Editora: Crítica
ISBN: 978-85-4221-019-4
Tradução: Renato Marques
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 400
Sinopse: O mais importante ativista intelectual do
mundo oferece neste livro um aprofundado exame das mudanças do poder
norte-americano, as ameaças à democracia e o futuro da ordem global.
Meticulosamente documentado, “Quem manda no mundo?” é um guia indispensável
para entender a situação internacional atual. Com clareza e oferecendo diversos
exemplos, Chomsky mostra como os Estados Unidos continuam sendo a voz mais
forte, mesmo com a ascensão da Europa e da Ásia. O envolvimento americano com
China e Cuba, as sanções contra o Irã, os conflitos no Iraque, Afeganistão e
Israel/Palestina, a relação com a América Latina e África e o aquecimento
global são alguns dos pontos discutidos no livro. Chomsky escreveu um posfácio
sobre a eleição de Donald Trump, o referendo Brexit e a ascensão dos partidos
ultranacionalistas de extrema direita na Europa. Sua conclusão sobre o futuro
do mundo é alarmante.
“É
claro que os “mestres do universo” estão muito longe de ser representativos das
populações das potências dominantes. Mesmo nos Estados mais democráticos, as
populações exercem um impacto apenas limitado acerca de diretrizes políticas.
Nos Estados Unidos, pesquisadores renomados forneceram evidências contundentes
de que “elites econômicas e grupos organizados representantes de interesses
comerciais causam substanciais impactos independentes sobre as políticas
governamentais dos EUA, ao passo que cidadãos comuns e grupos de interesse de
massas exercem pouca ou nenhuma influência independente”. Os resultados de seus
estudos, concluem os autores, “propiciam substancial sustentação a teorias de
Dominação da Elite Econômica e Teorias de Pluralismo Tendencioso, mas não para
teorias de Democracia Eleitoral Majoritária ou Pluralismo Majoritário”. Outros
estudos já demonstraram que a ampla maioria da população, na ponta mais baixa
do espectro de renda/riqueza, é efetivamente excluída do sistema político, suas
opiniões e atitudes são ignoradas por seus representantes formais, ao passo que
um ínfimo setor que ocupa o topo da escala tem um grau de influência esmagador.
Esses estudos também apontaram que, no decorrer de um longo período, o
financiamento de campanha é um extraordinário previsor das decisões políticas.[2]”
2. Martin Gilens e Benjamin Page, “Testing
Theories of American Politics: Elites, Interest Groups, and Average Citizens”, Perspectives on Politics 12, nº 3 (setembro de
2014), http://www.princeton.edu/~mgilens/Gilens%20homepage%20materials/Gilens%20and%20Page/Gilens%20and%20Page%202014-Testing%20Theories%203-7-14.pdf; Martin Gilens, Affluence and Influence:
Economic Inequality and Political Power in America (Princeton: Princeton
University Press, 2010); Larry Bartels, Unequal Democracy: The Political
Economy of the New Gilded Age (Princeton, Princeton University Press,
2008); Thomas Ferguson, Golden Rule: The Investment Theory of Party
Competition and the Logic of Money-Driven Political Systems (Chicago:
University of Chicago Press, 1995).
“O venerando termo “dissidente” é usado
seletivamente. Não se aplica, é óbvio, com suas conotações favoráveis a
intelectuais orientados por valores ou aos que combatem a tirania respaldada
pelos EUA no exterior. Vejamos o interessante caso de Nelson Mandela, cujo nome
só foi excluído da lista oficial de terroristas do Departamento de Estado em
2008, o que lhe permitiu viajar para os Estados Unidos sem autorização
especial. Vinte anos antes, Mandela era o líder criminoso de um dos “mais
notórios grupos terroristas” do mundo, de acordo com um relatório do Pentágono. [12] Foi por essa razão que o presidente Reagan teve de
apoiar o regime do apartheid, aumentando o comércio com a África do Sul em
violação de sanções do Congresso e apoiando os atos hostis dos sul-africanos em
países vizinhos, que resultaram, segundo um estudo da ONU, em 1,5 milhão de
mortes.[13] Esse foi apenas um episódio da guerra ao
terrorismo que Reagan declarou para combater “a praga da era moderna”, ou como
definiu o secretário de Defesa George Scultz, “uma volta à barbárie na era
moderna”.[14] Poderíamos acrescentar as centenas de
milhares de cadáveres na América Central e dezenas de milhares mais no Oriente
Médio, entre outras façanhas.”
