domingo, 28 de julho de 2019

O que é dialética (Parte II) – Leandro Konder

Editora: Brasiliense
ISBN: 978-85-1101-023-7
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 88 

“A teoria é necessária e nos ajuda muito, mas por si só não fornece os critérios suficientes para estarmos seguros de agir com acerto. Nenhuma teoria pode ser tão boa a ponto de nos evitar erros. A gente depende, em última análise, da prática – especialmente da prática social – para verificar o maior ou menor acerto do nosso trabalho com os conceitos (e com as totalizações).”


“Na investigação científica da realidade, começamos trabalhando com conceitos que são, ainda, sínteses muito abstratas. Marx dá o exemplo da população. A população é um todo, mas o conceito de população permanece vago se não conhecemos as classes de que a população se compõe. Só podemos conhecer concretamente as classes, entretanto, se estudarmos os elementos sobre os quais elas se apoiam, na existência delas, tais como o trabalho assalariado, o capital etc. Tais elementos, por sua vez, supõem o comércio, a divisão do trabalho, os preços etc. “Se começo pela população, portanto, tenho uma representação caótica do conjunto; depois, através de uma determinação mais precisa, por meio de análises, chego a conceitos cada vez mais simples. Alcançado tal ponto, faço a viagem de volta e retorno à população. Dessa vez, contudo, não terei sob os olhos um amálgama caótico e sim uma totalidade rica em determinações, em relações complexas.” Esse texto de Marx é de grande interesse para nós. O ponto de partida – observemos – não é um conceito rudimentar: é uma expressão que designa, ainda confusamente, uma realidade complicada. A análise, portanto, só pode ser orientada com base em uma síntese (mesmo precária) anterior. Uma certa compreensão do todo precede a própria possibilidade de aprofundar o conhecimento das partes.
Mas o texto ainda diz mais: por análise, eu decomponho e recomponho o conhecimento indicado na expressão que me serviu de ponto de partida. No fim, realizada a viagem do mais complexo (ainda abstrato) ao mais simples e feito o retorno do mais simples ao mais complexo (já concreto), a expressão população passa a ter um conteúdo bem determinado. O concreto, portanto, é o resultado de um trabalho. “O concreto” – insiste Marx – “é concreto porque é a síntese de várias determinações diferentes, é unidade na diversidade”.
A concepção de Marx, segundo a qual o conhecimento não é um ato e sim um processo, desenvolveu-se em polêmica contra a concepção irracionalista. Os irracionalistas consideram a intuição um instrumento privilegiado do conhecimento humano; para eles, o que é “sacado” intuitivamente já possui valor de verdade, de modo que não existe nenhum motivo para nós trilharmos o trabalhoso caminho indicado por Marx: a impressão genérica obtida no ponto de partida já nos basta. O irracionalismo desestimula o ser humano a realizar o paciente esforço de ir além da aparência, em busca da essência dos fenômenos. E as “totalidades” dos irracionalistas permanecem um tanto vazias, não têm um “recheio” definido.
A dialética é muito mais exigente do que o irracionalismo. Para reconhecer as totalidades em que a realidade está efetivamente articulada (em vez de inventar totalidades e procurar enquadrar nelas a realidade), o pensamento dialético é obrigado a um paciente trabalho: é obrigado a identificar, com esforço, gradualmente, as contradições concretas e as mediações específicas que constituem o “tecido” de cada totalidade, que dão “vida” a cada totalidade.
“A dialética” – observa Carlos Nelson Coutinho – “não pensa o todo negando as partes, nem pensa as partes abstraídas do todo. Ela pensa tanto as contradições entre as partes (a diferença entre elas: o que faz de uma obra de arte algo distinto de um panfleto político) como a união entre elas (o que leva a arte e a política a se relacionarem no seio da sociedade enquanto totalidade).”


