segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Introdução à Teologia: perfil, enfoques, tarefas – J. B. Libanio e Afonso Murad

Editora: Loyola
ISBN: 978-85-1501-421-7
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 376
Sinopse: A teologia situa-se no cruzamento de duas experiências andagônicas: Uma manifesta-se prenhe de esperança. Como nunca em nossas terras, a teologia é procurada, ensinada e praticada, desde as formas mais simples, nas comunidades eclesiais de base, até as mais sofisticadas, nos institutos teológicos. Outra veste-se de suspeitas, quando a teologia é vista com reservas e até desdém.
No céu da teologia, lucilam estrelas de esperança. A noite escura que baixara, em dado momento, sobre o escampo teológico, vem sendo vencida lentamente por riscos luminosos.
Não se trata ainda de nenhuma aurora boreal. O que desponta é uma sincera luminosidade, alimentada por fatos novos.
Analisar esses fatos para ressignificar o que seja fazer teologia em nossos tempos é o propósito desta Introdução, pensada a partir da necessidade de equilíbrio entre o desânimo preguiçoso em face do descrédito e o afago fácil de situações gratificantes. Há uma exigência incontrolável de estudar teologia nos dias de hoje e, ao mesmo tempo, de aprofundar a inserção consciente, a presença participada junto às pessoas. Dessa conjunção virá a nova feição da teologia, com perfil, enfoques e tarefas insuspeitados.

“É sempre difícil fazer beber um asno que não está com sede.” (Provérbio francês)


“A teologia difere das outras ciências no sentido de querer ser mais companheira do que objeto a ser conhecido. As ciências oferecem elementos para que se organize, se pense, se construa o mundo e se aja nele. A teologia prefere dispor-se, de maneira gratuita, a ser companheira de viagem da solidão do homem moderno.
A vida humana intercala-se, como curto lapso diurno, entre duas gigantescas noites. A noite da não-existência. Ontem não éramos. Esse ontem recua bilhões de anos até o big-bang. E antes dele paira o silêncio do nada. Após a morte, abre-se nova noite escura sem término. Entre essas duas ameaças do caos inicial e final, o ser humano caminha solitário, sem luz. A teologia, ao fazer-se companheira, quer contar-lhe as estórias de Deus que lhe permitem encontrar sentido para esta aventura tão breve entre os infinitos do ontem e do amanhã.
A solidão desse viandante moderno, além dessa dimensão ontológico-existencial inexorável de originar-se da escuridão da noite do não-existir e para ela caminhar, vê-se acrescida pelo peso das condições históricas da modernidade e pós-modernidade liberal e seu reverso de exclusão. No lado avançado da modernidade liberal, a solidão veste-se do insaciável individualismo consumista. Quanto mais o cidadão da modernidade mergulha no oceano de seus interesses egoísticos, no afã inesgotável de buscar-se só a si mesmo, tanto mais o persegue a tristeza solitária de seu eu vazio. E, no Terceiro Mundo da pobreza, a dor da fome, a preocupação com o futuro inseguro, a morte “antes do tempo” espreitam ameaçadoras e tenebrosas, envolvendo as pessoas em doloroso penar.
Nesse momento, brotam as histórias do consolo. Algumas superficiais, mentirosas, enganadoras, alienantes. Nisso a mídia capitalista se especializou. A teologia sente a vocação de contar as mais belas histórias de conforto e consolo, hauridas na Palavra de Deus. O “era uma vez” divino adquire seu pleno significado. A teologia quer acompanhar o viajante moderno nessa peregrinação, contando-lhe as histórias da proximidade de Deus ao homem e das possibilidades da proximidade do homem a Deus.”


“A primeira chave da sabedoria é a interrogação assídua e frequente... é duvidando que se chega à investigação, e investigando que se chega à verdade.” (Pedro Abelardo)


“Se Deus não desse ao homem nenhuma outra capacidade senão a de amar, isto lhe bastaria para se salvar.” (Santo Frei Boaventura)


“O conceito “teologia” situa-se numa sequência de movimentos que terminam em Deus. Trata-se, antes de tudo, de operação intelectual humana. Configura-se determinado tipo de saber, de conhecimento. Esforço de compreensão que a inteligência humana empreende.
O ser humano quer compreender sua fé. Pela fé, ele lança ponte intermédia que o liga a Deus. Não quer fazer qualquer estudo de Deus. Mas intenta aprofundar, justificar, esclarecer seu ato de fé nele. Por tanto, a teologia define-se como reflexão crítica, sistemática sobre a intelecção de fé. E a fé termina em Deus e não nos enunciados a respeito de Deus, como muito bem explicita Santo Tomás.
Actus credentis non terminatur ad enuntiabile, sed ad rem.”18 O ato do que crê não termina no enunciado, mas na coisa.
Nesse sentido, a teologia trata de Deus, mas mediado pela fé, pela acolhida de sua Palavra, que, por sua vez, nos vem comunicada pela revelação transmitida na Tradição da Igreja — escrita, vivida, pregada, celebrada, testemunhada.”
18. Santo Tomás, Suma teológica, II II q. 1 a. 2, ad 2m.


“Tanto mais importante se faz o aspecto eclesial da teologia quanto mais os tempos pós-modernos favorecem a extrema individualização da fé. Cada um sente-se convidado a construir por si sua religião própria, descurando a comunidade. A teologia cristã não pode ser pensada fora da vivência comunitária, no sentido de lugar de realização e de destino último. A teologia elabora-se no interior da comunidade e em vista de sua fé. O indivíduo nutre-se dela como membro da comunidade.
Todo teólogo elabora suas reflexões como membro da Igreja. Sua teologia assume as questões, os problemas, as angústias, as dúvidas que lavram dentro das comunidades. Elabora-as com clareza e didática paia devolvê-las à comunidade como alimento de sua fé. Mais. A comunidade toma-se instância crítica de sua teologia. Se esta não responde a seus problemas, se não se deixa entender por ela, se não a ajuda a crescer, o teólogo, com razão, deve suspeitar da validade de sua teologia. E todo esse processo de teologizar exige ser feito em sintonia com a vida da comunidade.
A teologia, no fundo, se resume em transpor para a linguagem a experiência da fé, como acolhida da revelação.”


“Impossível afirmar o que é Deus positivamente. O conhecimento de Deus não é o não-conhecimento, mas sim um desconhecimento. No referente a Deus, todo progresso de conhecimento é paradoxalmente um progresso de desconhecimento; o caminho vai em direção às trevas, em direção à negação de tudo o que cremos saber ou provar de Deus. É o caminho dos místicos, de todos os que experimentam a Deus como uma queimadura em sua existência, a prova da noite e do deserto. É o caminho que nos livra da ilusão, do imaginário, para aproximar-nos da verdade que nos conduz em direção à profundidade de nós mesmos. Aprender a conhecer a Deus é, em primeiro lugar e a cada momento, dirigir-nos em direção a nós mesmos, é aprender a conhecer-nos, a aceitar o que procede de nós e sabê-lo criticar. A cada passo, conhecer a Deus é livrar-nos de nossos falsos deuses, pré-fabricados cada dia, imagens fantasiosas ou sublimadas do próprio eu. Tudo isto não é Deus. Desta maneira, Deus não está aqui ou ali, Deus está constantemente em outro lugar. Em último termo, Deus está ausente. Resta-nos o nada, na linguagem de São João da Cruz.” (E. Vilanova, Para comprender la teologia, Estella, Verbo Divino, 1992, p. 28)


