamos de ser.
Ocorre que o tipo de vida a que historicamente nos submetemos, pelo menos nos últimos quinhentos anos — a famosa modernidade — nos leva a correr de cá para lá,  a fazer tudo às pressas, a romper todos os ritmos naturais, do dia e da noite, do perto e do longe, a ponto de sentirmo-nos frequentemente envelhecidos. A criança que somos, capaz de tomar o seu tempo para a conversa de família e dos amigos, capaz de combinar o sério com o jocoso, o trabalho com o lazer, a gratuidade com o dever, se retrai para o fundo do coração. É aí que começa a viver de sonhos. Mas estes sonhos são parte de nossa própria realidade séria. A criança em nós sonha com um mundo reconciliado, com uma atmosfera de festa, onde as pessoas são todas amigas. Sonha como o profeta Isaías, há quase três mil anos atrás: o lobo morará com o cordeiro, o leão e o boi comerão juntos e a criança, sem receios, brincará na toca da serpente. Atualizando, sonha com cidades sem favelas, com um convívio sem violência, com nossas florestas respeitadas, com os indígenas defendidos, com as mulheres libertadas, com os negros livres das discriminações.
Que seria de nós se não pudéssemos sonhar? Afogar-nos-íamos na brutalidade dos fatos quotidianos. Ficaríamos presos nas malhas de nossas próprias construções, sempre limitadas. O sonho nos libera para frente e para cima. Desfataliza nossa história, porque ela sempre pode ser diferente. O milagre é possível. A magia existe. Há magia maior do que esta:
Jesus ser o Deus encarnado na forma de uma criança num presépio?
No Natal, por um momento, por uma noite, podemos vislumbrar a verdade do sonho. As pessoas se sentam ao redor da mesa e celebram a ceia. É a comunhão plena, com as pessoas, com as luzes, com as comidas, com os presentes. Nesta noite santa, por um momento, sentimos que somos importantes para alguém. Não somos um ninguém. Trocamos presentes como expressão da amizade, do carinho e da excelência. A criança que mora em nós nasce. Neste dia ela ocupa a centralidade da vida. Por causa da criança do Natal, recuperamos a coragem de viver, apesar de todas as opressões que pesam sobre nossa existência ou que sobrecarregam nossa consciência. É bom sermos humanos, homens e mulheres, e tentar cada dia construir nossa própria humanidade. Por causa da criança que dormita em nós estamos convencidos de que a luz tem mais direito do que as trevas, luz que nos dá todas as razões de continuar a viver e a lutar.”

Seleção de textos espirituais (Parte I) – Leonardo Boff

Editora: Vozes
ISBN: 978-85-3260-683-9
Compilação: Cláudia Zarvos, Jânio Savoldi, Márcia Monteiro Miranda e Waldemar Boff
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 136 

“Eu já ando pelos 40 anos. Sinto já o peso de uma vida curtida na reflexão e na busca da Palavra que tudo ilumina. Às vezes me sinto velho. Creio que todo o teólogo possui uma velhice venerável, porque carrega sobre si, como tarefa, os problemas mais árduos do mistério humano. Mas ao mesmo tempo, na medida em que interioriza Deus, reconquista — não diria a juventude — mas a jovialidade e sabor de todas as coisas. É o que peço a Deus todos os dias: não me amargurar, não me perturbar, não deixar nunca de crer que o que definitivamente conta e tem futuro é ser límpido, puro, transparente, bondoso, sincero e bom. Para mim o mais importante que se disse de Jesus no NT não é tanto que ele é Deus, Filho de Deus e Messias, mas que Ele passou pelo mundo fazendo o bem, curando a uns, consolando a outros. Como gostaria que se dissesse de cada um e se dissesse isso também de mim.”


“Se fizermos uma rápida retrospectiva destes 25 anos, discernimos a seguinte trajetória: primeiro vem o entusiasmo pela ordem franciscana, depois pelo sacerdócio, em seguida pela teologia; da teologia passei à Igreja, da Igreja ao povo; do povo aos pobres, dos pobres à humanidade; da humanidade ao mistério da criação. Na medida em que o leque ia se abrindo e o horizonte se dilatando, iam também crescendo em mim as dimensões de universalidade e de autêntica liberdade. As chances de ser mais humano e, por isso, de sentir-me unido ao destino da inteira humanidade e de todo o criado foram se interiorizando. Hoje vejo com clareza que o presbiterato, a vida religiosa, a teologia só possuem sentido radical se nos aproximarem mais diretamente dos demais humanos, companheiros e companheiras de caminhada.”


