quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O enigma do capital: e as crises do capitalismo (Parte III), de David Harvey

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-184-0

Tradução: João Alexandre Peschanski

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 238

Sinopse: Ver Parte I

 


“O problema central a ser abordado é bastante claro. Obter crescimento composto para sempre não é possível, e os problemas que assolaram o mundo nos últimos trinta anos sinalizam que estamos próximos do limite para o contínuo acúmulo de capital, que não pode ser transcendido exceto criando-se ficções não duradouras. Adicione-se a isso o fato de que tantas pessoas no mundo vivem em condições de extrema pobreza, a degradação ambiental está fora de controle, a dignidade humana está sendo ofendida em toda parte, enquanto os ricos estão acumulando mais e mais riqueza para si próprios e as alavancas dos poderes políticos, institucionais, judiciais, militares e midiáticos estão sob controle político estrito, porém dogmático, encontrando-se incapazes de fazer algo além de perpetuar o status quo.

Uma política revolucionária capaz de enfrentar o problema do interminável acúmulo de capital composto e, finalmente, desligá-lo como o principal motor da história humana, requer uma compreensão sofisticada de como ocorre a mudança social. O fracasso dos esforços passados para construir um socialismo e um comunismo duradouros tem de ser evitado e lições dessa história extremamente complicada devem ser aprendidas. No entanto, a absoluta necessidade de um movimento revolucionário anticapitalista coerente também deve ser reconhecida. O objetivo fundamental desse movimento é assumir o comando social sobre a produção e distribuição de excedentes.

Vamos dar outra olhada na teoria da coevolução estabelecida no capítulo 5. Será que isso pode ser a base para uma teoria correvolucionária? Um movimento político pode começar em qualquer lugar (nos processos de trabalho, em torno de concepções mentais, na relação com a natureza, nas relações sociais, na concepção de tecnologias e formas de organização revolucionárias, na vida diária ou nas tentativas de reformar as estruturas institucionais e administrativas, incluindo a reconfiguração dos poderes do Estado). O truque é manter o movimento político movendo-se de uma esfera de atividade para outra, de maneiras que se reforçam mutuamente. Foi assim que o capitalismo surgiu no feudalismo e é assim que algo radicalmente diferente – que podemos chamar socialismo, comunismo ou o que for – deve surgir no capitalismo. As tentativas anteriores de criar uma alternativa comunista ou socialista fracassaram fatalmente em manter em movimento a dialética entre as diferentes esferas de atividade e também não abraçaram as imprevisibilidades e incertezas no movimento dialético entre as esferas. O capitalismo tem sobrevivido precisamente por manter esse movimento dialético e por aceitar as inevitáveis tensões, incluindo as crises, que dele resultam. (...)

Mas a primeira regra para um movimento anticapitalista é: nunca confiar no desdobramento dinâmico de um momento sem calibrar cuidadosamente como as relações com todos os outros estão se adaptando e reverberando.

Possibilidades futuras viáveis surgem do estado atual das relações entre as diferentes esferas. Intervenções políticas estratégicas dentro e entre as esferas podem mover gradualmente a ordem social para um caminho de desenvolvimento diferente. Isso é o que líderes sábios e instituições progressistas fazem o tempo todo em situações locais, por isso não há razão para pensar que haja algo particularmente fantástico ou utópico sobre agir dessa forma.

Em primeiro lugar, deve ser claramente reconhecido, no entanto, que desenvolvimento não é o mesmo que crescimento. É possível desenvolver-se de forma diferente nos campos, por exemplo, das relações sociais, do cotidiano e da relação com a natureza, sem necessariamente retomar o crescimento ou favorecer o capital. É falso afirmar que o crescimento é uma condição prévia para a redução da pobreza e da desigualdade ou que políticas ambientais mais respeitáveis são, como alimentos orgânicos, um luxo para os ricos.

Em segundo lugar, as transformações no âmbito de cada esfera exigem uma profunda compreensão da dinâmica interna, por exemplo, dos arranjos institucionais e das mudanças tecnológicas em relação a todas as outras esferas de ação. Alianças têm de ser construídas entre e por aqueles que trabalham em esferas distintas. Isso significa que um movimento anticapitalista tem de ser muito mais amplo do que os grupos mobilizados em torno de relações sociais ou sobre questões da vida cotidiana. Hostilidades tradicionais entre, por exemplo, aqueles com conhecimentos técnicos, científicos e administrativos e os movimentos de agitação social têm de ser resolvidas e superadas.