“1. Teologia é a fé cristã vivida em uma reflexão humana (Schillebeeckx, Revelação e teologia, 1968, pp. 92).
2. Teologia é uma atividade da fé, ciência da fé e função eclesial (Z. Alszeghy-M. Flick, Como se faz teologia, 1979, pp. 13-38).
3. Faz-se teologia quando se vive uma existência autenticamente cristã, mesmo sob o prisma intelectual, interpretando criticamente a realidade eclesial, segundo as exigências da Palavra de Deus, no contexto epistemológico do próprio ambiente cultural (Z. Alszeghy-M. Flick, Como se faz teologia, 1979, pp. 256).
4. Teologia é a atividade complexa do espírito pela qual o homem, que crê, busca melhor penetrar o sentido do que ele crê, para melhor aprofundá-lo e compreendê-lo (P. Adnès, La théologie catholique, 1967, p. 9).
5. Teologia é uma ciência pela qual a razão do cristão, recebendo da fé certeza e luz, se esforça pela reflexão de compreender o que crê, isto é, os mistérios revelados com suas consequências. Em sua medida, ela se conforma à ciência divina (Y. Congar, La Foi et la Théologie, 1962, p. 127).
6. Teologia faz com que a fé, mediante um movimento de inclinação espiritual e de reflexão, procure um entendimento do que crê, sem, por isso, deixar de ser fé (A. Darlap, Mysterium Salutis, 1971, p. 13).
7. Teologia trata de Deus, enquanto Ele se abre ao homem em sua Palavra, e esta Palavra é recebida na fé (A. Darlap, Mysterium Salutis, 1971, p. 15).
8. Teologia é a ciência de Deus a partir da revelação; é a ciência do objeto da fé; a ciência daquilo que é revelado por Deus e crido pelo homem (R. Latourelle, Teologia, ciência da salvação, 1971, p. 16).
9. Elas (as teologias) são um esforço de tradução para a razão (doutrina), para a prática (ética) e para a celebração (liturgia) desta experiência fundante, a saber, um encontro com Deus que envolve a totalidade da existência, o sentimento, o coração, a inteligência, a vontade (L. Boff, Ecologia, mimdiatização, espiritualidade, 1993, p. 149).
10. A teologia não é senão a própria fé vivida por um espírito que pensa, e este pensamento não para nunca; a teologia é a fé científica elaborada — “fides in statu scientiae” (E. Schillebeeckx, Revelação e teologia, 1968, pp. 333, 335).
11. A teologia é a busca de inteligibilidade do dado revelado à luz da fé ou, mais simplesmente, a ciência de Deus na revelação (P. Hitz, “Théologie et catéchèse”, in: NouvRevTh 77, 1955, pp. 902s).
12. Teologia é uma reflexão metódica, sistemática sobre a fé cristã.
13. Teologia é um discurso coerente sobre a fé cristã, uma reflexão crítica sobre a experiência cristã de Deus, do homem, do mundo, de si; uma reflexão sobre o conteúdo vivo da fé e sobre a finalidade salvífica do homem.
14. É uma linguagem coerente, científica sobre a linguagem da revelação e da fé. Reflexão sobre a interpelação da Palavra de Deus, acontecida de modo irreversível e absoluto em Jesus Cristo, e sobre a resposta do homem na história.
15. É reflexão organizada sobre a Palavra de Deus, manifestada em Jesus Cristo para a salvação do mundo. Ciência dessa Palavra de Deus. Reflexão sistematizada dos cristãos sobre sua fé em Jesus Cristo e sua experiência cristã num tempo e cultura determinados.
16. Teologia não é uma ciência que descreve a Deus, mas sim que se refere a Ele (C. Mooney).
17. Teologia como história é pensamento do êxodo enquanto determinado pelo advento, e também pensamento do advento enquanto mediado nas palavras e nos eventos do êxodo humano: pensamento reflexivo e crítico da existência crente, marcada pelo Mistério, autoconsciência reflexiva da fé da comunidade cristã, emergente da revelação, que se toma resposta pessoal, em motivada decisão de se dispor no “seguimento de Cristo” (B. Forte, A teologia como companhia, memória e profecia, 1991, p. 131).
18. Teologia é a expressão linguística da autoconsciência crítica da experiência eclesial: é dizer o advento (de Deus) com as palavras do êxodo (caminhar humano histórico); é carregar o caminho do êxodo com a transcendência do advento (B. Forte, op. cit, 1991, p. 131).”


“Não pretendo, Senhor, penetrar a tua profundidade, porque de forma alguma a minha razão é comparável a ela; mas desejo entender de certo modo a tua verdade, que o meu coração crê e ama. Não busco, com efeito, entender para crer, mas creio para entender20.”
20. Santo Anselmo, Proslogion, Prooem: 158, 227.


“Santo Hilário, em seu livro sobre a Trindade, falando da verdade, assim se expressa: ‘Em tua fé, empreende, progride, esforça-te. Sem dúvida, jamais chegarás ao termo, eu o sei, mas felicito-te pelo teu progresso. Quem persegue com fervor o infinito, avança sempre, mesmo se por acaso não chega ao fim. Todavia, acautela-te ante a pretensão de penetrar o mistério, ante o risco de te afundares no segredo de uma natureza que te possa parecer sem limites, imaginando que estás compreendendo tudo. Procura entender que esta verdade ultrapassa toda e qualquer compreensão” ‘ (Santo Tomás, Suma contra os gentios I, VIII).”


“As comunidades cristãs de base aprenderam que a melhor maneira de interpretar a página da Escritura é confrontá-la com a página da vida. Neste confronto aparece uma verdade que atravessa as Escrituras cristãs de ponta a ponta: a íntima conexão que existe entre Deus-os pobres-e a libertação. Deus é testemunhado como o Deus vivo e doador de toda a vida. Ele não é como os ídolos, que são mortos e exigem sacrifícios. Esse Deus, por sua própria natureza vital, sente-se atraído por aqueles que gritam porque se lhes está tirando a vida pela opressão. Ele faz sua a luta de resistência e de libertação dos oprimidos” (L. Boff, Ecologia, mundialização, espiritualidade. A emergência de um novo paradigma, São Paulo, Ática, 1993, [série: Religião e Cidadania], pp. 124, 120, 98, 99).”


“A Teologia da Libertação (TdL) lança suas raízes no solo experiencial e eclesial da percepção teologal da presença de Deus no pobre, no explorado e em sua luta pela libertação. Deus não se silencia totalmente na face machucada do pobre, mas manifesta-se operoso na ação fraterna de libertação13.
Por isso, a TdL arranca sobretudo da vivência do povo oprimido, dominado, empobrecido, que toma consciência de sua situação de miséria e se organiza para realizar o projeto de Deus sobre a humanidade: viver em fraternidade, em justiça, em dignidade. E a TdL procura ver o sentido teologal, transcendente de todo esse processo.”
13. J. B. Libanio, Teologia da libertação. Roteiro didático para um estudo, col. Fé e Realidade, n. 22, São Paulo, Loyola, 1987, pp. 103-116.


“Se a situação histórica de dependência e dominação de dois terços da humanidade, com seus trinta milhões anuais de mortos de fome e desnutrição, não se converte no ponto de partida de qualquer teologia cristã hoje, mesmo nos países ricos e dominadores, a teologia não poderá situar e concretizar historicamente seus temas fundamentais. Suas perguntas não serão perguntas reais... Por isso é necessário salvar a teologia de seu cinismo. Porque realmente, diante dos problemas do mundo de hoje, muitos escritos de teologia se reduzem a um cinismo. (H. Assmann, tirado de: J. J. Tamayo-A costa, Para comprender la teologia de la liberación, Estella, Verbo Divino, 1991, p. 140)”


“A experiência do mistério de Deus não consiste somente em saber-se remidos por Ele, mas em saber-se exigidos por Ele. (...) A prática da justiça, de novo, concretiza, radicaliza e torna evidente a exigência de Deus e a urgência de realizar esta exigência.” (J. Sobrino, Ressurreição da verdadeira igreja, São Paulo, Loyola, 1982, pp. 65-67)


“Enquanto a tarefa da teologia pode ser definida como sendo a tentativa de situar o mistério de Deus e do homem na história da cultura e extrair-lhe o sentido em termos de validade última, é a universalidade concreta da existência pessoal e cultural que julga tanto os juízos da teoria como os da práxis.
Em outras palavras, enquanto a teologia é compelida por sua energia teórica a articular um juízo acerca do homem e da cultura, é a existência cultural dos seres pessoais que decide sobre a adequação deste juízo. Uma vez que esta existência encontrou suas expressões num sem-número de constelações culturais, o estudo destas constelações é não apenas uma questão de orientação teórica, mas também de verificação interna sem a qual também a teologia está condenada a ficar sem sentido.” (Wilhelm Dupré, “O etnocentrismo e o desafio da realidade cultural”, in: Concilium 155, 1980, pp. 14s.)


“A “teologia das religiões” insere-se como disciplina teológica em algumas faculdades de teologia, devido ao desafio levantado por distintas manifestações religiosas atuais. Aos poucos se percebe que a problemática atinge o fulcro da compreensão sobre a natureza e função do cristianismo. Assim, a teologia das religiões passa a ser um interesse, um foco, que traz luz nova para várias áreas do saber a partir da fé. O enfoque macroecumênico leva para o interior da reflexão teológica a espinhosa questão do valor revelador e salvífico das religiões não-cristãs, até que ponto e em que intensidade elas manifestam a presença do Deus vivo e verdadeiro, e em que medida oferecem os meios para acolher a graça divina, que liberta e conduz à comunhão plena com Deus.
Uma resposta equilibrada encontra-se na equidistância entre as posições exclusivistas e pluralistas-relativistas. No primeiro caso, considera-se o cristianismo a única religião verdadeira. As outras apenas manifestam mentira e erro, servem à idolatria. No segundo caso, aceitam-se todas as religiões como igualmente verdadeiras, portadoras de graça. O cristianismo seria apenas manifestação privilegiada do fenômeno religioso e da revelação do único Deus, destinada sobretudo ao Ocidente. As religiões, caminhos que correm paralelos, se encontrarão no comum horizonte do infinito, ao término do peregrinar humano. Ao buscar-se uma “teologia universal das religiões”, acaba-se em abstração simplista.
A posição inclusivista intenta esquivar-se dos dois extremos. Sustenta que todas as religiões participam, em diferentes graus, da verdade da única religião. O evangelho é o critério decisivo de juízo, ao qual está submetida a própria religião cristã. K. Rahner, um de seus principais protagonistas, defende que as grandes religiões são preparação para o cristianismo e se constituem verdadeira mediação de salvação, malgrado suas limitações, até que o cristianismo se encarne como mensagem significativa em suas culturas de origem.
H. Küng utiliza critério humanista supra-religioso: “Uma religião é verdadeira e boa na medida em que serve a toda a humanidade, na medida em que, em suas doutrinas de fé e costumes, em seus ritos e instituições, fomenta a identidade, a sensibilidade e os valores humanos, permitindo assim ao homem alcançar uma existência rica e plena”21.
Outra versão, tematizada por Torres Queiruga22, considera como verdadeiras todas as religiões, pois nelas se capta de fato, embora nem sempre adequadamente, a presença de Deus. O Transcendente, a partir de si mesmo, chega ao ser humano e se abre a ele. Em contrapartida, a pessoa o acolhe como dom. A captação desta presença de Deus, no entanto, pode aparecer obscurecida e deformada. Deus está provisionalmente nas religiões, no meio das deficiências de efetiva realização histórica. Elas, absolutamente relativas, vivem em interação com o cristianismo, religião relativamente absoluta. Experimentando também precariedade histórica, o cristianismo tem de aprender muito, no contato respeitoso e cordial com as outras religiões. Não renuncia, porém, sua autoconsciência sobre o “em si” absoluto da comunicação de Deus, em Cristo.
Existe consenso em que há um progresso no conhecimento e na compreensão da revelação, apontando para a consumação escatológica. Embora em Jesus Cristo tenha sido concedida a plenitude da verdade de Deus, ainda não dispomos dela totalmente, devido à limitação e pecaminosidade humanas. A verdade cristã se densifica na pessoa de Jesus Cristo, por quem devemos nos deixar possuir, num empreendimento sem fim. Nesse processo, os cristãos aprendem e recebem de outras tradições religiosas valores positivos e luzes para seu caminhar. Diálogo inter-religioso se transforma então em dever e necessidade. A teologia, como desenrolar da fé, interpretação e explicitação dos dados revelados, deve incorporar a alteridade religiosa no método e no conteúdo.”
21. H. Küng, Teologia para la postmodernidad, Madrid, Alianza, 1989, p. 194.
22. A. Torres Queiruga, La revelación de Dios en la realización dei hombre, Madrid, Cristianidad, 1987, pp. 29-31, 387-389, 467-470 [ed. bras. Paulus, 1996].