“Não julgo imprescindível, como outros, manter-me numa cátedra acadêmica para fazer teologia: a cátedra do povo e da vida contém hoje, possivelmente, maior amplitude do que a outra, porque aí estão sentados os grandes problemas e os desafios exigentes. Aí reside o sofrimento. Mais que a admiração, é o sofrimento que faz pensar. Pelo menos isso os pobres nos têm ensinado.”


“A minha opção é pela profunda democracia, que nunca existiu no Brasil. Eu acho que a democracia é a proposta mais revolucionária que tem, e eu vejo que cada vez mais o capitalismo é incompatível com a democracia.”


“Na medida em que vou vivendo, cresce em mim a percepção do mistério. Mistério é muito mais que um enigma. Como os antigos sabiam melhor que nós, mistério consiste num desígnio cujo último sentido nos escapa, mas que passa por nós, nos usa como um subsistema de algo maior para prosseguir sua trajetória que termina no coração do próprio Deus. Cada um representa como num teatro. Não escolheu a peça, nem o papel, nem fundamentalmente sabe qual será seu término. Apenas entrevê que está a serviço daquele que disse ser o alfa e o ômega, o princípio e o fim, numa palavra, o Senhor da vida e da história.


“O espírito não é experimentado como parte do ser humano, mas como uma totalidade vital. Espírito é o nome para dizer a energia e a vitalidade de todas as manifestações humanas. Neste sentido, espírito não se opõe a corpo. Inclui-o. Espírito se opõe à morte. A grande oposição, portanto, não é entre espírito e matéria ou entre alma e corpo, mas entre vida e morte.”


“O ser humano apresenta uma dimensão voltada para o mundo e participa do destino do mundo. Tudo no mundo da natureza e da história se revela como mortal, caduco e passageiro. Existe a debilidade, as necessidades de toda ordem que, não satisfeitas, causam sofrimento e opressão. Não existe nenhuma realidade que consiga se subtrair à força corrosiva do tempo. Por isso a mortalidade caracteriza todas as realidades e os empreendimentos humanos. Esta condição humana é objetiva e independe das interpretações que lhe conferimos. Constitui uma experiência primordial e um fato primeiro.
As escrituras chamam a esta situação existencial de viver na carne.”


“Viver religiosamente consiste, portanto, num modo específico de ser no mundo: consiste em ver tudo e viver tudo como penetrado pela Presença de Deus. Se ele é o único Absoluto, então tudo o que existe é revelação dele. Buscar sua vontade, detectar sua presença e decifrar o sentido de sua atuação (sinais dos tempos) em tudo o que acontece: esta é a angústia e a tarefa de toda alma verdadeiramente religiosa.”


“Frente a Deus deve o homem comportar-se como filho. Aqui valem as relações filiais de amor, de obediência, de confiança e de entrega. Frente ao mundo deve ser senhor. Ele não deve deixar-se escravizar nem pelo trabalho nem pelos elementos inimigos do homem como doenças, pobreza, subdesenvolvimento, etc., que ele, pelo trabalho e pela razão prática, pode e deve dominar e criar para si uma ordem mais fraterna e humana. Frente ao outro deve comportar-se não como senhor nem como filho mas como irmão, onde reina a mútua ajuda e o espírito realmente fraterno e amigo.”


“Estes são sinais da presença do Espírito: quando há entusiasmo no trabalho da comunidade; quando há coragem para inventar caminhos novos para novos problemas; quando há resistência contra toda a opressão; quando há a vontade de libertação que comece pela justiça dos pobres; quando há fome e sede de Deus e unção no coração.”


“Somos muitas vezes cruz para nós mesmos e nos devemos carregar a nós próprios com toda a imensa carga de fragilidade, mesquinharias e estreitezas de coração.”