“Para que o nosso conhecimento avance e o nosso laborioso (e interminável) descobrimento da realidade se aprofunde – quer dizer: para podermos ir além das aparências e penetrar na essência dos fenômenos – precisamos realizar operações de síntese e de análise que esclareçam não só a dimensão imediata como também, e sobretudo, a dimensão mediata delas. (...)
As mediações, entretanto, obrigam-nos a refletir sobre outro elemento insuprimível da realidade: as contradições. (...)
As conexões íntimas que existem entre realidades diferentes criam unidades contraditórias. Em tais unidades, a contradição é essencial: não é um mero defeito do raciocínio. Num sentido amplo, filosófico, que não se confunde com o sentido que a lógica confere ao termo, a contradição é reconhecida pela dialética como princípio básico do movimento pelo qual os seres existem. A dialética não se contrapõe à lógica, mas vai além da lógica, desbravando um espaço que a lógica não consegue ocupar.
Para desbravar esse novo espaço, a dialética modifica os instrumentos conceituais de que dispõe: passa a trabalhar, frequentemente, com determinações reflexivas e procura promover uma “fluidificação dos conceitos”.”


“Engels chegou à conclusão de que as leis gerais da dialética (comuns tanto à história humana como à natureza) podiam ser reduzidas, no essencial, a três:
1) lei da passagem da quantidade à qualidade (e vice-versa);
2) lei da interpenetração dos contrários;
3) lei da negação da negação.
A primeira lei se refere ao fato de que, ao mudarem, as coisas não mudam sempre no mesmo ritmo; o processo de transformação por meio do qual elas existem passa por períodos lentos (nos quais se sucedem pequenas alterações quantitativas) e por períodos de aceleração (que precipitam alterações qualitativas, isto é, “saltos”, modificações radicais). Engels dá o exemplo da água que vai esquentando, até alcançar cem graus centígrados e ferver, quando se precipita a sua passagem do estado líquido ao estado gasoso.
A segunda lei é aquela que nos lembra que tudo tem a ver com tudo, os diversos aspectos da realidade se entrelaçam e, em diferentes níveis, dependem uns dos outros, de modo que as coisas não podem ser compreendidas isoladamente, uma por uma, sem levarmos em conta a conexão que cada uma delas mantém com coisas diferentes. Conforme as conexões (quer dizer, conforme o contexto em que ela esteja situada), prevalece, na coisa, um lado ou o outro da sua realidade (que é intrinsecamente contraditória). Os dois lados se opõem e, no entanto, constituem uma unidade (e por isso essa lei já foi também chamada de unidade e luta dos contrários).
A terceira lei dá conta do fato de que o movimento geral da realidade faz sentido, quer dizer, não é absurdo, não se esgota em contradições irracionais, ininteligíveis, nem se perde na eterna repetição do conflito entre teses e antíteses, entre afirmações e negações. A afirmação engendra necessariamente a sua negação, porém a negação não prevalece como tal: tanto a afirmação como a negação são superadas e o que acaba por prevalecer é uma síntese, é a negação da negação.”


“O húngaro Georg Lukács (1885-1971) advertiu: “Não é a predominância dos motivos econômicos na explicação da história que distingue decisivamente o marxismo da ciência burguesa: é o ponto de vista da totalidade”. Somente o ponto de vista da totalidade, segundo Lukács, permite à dialética enxergar, por trás da aparência das “coisas”, os processos e inter-relações de que se compõe a realidade. Somente o ponto de vista da totalidade permite que se veja no real um “jorrar ininterrupto de novidade qualitativa”.
O italiano Antonio Gramsci (1891-1937) caracterizou o marxismo como um “historicismo absoluto”. Para ele, o fatalismo determinista pode se tornar uma força de resistência moral, pode ajudar o revolucionário a perseverar na luta, pode ajudar a organização revolucionária a manter a sua coesão interna nos períodos marcados por uma sucessão de graves derrotas. Nesse sentido, Gramsci se dispõe até a fazer-lhe um “elogio fúnebre”, reconhecendo a função histórica do determinismo, porém “enterrando-o com todas as honras”, pois se o determinismo persistir dificultará sempre o desenvolvimento do espírito crítico e da criatividade entre os revolucionários.
O materialismo histórico de Marx e Engels é constatativo e não normativo: ele reconhece que, nas condições de insuficiente desenvolvimento das forças produtivas humanas e de divisão da sociedade em classes, a economia tem imposto, em última análise, opções estreitas aos homens que fazem a história. Isso não significa que a economia seja o sujeito da história, que a economia vai dominar eternamente os movimentos do sujeito humano. Ao contrário: a dialética aponta na direção de uma libertação mais efetiva do ser humano em relação ao cerceamento de condições econômicas ainda desumanas.”
O alemão Walter Benjamin (1892-1940), aliás, lembrou que a história, tal como ela veio se desenrolando até o presente, está impregnada de violência, de opressão, de barbárie; e é exatamente por isso que a tarefa do teórico do materialismo histórico não pode ser pensar uma espécie de prolongamento “natural” dessa história, não pode ser promover a continuidade daquilo que essa história produziu, limitando-se a transmitir seus produtos de mão em mão. Um espírito dialético – escreveu Benjamin, através de uma sugestiva imagem – insiste em “escovar a história a contrapelo”.”