“A cultura envolve a globalidade da vida de cada grupo humano, em três diferentes níveis. O nível imaginário compreende sonhos, mitos, esperanças; o simbólico diz respeito à representação material, social ou cognitiva, e o nível real à produção e utilização de objetos materiais. Tanto os três subsistemas culturais — o material, o social e o interpretativo — como os três “registros” (imaginário, simbólico, real) interagem constantemente23. No que interessa à pastoral e à teologia, define-se cultura como “o conjunto de sentidos e significações, de valores e padrões, incorporados e subjacentes aos fenômenos perceptíveis da vida de um grupo humano ou sociedade concreta. Este conjunto, consciente ou inconsciente, é vivido e assumido pelo grupo como expressão própria de sua realidade humana e passa de geração em geração, conservando assim como foi recebido ou transformado efetiva ou pretensamente pelo próprio grupo”24.
A inculturação, por sua vez, compreende “o processo de evangelização pelo qual a vida e a mensagem cristãs são assimiladas por uma cultura, de modo que não somente elas se exprimam com os elementos próprios da cultura em questão, mas se constituam em um princípio de inspiração, a um tempo norma e força de unificação, que transforma e recria essa cultura”25. De forma plástica, a inculturação se faz como estrada de mão dupla. De um lado, os evangelizadores e sua mensagem passam por “kénosis” e purificação, acolhendo, valorizando e assumindo elementos de uma cultura, a ponto de transmutar elementos importantes de seu discurso e identidade. De outro lado, a boa nova cristã ilumina e transforma a cultura.”
23. P. Suess, “Cultura e religião”, in: — (org.), Cultura e evangelização, São Paulo, Loyola, 1991, pp. 46s.
24. M. Azevedo, Entroncamentos e entrechoques. Vivendo a fé em um mundo plural, São Paulo, Loyola, 1991, pp. 56s.
25. M. Azevedo, op. cit., p. 226.


“A pluralidade da teologia não se fundamenta no pluralismo do mundo moderno, embora seja estimulado por ele. Mesmo com muitos elementos positivos, o pluralismo da sociedade mostra-se como fragmentário, centrífugo, fruto da crise de valores consensuais e da luta de interesses de grupos, espaço privilegiado de afirmação do individualismo. A pluralidade da teologia, por sua vez, se baseia na encarnação do Verbo, no mistério de Deus, não plenamente abarcável por nenhuma formulação humana, e na dimensão escatológica da verdade da revelação. A pluralidade dos enfoques não produz somente e primariamente efeito desconstrutor, como muitas correntes de pensamento e movimentos pós-modernos. Ao contrário, como filhos da Igreja, visam enriquecer construtivamente o patrimônio vivo da tradição, ajudar a comunidade eclesial a encarnar a boa nova do Evangelho de Jesus Cristo. A teologia não se define como discurso do fragmento, mas do mosaico: articula e dá sentido, com consciência de sua provisoriedade, aos elementos que se lhe apresentam.”


“Se queremos compreender o lugar da interpretação espiritual nos primeiros séculos cristãos, é necessário recordar que ela está diretamente em relação com o mais importante dos problemas que foram levantados ao cristianismo de então, a saber, a significação a dar ao Antigo Testamento. Os cristãos se encontravam entre os judeus, de um lado, que continuavam a afirmar seu valor literal e praticar a Lei mosaica, e, de outro, os gnósticos que o rejeitavam como a obra do Demiurgo e uma parte de sua criação fracassada. Ora, estas duas doutrinas têm em comum que entendiam o Antigo Testamento unicamente no sentido literal. (...) Os cristãos tomaram consciência de sua posição original: a oposição entre os dois Testamentos era a do imperfeito e do perfeito; ela supõe um progresso. Ora, faltava a noção para o pensamento antigo pensar a relação entre os dois Testamentos. O Antigo Testamento teve durante um tempo seu valor, mas este valor era de ser preparação e prefiguração do Novo. Doravante está superado em sua literalidade, mas conserva seu valor de figura.” (J. Daniélou, Origène, Paris, La Table Ronde, 1948, p. 146)


“Qualquer ato de conhecer passa necessariamente pela pessoa. Ao interpretar, o sujeito cognoscente manifesta sua identidade, imprime sua maneira de ser. O conhecimento nunca é totalmente objetivo. Quando alguém lê a realidade, interpreta-se a si e define-se diante dela.
O teólogo ou qualquer outro cristão possui uma “pré-compreensão” (“Vorverstãndnis”), derivada do somatório de experiências vividas, refletidas e assimiladas. A pré-compreensão exerce efeito seletivo sobre o conhecimento. Atua como um filtro, deixa passar alguns elementos e retém outros. Dirige a luz para uns aspectos e deixa na sombra outros. É função da teologia tanto levar em conta a participação ativa do sujeito que conhece, faz, lê e ouve teologia, como evitar que ela se reduza a mera produção subjetiva. A reflexão teológica defronta-se com a pergunta de fundo: “Que sentido tem, para o homem/mulher de hoje, determinado tema? Em particular, que aspectos de sua existência podem ser iluminados pela fé?”
O indivíduo não paira no ar. Seu espaço vital transcende a pura subjetividade. A existência pessoal, de valor inegável e irredutível, constrói-se na sociedade. Na América Latina, verdadeiro abismo separa os mais ricos e os mais pobres. Pequena elite escandalosamente consome o melhor do que se produz no mundo e uma multidão enorme de famintos não tem acesso ao mínimo humano. Os “pobres” e “oprimidos” de ontem formam o contingente gigantesco da “massa sobrante” dos excluídos, condenados a viver em condições aviltantes.
O perverso processo, que conduz ao empobrecimento, não deriva de calamidades imprevisíveis ou de carência de recursos naturais, mas de mecanismos definidos. Sustenta-se numa ideologia (forma de pensar parcial, veículo dos interesses da classe dominante) que encontra formas de expressão na religião, nos hábitos sociais, na escola e nos meios de comunicação de massa. Nesse contexto, a hermenêutica teológica assume, em primeiro lugar, função desideologizadora. Ajuda a remover as inferências da ideologia dominante, que entrou no discurso cristão. Realiza-se a “libertação da teologia”, tarefa preconizada por J. L. Segundo. Em segundo lugar, a fé se faz práxis humanizadora, criadora de relações sociais mais justas e fraternas, por meio da teologia da libertação e da prática libertadora.”


“A tarefa crítico-construtiva reúne duas características. Enquanto crítica, questiona, desinstala e purifica. Enquanto construtiva, justifica, harmoniza e integra. A função crítica, se exercitada unilateralmente, cria um vazio, insegurança insuportável a longo prazo. Mostrados os limites e escolhos, não se antevê ainda saída possível. A função construtiva, se desprovida da crítica, toma-se sujeita a manipulações de toda sorte, servindo para consolidar o “status quo”. Cada elemento tem seu momento de maior expressão, mas ambos caminham juntos, se compreendidos como dois polos de relação dialética. As duas fases do profetismo judaico ilustram bem esta relação.
No tempo do reinado, o profetismo se caracteriza especialmente pela crítica. Relativiza o culto e a monarquia, denuncia a injustiça, ruma à conversão. No tempo do exílio, o mesmo profetismo assume outra face. Preferencialmente consola o povo desesperado e triste, cimenta a esperança, resgata as experiências positivas do passado, caídas no olvido. Valoriza as manifestações de resistência. Nas duas fases está presente o mesmo espírito profético, com seu zelo pela aliança, a ira contra a idolatria e a promessa do novo tempo, mas com acentos distintos. Os tempos próximos ao Novo Testamento testemunham a produção da literatura sapiencial, que se seguiu ao profetismo. Ela intenta coonestar o valor da presença de Deus no cotidiano, ao tecer reflexões sobre a vida e a morte. Diferencia-se sobremaneira do primeiro profetismo, mas bebe na mesma fonte da aliança, buscando fidelidade a Deus.”