“Quando nos entregamos ao mistério da vida, quando não nos pertencemos mais, quando não nos colocamos mais em primeiro lugar, quando nos fazemos serviço e doação aos demais, quando cremos e esperamos que, apesar de tudo, nada escapa ao desígnio do Mistério e que por isso nenhum mal e nenhuma desgraça, por mais cruel que se antolhar, nos podem separar do Amor de Deus, então experimentamos aquela realidade que o cristianismo chama de graça.”


“A graça não é algo de Deus; é Deus mesmo, se autocomunicando, dando-se como Sentido, Esperança, Amor, Fortaleza.”


“O pecado não rompe apenas nosso cordão umbilical com Deus; ele nos cinde por dentro e afeta nossa identidade interior.”


“Para sabermos se alguém é de fato religioso, não devemos observar como ele fala de Deus, mas como ele fala do mundo.” (Simone Weil)


“Outra tarefa imprescindível da realização pessoal é saber conviver com a morte. Quem vê sentido na morte, este vive com sentido a vida. Quem não vê sentido na morte não dá sentido à vida. Morte porém não é nosso último instante de vida. A vida mesma é mortal. Em outras palavras, vamos morrendo lentamente, em prestações, porque quando nascemos começamos já a morrer, a nos desgastar e nos despedir da vida. Primeiro nos despedimos do ventre materno e morremos para ele. Depois nos despedimos da infância, da meninice, da juventude, da escola, da casa paterna, da idade adulta, de algumas de nossas tarefas, de cada momento que passa e por fim nos despedimos da própria vida.”


“O AMOR COMO FERMENTO DE RESSURREIÇÃO
Pelo exemplo de seu fundador e pelo mandamento maior que ele deixou para seus seguidores, o cristianismo poderia ser chamado a religião do amor. Nem sempre, é verdade, isto se faz transparente. Muitas vezes, as leis disciplinares e as verdades doutrinárias suplantam o preceito do amor. Mas, mesmo assim, ele continua sendo a alma sacramental da Igreja e sempre que o amor triunfa sobre o rigor frio da justiça e o ser humano se abre para o louvor de Deus e as necessidades do irmão, a vida recebe um pouco do fermento da ressurreição. O amor não conhece limites, é sadiamente louco por natureza e vive nos transbordamentos de sua fantasia criadora. O amor liberta para a doação. Quem ama, por isso, o faz, num gesto de entrega, com o coração na mão.”


“O próximo, para o Evangelho, não é o vizinho, o compatriota, o irmão de fé. Próximo é todo homem desde que me aproximo dele com amor.”


“O verdadeiro poder entre os homens se assenta no amor. E o poder do amor não reside na sujeição do outro, mas no seu serviço, não na sua escravidão, mas no respeito de sua liberdade. Onde não reina liberdade não pode haver amor.”


“Ou o amor é gratuito ou não é amor. Por isso a graça é definida como a comunicação do amor de Deus aos homens.”


“Se alguém comunga, deve ser elemento de comunhão no grupo em que vive. Se alguém celebra o sacrifício de Cristo e sua morte violenta, deve estar disposto ao mesmo sacrifício e viver de tal maneira sua fé cristã que inclui, como normal, ser perseguido, preso e morto violentamente. Se alguém batiza e se deixa batizar deve ser, na comunidade, testemunho de fé. Se alguém busca a reconciliação e encontra o perdão pelo sacramento da volta, deverá ser sinal de reconciliação no meio dos conflitos da sociedade. (...)
Sem a conversão a celebração do sacramento é ofensa a Deus. Significa jogar pérolas aos porcos, querer colocar os gestos da máxima visibilidade de Cristo no mundo sem a adequada purificação interior. Para o encontro deve-se estar com o coração na mão. Para o amor, puro. Para a festa, reconciliado. Sem o preparo, o encontro é formalismo. O amor, paixão. A festa, orgia.”


“Há apenas um deslocamento de atenção. Uma Igreja pensa em Deus, na oração, na missa, nos sacramentos. A outra se fixa mais no amor ao próximo. É praticar justiça mais do que falar de justiça. Mais do que pregar o reino de Deus é realizar o reino de Deus. Uma Igreja não exclui a outra. Mas, no final, seremos julgados mais pelo amor do que pelo número de vezes que fomos à missa, ou por nossa fé nos dogmas, como a Imaculada Conceição ou a infalibilidade do papa.”