12. “Terrorist Group Profiles”, Departamento de
Estado, janeiro de 1989. Ver também Robert Pear, “US Report Stirs
Furor in South Africa”, The New York Times, 14 de janeiro de 1989.
13. Força-Tarefa
Interagências das Nações Unidas, Programa de Recuperação da África/Comissão
Econômica da ONU para a África, South African Destabilization: The Economic
Cost of Frontline Resistance to Apartheid, 1989, 13.
14. Noam Chomsky,
“The Evil Scourge of Terrorism” (discurso à Sociedade Internacional Erich
Fromm, Stuttgart, Alemanha, 23 de março de 2010).
“Uma
vez que mal somos capazes de enxergar o que se passa diante de nossos olhos,
não surpreende que eventos a uma distância mínima sejam completamente
invisíveis. Um exemplo instrutivo: o envio de 79 soldados de uma força de elite
ao Paquistão em maio de 2011 para executar o que foi evidentemente o
assassinato premeditado do principal suspeito das atrocidades terroristas de 11
de Setembro, Osama bin Laden.[28] Embora o alvo da
operação, desarmado e sem nenhuma proteção, pudesse ter sido detido e capturado
vivo com facilidade, ele foi sumariamente executado, e seu corpo atirado ao
mar, sem autópsia – uma “ação justa e necessária”, lemos na imprensa de
esquerda.[29] Não haveria julgamento, como ocorreu no
caso dos criminosos de guerra nazistas – fato que não foi ignorado pelas
autoridades legais no exterior, que aprovaram a operação, mas apresentaram
objeções ao procedimento. Conforme nos lembra a professora de Harvard Elaine
Scarry, a proibição do assassinato nas normas elementares
do direito internacional remonta a uma veemente denúncia contra a prática feita
por Abraham Lincoln, que em 1863 condenou a mobilização para o assassínio como
“banditismo internacional”, uma “abominável atrocidade” que as “nações
civilizadas” veem com “horror” e que merece “a mais severa retaliação”.[30] Avançamos muito
desde então.”
25. Daniel Wilkinson, “Death and Drugs in
Colombia”, The New York Review of Books, 23 de junho de 2011.
26. Anthony Lewis,
“Abroad at Home”, The New York Times, 2 de março de 1990.
27. Mary McGrory,
“Havel’s Gentle Rebuke”, Washington Post, 25 de fevereiro de 1990.
28. Mark Mazzetti,
Helene Cooper e Peter Baker, “Behind the Hunt for Bin Laden”, The New York
Times, 2 de maio de 2011.
29. Eric Alterman,
“Bin Gotten”, Nation, 4 de maio de 2011.
30. Elaine Scarry,
“Rules of Engagement”, Boston Review, 8 de novembro de 2006.
“Inúmeros
analistas observaram que Bin Laden obteve enormes êxitos em sua guerra contra
os Estados Unidos. “Ele afirmou repetidamente que a única maneira de expulsar
os EUA do mundo islâmico e derrotar seus sátrapas era arrastar os
norte-americanos para uma série de pequenas mas dispendiosas guerras que, ao
fim e ao cabo, os arruinaria e os levaria à bancarrota”, escreve o jornalista
Eric Margolis. “Os Estados Unidos, primeiro sob George W. Bush e depois Barack
Obama, precipitaram-se diretamente na armadilha de Bin Laden [...] Orçamentos e
gastos militares grotescamente inchados e o vício compulsivo em dívidas [...]
talvez sejam o mais pernicioso legado do homem que julgou ser capaz de derrotar
os Estados Unidos.”[33] Um relatório do projeto Custos
de guerra do Instituto Watson para estudos internacionais e públicos da
Universidade Brown estima que a conta final será de 3,2 a 4 trilhões de
dólares.[34] Um feito impressionante de Bin Laden.
Que Washington tinha toda a resoluta intenção de
cair na armadilha de Bin Laden logo ficou evidente. Michael Scheuer, o analista
sênior da CIA responsável por perseguir e rastrear os passos de Bin Laden de
1996 a 1999, escreveu que “Bin Laden, com precisão cirúrgica, mostrou aos
Estados Unidos as razões pelas quais está desencadeando sua guerra contra nós”.