“Fatores subjetivos exercem imensa influência numa discussão. Requisitos de natureza psicológica fazem-se necessários para um diálogo produtivo, tais como posse de si e abertura ao diverso em são equilíbrio. Sem a necessária autoconfiança, segurança em suas capacidades e convicções, autoestima, certeza de que se tem algo original e que vale por si mesmo, não se dialoga. Indivíduos com complexo de inferioridade e baixa autoestima tendem a considerar os outros como ameaça em potencial, que perturbam tanto as verdades que ele defende, como a sua própria pessoa. O diálogo degrada-se, neste caso, em luta, em que cada um se entrincheira no próprio mundo. Evitando o extremo da capitulação incondicionada ou perda de identidade, requer-se a flexibilidade ao diferente e a abertura à alteridade do outro.”


“A teologia é ciência fascinante. Seus protagonistas, longe de se verem sufocados por um saber anacrônico e rígido, sentem em si mesmos os apelos do Espírito, para contribuir na grande tarefa de repensar e reinventar a fé cristã, em continuidade com a tradição viva da Igreja. No interior dessa missão, algumas funções específicas aparecem no horizonte do teólogo com certa urgência. Outras serão as de sempre. Importa responder a elas, de corpo e alma, intelecto e coração.
O teólogo, no dizer de C. Boff, é um arquiteto, pois reorganiza o material teológico até que se constitua numa construção orgânica. Contribui, com sua criatividade e competência, para que a comunidade eclesial faça sua morada em diferentes contextos sócio-históricos e culturais. Cada casa terá sua forma e padrão, mas será o mesmo lar, onde se vive a fraternidade e se anuncia a boa nova.”


“Estudar é sempre uma aventura. Estudar teologia é lançar-se em jogo mais arriscado, já que está em questão o valor máximo de nossa existência: seu sentido transcendente de ser. Não se arranha nenhuma periferia da vida, mas toca-se o cerne mesmo de nosso existir.
Risco e fascínio caminham juntos. Se a pós-modernidade ameaça embotar a capacidade de ousadia e de maravilhamento das pessoas, o estudante de teologia é chamado a sobrepor-se a essa conjuntura. Sem entusiasmo, sem coragem, sem audácia não se penetra o universo da teologia. Mas, do outro lado, requer-se também humildade e docilidade à força cogente da Palavra de Deus para adentrar-se no mistério.
O estudo da teologia faz-se com inteligência, coração e compromisso. A inteligência, com o “esprit de géometrie” (Descartes), busca luz para uma fé que participa da firmeza da graça e fundamento divinos, e da fragilidade e pequenez de nossa mente. O coração, por sua vez, penetra a teologia pelo lado da intuição, do “esprit de finesse” (Pascal). Sobretudo na América Latina, o “esprit de pratique” (Marx) situa a teologia no quadro da realidade social. Com o espírito de Descartes, Pascal e Marx passeará o estudante de teologia pelos amplos rincões do continente teológico nos anos de estudo. Assim alimentará sua mente, coração e prática, num primeiro momento, para ser, num segundo momento, luz, sabor e ação para os/as companheiros/as de caminhada.
Vale a pena gastar anos de vida nesse estudo. Se, de um lado, se sai mais carregado de horas de trabalho, de outro experimenta-se a pesada leveza do Mistério, a clara obscuridade do Transcendente, a liberdade exigente do Deus revelador. Não se sai impune e intocado do estudo da teologia. Aquele que o deixa atrás, já não é o mesmo que o iniciou, desde que o tenha realizado “mente”, “corde” et “practice” (mente, coração e prática).”

domingo, 11 de novembro de 2018

Do liberalismo ao neoliberalismo: o itinerário de uma cosmovisão impenitente – Francisco Uribam Xavier de Holanda

Editora: EDIPUCRS
ISBN: 978-85-7430-212-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 120


“Toda sociedade produz uma imaginação política que legitima tanto a ordem estabelecida quanto as ações contrárias a ela. A cada época histórica a humanidade cria seus sistemas de representações, cria formas de sociabilidade através das quais reproduz suas necessidades materiais e simbólicas e busca produzir os meios necessários para supri-las. A vida em sociedade supõe, de modo permanente, a produção de significados. As concepções políticas e morais – Liberalismo, Democracia, Socialismo, Ecologismo – nada mais fazem que buscar esse fenômeno presente de forma constante na existência social.
A formação de uma mentalidade não se dá por acaso, nem pela produção do espírito de alguns iluminados, o que contraria certas vertentes racionalistas. Uma mentalidade se sedimenta em uma determinada época e cultura como consequência das suas peculiaridades sociais e das múltiplas determinações porque passa sua realidade social. É fruto do mundo vivido de sujeitos históricos, da capacidade individual e coletiva de se perceber, explicar e transformar o mundo.”


“Na concepção liberal, mercado é o conjunto de relações sociais onde se efetuam as trocas de mercadorias. É um sistema econômico onde as quantidades produzidas e os preços praticados dependem da confrontação da oferta com a procura, não de um planejamento.
Para Von Mises, Professor da escola neoliberal austríaca, a economia de mercado é um sistema social baseado na divisão do trabalho e na propriedade privada dos meios de produção. Para ele:
“O mercado não é um local, uma coisa, uma entidade coletiva. O mercado é um processo impulsionado pela interação das ações dos vários indivíduos que cooperam sob o regime da divisão do trabalho. As forças que determinam a – sempre variável – situação do mercado são os julgamentos de valor dos indivíduos e suas ações baseadas nesses julgamentos de valor. A situação do mercado num determinado momento é a estrutura de preços; isto é, o conjunto de relações de troca estabelecidas pela interação daqueles que estão desejosos de compra. Não há nada, em relação ao mercado, que não seja humano, que seja místico. O processo de mercado resulta exclusivamente das ações humanas.” (MISES, Ação humana, 1990, p. 256-257)
A defesa da propriedade privada dos meios de produção já implica uma limitação das condições que asseguram o desenvolvimento da livre concorrência. Isto significa que o Estado deve legislar em função da propriedade e da concorrência. A razão pela qual o liberalismo se opõe a uma maior extensão da ação do governo na economia é, essencialmente, porque isso significa interferir na propriedade privada e na liberdade dos indivíduos, roubando espaço e se tornando um concorrente do capital.”


“A diferença do pensamento liberal clássico para o neoliberalismo, segundo Fraz Hinkelammert, está no fato de que o primeiro representa a defesa da sociedade burguesa contra as sociedades pré-capitalistas, especialmente a sociedade feudal dos séculos XV ao XVII. Já o neoliberalismo proclama a legitimidade da sociedade burguesa contra as tendências socialistas existentes. Todavia, não é só contra as ideias socialistas que se insurge o neoliberalismo; ele se coloca contra toda uma forma de intervencionismo político na economia. Pouco depois da II Guerra Mundial, em 1947, na Suíça, é instituída a sociedade Mont Pélerin, cuja finalidade maior era lutar contra a reconhecida hegemonia de John Keynes e sua escola.”