“Mesmo os indivíduos mais empenhados na luta pela transformação da sociedade se confundem, com frequência, quando falta coesão à unidade deles. A falta de coesão diminui, para eles, as possibilidades de fazerem história de modo consciente. Diminui as possibilidades de se organizarem e de se reconhecerem na ação da comunidade organizada a que se integraram.
O indivíduo isolado, normalmente, não pode fazer história: suas forças são muito limitadas. Por isso, o problema da organização capaz de levá-lo a multiplicar suas energias e ganhar eficácia é um problema crucial para todo revolucionário. É preciso que a organização não se torne opaca para o indivíduo, que ele não se sinta perdido dentro dela; é preciso que ela não o reduza a uma situação de impotência contemplativa ou a um ativismo cego. Se não, o indivíduo fica impossibilitado de atuar revolucionariamente e se sente alienado na atividade coletiva. A organização deixa de ser o lugar onde suas forças se multiplicam e passa a ser um lugar onde elas são neutralizadas ou instrumentalizadas por outras forças, orientadas em função de outros objetivos. (Lembremos a frase de Sartre colocada como epígrafe no começo deste livrinho: “A dialética, como lógica viva da ação, não pode aparecer a uma razão contemplativa. [...] No curso da ação, o indivíduo descobre a dialética como transparência racional enquanto ele a faz, e como necessidade absoluta enquanto ela lhe escapa, quer dizer, simplesmente, enquanto os outros a fazem”.)”


“A vida social, nos tempos atuais, já pressupõe a existência de indivíduos que alcançaram um razoável grau de autonomia. Algumas comunidades alienadas ainda conseguem, em determinadas circunstâncias, absorver e diluir grande número de indivíduos (fanatizados) no interior delas; mas já avançou bastante nas pessoas a consciência de que cada uma delas tem responsabilidades em relação às outras (e à sociedade em geral), porém possui igualmente responsabilidades em relação a si mesma.
A experiência vem ensinando a um número cada vez maior de indivíduos que há problemas que dependem da pessoa e somente dela e cuja solução não pode ser transferida para nenhuma organização social. Como escreveu o marxista tcheco Karel Kosik em sua Dialética do concreto: “Cada indivíduo – pessoalmente e sem que ninguém possa substituí-lo – tem de formar uma cultura e viver a sua vida”.
Essa compreensão que os indivíduos estão adquirindo cada vez mais concretamente do seu valor intrínseco não enfraquece neles o reconhecimento da necessidade de se associarem, mas cria importantes exigências, novas, quanto ao caráter das associações.
Por um lado, há um número crescente de indivíduos com maior riqueza e complexidade interior; e esses indivíduos experimentam uma necessidade mais imperiosa de superar seus limites como indivíduos, uma necessidade mais imperiosa de se completarem em alguma forma de existência comunitária, que os aproxime uns dos outros (sem prejuízo da individualidade deles). Por outro lado, a “racionalização” utilitária do capitalismo e o espírito exageradamente competitivo estimulado pelo mercado agravam muito as contradições entre os homens, diminuem a importância das velhas formas tradicionais de comunidade (família, vizinhança antiga), criam situações de solidão, desenvolvem frustrações, espalham muita agressividade e insegurança.
A falta de uma compreensão dialética desses problemas e a avidez dos indivíduos pela comunidade (por formas de convivência mais profundas) levam as pessoas, com frequência, a aderirem, apaixonadamente, a sucedâneos de formas de existência autenticamente comunitárias (quer dizer, levam-nas a se integrarem em pseudocomunidades, em caricaturas de comunidades). É o que acontece, por exemplo, com algumas pessoas que passam a militar fanaticamente em organizações de tipo fascista, que se tornam propagandistas em tempo integral de seitas religiosas “salvacionistas”, que viram “formigas” num “formigueiro” qualquer. E é também um fenômeno que se manifesta, com gravidade bem menor, no caso de certos grupos de jovens que se irmanam na “curtição” de uma mesma diversão ou de uma moda passageira intensamente vivida.
A falta da dialética e o anseio pela comunidade, combinados, podem igualmente influir – e com frequência influem mesmo – no comportamento dos revolucionários. Antes de poder transformar a sociedade na qual nasceu e atua, o revolucionário é em boa parte formado por ela, de modo que seria ingenuidade supor que ele possa permanecer completamente imune aos seus venenos. Muitas, muitíssimas vezes, as ideias revolucionárias se combinam, na mesma pessoa, com sentimentos bastante reacionários e com preconceitos surpreendentemente conservadores. Por isso, não são raros os casos de revolucionários que tendem a transformar a organização em que desenvolvem suas atividades políticas numa espécie de ídolo sagrado, que não pode ser submetido a críticas profundas e que deve merecer todos os sacrifícios. Essa atitude, alienada, causa graves prejuízos tanto aos indivíduos como à organização: os revolucionários que “fetichizam” a organização em que atuam deixam de contribuir para que ela se renove e acabam facilitando o agravamento de suas deformações. Na medida em que não aprofundam suficientemente nem o espírito crítico nem a luta permanente pela democratização de todas as relações humanas, esses indivíduos mostram ser, em última análise, maus revolucionários.”