O líder da al-Qaeda, continuou Scheuer, estava “determinado a alterar de forma
drástica as políticas dos EUA e do Ocidente em relação ao mundo islâmico”.
E, conforme explica Scheuer, Bin Laden foi muito
bem-sucedido. “As forças e as políticas dos EUA estão completando a
radicalização do mundo islâmico, algo que Osama bin Laden vem tentando fazer
com sucesso substancial, porém incompleto, desde o início dos anos 1990. O
resultado, parece-me justo concluir, é que os Estados Unidos da América
continuam a ser o único aliado indispensável de Bin Laden”.[35]
E possivelmente continuam a sê-lo, mesmo após a morte do líder da Al-Qaeda.
Existem bons motivos para acreditar que o movimento
jihadista pudesse ter sido dividido e minado após o 11 de Setembro, que recebeu
severas críticas dentro do próprio movimento. Além disso, o “crime contra a
humanidade”, como foi corretamente rotulado, poderia ter
sido tratado como um crime, com uma operação internacional para capturar os
presumíveis suspeitos. Essa ideia foi aceita logo após o ataque, mas a sua
execução nem sequer foi cogitada pelos tomadores de decisões em Washington.
Parece que não se levou a sério a oferta provisória feita pelo Talibã – ainda
que não tenhamos como avaliar o grau de seriedade dessa oferta – de apresentar
os líderes da al-Qaeda para que fossem submetidos a um processo judicial.
À época, citei a conclusão de Robert Fisk de que o
horrendo crime de 11 de Setembro foi cometido com “maldade e crueldade
impressionantes” – um juízo exato. Os crimes poderiam ter sido ainda piores:
suponhamos, por exemplo, que o voo 93, derrubado por corajosos passageiros na
Pensilvânia, tivesse ido tão longe a ponto de atingir a Casa Branca, matando o
presidente? Suponhamos que os criminosos planejassem e lograssem impor uma
ditadura militar que matasse milhares e torturasse dezenas de milhares.
Suponhamos que a nova ditadura estabelecesse, com o apoio dos criminosos, um
centro de terror internacional que ajudasse a instalar em outros países regimes
de tortura e terror similares e, a cereja do bolo, trouxesse uma equipe de
economistas – vamos chamá-los de “os meninos de Kandahar” – que rapidamente conduzisse
a economia a uma das piores depressões de sua história. Claramente, isso teria
sido muito pior do que o 11 de Setembro.”
33. Eric S.
Margolis, “Osama’s Ghost”, American Conservative, 20 de maio de 2011.
34. Daniel Trotta,
“Cost of War at Least $3.7 Trillion and Counting”, Reuters, 29 de junho de
2011.
35. Michael Scheuer, Imperial
Hubris: Why the West Is Losing the War on Terror (Washington: Potomac
Books, 2004).
“Quanto à responsabilidade dos intelectuais, a meu
ver não parece haver muito a dizer além de algumas verdades simples: os
intelectuais são geralmente privilegiados; o privilégio enseja oportunidades, e
a oportunidade confere reponsabilidades. Um indivíduo tem, então, escolhas.”
“A
amnésia histórica é um fenômeno perigoso, não só porque mina a integridade
moral e intelectual, mas também porque prepara o terreno e estabelece as bases
para crimes que ainda estão por vir.”
“Os EUA e seus aliados ocidentais estão resolvidos
a fazer tudo o que puderem para impedir uma democracia autêntica no mundo
árabe. Para entender por quê, basta apenas dar uma olhada nas pesquisas de
opinião realizadas no mundo árabe por agências norte-americanas de sondagem.
Embora os resultados sejam pouco divulgados, são de conhecimento dos
responsáveis pelo planejamento político. Revelam que a esmagadora maioria de
árabes vê os EUA e Israel como as maiores ameaças que enfrentam: é o que pensam
90% dos egípcios e mais de 75% dos habitantes da região como um todo. A título
de contraste, 10% dos árabes consideram o Irã uma ameaça. A oposição às
diretrizes políticas dos EUA é tão forte que uma maioria acredita que a
segurança melhoraria se o Irã dispusesse de armamento nuclear (é a opinião de
80% dos egípcios).[9] Outros dados de pesquisa mostram
resultados semelhantes. Se a opinião pública pudesse influir nas decisões, os
EUA não só não poderiam controlar a região, mas seriam expulsos dela junto com
todos os seus aliados, o que arruinaria os princípios fundamentais da dominação
global.”