Em terceiro lugar, também será necessário enfrentar os impactos e respostas (incluindo hostilidades políticas) provenientes de outros espaços na economia global. Diferentes lugares podem se desenvolver de formas diferentes devido a sua história, cultura, localização e condição político-econômica. Alguns desenvolvimentos em outros lugares podem ser apoios ou complementos, enquanto outros podem ser prejudiciais ou mesmo antagônicos. Alguma competição interterritorial é inevitável, mas não é de todo ruim. Isso depende de sobre o que é a concorrência – índices de crescimento econômico ou condições de vida no cotidiano? Berlim, por exemplo, é uma cidade habitável, mas todos os índices habituais de sucesso econômico inspirados no capitalismo representam-na como um lugar atrasado. O valor dos terrenos e os preços dos imóveis estão lamentavelmente baixos, o que significa que as pessoas de poucos recursos podem encontrar facilmente lugares que não são ruins para viver. Empreendedores são miseráveis. Quem dera Nova York ou Londres fossem mais como Berlim nesse respeito!

Tem de haver, finalmente, alguns objetivos comuns vagamente acordados. Algumas normas gerais como guias podem ser elaboradas. Podem incluir o respeito à natureza, o igualitarismo radical nas relações sociais, arranjos institucionais com base em alguma compreensão de interesses comuns, procedimentos administrativos democráticos (em oposição aos esquemas monetarizados que existem hoje), processos de trabalho organizados pelos produtores diretos, a vida diária como a exploração livre de novos tipos de relações sociais e condições de vida, concepções mentais que incidem sobre a autorrealização a serviço dos outros e inovações tecnológicas e organizacionais orientadas para a busca do bem comum em vez de apoiar a força militarizada e a ganância corporativa. Esses poderiam ser os pontos correvolucionários em torno dos quais a ação social pode convergir e girar. Claro que isso é utópico! Mas e daí! Não temos como não sê-lo. (...)

O igualitarismo radical também funda uma imensa literatura e a ideia parece transcender muitas diferenças geográficas e culturais. Nos Estados Unidos, as pesquisas mostram um profundo apego ao princípio da igualdade como fundamento adequado para a vida política e como a base para organizar as relações sociais entre indivíduos e grupos sociais. A extensão dos direitos civis e políticos a ex-escravos, mulheres, homossexuais e pessoas com deficiência pode ter levado duzentos anos, mas a visão de progresso nessas frentes é inegável, assim como a busca contínua pela igualdade não só entre indivíduos, mas também entre grupos sociais. A maneira pela qual o desprezo por elites nos EUA se mobiliza politicamente (e muitas vezes é pervertido) deriva desse igualitarismo.

Embora o princípio de igualitarismo radical possa parecer irrefutável por si só, problemas surgem da maneira pela qual é articulado com outras esferas de ação. A definição dos grupos sociais é sempre contestada, por exemplo. Por mais que o multiculturalismo possa acomodar o ideal de igualdade entre a maioria dos grupos sociais auto-identificados, permanece o fosso persistente que cria as maiores dificuldades, a questão de classe. Isso se dá porque a desigualdade de classe é central para a reprodução do capitalismo. Portanto, a resposta do poder político existente é ou negar que classes existem ou dizer que a categoria é tão confusa e complicada que se torna analiticamente inútil (como se outras categorias como raça e gênero não o fossem). Dessa forma, escapa-se da questão de classe, negando ou ignorando, tanto na forma hegemônica das construções intelectuais do mundo (digamos, no campo da economia) ou na política prática. A consciência de classe é menos discutida, em comparação com as subjetividades políticas dadas por raça, gênero, etnia, religião, preferência sexual, idade, escolhas dos consumidores e preferências sociais, e mais ativamente negada, exceto por alguns curiosos residuais dos ex-tempos e lugares políticos (como a “velha” Europa).