“Para o neoliberalismo o homem é um ser de necessidades e desejos. As necessidades do homem se manifestam através dos desconfortos e os desejos através das escolhas. O homem vive submetido a três condições que o fazem agir: desconforto; capacidade de imaginar uma situação melhor; e a crença de que sua ação possa resolver ou amenizar o seu desconforto.
A ação humana é um comportamento propositado, ou seja, é consciente. A ação é a essência de natureza e da existência humana; é o meio de preservar a vida e de se elevar acima da natureza. O objetivo do agir humano é romper um desconforto; é a satisfação dos desejos. Para os neoliberais, existe diferença entre ação e trabalho15. Ação significa emprego de meios para atingir fins. Um dos meios empregados é o trabalho do agente homem. A ação é a manifestação da vontade humana, segundo Von Mises (1990, p. 14):
“Vontade significa nada mais do que a faculdade do homem de escolher entre diferentes situações; preferir uma, rejeitar outra, e comportar-se em consonância com a decisão tomada, procurando alcançar a situação escolhida e renunciando à outra.”
O critério que estabelece se um indivíduo está numa situação de desconforto ou não é a sua própria vontade e capacidade de julgamento. O fim último da ação humana é alcançar a felicidade: há indivíduos cujo único propósito é ficar rico. Há outros que desejam responder suas taras com comida, bebida e sexo. Certos indivíduos, tocados pelo sofrimento de outros, desejam dedicar-se a caridades. Há os que querem ser professores, políticos e outros que sonham em modificar o mundo. Há indivíduos que não acreditam em nada. E por aí, vai se determinando os desconfortos individuais. Um indivíduo só é feliz quando consegue atingir seus fins.
Fundamentado na praxiologia, o pensamento neoliberal compreende a sociedade como uma consequência do comportamento, propositado e consciente, que deram origem à cooperação social e à ajuda mútua em função de objetivos específicos e individuais. A sociedade não é instituída por nenhum tipo de contrato entre os indivíduos. Por ser um animal que pensa e age, o homem tornou-se um animal social. A sociedade, portanto, nada mais é do que divisão de trabalho e combinação de esforços. Para Von Mises (1990, p. 165):
“A cooperação social nada tem a ver com amor pessoal, nem com um mandamento que nos diz para amarmos uns aos outros. As pessoas não cooperam sob a égide da divisão do trabalho porque amam ou deviam amar uns aos outros. Cooperam porque assim servem melhor a seus próprios interesses. Nem é amor, nem a caridade ou qualquer outro sentimento afetuoso, mas sim o egoísmo, corretamente entendido, que originalmente impeliu o homem a se ajustar às exigências da sociedade, a respeitar as liberdades e direito de seus semelhantes e a substituir a amizade e o conflito pela cooperação pacífica.”
O indivíduo vive e age em sociedade. No entanto, a sociedade em si não existe, a não ser através das ações individuais. Somente no sentido de que o ser humano nasce em um ambiente organizado é que, para os neoliberais, se pode aceitar de forma lógica e histórica a concepção de que a sociedade antecede o indivíduo.”
15: Denomina-se trabalho o emprego das funções e manifestações fisiológicas da vida humana como um meio. A simples manifestação das potencialidades da energia humana e dos processos vitais, quando são utilizados para atingir os objetivos externos, diferentes do mero funcionamento desses processos vitais e do papel fisiológico que desempenharam na consumação biológica, não é trabalho; é simplesmente vida. O homem trabalha ao usar suas forças e habilidades como meio para diminuir seu desconforto, e ao substituir o escoamento espontâneo de suas faculdades físicas e tensões nervosas pela exploração propositada de sua energia vital. O trabalho é um meio e não um fim em si mesmo” (VON MISES, 1990, p.128).


“Segundo Von Mises (1990, p. 3):
“A teoria geral da escolha e preferência vai muito além dos limites que cingiam o campo dos problemas econômicos estudados pelos economistas, de Cantillon, Hume e Adam Smith até John Stuart Mill. É muito mais do que simplesmente uma teoria do aspecto econômico do esforço humano e da luta para melhoria de seu bem-estar material. É a ciência de todo tipo de ação humana. Toda divisão humana representa uma escolha. Ao fazer sua escolha, o homem escolhe não apenas entre diversos bens materiais e serviços. Todos os valores humanos são oferecidos para opção. Todos os fins e todos os meios, tanto os resultados materiais como os ideais, o sublime e o básico, o nobre e o ignóbil são ordenados numa sequência e submetidos a uma decisão que escolhe um e rejeita outro.”
A praxiologia é a ciência da ação humana. No entanto, ela não trata do mundo exterior, mas somente da conduta do homem em relação ao mundo exterior. Ao analisar a categoria ação encontramos os seguintes conteúdos: Meios e fins; escala de valores e a ação como troca.
Fim ou objetivo de uma ação é o resultado que se pretende alcançar. Meio é tudo que utilizamos, até o trabalho, para atingir os fins estabelecidos. Na essência, o objetivo de uma ação é aliviar algum desconforto. Todavia, no universo não se encontram os meios para realização de uma ação, só existem coisas. Uma coisa só se torna um meio quando a razão humana percebe a possibilidade de empregá-la para atingir determinados fins e realmente a emprega com este propósito. É de fundamental importância compreender que tudo aquilo que compõe o mundo exterior só se transforma em meio pelo funcionamento da mente humana e pela ação por ela engendrada.
A escala de valores faz parte do cotidiano do agente homem que tem preferência por algumas alternativas e rejeita outras. Todavia, quando ele organiza suas ações tem uma escala de valores na sua mente. No entanto, essa escala não tem existência real, distinta do comportamento efetivo dos indivíduos. A fonte da qual deriva o conhecimento dela é a observação das ações dos indivíduos. Fundamentada na concepção de que os objetivos da ação humana não podem ser avaliados por nenhum padrão absoluto, a praxiologia condena as doutrinas de caráter ético que pretendem estabelecer escala de valores segundo os quais o homem deveria agir. Os objetivos finais de uma ação não são irredutíveis; são meramente subjetivos e diferem de pessoa para pessoa e para a mesma pessoa em momentos diferentes de sua vida. Valor é compreendido como a importância que o homem atribui aos seus objetivos finais.
A ação, como troca, parte do pressuposto de que todo agir humano é uma tentativa para substituir uma situação menos satisfatória por outra mais satisfatória. Nesse processo uma ação menos desejável é trocada por outra mais desejada. Aquilo que abandonamos é o preço pago para atingir o objetivo desejado. O valor do preço pago é chamado de custo, que é igual ao valor atribuído à satisfação de que nos privamos a fim de atingir o objetivo pretendido. O valor entre o preço pago e a meta alcançada é o lucro ou renda líquida. O lucro é subjetivo; é um fenômeno psíquico que não pode ser medido ou pesado. Contudo, pode ocorrer que uma ação acarrete uma situação não desejada. Assim, o custo incorrido é o prejuízo.
Valorizar significa preferir uma coisa a outra. O valor de uma coisa é determinado pela expressão de desejos de várias pessoas em adquiri-lo. Portanto, para os neoliberais, é falaciosa a afirmativa de que os bens e serviços trocados teriam o mesmo valor. Se fosse verdade – como pensava a economia clássica, neoclássica e o marxismo – que o valor das coisas fosse determinado pela quantidade de trabalho necessário à sua produção e reprodução, não teríamos problemas para aceitar como correta a equivalência de preços entre as mercadorias. No entanto, para teoria subjetivista do valor,16 os preços de mercado não são determinados em função dos custos com mão-de-obra, materiais e ferramentas, mas pela importância que os consumidores atribuem a um produto final.17
16: Para a teoria subjetivista, “as pessoas compram e vendem unicamente porque atribuem um maior valor àquilo que recebem do que àquilo que cedem. Assim sendo, a noção de uma mediação de valor é inútil. Um ato de troca não é precedido nem acompanhado por qualquer processo que possa ser considerado como uma mediação de valor. Um indivíduo pode atribuir o mesmo valor a duas coisas; neste caso, nenhuma troca ocorrerá [...]. Da mesma maneira como não existe padrão de medida para atração sexual, ou para a amizade e simpatia, ou para o prazer estético, também não existe medida de valor das mercadorias. (VON MISES, 1990, p.202-204)
17: O valor que o consumidor atribui ao produto final não é apenas pelo seu aspecto material, segundo Von Mises (1990, p. 132): “Não devemos subestimar o fato de que, na realidade, nenhum alimento é valorado apenas pelo seu valor nutritivo e nenhuma casa ou vestimenta apenas por proteger da chuva e do frio. Não se pode negar que a demanda por bens é largamente influenciada por considerações metafísicas, religiosas e éticas, por julgamentos de valor estéticos, por costumes, hábitos, tradições, modas e muitas outras coisas”.


“(Para os neoliberais) Um governo com funções e poderes limitados é um governo:
“Que mantenha a lei e a ordem; defina os direitos de propriedade; sirva de meio para a modificação dos direitos de propriedade e de outras regras do jogo econômico; julgue disputas sobre a interpretação das regras; reforce contratos; promova a competição; forneça uma estrutura monetária; envolva-se em atividades para evitar monopólio técnico e evite os efeitos laterais considerados como suficientemente importantes para justificar a intervenção do governo; suplemente a caridade privada e a familiar na proteção do irresponsável, quer se trate de um insano ou de uma criança; um tal governo teria, evidentemente, importantes funções a desempenhar.” (FRIEDMAN, Capitalismo e liberdade, 1988, p. 39)
O Estado é um aparato social de coerção que deve utilizar seu poder exclusivamente com o propósito de evitar que as pessoas cometam ações lesivas à preservação e ao funcionamento da economia de mercado. Ao proteger a vida, a saúde e a propriedade do indivíduo contra agressão violenta ou fraudulenta por parte de malfeitores internos e externos, o Estado cria e preserva um ambiente onde a economia de mercado pode funcionar com segurança. Não cabe ao Estado interferir nas atividades dos indivíduos, estas são dirigidas pelo mercado que lhes indica a melhor maneira de promover o seu próprio bem-estar.”