“A dialética não dá “boa consciência” a ninguém. Sua função não é tornar determinadas pessoas plenamente satisfeitas com elas mesmas. O método dialético nos incita a revermos o passado à luz do que está acontecendo no presente; ele questiona o presente em nome do futuro, o que está sendo em nome do que “ainda não é” (Ernst Bloch). Um espírito agudamente dialético como o poeta Bertolt Brecht disse uma vez: “O que é, exatamente por ser tal como é, não vai ficar “tal como está”. Essa consciência da inevitabilidade da mudança e da impossibilidade de escamotear as contradições incomoda os beneficiários de interesses constituídos e os dependentes de hábitos mentais ou de valores cristalizados.
A dialética intranquiliza os comodistas, assusta os preconceituosos, perturba desagradavelmente os pragmáticos ou utilitários. Para os que assumem, consciente ou inconscientemente, uma posição de compromisso com o modo de produção capitalista, a dialética é “subversiva”, porque demonstra que o capitalismo está sendo superado e incita a superá-lo. Para os revolucionários românticos de ultraesquerda, a dialética é um elemento complicador utilizado por intelectuais pedantes, um método que desmoraliza as fantasias irracionalistas, desmascara o voluntarismo e exige que as mediações do real sejam respeitadas pela ação revolucionária.
Para os tecnocratas, que manipulam o comportamento humano (mesmo em nome do socialismo), a dialética é a teimosa rebelião daquilo que eles chamam de “fatores imponderáveis”: o resultado da insistência do ser humano em não ser tratado como uma máquina.
É verdade que, em muitos casos, o que tem sido apresentado como dialética não tem passado de mera instrumentalização de algumas ideias de Hegel ou de Marx, mal assimiladas e ainda mais mal utilizadas. Mas a reação potencialmente mais eficaz contra essa deformação é a que provém da autêntica dialética, que está sempre alerta para enfrentar as imposturas cometidas em seu nome, com o espírito rebelde que lhe é peculiar. A dialética – observa o filósofo brasileiro Gerd Bornheim – “é fundamentalmente contestadora”. Ninguém conseguirá jamais domesticá-la. Em sua inspiração mais profunda, ela existe tanto para fustigar o conservadorismo dos conservadores como para sacudir o conservadorismo dos próprios revolucionários. O método dialético não se presta para criar cachorrinhos amestrados. Ele é, como disse o argentino Carlos Astrada, “semente de dragões”.
Os dragões semeados pela dialética vão assustar muita gente pelo mundo afora, talvez causem tumulto, mas não são baderneiros inconsequentes; a presença deles na consciência das pessoas é necessária para que não seja esquecida a essência do pensamento dialético, enunciada por Marx na décima primeira tese sobre Feuerbach: “Os filósofos têm se limitado a interpretar o mundo; trata-se, no entanto, de transformá-lo.”