Claramente, as identidades de classe, como as identidades raciais, são múltiplas e sobrepostas. Trabalho como operário, mas tenho um fundo de pensão que investe no mercado de ações e tenho uma casa que estou reformando aos poucos com meu próprio trabalho e que pretendo vender para alcançar algum ganho especulativo. Isso faz com que o conceito de classe seja incoerente? Classe é um papel, não um rótulo que se atribui às pessoas. Assumimos vários papéis o tempo todo. Não dizemos que é impossível planejar uma cidade decente com base na análise das relações entre motoristas e pedestres só porque a maioria de nós desempenha tanto o papel de motorista quanto de pedestre. O papel do capitalista é usar dinheiro para comandar o trabalho ou os bens dos outros e usar esse comando para gerar lucro, acumular capital e, assim, aumentar seu comando sobre a riqueza e o poder. A relação entre os papéis do capital e do trabalho precisam ser enfrentados e regulados, mesmo dentro do capitalismo. Uma agenda revolucionária implica tornar a relação verdadeiramente clara em oposição à oculta e opaca. Conceber uma sociedade sem acumulação de capital não é diferente em princípio de conceber uma cidade sem carros. Por que não podemos todos apenas trabalhar lado a lado sem qualquer distinção de classe?

O modo como o igualitarismo radical se articula com outras esferas no processo co-evolutivo, portanto, complica as coisas ao mesmo tempo que revela como funciona o capitalismo. Quando a liberdade individual e a autonomia que esta promete são mediadas pelos arranjos institucionais da propriedade privada e do mercado, como ocorre na teoria e na prática liberal, o resultado são enormes desigualdades. Como Marx observou há muito tempo, a teoria liberal dos direitos individuais que se originou com John Locke, escrevendo no século XVII, reforça as desigualdades entre uma nova classe de proprietários emergente e uma classe constituída por aqueles que precisam dispor de sua força de trabalho para viver. Na teoria neoliberal do filósofo/economista austríaco Friedrich Hayek, escrita nos anos 1940, a conectividade é fortemente casada: a única maneira, segundo ele, de proteger o igualitarismo radical e os direitos individuais em face da violência do Estado (isto é, fascismo e comunismo) é instalar o inviolável direito à propriedade privada no coração da ordem social. Essa visão profundamente enraizada tem de ser desafiada diretamente se quisermos enfrentar a acumulação de capital e a reprodução do poder de classe. No campo dos arranjos institucionais, por conseguinte, uma concepção inteiramente nova da propriedade – baseada no sentido comum em vez de nos direitos de propriedade privada – será necessária para que o igualitarismo radical funcione de uma maneira radicalmente igualitária. A luta por arranjos institucionais precisa estar no centro das preocupações políticas.

Isso ocorre porque o igualitarismo radical ao qual o capitalismo se inscreve no mercado rompe quando nos movemos para dentro do que Marx chamou de “a morada escondida” da produção. Desaparece no canteiro de obras, nas minas, nos campos e nas fábricas, nos escritórios e nas lojas. O movimento autonomista está completamente correto ao insistir, portanto, que a realização do igualitarismo radical no processo de trabalho é de suma importância para a construção de uma alternativa anticapitalista. Esquemas de autogestão e auto-organização dos trabalhadores são pertinentes, particularmente quando entrelaçados com as outras esferas de maneira democrática. O mesmo acontece quando tentamos conectar os princípios do igualitarismo radical com a condução da vida diária. Quando mediado pela propriedade privada e pelo regime de mercado, o igualitarismo radical produz falta de habitação para os pobres e condomínios fechados de mau gosto para os ricos. Isso, certamente, não é o que o igualitarismo radical na vida diária deve significar.

Uma crítica dos processos de trabalho e da vida cotidiana mostra como o nobre princípio do igualitarismo radical é pobre e degradado sob o capitalismo, por conta dos arranjos institucionais com os quais se articula. Essa conclusão não deveria ser surpreendente. A propriedade privada e um Estado dedicado a preservar e proteger essa forma institucional são pilares fundamentais para a sustentação do capitalismo, mesmo que o capitalismo dependa de um igualitarismo empreendedor radical para sobreviver. A Declaração dos Direitos Humanos da ONU não protege contra resultados desiguais, fazendo com que a distinção entre direitos civis e políticos, por um lado, e direitos econômicos, por outro lado, torne-se um campo minado de reivindicações e contestações. Karl Marx escreveu certa vez a famosa afirmação: “Entre direitos iguais, a força decide”. Goste-se ou não, a luta de classes torna-se central para a política de igualitarismo radical.