“O neoliberalismo se diferencia do liberalismo clássico, do século XVIII, no tratamento do problema da igualdade. O liberalismo clássico, baseado na Lei Natural e no Direito Natural, exigia a igualdade nos direitos civis para todos, porque pressupunha serem iguais todos os homens.25 Para os neoliberais os homens não são iguais, mesmo entre irmãos há diferenças nos atributos físicos e mentais. A natureza nunca se repete em sua criação. Portanto, a exigência da igualdade na lei não pode basear-se na alegação de que os homens são iguais. A razão para que o homem seja tratado igualmente perante a lei é porque o indivíduo deve ser livre, pois ser livre é a condição para que obtenha a mais alta produtividade e para que possa gozar dos frutos do seu trabalho. A outra razão para igualdade perante a lei, é a manutenção da paz social.
Comentando o liberalismo clássico, o professor Wanderley Guilherme dos Santos faz uma declaração que mantém concordância com a postula neoliberal, a saber:
“A tese que sustento é precisamente a inversa, a saber, a de que a ideia de sociedade implica a ideia de desigualdade. Com efeito, a única condição concebível na qual os homens seriam igualmente livres é aquela na qual cada ser humano fosse totalmente autossuficiente. Esta é a única condição na qual os homens poderiam exercer igualmente a liberdade de cada qual. Mas não existe sociedade, isto é, interações sociais, composta por agentes totalmente autossuficientes. A divisão social do trabalho obriga à interação, tornando a vida social necessária à sobrevivência individual.” (SANTOS, 1988, Paradoxo do liberalismo, p. 22-23)
25: De acordo com SANTOS (1988, p. 21), “a hipótese de estado natural, em que homens são igualmente livres, e o princípio de que às mesmas causas correspondem os mesmos efeitos e, portanto, de que a ação do Estado é uniformizante, compressora da liberdade, constituem o alfa e ômega da doutrina ortodoxa. É no interior destes parâmetros que adquiriram relevância os direitos de expressão de pensamento e de organização política, entre outros, como a garantia do respeito ao princípio da equivalência moral dos indivíduos.”


“A necessidade é socialmente necessária. Um sistema econômico que não desvirtua suas funções tem como ponto de partida o pressuposto de que, antes de mais nada, os indivíduos têm que sobreviverem. Na economia de mercado, a desigualdade social não é fruto da mera diferença física e mental entre os homens, como afirmam os neoliberais. Ela é também reflexo de uma economia que generaliza interesses particulares em detrimento do todo. Se toda relação social é composta de indivíduos e grupos, que são portadores de interesses particulares, o desafio posto para uma ação minimamente sustentável é a determinação de formas de sociabilidade onde tais interesses não venham a eliminar a oportunidade de outros interesses se realizarem e não venham a ser confundidos com os interesses públicos. Sempre que o capitalismo entra em crise são os interesses do capital que são postos acima da vida da maioria das pessoas que habitam o planeta. (...)
O neoliberalismo é uma utopia que subordina todo e qualquer tipo de liberdade à liberdade econômica. A liberdade econômica é condição sine qua non para que haja outros tipos de liberdade. O mercado é um verdadeiro tabu onde nenhuma força pode mexer, nem mesmo para compensar as injustiças sociais por ele produzidas, porque ele se autorregula e se constitui no melhor método para acabar com as desigualdades. Todavia, na prática, o livre mercado é a forma mais perversa de produção da exclusão social. Partindo de um outro pressuposto, ou seja, de que a partir da liberdade podemos interpretar as necessidades – porque a liberdade em si é a instituição estruturadora do econômico e do político – e de que o mínimo necessário para um indivíduo ser considerado humano é diferente em cada momento histórico, podemos concluir que o neoliberalismo não é necessário por ser um instrumento de negação da existência humana pelas vias da exclusão social.”

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

A quem pertence o amanhã? Ensaios sobre o neoliberalismo (Parte III) – Manoel Luiz Malaguti, Marcelo D. Carcanholo e Reinaldo A. Carcanholo (org.)

Editora: Loyola
ISBN: 978-85-1501-598-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 266
Sinopse: Ver Parte I



“As pessoas manipularam a tal ponto o conceito de liberdade, que ele acabou por se reduzir ao direito dos mais fortes e mais ricos de tirarem dos mais fracos e mais pobres o que estes ainda têm. As tentativas de modificar isso são encaradas como intromissões lamentáveis no campo do próprio individualismo, que, pela lógica dessa liberdade, dissolveu-se num vazio administrativo”. (Theodor Adorno)


“Subordinando-se à autoridade do mercado, os globalistas “esquecem” que a história humana não tem destino nem finalidade e que as leis sociais apenas tendem a ser irreversíveis nos períodos ditatoriais. Nas democracias, por outro lado, o que hoje parece irreversível, amanhã pode ser alterado pela vontade grupal ou pela consciência coletiva. No que diz respeito à modernidade, não há por que acreditarmos que a estrita obediência à lógica do mercado é o caminho mais curto para alcançá-la. Se mais não fosse, porque não existe um consenso mínimo sobre a sua definição. Em que consiste a modernidade? A ciência social não nos oferece uma resposta. No máximo, ficamos sabendo que existem várias “modernidades”, cada uma localizada em um ponto específico da linha do tempo: os descontentes românticos pensam descortiná-la “em algum lugar do passado”. Os descontentes pragmáticos, na realidade presente dos países do Primeiro Mundo. Os descontentes oprimidos, por sua vez, “em algum lugar do futuro”. O fato é que a modernidade, como criação humana, é tão segmentada quanto a sociedade. Logo, a modernidade (como contexto social singular) só pode existir numa sociedade artificialmente homogeneizada, em um sistema social pasteurizado por leis que, sem deixar de ser sociais, como as do mercado, resultam numa dinâmica societária independente das vontades específicas dos distintos segmentos da sociedade. Mas que tipo de sociedade pode estimular a participação inconsciente (como zumbis...) de seus integrantes? Que tipo de sociedade pode aceitar que “os homens se encontrem constantemente em face dos resultados de seus próprios atos como o aprendiz de feiticeiro que após invocar os gênios não sabe como controlá-los?”11 Que tipo de regime político pode dirigi-la? Não é difícil concluir que a sujeição irrestrita e irrefletida às leis do mercado gera uma sociedade apática, impotente perante seus próprios problemas, pois entendidos como desígnios ou males inevitáveis. Uma sociedade que, se injusta, tende a conservar-se como tal; se composta por pobres e ricos, tende a perpetuar a pobreza de uns e a riqueza de outros; se composta por fortes e fracos, tende a fundamentar-se no poder do medo e da força (Hobbes).
Fica claro, pois, que à medida que aceitamos como inevitáveis as orientações sociais do mercado, nos afastamos dos fundamentos da democracia moderna. Devemos aceitar; então, que a força institui o direito, a obediência transforma-se em dever e o Estado democrático reflete o direito dos mais fortes.
Por outro lado, a recusa ao neoliberalismo fortalece o tecido social. Na medida em que rejeitamos a força e todos os despotismos (o religioso ou o do mercado, por exemplo) como fundamentos do Estado de direito, elegemos em seu lugar a razão e a convicção. Segundo um dos mais ilustres iluministas, todo direito fundamentado na força não passa de um contrassenso, pois “desde que a força faz o direito, o efeito toma o lugar da causa, pois toda força que sobrepujar a primeira sucedê-la-á nesse direito. Uma vez que se pode desobedecer impunemente, torna-se legítimo fazê-lo e, visto que o mais forte tem sempre razão, basta somente agir de modo a ser o mais forte. Ora, que direito será esse que perece quando cessa a força? Caso se imponha obedecer pela força, não se tem necessidade de obedecer por dever, e, se não se for mais forçado a obedecer, já não se estará mais forçado a fazê-lo. Vê-se, pois, que a palavra direito nada acrescenta à força — nesse passo, não significa absolutamente nada”12.”
11. N. Elias, La Sociéte des Individus. Paris, Fayard, 1991, p. 107.
12. J. J- Rousseau, Do Contrato Social (ou princípios do direito político). São Paulo, Abril, coleção “Os Pensadores”, 1978, pp. 25-26.
(M. L. Malaguti)