O que é dialética (Parte I) – Leandro Konder

Editora: Brasiliense
ISBN: 978-85-1101-023-7
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 88 

“Dialética era, na Grécia antiga, a arte do diálogo. Aos poucos, passou a ser a arte de, no diálogo, demonstrar uma tese por meio de uma argumentação capaz de definir e distinguir claramente os conceitos envolvidos na discussão. (...)
Na acepção moderna, entretanto, dialética significa outra coisa: é o modo de pensarmos as contradições da realidade, o modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação.”


“No final do século XVIII e no começo do século XIX, os conflitos políticos já não eram mais abafados nos corredores dos palácios e estouravam nas ruas. As lutas que precederam e desencadearam a Revolução Francesa envolveram muita gente, entraram na vida de milhões de pessoas; as guerras napoleônicas também mobilizaram as massas populares e os homens do povo foram obrigados a pensar sobre questões políticas que antes eram discutidas apenas por uma elite reduzida, mas que naquele período estavam invadindo a esfera da vida cotidiana de quase todo mundo. Essa situação se refletiu na filosofia. Se refletiu até na filosofia que se elaborava na longínqua cidade de Königsberg, na Prússia oriental (hoje a cidade se chama Kaliningrado e fica na atual Rússia), onde nasceu, viveu, escreveu e morreu aquele que provavelmente é o maior dos pensadores metafísicos modernos:
Immanuel Kant (1724-1804). Pessoalmente, Kant viveu na mais rigorosa rotina; até seus passeios tinham hora marcada (o poeta Heine conta que os vizinhos do filósofo acertavam seus relógios quando ele saía de casa, às 15h30, para dar uma volta). Ao seu redor, porém, as rotinas estavam sendo quebradas, a história da Europa estava pondo a nu muitas contradições e Kant não pôde deixar de pensar sobre a contradição, em geral.
Kant percebeu que a consciência humana não se limita a registrar passivamente impressões provenientes do mundo exterior, que ela é sempre a consciência de um ser que interfere ativamente na realidade; e observou que isso complicava extraordinariamente o processo do conhecimento humano. Sustentou que todas as filosofias até então vinham sendo ingênuas ou dogmáticas, pois tentavam interpretar o que era a realidade antes de ter resolvido uma questão prévia: o que é o conhecimento?
O centro da filosofia, para Kant, não podia deixar de ser a reflexão sobre a questão do conhecimento, a questão da exata natureza e dos limites do conhecimento humano. Fixando sua atenção naquilo que ele chamou de “razão pura”, o filósofo se convenceu, então, de que na própria “razão pura” (anterior à experiência) existiam certas contradições – as “antinomias” – que nunca poderiam ser expulsas do pensamento humano por nenhuma lógica.
Outro filósofo alemão, de uma geração posterior, demonstrou que a contradição não era apenas uma dimensão essencial na consciência do sujeito do conhecimento, conforme Kant tinha concluído; era um princípio básico que não podia ser suprimido nem da consciência do sujeito nem da realidade objetiva. Esse novo pensador, que se chamava Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), sustentava que a questão central da filosofia era a questão do ser, mesmo, e não a do conhecimento. Contra Kant, ele argumentou: “Se eu pergunto o que é o conhecimento, já na palavra é está em jogo uma certa concepção de ser; a questão do conhecimento, daquilo que o conhecimento é, só pode ser concretamente discutida a partir da questão do ser”.
Hegel concordava com Kant num ponto essencial: no reconhecimento de que o sujeito humano é essencialmente ativo e está sempre interferindo na realidade. Na época da Revolução Francesa, entusiasmado com a tomada da Bastilha pelo povo e com a derrubada de instituições antiquíssimas (que pareciam eternas), Hegel – então com 19 anos – plantou uma “árvore da liberdade” em Tübingen, onde morava, em homenagem à França. Naquele momento, o poder humano de intervir na realidade lhe pareceu quase ilimitado; o sujeito humano lhe pareceu quase onipotente.
Logo, porém, a vida se encarregou de jogar água fria no entusiasmo do filósofo. A Revolução Francesa atravessou uma fase de terror, com a guilhotina cortando inúmeras cabeças, e depois veio a ser controlada por Napoleão Bonaparte (mas o próprio Napoleão foi derrotado e a Europa se viu dominada pela política ultraconservadora da Santa Aliança). Além disso, a Alemanha, país onde o pensador vivia, era tão atrasada que nem sequer tinha conseguido alcançar a sua unidade como nação: estava dividida em governos regionais, cada um mais reacionário que o outro. Hegel descobriu, então, com amargura, que o homem transforma ativamente a realidade, mas quem impõe o ritmo e as condições dessa transformação ao sujeito é, em última análise, a realidade objetiva.