9. Centro de Pesquisas Pew, “Egyptians Embrace
Revolt Leaders, Religious Party and Military, As Well”, 25 de abril de 2011, http://pewglobal.org/files/2011/04/Pew-Global-Attitudes-Egypt-Report-FINAL-April-25-2011.pdf.
“O
desprezo da elite pela democracia revelou-se de maneira eloquente e impactante
na reação às revelações e aos vazamentos de informações do WikiLeaks. Os que
receberam maior atenção, com comentários eufóricos, foram os cabogramas
informando o apoio dos árabes à posição dos EUA acerca do Irã. A referência era
aos ditadores no poder das nações árabes; a posição da opinião pública nem
sequer recebeu menção.”
“A imprensa alerta que “os investidores e
negociantes chineses estão preenchendo agora um vácuo no Irã, à medida que as
empresas de muitas outras nações, notadamente as europeias, saem de cena”, e
chama a atenção, em particular, para o fato de que a China está expandindo seu
papel dominante nas indústrias energéticas iranianas.[19]
Washington reage com uma pitada de desespero. O Departamento de Estado advertiu
a China de que, se o país deseja ser aceito na “comunidade internacional” – um
termo técnico para se referir aos Estados Unidos e quem mais porventura estiver
de acordo com os norte-americanos –, então não pode “esquivar-se e evadir-se
das responsabilidades internacionais, [que] são bem claras”: a saber, obedecer
às ordens dos EUA.[20] É pouco provável que isso
impressione ou abale a China.
É grande também a preocupação acerca da crescente
ameaça militar chinesa. Um estudo recente do Pentágono alertou que o orçamento
militar chinês aproxima-se de “um quinto do que o Pentágono gastou para
planejar e realizar as guerras no Iraque e no Afeganistão”
– uma fração do orçamento militar estadunidense, é óbvio. A expansão das forças
militares chinesas poderia “tolher a capacidade dos navios de guerra
norte-americanos de operar em águas internacionais ao largo da costa chinesa”,
acrescentou The New York Times.[21]
Ao largo da costa da China, claro está; ninguém
propôs ainda que os Estados Unidos eliminem as forças militares que impedem o
acesso dos navios de guerra chineses ao Caribe. A incapacidade chinesa para
compreender as regras da civilidade internacional é ilustrada de maneira mais
patente por suas objeções aos planos para que o avançado porta-aviões nuclear
da Marinha norte-americana George Washington se junte aos exercícios
navais realizados a poucas milhas da costa da China, o que supostamente o
colocaria em posição propícia para bombardear Pequim.
Em contraste, o Ocidente compreende que essas
operações estadunidenses são, todas elas, levadas a efeito para defender a
“estabilidade” e sua própria segurança. A revista liberal de esquerda The
New Republic expressa a sua preocupação porque “a China enviou dez navios
de guerra por meio de águas internacionais ao largo da ilha japonesa de
Okinawa”.[22] Isso é, de fato, uma provocação – ao
contrário do fato, não mencionado, de que Washington converteu a ilha em uma grande
base militar, numa afronta aos veementes protestos da população de Okinawa.
Isso não é uma provocação, conforme o princípio tácito de que nós somos os
donos do mundo.”
19. Clayton Jones, “China Is a Barometer on
Whether Israel Will Attack Nuclear Plants in Iran”, Christian Science
Monitor, 6 de agosto de 2010.
20. Kim Ghattas, “US
Gets Serious on Iran Sanctions”, BBC News, 3 de agosto de 2010.
21. Thom Shanker,
“Pentagon Cites Concerns in China Military Growth”, The New York Times,
16 de agosto de 2010.
22. Joshua
Kurlantzick, “The Belligerents”, The New Republic, 17 de fevereiro de
2011.
“Na
década de 1970 deu-se também uma drástica mudança na economia norte-americana,
no sentido da financeirização e exportação da produção. Vários fatores
convergiram para criar um círculo vicioso de extrema concentração da riqueza,
primordialmente na fração do 1% mais abastado da população: altos executivos e
presidentes de empresas, gestores de fundos de investimento de alto risco e
afins. Isso levou à concentração do poder político, e por conseguinte políticas
estatais para o favorecimento do incremento da concentração econômica;
políticas fiscais, normas de governança corporativa, desregulamentação etc.