“Um dos principais inspiradores dessa prática a-social e anti-humanista é o citado Ludwig von Mises. Já em 1929 ele resumia assim o raciocínio que hoje fundamenta as principais políticas neoliberais: a culpa pelo desemprego, dizia ele, deve-se à substituição das “determinações do mercado” por “políticas econômicas destruidoras”. E isso quando se sabe que estas “políticas econômicas destruidoras” foram adotadas exatamente para amenizar as tensões políticas e os conflitos sociais provocados pela livre expressão daquelas mesmasdeterminações do mercado15.
Ainda segundo von Mises, o alcance e a duração do desemprego devem-se à atuação dos sindicatos e à implantação de um seguro-desemprego, que mantêm “os níveis salariais mais altos do que os que seriam determinados pela ação do mercado”. Consequentemente, continua: “Sem o seguro-desemprego e sem a força dos sindicatos impedindo a competição dos não-sindicalizados que queiram trabalhar, a pressão da oferta logo provocaria um ajuste de salário que asseguraria emprego para todos”. Enfim, conclui: “Trabalhadores à procura de emprego sempre encontram trabalho quando acomodam suas exigências salariais às condições do mercado”16. Na realidade, o que von Mises procura apresentar como interpretação econômica e científica das causas do desemprego e dos níveis salariais nada mais é do que uma banal constatação sobre a existência de um instinto biológico de sobrevivência entre os trabalhadores, como se pode observar em qualquer espécie animal: sem nenhuma fonte de rendimento monetário e sem o apoio cooperativo dos sindicatos, a aceitação de salários aviltados transforma-se na única forma possível de sobrevivência biológica dos trabalhadores em uma sociedade mercantil desenvolvida e formalizada! Não é de se estranhar, pois, que os neoliberais — inspirados por von Mises — não propugnem apenas um Estado mínimo, mas também o próprio deslocamento da sociabilidade dos espaços públicos (sindicatos, associações e corporações) para os espaços privados (família nuclear, parentes, vizinhos etc.). No entanto, como o verdadeiro liberal deve pautar sua conduta pela exclusiva procura de sua felicidade pessoal, o bem-estar da família e dos amigos não pode ser de sua alçada, embora deva ser uma consequência necessária de seu egoísmo. Logo, nada nem ninguém pode interpor-se entre o verdadeiro liberal e sua busca incessante de felicidade. Nosso liberal, diria von Mises, deve espelhar-se apenas em si mesmo, exercitando assim o que poderíamos chamar de auto-socialização ou sociabilização biológica. Dada, porém, a impossibilidade de uma “sociabilização reflexiva” (contradição em termos), um mundo neoliberal coerente deve prescindir da sociedade e, consequentemente, da humanidade.
Em resumo, nas propostas de crescente subordinação do Estado (e das “sociabilidades”) ao mercado, de restrições ao exercício da cidadania em favor da lei do mais forte, de sujeição da democracia burguesa ao darwinismo social, é a própria humanidade — como diz Polanyi que está sendo questionada.”
15. Daí todo o espanto de Hobsbawn em face da larga aceitação atual de propostas de política econômica que já se mostraram incapazes de garantir um mínimo de estabilidade social ao capitalismo: “O que faz tão incompreensível as políticas do neoliberalismo econômico, pelo menos para as pessoas da minha geração, é que nos anos 50 elas demonstraram sua incapacidade de lidar com a Depressão mundial que, na opinião da maioria das pessoas, elas próprias tinham provocado. Depois da Segunda Guerra Mundial, a reforma do mundo capitalista sob os auspícios dos EUA foi baseada especificamente na rejeição dessa teologia do livre mercado”. E o renomado historiador inglês acrescenta: “O alvo dos ideólogos do reaganismo e do thatcheristmo não é apenas Marx, mas Keynes e F. Roosevelt, quer dizer, os homens cujas políticas inauguraram a única verdadeira era dourada do capitalismo ocidental” (E. Hobsbawn, “A Crise Atual das Ideologias”, Op. cit., p. 222).
16. L. Von Mises, Uma Crítica ao Intervencionismo. Rio de Janeiro. Nórdica, 1977, p. 35.
(M. L. Malaguti)


“De certa forma, podemos dizer que foi o próprio capital que criou — quando lhe foi conveniente as identidades e diferenças que hoje pretende suprimir. A questão que hoje se apresenta é se as políticas neoliberais terão forças para dissolver — agora que não lhes convém — o que o próprio capital cultivou com carinho durante séculos. Um “carinho” tão grande que chegou a criar Estados artificiais (partilhas dos períodos pós-guerras mundiais) e territórios sem nenhuma identidade, mas que agora rebelam-se, dissolvem-se e guerreiam em nome de nacionalidades sufocadas, de religiões perseguidas ou de raças discriminadas.
Seria possível, hoje, após estabelecidas estas identidades e diferenças, articular-se um programa de homogeneização de práticas produtivas, de concepções de autoridade e hierarquia, de particularidades estéticas e artísticas, anseios, angústias, desejos etc.? Nossa resposta é: provavelmente, não. A instituição do Estado-nação e a regulamentação política da economia não são processos exteriores ao funcionamento da economia. Após duas guerras mundiais, as políticas econômicas e as leis de mercado tornaram-se indissociáveis. Não é mais possível pensar as políticas de Estado como um conjunto de intervenções em algo que lhes é estranho, extrínseco. Não é mais possível pensar em um Estado não-intervencionista que, diga-se de passagem, nunca existiu. Chega mesmo a ser inconcebível, por exemplo, que um Estado como o brasileiro, mais “enxuto” que o Estado símbolo dos neoliberais, o Estado norte-americano, possa ser considerado como um dinossauro!30.”

30. Participação de Alguns Estados na Economia
Países
Desenvolvidos
% do Estado
no PIB
Países
Subdesenvolvidos
% do Estado
no PIB
Dinamarca
51,96
Brasil
21,44
Suécia
49,78
Costa Rica
19,18
França
42,10
Índia
16,76
EUA
28,14
Etiópia
16,21
Fonte: Anuário da ONU, 1991.
Além de o Estado brasileiro se caracterizar como um dos mais “ausentes” do mundo, possui um quadro de pessoal dos mais “enxutos” Ao contrário do que se veicula diariamente nos meios de comunicação, já em 1994 o número de funcionários públicos no Brasil estava muito aquém daquele que as economias desenvolvidas consideram como adequado: Brasil (8 funcionários em cada mil habitantes), Estados Unidos (26,1), França (46,4), Espanha (53,4), Itália (65), Inglaterra (91,4).
Fonte: Jornal Zero Hora, Caderno de Economia 15 de fevereiro de 1994. Citado por Tarso Genro em Utopia Possível Porto Alegre, Ofícios, 1994, p. 71.
(M. L. Malaguti)


“O Estado do bem-estar social, como diz Galbraith, “veio para ficar”32. Mas veio para ficar não só porque estabelece um sistema de seguridade social para os trabalhadores, mas principalmente porque regula a concorrência intercapitalista (Banco Central, bancos estatais e nacionais de desenvolvimento, Tesouro Nacional, Superintendências de Desenvolvimento etc.), cria demandas (obras públicas, forças armadas, funcionalismo público), especializa a força de trabalho (escolas e universidades públicas), transmite os valores empresariais (concessões de rádio, televisão etc.), controla a oferta de trabalhadores (legislação trabalhista, hospitais públicos, políticas demográficas etc.), defende a propriedade privada e faz valer os contratos (Polícia, Justiça, tribunais, presídios, manicômios públicos etc.) etc., perenizando assim o sistema salarial. É por isso que ele veio para ficar: uma ruptura artificial entre funções sociais (econômicas versus políticas) cuja comunhão viabiliza a sociedade do capital não interessaria, no momento, a ninguém. Concordando com Bobbio, poderíamos dizer que a interferência do político nos assuntos econômicos (políticas keynesianas) impôs-se não apenas pela “força da arrasadora corrente da participação popular impulsionada pelo sufrágio universal”, mas também como “uma tentativa de salvar o capitalismo sem sair da democracia”. Ao contrário da prática leninista que pretendia “abater o capitalismo sacrificando a democracia” e das pregações fascistas que pretendiam “abater a democracia para salvar o capitalismo”, agora, continua, “para aqueles novos liberais, parece ser a democracia que põe em crise o capitalismo [novamente? À semelhança das concepções fascistas?]33. Portanto, a questão que se coloca é: estariam os novos liberais dispostos a levar até o fim, até as últimas consequências, um projeto que, eliminando a democracia, colocaria em risco a própria existência do capitalismo contemporâneo, cuja existência moderna viabiliza-se pela estreita comunhão entre determinações de mercado (relativamente livres) e uma democracia política (fragilmente exercitada)?”
32: N. Bobbio, O Futuro da Democracia, São Paulo, paz & Terra, 1986, pp. 124-125.
33: C. A. Dória, “A grande transformação”, Folha de S. Paulo, 3 de julho de 1996, p. 6 (9).
(M. L. Malaguti)


“Nesse aspecto, o raciocínio e a lógica neoliberais são muito curiosos. Quando confrontados com a necessidade de explicar aqueles países ou espaços organizados de maneira mercantil, onde prevalece a riqueza material, afirmam sua fé cega de que é a existência do mercado que garante a prosperidade; transformam isso em verdade absoluta e suprema. Torna-se axioma. Quando diante de países onde não há tal prosperidade, como é o caso do nosso, procuram encontrar algo que explique a razão pela qual a mágica capacidade do mercado não consegue tornar-se efetiva; selecionam qualquer coisa que justifique o fato de o mercado não funcionar com perfeição.
Assim, como dissemos, para explicar a problemática extrema dos espaços periféricos, o raciocínio neoliberal cínico pode apelar para questões raciais ou climáticas (por exemplo, o clima tropical determinaria, no comportamento individual, um excessivo apego à libido) que dificultariam o funcionamento econômico e prejudicariam a operação adequada das funções do mercado. Nos países, espaços ou regiões periféricas do capitalismo onde não ocorre a prosperidade, mas a miséria extrema, o desemprego, a marginalidade e a exclusão, onde também prevalece a lei mercantil e onde o sistema de preços é o mecanismo fundamental de coordenação econômica e alocação de recursos, não é necessário atribuir ao mercado a responsabilidade pelos problemas; é fácil encontrar um “bode expiatório”. O neoliberal envergonhado não se atreve a tanto e se não pode apelar para fatores como aqueles — talvez não seja politicamente correto — é porque não possui imaginação suficiente para encontrar outros; um deles, aceitável, talvez seja o de que o mercado se vê prejudicado pela ausência de certos valores morais (entendidos até como fatores de produção6) que existiriam, isto sim, nos países desenvolvidos. Pelo menos é um tipo de raciocínio menos deselegante... Não tivessem implicações tão trágicas, tal lógica, tal imaginação, tais raciocínios seriam simplesmente ridículos.”
6: E. G. Fonseca. Vícios privados, benefícios públicos?. São Paulo, Companhia das Letras, 1994, pp. 183-184.
(Reinaldo A. Carcanholo)