Devem ser encontrados meios para cortar a ligação entre o igualitarismo radical e a propriedade privada. Pontes devem ser construídas com as instituições baseadas, por exemplo, no desenvolvimento de direitos de propriedade comuns e na gestão democrática. A ênfase deve mudar do igualitarismo radical para a esfera institucional. Um dos objetivos do direito à circulação na cidade, para dar um exemplo, é criar um novo bem comum urbano para deslocar o excesso de privatizações e exclusões (associadas tanto com o controle do Estado quanto com a propriedade privada) que deixam em geral grande parte da cidade fora do alcance da maioria das pessoas.

De forma similar, a conectividade entre o igualitarismo radical e a organização da produção e do funcionamento dos processos de trabalho têm de ser repensadas no sentido defendido por coletivos de trabalhadores, organizações autonomistas, cooperativas e várias outras formas coletivas de serviço social. A luta pelo igualitarismo radical exige também uma re-conceitualização da relação com a natureza, na medida em que a natureza não é mais vista como “um grande posto de gasolina”, como o filósofo alemão Martin Heidegger queixou-se nos anos 1950, mas como uma fonte harmônica de formas de vida a preservar, nutrir, respeitar e valorizar intrinsecamente. Nossa relação com a natureza não deve ser guiada pelo objetivo de torná-la uma mercadoria como qualquer outra, nos mercados de futuros de matérias-primas, minerais, água, créditos de poluição e assim por diante, nem pela maximização das rendas de apropriação e valores das terras e recursos, mas pelo reconhecimento de que a natureza é um grande bem comum a que todos têm igual direito, mas para com a qual todos também têm a mesma imensa responsabilidade.”

 

 

“Karl Marx, embora não estivesse de modo algum inclinado a abraçar o idealismo filosófico, considerou as ideias como uma força material na história. Concepções mentais constituem, afinal, um dos sete momentos da sua teoria geral da mudança correvolucionária. Evoluções autônomas e conflitos internos sobre quais concepções mentais passariam a ser hegemônicas, portanto, têm um papel histórico importante a desempenhar. Por essa razão Marx (junto com Engels) escreveu o Manifesto Comunista, O capital e inúmeras outras obras. Esses trabalhos fornecem uma crítica sistemática, ainda que incompleta, do capitalismo e das tendências de sua crise. Mas, como Marx também insistiu, apenas quando essas ideias críticas transitassem para os campos dos arranjos institucionais, formas organizacionais, sistemas de produção, vida cotidiana, relações sociais, tecnologias e relações com a natureza, o mundo realmente mudaria.

Uma vez que o objetivo de Marx era mudar o mundo e não apenas entendê-lo, ideias tinham que ser formuladas com certa intenção revolucionária. Isso significa, inevitavelmente, um conflito com modos de pensamento mais úteis e fáceis de se conviver para a classe dominante. O fato de as ideias de oposição de Marx, particularmente nos últimos anos, terem sido alvo de repetidas repressões e exclusões (sem falar do farto revisionismo e das distorções) sugere que suas ideias podem ser muito perigosas para serem toleradas pelas classes dominantes. Ainda que Keynes declarasse repetidamente que nunca tinha lido Marx, ele foi cercado e influenciado em 1930 por muitas pessoas (como por seu colega economista Joan Robinson) que leram. Embora muitos deles se opusessem veementemente aos conceitos fundamentais de Marx e seu modo dialético de raciocínio, eles estavam bastante conscientes e profundamente afetados por algumas de suas conclusões e previsões. É justo dizer, penso eu, que a revolução da teoria keynesiana não poderia ter sido realizada sem a presença subversiva de Marx, sempre à espreita.

O problema nos dias de hoje é que a maioria das pessoas não tem ideia de quem foi Keynes e o que ele realmente defendia, e para estas o conhecimento de Marx é desprezível. A repressão das correntes críticas e radicais do pensamento ou, para ser mais exato, o confinamento do radicalismo dentro dos limites do multiculturalismo da escolha cultural criam uma situação lamentável na academia e fora dela, que equivale em princípio a ter de pedir aos banqueiros responsáveis pela bagunça que a limpem exatamente com as mesmas ferramentas que eles usaram para produzi-la. A ampla adesão às ideias pós-modernas e pós-estruturalistas que celebram o particular em detrimento do pensamento mais amplo não ajuda. Certamente, o local e o particular são de vital importância, e teorias que não aceitem, por exemplo, a diferença geográfica são inúteis (como me esforcei anteriormente para enfatizar). Mas quando esse fato é usado para excluir qualquer coisa maior do que políticas paroquiais, então, a traição dos intelectuais e a revogação do seu papel tradicional tornam-se completas. Sua Majestade a rainha adoraria escutar, estou certo, que um esforço está a caminho no sentido de por a grande perspectiva em um quadro ornamentado de tal modo que todos possam vê-la.