“TEOLOGIA COMO CIÊNCIA E VIDA
O teólogo não fala sobre Deus, mas a partir d’Ele. Diante de Seu mistério, o teólogo é mais um contemplativo admirado do que um afoito pesquisador. Neste sentido, cada ser humano é teólogo, pois a todos é dada a experiência de Deus. A teologia tem, aparentemente, um lugar privilegiado que é a geografia eclesial, mas ela se desenvolve, sem pesquisas ou discursos disciplinados, nos espaços concretos das pessoas, pois Deus antes de ser um estudo é uma vivência. O teólogo é um ser perigoso, pois confronta a experiência pessoal de Deus com os discursos da religião. Ele, o teólogo, alimenta duas paixões: uma por Deus e outra pelo povo, e, por isso, diz 0 Autor, “ele não pode ter grande amor ao próprio pescoço”.”


 “É importante distinguir o que é fé e o que é explicação da fé. (...) Acolhemos a fé com o coração aberto, a explicação da fé podemos discutir e até rejeitar. A fé é a resposta à revelação divina, a explicação da fé é a resposta da razão às questões que a fé suscita.”


“Nascida da fé, a teologia deve regressar à fé, alimentá-la e não liquidá-la, torná-la mais lúcida e não mais confusa. Trata-se sim de uma ciência especulativa; para ser teólogo não basta ser piedoso e bom; há que ser inteligente, produzir luz e conhecimentos. Entretanto, a especulação é apenas um momento da teologia; em última instância quer ser uma ciência prática. Ela deve terminar numa práxis de amor e de felicidade. Crer em um só Deus, também o creem os demônios, nos assevera São Tiago (2,19), e certamente possuem uma teologia mais lúcida que a do maior teólogo. Entretanto não possuem o amor e por isso “nada são” (1Cor 15,2). Ver para fazer; conhecer para amar: eis a função última da teologia.”



“A teologia foi por séculos argumentativa. Queria falar à inteligência dos homens e convencê-los da verdade religiosa. Os sucessos foram parcos. Convencia, geralmente, só aos já convencidos. Elaborara-se na ilusão de que Deus, seu desígnio salvífico, o futuro prometido ao homem, o mistério do Homem-Deus Jesus Cristo pudessem ser aceitos intelectualmente sem antes terem sido acolhidos na vida e transformado o coração. Esquecera-se, ao menos ao nível da teologia manualística e no discurso apologético, o fato de que a verdade religiosa jamais é uma fórmula abstrata e o termo de um raciocínio lógico. Primeira e fundamentalmente ela é uma experiência vital; um encontro com o Sentido definitivo. Somente depois, no esforço da articulação cultural, ela é traduzida numa fórmula e é explicitado o momento racional que ela contém.”


“A fé sempre procurou vislumbrar o que significa dizer: Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A fé que procura entender se chama teologia, no caso, cristologia. A teologia (cristologia) não quer nem deve checar a fé. Quer antes, pelo contrário, ajudar e esclarecer a fé. Quer ser uma forma de fé: crítica, racional, científica (se possível), preocupada em analisar melhor a vida de fé, não para violar-lhe a intimidade mas para poder detectar a racionalidade e a lógica graciosa de Deus e poder assim amá-lo de forma mais intensa e humana. O falar cristológico jamais poderá ser um falar sobre Jesus.”


“A estrutura crística é anterior ao Jesus histórico de Nazaré. Ela preexistia dentro da história da humanidade. Todas as vezes que o homem se abre para Deus e para o outro, sempre que se realiza verdadeiro amor e superação do egoísmo, quando o homem busca justiça, solidariedade, reconciliação e perdão aí se dá verdadeiro cristianismo e emerge dentro da história humana a estrutura crística. (...)
Cristianismo é a vivência concreta e consequente na estrutura crística, daquilo que Jesus de Nazaré viveu como total abertura ao outro e ao Grande Outro, amor indiscriminado, fidelidade inabalável à voz da consciência e superação daquilo que amarra o homem ao seu próprio egoísmo.”