Para avaliar de maneira realista as possibilidades do sujeito humano, Hegel procurou estudar seus movimentos no plano objetivo das atividades políticas e econômicas. Dedicou-se à leitura e ao exame dos escritos de Adam Smith e dos teóricos da economia política inglesa clássica. Lukács mostrou, em seu livro sobre O jovem Hegel, que na base do pensamento de Hegel está não só uma reflexão aprofundada sobre a Revolução Francesa, como também uma reflexão radical sobre a chamada revolução industrial, que vinha se realizando na Inglaterra. Hegel percebe que o trabalho é a mola que impulsiona o desenvolvimento humano; é no trabalho que o homem se produz a si mesmo; o trabalho é o núcleo a partir do qual podem ser compreendidas as formas complicadas da atividade criadora do sujeito humano. No trabalho se encontra tanto a resistência do objeto (que nunca pode ser ignorada) como o poder do sujeito, a capacidade que o sujeito tem de encaminhar, com habilidade e persistência, uma superação dessa resistência.
Foi com o trabalho que o ser humano “desgrudou” um pouco da natureza e pôde, pela primeira vez, contrapor-se como sujeito ao mundo dos objetos naturais. Se não fosse o trabalho, não existiria a relação sujeito-objeto.
O trabalho criou para o homem a possibilidade de ir além da pura natureza. “A natureza, como tal, não cria nada de propriamente humano”, observa o filósofo soviético Evald Iliênkov. O homem não deixa de ser um animal, de pertencer à natureza; porém, já não pertence inteiramente a ela. Os animais agem apenas em função das necessidades imediatas e se guiam pelos instintos (que são forças naturais); o ser humano, contudo, é capaz de antecipar na sua cabeça os resultados das suas ações, é capaz de escolher os caminhos que vai seguir para tentar alcançar suas finalidades. A natureza dita o comportamento aos animais; o homem, no entanto, conquistou certa autonomia diante dela. O trabalho permitiu ao homem dominar algumas das energias da natureza; permitiu-lhe, como escreveu o brasileiro José Arthur Giannotti, ter “parte da natureza à sua disposição”.
O trabalho é o conceito-chave para nós compreendermos o que é a superação dialética. Para expressar a sua concepção da superação dialética, Hegel usou a palavra alemã aufheben, um verbo que significa suspender. Mas esse suspender tem três sentidos diferentes. O primeiro sentido é o de negar, anular, cancelar (como ocorre, por exemplo, quando suspendemos um passeio por causa do mau tempo, ou quando um estudante é suspenso das aulas e não pode comparecer à escola durante algum tempo). O segundo sentido é o de erguer alguma coisa e mantê-la erguida para protegê-la (como a gente vê, por exemplo, num poema de Manuel Bandeira, quando o poeta fala do quarto onde morou há muitos anos e diz que ele foi preservado porque ficou “intacto, suspenso no ar”). E o terceiro sentido é o de elevar a qualidade, promover a passagem de alguma coisa para um plano superior, suspender o nível. Pois bem: Hegel emprega a palavra com os três sentidos diferentes ao mesmo tempo. Para ele, a superação dialética é simultaneamente a negação de uma determinada realidade, a conservação de algo de essencial que existe nessa realidade negada e a elevação dela a um nível superior.
Isso parece obscuro, mas fica menos confuso se observamos o que acontece no trabalho: a matéria-prima é “negada” (quer dizer, é destruída em sua forma natural), mas ao mesmo tempo é “conservada” (quer dizer, é aproveitada) e assume uma forma nova, modificada, correspondente aos objetivos humanos (quer dizer, é “elevada” em seu valor). É o que se vê, por exemplo, no uso do trigo para o fabrico do pão: o trigo é triturado, transformado em pasta, porém não desaparece de todo, passa a fazer parte do pão, que vai ao forno e – depois de assado – se torna humanamente comestível.
Boa parte da obscuridade de Hegel resultava do fato de ele ser idealista. Hegel subordinava os movimentos da realidade material à lógica de um princípio que ele chamava de Ideia Absoluta; como essa Ideia Absoluta era um princípio inevitavelmente nebuloso, os movimentos da realidade material eram, frequentemente, descritos pelo filósofo de maneira bastante vaga.
No caminho aberto por Hegel, entretanto, surgiu outro pensador alemão, Karl Marx (1818-1883), materialista, que superou – dialeticamente – as posições de seu mestre. Marx escreveu que em Hegel a dialética estava, por assim dizer, de cabeça para baixo; decidiu, então, colocá-la sobre seus próprios pés.
Marx teve uma vida muito atribulada: ligou-se bem cedo ao movimento operário e socialista, lutou na política ao lado dos trabalhadores, viveu na pobreza e passou a maior parte de sua vida no exílio (na Inglaterra). A solidariedade ativa que o ligou aos trabalhadores contribuiu, certamente, para que ele tivesse do trabalho uma compreensão diferente daquela que tinha sido exposta pelo velho Hegel, cuja existência transcorrera quase toda entre as quatro paredes da biblioteca e da sala de aula.
Marx concordou plenamente com a observação de Hegel de que o trabalho era a mola que impulsionava o desenvolvimento humano, porém criticou a unilateralidade da concepção hegeliana do trabalho, sustentando que Hegel dava importância demais ao trabalho intelectual e não enxergava a significação do trabalho físico, material. “O único trabalho que Hegel conhece e reconhece” – observou Marx em 1844 – “é o trabalho abstrato do espírito”. Essa concepção abstrata do trabalho levava Hegel a fixar sua atenção exclusivamente na criatividade do trabalho, ignorando o lado negativo dele, as deformações a que ele era submetido em sua realização material, social. Por isso Hegel não foi capaz de analisar seriamente os problemas ligados à alienação do trabalho nas sociedades divididas em classes sociais (especialmente na sociedade capitalista).”