A atual população de acadêmicos, intelectuais e especialistas em ciências sociais e humanidades é, em geral, mal equipada para realizar tal tarefa coletiva. Poucos parecem predispostos a empreender aquela reflexão autocrítica incitada por Robert Samuelson. Universidades continuam a promover os mesmos cursos inúteis sobre a teoria política da escolha racional ou economia neoclássica, como se nada tivesse acontecido e as faculdades de administração adicionam um curso ou dois sobre ética dos negócios ou sobre como ganhar dinheiro a partir da falência de outras pessoas. Afinal, a crise surgiu da ganância humana e não há nada que possa ser feito sobre isso!

A atual estrutura do conhecimento é claramente disfuncional e ilegítima. A única esperança é que uma nova geração de estudantes com alto senso crítico (no sentido amplo de todos aqueles que pretendem conhecer o mundo) seja capaz de enxergar isso e insista em mudar essa realidade. Isso aconteceu na década de 1960. Em vários outros pontos críticos da história movimentos inspirados por estudantes, reconhecendo a disjunção entre o que acontecia no mundo e o que lhes estava sendo ensinado e transmitido pela mídia, estiveram dispostos a fazer algo a respeito disso. Há sinais em Teerã a Atenas e em muitas universidades europeias de tal movimento. Como a nova geração de estudantes na China vai agir certamente deve ser de grande preocupação nos corredores do poder político em Pequim.

Um movimento revolucionário juvenil conduzido por estudantes, com todas as suas evidentes incertezas e problemas, é uma condição necessária, mas não suficiente, para produzir essa revolução nas concepções mentais que podem nos levar a uma solução mais racional para os atuais problemas de crescimento infinito. A primeira lição que precisa aprender é que um capitalismo ético, sem exploração e socialmente justo que beneficie a todos é impossível. Contradiz a própria natureza do capital.”

 

 

“Qualquer movimento revolucionário tem de criar uma maneira de despossuir os capitalistas de sua propriedade, riqueza e poderes. Toda a geografia histórica das despossessões no capitalismo tem sido repleta de ambivalências e contradições. Embora a violência de classe envolvida no surgimento do capitalismo possa ser repugnante, o lado positivo da revolução capitalista foi que despossuiu as instituições feudais arbitrárias (como a monarquia e a Igreja) e seus poderes, liberou energias criativas, abriu novos espaços e aproximou as regiões do mundo por meio das relações de troca, abriu a sociedade a fortes correntes de mudança tecnológica e organizacional, superou um mundo baseado na superstição e ignorância e substituiu-os com uma ciência esclarecida com a potencialidade de libertar toda a humanidade das necessidades materiais e de carências. Nada disso poderia ter ocorrido sem que alguém em algum lugar fosse despossuído.

Conseguiu tudo isso com um grande custo social e ambiental (sob bastante crítica nos últimos anos). Foi, no entanto, possível ver acumulação por despossessão (ou o que Marx chamou de “acumulação primitiva”) como um estágio necessário, embora feio, pelo qual a ordem social tinha de passar para chegar a um estado em que o capitalismo e uma alternativa chamada socialismo ou comunismo pudesse ser possível. Marx não se preocupou muito ou nada com as formas sociais destruídas pela acumulação original e não argumentou, como alguns fazem agora, pelo restabelecimento das relações sociais ou formas produtivas pré-capitalistas. Era para o socialismo e o comunismo serem construídos sobre os aspectos progressivos do desenvolvimento capitalista. Esses aspectos progressivos incluíram movimentos pela reforma agrária, o surgimento de formas democráticas de governo (sempre manchada pelo papel do poder do dinheiro), a liberdade de informação e expressão (sempre contingente, mas vital) e a criação de direitos civis e legais.

Embora lutas contra a despossessão possam formar um canteiro de descontentamento para movimentos insurgentes, o ponto da política revolucionária não é proteger a ordem antiga, mas atacar diretamente as relações de classe e formas capitalistas do poder do Estado.

