quinta-feira, 28 de junho de 2018

O Nomear e a Necessidade – Saul Kripke

Editora: Gradiva
ISBN: 978-98-9616-508-6
Tradução: Ricardo Santos e Teresa Filipe
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 252

“Uma das teses intuitivas que irei sustentar nestas palestras é a de que os nomes são designadores rígidos. Parece ser seguro que eles satisfazem o teste intuitivo que mencionei acima: embora seja verdade que o presidente dos EUA em 1970 poderia ter sido outra pessoa que não o presidente dos EUA em 1970 (por exemplo, poderia ter sido Humphrey), no entanto, nenhuma outra pessoa além de Nixon poderia ter sido Nixon. Da mesma maneira, um designador designa rigidamente um certo objeto se designar esse objeto onde quer que ele exista; se, além disso, o objeto é um existente necessário, o designador pode ser chamado fortemente rígido. Por exemplo, «o presidente dos EUA em 1970» designa um certo homem, Nixon; mas alguma outra pessoa (por exemplo, Humphrey) poderia ter sido o presidente em 1970, e Nixon poderia não o ter sido; por isso, este designador não é rígido.
Nestas palestras defenderei, de maneira intuitiva, que os nomes próprios são designadores rígidos, porque apesar de o homem (Nixon) poder não ter sido presidente, não se dá o caso de que ele pudesse não ter sido Nixon (embora pudesse não ter sido chamado «Nixon»). Aqueles que defenderam que, para darmos um sentido à noção de designador rígido, teríamos de, primeiramente, dar sentido à noção de «critérios de identidade transmundial» inverteram as posições da carroça e dos bois; é porque podemos referir Nixon (rigidamente) e estipular que estamos a falar daquilo que lhe poderia ter acontecido a ele (em certas circunstâncias) que as «identificações transmundiais» não levantam qualquer problema em tais casos.”


         “Se uma qualidade é um objeto abstracto, um agregado de qualidades é um objeto de um grau ainda mais elevado de abstracção, e não um particular. Os filósofos chegaram à perspectiva contrária por via de um falso dilema, pois perguntaram: estes objetos estão por detrás do agregado de qualidades, ou será que o objeto não é mais do que o agregado? Nem uma coisa nem outra. Esta mesa é de madeira, é castanha, está na sala, etc. Tem todas estas propriedades, e não é uma coisa sem propriedades, que esteja por detrás delas; mas não deve por essa razão ser identificada com o conjunto, ou «agregado», das suas propriedades, nem com o subconjunto das suas propriedades essenciais. Não perguntem: como é que posso identificar esta mesa noutro mundo possível, se não for através das suas propriedades? Tenho a mesa nas minhas mãos, posso apontar para ela e, quando pergunto se ela poderia estar noutra sala, estou, por definição, a falar dela. Não tenho de a identificar depois de a ver através de um telescópio. Se estou a falar dela, é dela que estou a falar, da mesma maneira que quando digo que as nossas mãos poderiam estar pintadas de verde, estipulei que estou a falar da cor verde. Algumas propriedades podem ser essenciais a um objeto, na medida em que este não poderia não as ter. Mas estas propriedades não são usadas para identificar o objeto noutro mundo possível, pois não é necessária essa identificação. E as propriedades essenciais de um objeto não têm de ser usadas para o identificar no mundo atual, se é que o identificamos no mundo atual por meio de propriedades (tenho até agora deixado a questão em aberto).
Portanto: a questão da identificação transmundial tem algum sentido, quando é colocada como pergunta pela identidade de um objeto via questões acerca das partes que o compõem. Mas estas partes não são qualidades e o que está em questão não é um objeto semelhante àquele que nos é dado. Os teóricos têm dito muitas vezes que identificamos os objetos ao longo dos mundos possíveis como objetos que se assemelham, nos aspectos mais importantes, àquele que nos é dado. Pelo contrário, Nixon, se tivesse decidido agir de outro modo, poderia ter fugido da política, porém, alimentando em privado opiniões radicais. E muito importante observar que, mesmo quando podemos substituir questões acerca de um objeto por questões acerca das suas partes, não temos de o fazer. Podemos referir-nos ao objeto e perguntar o que lhe poderia ter acontecido a ele. Portanto, não começamos por ter mundos (a respeito dos quais se supõe que são de alguma maneira reais e que podemos percepcionar as suas qualidades, mas não os seus objetos), para perguntarmos depois pelos critérios de identificação transmundial; pelo contrário, começamos pelos objetos, que temos, e que podemos identificar no mundo atual. Depois podemos perguntar se certas coisas poderiam ser verdadeiras dos objetos.”