Nesse ínterim, os custos das campanhas eleitorais subiram vertiginosamente,
empurrando os partidos políticos para dentro dos bolsos do capital concentrado,
cada vez mais financeiros: os republicanos, agindo por reflexo; os democratas –
que agora são o que antes costumávamos chamar de republicanos moderados – não
muito atrás.”
“Enquanto
a população em geral se mantiver passiva, apática, entretida com o consumismo
ou distraída pelo ódio contra os vulneráveis, os poderosos continuarão fazendo
o que lhes der na telha, e aos que sobreviverem não restará senão contemplar o
resultado.”
“Embora as políticas de longa data dos Estados
Unidos permaneçam em larga medida estáveis, com ajustes táticos, sob Obama
houve algumas mudanças significativas. O analista militar Yochi Dreazen e seus
coautores observaram na revista The Atlantic que, enquanto a política de
Bush era capturar (e torturar) suspeitos, Obama simplesmente os assassina,
incrementando o uso de armas de terror (drones) e comandos das Forças
Especiais, muitos deles esquadrões de extermínio.[13] O cronograma das unidades
das Forças Especiais prevê a atuação dessas tropas de elite em 120 países.[14]
Agora do tamanho de todo o contingente militar do Canadá, essas forças são, a
bem da verdade, um exército privado do presidente, questão discutida em
detalhes pelo jornalista investigativo norte-americano Nick Turse no site Tom
Dispatch.[15] A equipe que Obama enviou para assassinar Osama bin Laden já
havia realizado talvez uma dúzia de missões similares no Paquistão. Como este e
muitos outros fatos importantes ilustram, ainda que a hegemonia dos Estados
Unidos tenha diminuído, sua ambição não definhou.
Outro tema comum, pelo menos entre aqueles que não
são intencionalmente cegos, é que o declínio americano é, em grande medida,
autoinfligido. A ópera-bufa em cartaz em Washington, cujo enredo gira em torno
da decisão de “paralisar” ou não o governo, o que enoja o país (a grande
maioria do qual considera que o Congresso deveria ser dissolvido) e desconcerta
o mundo, tem poucos análogos nos anais da democracia parlamentar. O espetáculo
está chegando inclusive a apavorar os patrocinadores da farsa. Os poderes
corporativos estão agora preocupados, temendo que os extremistas que eles
ajudaram a eleger possam acabar optando por derrubar o edifício do qual
dependem a sua própria riqueza e seus privilégios, o poderoso Estado-babá que
atende a seus interesses.
Certa vez, o eminente filósofo social
norte-americano John Dewey descreveu a política como “a sombra que os grandes
negócios lançam sobre a sociedade”, advertindo que “a atenuação da sombra não
mudará a substância”.[16] Desde a década de 1970, a sombra tornou-se uma nuvem
escura encobrindo a sociedade e o sistema político. O poder corporativo, a essa
altura composto em larga medida de capital financeiro, chegou a um ponto em que
ambas as organizações políticas, republicanos e democratas – que agora mal se
assemelham a partidos tradicionais –, estão bem à direita da população nos
temas mais importantes em debate.
Para o povo, a principal preocupação é a grave
crise do desemprego. Nas atuais circunstâncias, esse problema crítico só
poderia ser superado por um significativo estímulo governamental, muito além do
que Obama iniciou em 2009, e que mal se equiparou à queda dos gastos estaduais
e municipais, embora mesmo assim tenha salvado milhões de empregos. Para as
instituições financeiras, a principal preocupação é o déficit. Portanto,
somente o déficit está em discussão. A grande maioria da população (72%) é
favorável a uma política de enfrentamento do déficit por meio da taxação dos
muito ricos.[17] Os cortes nos programas de saúde enfrentam a oposição da
esmagadora maioria (69% no caso do Medicaid, 78% para o Medicare).[18] O
resultado provável é, portanto, o oposto.