“O trabalho – admite Marx – é a atividade pela qual o homem domina as forças naturais, humaniza a natureza; é a atividade pela qual o homem se cria a si mesmo. Como, então, o trabalho – de condição natural para a realização do homem – chegou a tornar-se o seu algoz? Como ele chegou a se transformar em “uma atividade que é sofrimento, uma força que é impotência, uma procriação que é castração”?
Uma primeira causa dessa deformação monstruosa se encontra na divisão social do trabalho, na apropriação privada das fontes de produção, no aparecimento das classes sociais. Alguns homens passaram a dispor de meios para explorar o trabalho dos outros; passaram a impor aos trabalhadores condições de trabalho que não eram livremente assumidas por estes. Introduziu-se, assim, um novo tipo de contradição no interior da comunidade humana, no interior do gênero humano.
A partir da divisão social do trabalho, a humanidade passava a ter uma dificuldade bem maior para pensar os seus próprios problemas e para encará-los de um ângulo mais amplamente universal: mesmo quando eram sinceros, os indivíduos se deixavam influenciar pelo ponto de vista dos exploradores do trabalho alheio, pela “perspectiva parcial inevitável” das classes sociais (conforme a caracterização da ideologia por Lucien Goldmann).
“Divisão do trabalho e propriedade privada” – escreveu Marx – “são termos idênticos: um diz em relação à exploração do trabalho escravo a mesma coisa que o outro diz em relação ao produto da exploração do trabalho escravo.” As condições criadas pela divisão do trabalho e pela propriedade privada introduziram um “estranhamento” entre o trabalhador e o trabalho, uma vez que o produto do trabalho, antes mesmo de o trabalho se realizar, pertence a outra pessoa que não o trabalhador. Por isso, em lugar de realizar-se no seu trabalho, o ser humano se aliena nele; em lugar de reconhecer-se em suas próprias criações, o ser humano se sente ameaçado por elas; em lugar de libertar-se, acaba enrolado em novas opressões.”


“As leis do mercado vão dominando a sociedade inteira: todos os valores humanos autênticos vão sendo destruídos pelo dinheiro, tudo vira mercadoria, tudo pode ser comercializado, todas as coisas podem ser vendidas ou compradas por um determinado preço.”