Transformações revolucionárias não podem ser realizadas sem no mínimo a mudança de nossas ideias, o abandono de nossas crenças mais caras e preconceitos e de vários confortos diários e direitos, a submissão a um novo regime diário, a mudança de nossos papéis sociais e políticos, a reavaliação de nossos direitos, deveres e responsabilidades e a alteração de nosso comportamento para melhor nos conformarmos com as necessidades coletivas e a vontade comum. O mundo que nos cerca – nossa geografia – deve ser radicalmente reformulado, assim como nossas relações sociais, a relação com a natureza e todas as outras esferas da ação no processo correvolucionário. É compreensível, até certo ponto, que muitos prefiram uma política de negação a uma política de confronto ativo com tudo isso.

Também seria reconfortante pensar que tudo isso poderia ser conseguido pacificamente e de forma voluntária, que nos despossuiríamos a nós mesmos, ficaríamos nus, de certo modo, sem tudo o que possuímos agora que cria um obstáculo no caminho da criação de uma ordem social socialmente mais justa e equilibrada. Mas seria falso imaginar que isso poderia ser assim, que nenhuma luta ativa estaria envolvida, incluindo certo grau de violência. O capitalismo veio ao mundo, como Marx certa vez disse, banhado em sangue e fogo. Embora possa ser possível fazer um trabalho melhor para sair dele do que ficar dentro dele, as chances de uma passagem puramente pacífica para a terra prometida são baixas.”

 

 

“Existem várias grandes correntes de pensamento conflituosas na esquerda quanto à forma de abordar os problemas com que hoje nos confrontamos. Há, acima de tudo, o sectarismo habitual, decorrente da história de ações radicais e as articulações da teoria política de esquerda. Curiosamente, o único lugar onde a amnésia não é tão prevalente é dentro da esquerda (as cisões entre os anarquistas e os marxistas que ocorreu na década de 1870, entre trotskistas, maoístas e os comunistas ortodoxos, entre os centralizadores que querem comandar o Estado e os anti-estadistas autonomistas e os anarquistas). Os argumentos são tão ressentidos e tão turbulentos, que às vezes nos fazem pensar que um pouco mais de amnésia ajudaria. Mas além dessas seitas tradicionais revolucionárias e facções políticas, todo o campo de ação política sofreu uma transformação radical desde a década de 1970. O terreno da luta política e das possibilidades de política mudou, geográfica e organizacionalmente.

Existe hoje um vasto número de organizações não governamentais (ONGs) que desempenham um papel político que era pouco visível antes de meados dos anos 1970. Financiadas por interesses estatais e privados, muitas vezes povoadas por pensadores idealistas e organizadores (que constituem um vasto programa de empregos), e em grande parte dedicadas a questões isoladas (meio ambiente, pobreza, direitos das mulheres, anti-escravidão e tráfico de trabalho etc.), elas se abstêm de uma política estritamente capitalista mesmo defendendo ideias e causas progressistas. Em alguns casos, no entanto, elas são ativamente neoliberais, defendendo a privatização de funções do Estado de bem-estar social ou promovendo reformas institucionais para facilitar a integração de populações marginalizadas no mercado (esquemas de microcrédito e micro-finanças para populações de baixa renda são um exemplo clássico).

Embora existam muitos praticantes radicais e dedicados no mundo das ONGs, seu trabalho é na melhor das hipóteses benéfico. Coletivamente, eles têm um registro irregular de conquistas progressistas, apesar de em certas áreas, como nos direitos da mulher, saúde e preservação ambiental, ser possível afirmar que fizeram grandes contribuições para o bem humano. Mas a mudança revolucionária a partir das ONGs é impossível. Elas são muito limitadas pelas instâncias políticas e de formulação de políticas dos seus mantenedores. Assim, por mais que possam apoiar a capacitação local ao ajudar na abertura de espaços onde as alternativas anticapitalistas se tornam possíveis e até mesmo apoiar a experimentação com essas alternativas, elas são inócuas para impedir a reabsorção dessas alternativas para a prática capitalista dominante: elas até mesmo a encorajam. (...)