Divulgando os resultados de um estudo sobre como o
povo estadunidense eliminaria o déficit, Steven Kull, diretor do Programa para
Consultas Públicas, que conduziu a análise, escreve que “tanto a administração
como a Câmara liderada pelos republicanos estão fora de sintonia com os valores
e as prioridades da opinião pública em relação ao orçamento [...] A maior
diferença é que o povo é a favor de cortes profundos nos gastos de defesa, ao
passo que o governo e a Câmara propõem aumentos modestos [...] A opinião
pública também apoia gastos maiores em formação e capacitação profissional,
educação e controle da poluição do que propõem o governo ou a Câmara”.[19]
Estima-se que os custos das guerras de Bush e Obama
no Iraque e no Afeganistão cheguem a 4,4 trilhões de dólares – uma tremenda
vitória para Osama bin Laden, cujo objetivo anunciado era levar os Estados
Unidos à falência, arrastando o país para uma armadilha.[20] O orçamento
militar norte-americano para 2011 – quase equivalente aos gastos com despesas
militares do restante do mundo inteiro somado – foi maior em termos reais
(ajustado à inflação) do que em qualquer outro momento desde a Segunda Guerra
Mundial, e está programado para subir ainda mais.”
13. Yochi Dreazen, Aamer Madhani e Marc
Ambinder, “The Goal Was Never to Capture Bin Laden”, The Atlantic, 4 de
maio de 2011.
14. Nick Turse, “Iraq, Afghanistan, and Other
Special Ops ‘Successes’”, TomDispatch, 25 de outubro de 2015, http://www.tomdispatch.com/blog/176060/.
15. Ver também Nick Turse, The Changing
Face of Empire: Special Ops, Drones, Spies, Proxy Fighters, Secret Bases, and
Cyberwarfare (Chicago: Haymarket Books/ Dispatch Books, 2012) e Nick Turse,
Tomorrow’s Battlefield: U.S. Proxy Wars and Secret Ops in Africa
(Chicago: Haymarket Books/Dispatch Books, 2015).
16. Robert Westbrook, John Dewey and
American Democracy (Ithaca: Cornell University Press, 1991), 440.
17. Jennifer Epstein, “Poll: Tax Hike Before
Medicare Cuts”, Politico, 20 de abril de 2011.
18. Jon Cohen, “Poll Shows Americans Oppose
Entitlement Cuts to Deal with Debt Problem”, Washington Post, 20 de
abril de 2011.
19. University of Maryland–College Park,
“Public’s Budget Priorities Differ Dramatically from House and Obama”,
comunicado à imprensa, Newswise.com, 2 de março de 2011,
http://www.newswise.com/articles/publics-budget-priorities-differ-dramatically-from-house-and-obama.
20. Catherine Lutz, Neta Crawford e Andrea
Mazzarino, “Costs of War”, Instituto Watson para Assuntos Internacionais e
Públicos da Universidade Brown, http://watson.brown.edu/costsofwar/.
“Tais golpes autoinfligidos, ainda que cada vez
mais potentes, não são uma inovação recente. Remontam à década de 1970, quando
a política econômica nacional passou por transformações decisivas, dando fim ao
que é chamado “a idade de ouro do capitalismo [de Estado]”. Dois elementos de
peso foram a financeirização e o offshoring de produção (ou
transferência de plantas industriais),* ambos relacionados ao declínio da taxa
de lucros na indústria fabril e ao desmantelamento do sistema de Bretton Woods
de controles de capital e moedas regulamentadas. O triunfo ideológico das
“doutrinas de livre mercado”, seletivas como sempre, aplicou golpes adicionais,
na medida em que essas doutrinas se traduziram em desregulamentação, regras de
governança corporativa vinculando polpudas recompensas pagas a altos executivos
de empresas a lucros de curto prazo e outras decisões políticas afins. A
resultante concentração da riqueza rendeu maior poder político, acelerando um
círculo vicioso que levou a uma extraordinária riqueza para uma ínfima minoria,
enquanto para a grande maioria os rendimentos reais praticamente estagnaram.”
* O termo offshoring designa a transferência
da atividade produtiva e respectivos postos de trabalho de regiões com consideráveis
custos de produção para regiões onde o custo de produção é significativamente
mais baixo, principalmente no que diz respeito à mão de obra e matérias-primas.
(N. T.)
“Alguns aniversários significativos são comemorados
de forma solene – o do ataque japonês à base aérea e naval norte-americana de
Pearl Harbor, por exemplo. Outros são ignorados, e podemos aprender com eles
valiosas lições sobre o que o futuro provavelmente nos reserva.
Não houve comemoração nenhuma do 50º aniversário da
decisão do presidente John F. Kennedy de desferir o mais assassino e destrutivo
ato de agressão do período pós-Segunda Guerra Mundial: a invasão do Vietnã do
Sul e, depois, de toda a Indochina, o que deixou milhões de mortos e quatro
países devastados, e o número de baixas ainda hoje aumenta progressivamente,
por causa dos efeitos de longo prazo da exposição do Vietnã do Sul aos
carcinógenos mais letais conhecidos, despejados com o intuito de destruir a
cobertura vegetal e a produção de alimentos.