“Qualquer objeto que o homem possa perceber ou criar é parte de um todo. Em cada ação empreendida, o ser humano se defronta, inevitavelmente, com problemas interligados. Por isso, para encaminhar uma solução para os problemas, o ser humano precisa ter uma certa visão de conjunto deles: é a partir da visão do conjunto que podemos avaliar a dimensão de cada elemento do quadro. Foi o que Hegel sublinhou quando escreveu: “A verdade é o todo”. Se não enxergarmos o todo, podemos atribuir um valor exagerado a uma verdade limitada (transformando-a em mentira), prejudicando a nossa compreensão de uma verdade mais geral.
Exemplo disso: alguém observa que o capitalista X é um homem generoso, progressista, sinceramente preocupado com seus operários. Essa observação pode ser correta. No entanto, é necessário entendê-la dentro de seus limites, para não perdermos de vista o fato de que ela nunca pode ser usada para pretender invalidar outra observação mais abrangente: a de que o sistema capitalista, por sua própria essência, impele os capitalistas em geral, quaisquer que sejam as qualidades humanas deles, a extraírem mais-valia do trabalho de seus operários.
A visão de conjunto – ressalve-se – é sempre provisória e nunca pode pretender esgotar a realidade a que ele se refere. A realidade é sempre mais rica do que o conhecimento que temos dela. Há sempre algo que escapa às nossas sínteses; isso, porém, não nos dispensa do esforço de elaborar sínteses, se quisermos entender melhor a nossa realidade. A síntese é a visão de conjunto que permite ao homem descobrir a estrutura significativa da realidade com que se defronta, numa situação dada. E é essa estrutura significativa – que a visão de conjunto proporciona – que é chamada de totalidade.
A totalidade é mais do que a soma das partes que a constituem. No trabalho, por exemplo, dez pessoas bem entrosadas produzem mais do que a soma das produções individuais de cada uma delas, isoladamente considerada. Na maneira de se articularem e de constituírem uma totalidade, os elementos individuais assumem características que não teriam, caso permanecessem fora do conjunto.”


“Para trabalhar dialeticamente com o conceito de totalidade, é muito importante sabermos qual é o nível de totalização exigido pelo conjunto de problemas com que estamos nos defrontando; e é muito importante, também, nunca esquecermos que a totalidade é apenas um momento de um processo de totalização (que, conforme já advertimos, nunca alcança uma etapa definitiva e acabada). Afinal, a dialética – maneira de pensar elaborada em função da necessidade de reconhecermos a constante emergência do novo na realidade humana – negar-se-ia a si mesma, caso cristalizasse ou coagulasse suas sínteses, recusando-se a revê-las, mesmo em face de situações modificadas.
A modificação do todo só se realiza, de fato, após um acúmulo de mudanças nas partes que o compõem. Processam-se alterações setoriais, quantitativas, até que se alcança um ponto crítico que assinala a transformação qualitativa da totalidade. E a lei dialética da transformação da quantidade em qualidade. Devemos sublinhar que a modificação do todo é mais complicada que a modificação de cada um dos elementos que o integram. E devemos sublinhar outra coisa: cada totalidade tem sua maneira diferente de mudar; as condições da mudança variam dependendo do caráter da totalidade e do processo específico do qual ela é um momento.”
Vejamos um exemplo. Observemos a sociedade brasileira. Podemos analisá-la em três níveis distintos. Num primeiro nível, podemos estudar seu regime jurídico-político, suas leis, suas instituições, seu sistema administrativo, a estrutura do seu Estado. Num segundo nível, podemos mergulhar mais fundo e procurar examinar a história da sociedade brasileira, a relação existente entre sua vida política, seus problemas sociais e sua economia; podemos encará-la como formação socioeconômica. E, finalmente, num terceiro nível, mais geral e mais abstrato, podemos fixar nossa atenção no modo de produção que se acha na base da formação socioeconômica existente.
Na prática, não é possível separar inteiramente as questões que se apresentam num desses níveis das questões que se manifestam nos outros dois; afinal, concretamente, elas são elementos de uma mesma realidade global, que é a sociedade brasileira. No entanto, focalizada no plano de cada uma das diversas totalizações mencionadas, essa realidade nos revela aspectos distintos, que nos ajudam a compor sua verdadeira fisionomia e a orientar de maneira mais realista nossa atividade tendente a transformá-la.”