“O neoliberalismo periférico se faz hipócrita. Não se atreve a afirmar categoricamente que a ausência de valores éticos é o que explica a miséria e o atraso, mas a sugere. Não se atreve a defender em todos os seus aspectos o neoliberalismo cínico, mas fica nas suas proximidades. O neoliberalismo da periferia oscila entre o discurso da aparência e a prática teórica da hipocrisia.
O discurso neoliberal envergonhado é aquele que nega sua pretensão de impulsionar políticas recessivas, de arrocho salarial, de privilégios ainda maiores aos setores poderosos, de estímulo à lógica selvagem do mercado; jamais declara seu desejo de transladar as leis da seleção natural para o âmbito social da economia. Mistifica seu discurso com palavras mais aceitáveis para aqueles que serão os prejudicados.”
(Reinaldo A. Carcanholo)


PERSPECTIVA E RECOMENDAÇÕES DE UM NEOLIBERAL CÍNICO
— É indispensável estimular, por todos os meios possíveis e em todas as camadas da sociedade, a visão individualista das coisas e combater, intransigentemente, a perspectiva coletiva.
— É necessário combater todas as formas de organização que permitam estabelecer um nexo entre interesses coletivos em oposição ao desenvolvimento lógico da sociedade: sindicatos, organizações comunitárias ou assistenciais e até mesmo associações de bairro. Só devem ser estimuladas associações sobre as quais se possa ter certeza de seus objetivos e que, por outro lado, não diferenciem setores da sociedade. Entre essas associações podem mencionar-se os grandes times de futebol, em particular suas torcidas organizadas. Nesses casos, o fanatismo e a violência são até recomendáveis, dentro de certos limites, como forma de canalizar as frustrações, especialmente dos setores mais marginalizados.
— Por outro lado, a formação de pequenas máfias, organizadas para explorar a prostituição, o jogo ilegal, o tráfico de drogas e articuladas com os próprios setores encarregados da repressão institucional, só é negativa até certo ponto. Sua estrutura rigidamente hierárquica e seus objetivos servem de canais de manifestação das frustrações sociais dos setores marginalizados. Criam, por um lado, a expectativa da riqueza para esses setores e, por outro, favorecem o apoio do resto da população à formação de um aparato estatal repressivo forte, condição de sobrevivência da sociedade atual.
— Fundamental também é incentivar, na mente das pessoas, a desesperança, promover a destruição das utopias e estimular a crença de que o futuro, na melhor das hipóteses, será igual ao presente (nunca melhor). Tudo isso tem a mágica capacidade de fazer com que as massas carentes e os setores médios relutantes aceitem nosso programa. A ideia de que o homem não é capaz de mudar a história é fundamental e deve ser completada com a crença mística, com a ideia de que o futuro está comandado por forças místicas. O misticismo deve ser fortemente incitado. Assim, os profissionais ligados à difusão dessas crenças (astrologia, angelologia, quiromancia, tarô, numerologia etc.) devem ser estimulados e regiamente pagos. Deve-se, ao mesmo tempo, incentivar a crença e a expectativa no enriquecimento por meio do jogo de azar e da sorte de cada um (sorteios, bingos, loterias de todos os tipos: quina, sena, esportiva, estaduais, raspadinhas),
— O setor que controla ou opera os meios de comunicação deve ser tratado com cuidado, especialmente aquele relacionado com a mídia não-escrita, em particular televisiva. Seus artistas, comunicadores, âncoras, editores, diretores, cantores, apresentadores, comentaristas devem ter tratamento especial. Não se deve economizar na remuneração desses profissionais; deles depende em grande parte a hegemonia do nosso ideário. Apesar de tudo, sempre haverá, entre eles, os rebeldes; uns mais, outros menos. A esses rebeldes devem-se negar espaços, dificultar sua trajetória.
— Particular atenção deve merecer o ensino em todos os níveis. A educação deve ser essencialmente profissionalizante e desprovida de visão humanista. Os estudantes, em sua quase totalidade, devem ser treinados para executar, nunca para pensar. Devem ser preparados para um amplo mercado de trabalho constituído de ocupações com tarefas rotineiras e burocráticas. Isso fica facilitado, pois corresponde à expectativa da grande maioria deles, mesmo no nível superior.
— É certo que, com a recomendação anterior, não formamos o que constituirá a elite pensante do país. Sem dúvida necessitamos de profissionais competentes, criativos, empreendedores; precisamos de verdadeiros líderes. Mas o número necessário deles não é tão grande assim. Eles podem e devem ser recrutados exclusivamente nos estratos mais altos da sociedade e a eles devem ser reservados uns poucos estabelecimentos de ensino superior, exclusivos, não acessíveis às outras camadas sociais. Assim, com tudo isso, garante-se a fidelidade desse futuro setor dirigente à nossa concepção.
— É verdade que, apesar de tudo, alguns desses estudantes privilegiados, terminarão por cair nas mãos da ideologia nefasta do igualitarismo e do idealismo. Se mesmo a alta remuneração e os privilégios não forem suficientes, só poderão ser tratados como inimigos.
— Convém manter partido ou partidos políticos que apresentem, em seu programa, concepções intermediárias. São eles que garantem espaço para os setores privilegiados da sociedade, camadas médias e intelectuais, que não se atrevem claramente a expressar nossas posições. Podem ter diversas caras, mas, no fundo, constituem partidos que defendem posições próprias do neoliberalismo. Nos últimos tempos, constituem-se, na verdade, em neoliberais envergonhados e, sem dúvida, têm um papel fundamental na aliança em defesa da sociedade atual. É o que acontece nos anos mais ou menos recentes com partidos socialdemocratas, tanto na Europa (França, Espanha, Portugal etc.) como na América (Bolívia, Venezuela etc.), na Austrália e na Nova Zelândia.
— Finalmente, se estivermos em uma circunstância política desfavorável à nossa doutrina, resta o apelo ao regime de força, à ditadura. Criar condições para ela não é difícil, sobretudo controlando os principais meios de comunicação: desmoralize-se a democracia divulgando o que ocorre (corrupção, fisiologismo, negociatas, apropriação do dinheiro público por diversos meios), provoque-se a hiperinflação ou a recessão, generalize-se o desemprego e, portanto, o desespero. Estarão dadas as condições para que amplas camadas da população, sobretudo as mais humildes, clamem por um homem forte, por um regime de força. A democracia só é legítima enquanto garantir a hegemonia da perspectiva neoliberal.

PALAVRAS FINAIS
Retomemos a palavra. Ficamos perplexos diante do cinismo que aparece contido no discurso sem rodeios de um neoliberal. Teremos exagerado? Provavelmente não.
Perante isso o que podemos dizer e fazer? Em primeiro lugar é indispensável declarar nosso total antagonismo a todo e qualquer tipo de neoliberalismo. Somos seus inimigos intransigentes e irreconciliáveis: do cínico, do hipócrita e de qualquer outro tipo que possa existir.
Devemos, além do mais, reconhecer as reais dificuldades do momento, sem subestimá-las, mas também sem exagerá-las. Isso é indispensável para elaborar novas estratégias. Parece impor-se a necessidade de que se redefinam objetivos, talvez seja necessário até que se redesenhem alianças. Dentro dos limites da ética e da lógica, impõe-se até repensar conceitos. É possível inclusive que, diante da proposta ideológica contida na globalização, um conceito como o do internacionalismo deva converter-se provisoriamente em nacionalismo (ou, melhor até, em macrorregionalismo).
É extremamente importante ter presente que nos momentos de derrota e simultânea resistência, o papel dos que pensam e podem conduzir é muito mais importante que em outros; o papel das ideias que só amadurecem com a experiência e a sabedoria é fundamental. É indispensável propor caminhos e alternativas, desenhar estratégias e táticas. A desesperança, sobretudo nos jovens, não é uma boa mestra; ela só conduz a ações inconsequentes, e isso é perigoso.
Para finalizar, é verdade que, dos anos 60 para cá, o mundo mudou e muito. Surpreendente? Mas não afirmávamos categoricamente, desde então, ou desde antes ainda, que o mundo não era estático? Na verdade, surpresos só podem estar aqueles que, acreditando que tudo muda, pensavam que a mudança fosse sempre em direção ao bem, ao alto. Eles acreditavam não na mão invisível, mas na mão todo-poderosa que nos conduziria inevitável e placidamente ao paraíso. Eles sim, hoje, estão surpresos e por isso optam pelo cinismo ou renunciam a pensar e portanto a viver; vegetam, por mais que cercados de prazeres materiais.
O mundo mudou muito, mas não pode mudar nossas consciências, nossos princípios, nossos valores éticos.
Não podemos acreditar que o futuro pertença ao cinismo, nem à hipocrisia. Não podemos saber exatamente como será esse futuro. Talvez muito pouco possa dizer-se sobre ele, mas uma coisa é certa: o amanhã pertence à história. E ela é construída por nós.”
(Reinaldo A. Carcanholo)