Os poderes de auto-organização das pessoas nas situações cotidianas em que elas vivem têm de ser a base para qualquer alternativa anticapitalista. A formação de redes horizontais é seu modelo de organização preferido. As chamadas “economias solidárias” baseadas em trocas, sistemas coletivos e de produção local são sua forma político-econômica preferida. Eles normalmente se opõem à ideia de que qualquer direção central possa ser necessária e rejeitam as relações sociais hierárquicas ou estruturas de poder político hierárquico, juntamente com os partidos políticos tradicionais. Organizações desse tipo podem ser encontradas em todos os lugares e em alguns locais atingiram um alto grau de proeminência política. Alguns deles são radicalmente anticapitalistas na sua postura e defendem objetivos revolucionários e, em alguns casos, estão dispostos a defender a sabotagem e outras formas de desordem (as Brigadas Vermelhas na Itália, o Meinhoff Baader na Alemanha e o Weather Underground nos Estados Unidos, na década de 1970). Mas a eficácia de todos esses movimentos (deixando de lado os mais violentos) é limitada pela relutância e pela incapacidade para elevar proporcionalmente seu ativismo a formas de organização capazes de enfrentar os problemas globais. A presunção de que a ação local é o único nível significativo de mudança e que tudo o que cheira a hierarquia é antirrevolucionário é, na verdade, autodestrutiva quando se trata de questões maiores. No entanto, esses movimentos estão, inquestionavelmente, fornecendo uma base ampla para a experimentação com políticas anticapitalistas.”

 

 

“Comunistas, asseveraram Marx e Engels em sua concepção original apresentada no Manifesto Comunista, não pertencem a partidos políticos. Eles simplesmente constituem-se em todos os momentos e em todos os lugares como aqueles que entendem os limites, deficiências e tendências destrutivas da ordem capitalista, bem como as inúmeras máscaras ideológicas e falsas legitimações que os capitalistas e seus apologistas (sobretudo nos meios de comunicação) produzem para perpetuar seu poder de classe. Comunistas são todos aqueles que trabalham incessantemente para produzir um futuro diferente do que anuncia o capitalismo. Essa é uma definição interessante. Ainda que o comunismo institucionalizado tradicional esteja morto e enterrado, há sob essa definição milhões de comunistas ativos de fato entre nós, dispostos a agir de acordo com seus entendimentos, prontos para exercer criativamente imperativos anticapitalistas. Se, como o movimento de globalização alternativa dos anos 1990 declarou, “Um outro mundo é possível”, então por que não dizer também “Um outro comunismo é possível”? As atuais circunstâncias do desenvolvimento capitalista requerem algo desse tipo, se realmente desejamos alcançar a mudança fundamental.

O comunismo é, infelizmente, um termo tão carregado que é difícil reintroduzi-lo, como agora alguns querem fazer, no discurso político. Nos Estados Unidos é muito mais difícil do que, digamos, na França, Itália, Brasil ou até mesmo na Europa central. Mas de certa forma o nome não importa. Talvez nós devamos apenas definir o movimento, nosso movimento, como anticapitalista ou chamar-nos de Partido da Indignação, prontos para lutar e derrotar o Partido de Wall Street e seus acólitos e defensores em todos os lugares, e que assim seja. A luta pela sobrevivência com justiça não só continua, mas recomeça. Na medida em que a indignação e o ultraje moral se constroem em torno da economia da despossessão que de modo tão claro beneficia uma classe capitalista aparentemente todo-poderosa, movimentos políticos necessariamente tão diferentes começam a se fundir, transcendendo as barreiras do espaço e do tempo.

Entender a necessidade política disso exige em primeiro lugar que o enigma do capital seja desvendado. Uma vez que sua máscara é arrancada e seus mistérios são postos a nu, é mais fácil ver o que tem de ser feito e por quê, e como começar a fazê-lo. O capitalismo nunca vai cair por si próprio. Terá de ser empurrado. A acumulação do capital nunca vai cessar. Terá de ser interrompida. A classe capitalista nunca vai entregar voluntariamente seu poder. Terá de ser despossuída.

Fazer o que tem de ser feito exigirá tenacidade e determinação, paciência e astúcia, juntamente com compromissos políticos firmes, nascidos fora da indignação moral em relação ao que o crescimento composto explorador faz com todas as facetas da vida, humana e não apenas, no planeta Terra. Mobilizações políticas suficientes para tal tarefa ocorreram no passado. Podem e certamente virão outra vez. Estamos, penso, atrasados.”

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