O primeiro alvo foi o Vietnã do Sul. A seguir, a
agressão se espalhou para o Norte, e depois para a remota sociedade camponesa
do norte do Laos, até finalmente chegar ao rural Camboja, bombardeado em níveis
impressionantes, equivalente a todas as operações aéreas aliadas realizadas na
região do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo as duas bombas
atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. Neste caso, as ordens do
consultor de Segurança Nacional de Henry Kissinger estavam sendo obedecidas –
“jogar qualquer coisa que voe sobre tudo que se mova”, um
chamamento aberto para o genocídio como raras vezes se viu na história.[1] Pouco disso é lembrado. A maior parte desses fatos mal
é conhecida fora dos estreitos círculos de ativistas.”
1. Elizabeth Becker, “Kissinger Tapes
Describe Crises, War and Stark Photos of Abuse”, The New York Times, 27
de maio de 2004.
“A vitória mais importante das guerras da Indochina
deu-se em 1965, quando um golpe de Estado militar liderado pelo general Suharto
e respaldado pelos EUA resultou numa criminosa matança que
a CIA comparou às chacinas de Hitler, Stálin e Mao. O “assombroso morticínio”,
segundo a descrição no jornal The New York Times, foi noticiado com
exatidão de detalhes por toda a mídia dominante, e com incontida euforia.[17]
Foi um “brilho de luz na Ásia”, de acordo com o que
escreveu o renomado comentarista de esquerda James Reston, no Times.[18] O golpe deu fim à ameaça de democracia ao demolir o
partido político de massas, dos pobres, instituindo uma ditadura que compilaria
os piores registros de violações dos direitos humanos na história do mundo e
que escancarou as riquezas do país para os investidores ocidentais. Não é de
surpreender que, mesmo depois de tantos horrores, inclusive a quase genocida
invasão do Timor Leste, Suharto tenha sido recebido de bom grado numa visita à
Casa Branca em 1995, ocasião em que a administração Clintou saudou-o como
“nosso tipo de homem”.[19]”
17. Seymour Topping, “Slaughter of Reds Gives
Indonesia a Grim Legacy”, The New York Times, 24 de agosto de 1966.
18. James Reston, “A
Gleam of Light in Asia”, The New York Times, 19 de junho de 1966.
19. David Sanger,
“Why Suharto Is In and Castro Is Out”, The New York Times, 31 de outubro
de 1995.
“A Primavera Árabe, outro acontecimento de
importância histórica, talvez pressagie pelo menos uma “perda” parcial do MENA.
Os Estados Unidos e seus aliados vêm tentando com afinco evitar esse resultado
– até aqui, com considerável sucesso. Sua política com relação às revoltas
populares aferrou-se com unhas e dentes às diretrizes padrão: apoiar as forças
mais dóceis e submissas à influência e ao controle dos EUA.
Os ditadores favorecidos devem ser respaldados durante
o tempo em que conseguirem manter o controle (como os principais Estados
produtores de petróleo). Quando isso já não for possível, descarte-os e tentem
restaurar o antigo regime da forma mais completa possível (como na Tunísia e no
Egito). O padrão geral é conhecido em outros lugares do mundo, por ser
praticado por Somoza, Marcos, Duvalier, Mobutu, Suharto e muitos outros. No
caso da Líbia, as três tradicionais potências imperiais, violando a resolução
do Conselho de Segurança da ONU que elas mesmas tinham acabado de endossar,
tornaram-se a força aérea dos rebeldes, aumentando de forma acentuada o número
de baixas civis e criando um desastre humanitário e caos político à medida que
o país descambava para a guerra civil e abundantes quantidades de armamento
caíam nas mãos de jihadistas na África Ocidental e outras regiões.[21]”
21. Alan J.
Kuperman, “Obama’s Libya Debacle”, Foreign Affairs 94, nº 2 (março/abril
de 2015).
Um comentário:
A tradução do livro é bem problemática.
Para dar um exemplo simples (há muitas outras escolhas bem questionáveis), a expressão “back channel to Cuba” é traduzido de distintas formas na página 247 (Vias escusas para Cuba) e 254 (Bastidores de Cuba).
Postar um comentário