“Em primeiro lugar, defendi que uma maneira muito comum de conceber como é que os nomes adquirem a sua referência, em geral, não se aplica. A referência de um nome não é geralmente determinada por certas marcas que identificam o objeto de modo único, por certas propriedades que são satisfeitas unicamente pelo referente e que o falante sabe ou acredita que são verdadeiras desse referente. Primeiro, as propriedades em que o falante acredita não têm de ser especificadoras de um objeto único. Segundo, mesmo quando o são, pode acontecer que não sejam unicamente verdadeiras do referente que o falante tem efetivamente em vista, mas sim de alguma outra coisa ou de nenhuma. E o que acontece quando o falante tem crenças erradas acerca de uma pessoa. Ele não tem crenças corretas acerca de outra pessoa, mas sim crenças erradas acerca de uma certa pessoa. Nesses casos, a referência parece ser efetivamente determinada pelo facto de o falante ser um membro de uma comunidade de falantes que usam o nome. O nome foi-lhe transmitido por tradição, passando de elo em elo.
Em segundo lugar, defendi que, mesmo que nalguns casos especiais, nomeadamente em casos de baptismo inicial, um referente seja determinado por uma descrição, por alguma propriedade unicamente identificadora, o que essa propriedade faz, em muitos casos de designação, não é fornecer um sinónimo, fornecer algo que o nome abreviaria; o que a propriedade efetivamente faz é fixar uma referência. Ela fixa a referência por meio de certas marcas contingentes do objeto. O nome que denota o objeto é então usado para nos referirmos a esse objeto, mesmo quando nos referimos a situações contrafactuais em que o objeto não tem as propriedades em questão. Demos o exemplo do metro.
Por último, no final da palestra anterior abordámos as afirmações de identidade. As afirmações de identidade deviam parecer muito simples, mas os filósofos acham-nas bastante enigmáticas. No meu próprio caso, não tenho a certeza de ter conseguido dissipar todas as confusões possíveis que esta relação pode gerar. Alguns filósofos acharam que a relação gera tantas confusões que a modificaram. Há, por exemplo, quem pense que, se temos dois nomes como «Cícero» e «Túlio» e dizemos que Cícero é Túlio, não podemos estar realmente a dizer, do objeto que é Cícero e também Túlio, que ele é idêntico a si mesmo. Pelo contrário, «Cícero é Túlio» pode expressar uma descoberta empírica, como já dissemos. E por isso alguns filósofos, incluindo até Frege numa fase inicial da sua obra, consideraram que a identidade seria uma relação entre nomes. A identidade, dizem eles, não é a relação de um objeto consigo próprio, mas sim a relação que há entre dois nomes quando estes designam o mesmo objeto.”


“É interessante comparar as minhas ideias com as de Mill. Para Mill, predicados como «vaca», descrições definidas e nomes próprios são tudo nomes. Mill diz que os nomes «singulares» são conotativos se forem descrições definidas, mas não-conotativos se forem nomes próprios. Por outro lado, Mill diz que todos os nomes «gerais» são conotativos; um predicado como «ser humano» define-se pela conjunção de certas propriedades que fornecem condições necessárias e suficientes para a humanidade — a racionalidade, a animalidade e certos aspectos físicos65. A tradição lógica moderna, representada por Frege e por Russell, parece sustentar que Mill estava errado a respeito dos nomes singulares, mas certo a respeito dos nomes gerais. A filosofia mais recente tem seguido essa via, com a excepção de que, tanto no caso dos nomes próprios como no dos termos para espécies naturais, substitui muitas vezes a noção de propriedades definitórias pela de um feixe de propriedades, em que apenas algumas têm de ser satisfeitas em cada caso particular. A minha perspectiva, por outro lado, considera que Mill está mais ou menos certo a respeito dos nomes «singulares», mas errado a respeito dos nomes «gerais». Talvez alguns nomes «gerais» («tolo», «gordo», «amarelo») expressem propriedades66. Num sentido importante, nomes gerais como «vaca» e «tigre» não o fazem, a não ser que ser uma vaca conte trivialmente como uma propriedade. É evidente que «vaca» e «tigre» não são abreviaturas da conjunção de propriedades que um dicionário utilizaria para os definir, como pensava Mill. Saber se a ciência pode descobrir empiricamente que certas propriedades são propriedades necessárias das vacas, ou dos tigres, é uma outra questão, a que respondo afirmativamente.
Vejamos como é que isto se aplica ao género de afirmações de identidade, que discuti antes, que expressam descobertas científicas — como, por exemplo, a afirmação de que a água é H2O. A água ser H2O representa seguramente uma descoberta. Originalmente identificámos a água pela impressão característica que provoca ao tacto, pelo seu aspecto característico e talvez pelo sabor (embora o sabor possa habitualmente ser um resultado das impurezas). Se existisse efectivamente uma substância com uma estrutura atómica completamente diferente da água, mas que se assemelhasse à água nestes aspectos, diríamos que alguma água não é H2O? Julgo que não. Diríamos antes que, tal como há um ouro dos tolos, poderia haver uma água dos tolos, ou seja, uma substância que, apesar de ter as propriedades por meio das quais originalmente identificámos a água, não seria de facto água. E julgo que isto se aplica, não apenas ao mundo actual, mas até quando falamos de situações contrafactuais. Se existisse uma substância que fosse uma água dos tolos, ela seria água dos tolos, e não água. Por outro lado, se esta substância puder adoptar outra forma — como a água polimerizada alegadamente descoberta na União Soviética, com marcas identificadoras muito diferentes daquilo a que agora chamamos água —, isso será uma forma de água, uma vez que se trata da mesma substância, mesmo que não tenha as aparências por meio das quais originalmente identificámos a água.”
66 Não irei apresentar nenhum critério para aquilo que entendo por «propriedade pura» ou intensão fregiana. Exemplos inquestionáveis do que se pretende dizer são difíceis de encontrar. A cor amarela expressa seguramente uma propriedade física manifesta de um objecto e, em relação à discussão anterior sobre o ouro, pode ser encarada como uma propriedade no sentido requerido. Na realidade, porém, não deixa de ter um certo elemento referencial que lhe é próprio, pois, na minha perspectiva, a cor amarela é seleccionada e rigidamente designada como aquela propriedade física exterior do objecto que sentimos por meio da impressão visual de amarelo. Neste aspecto assemelha-se aos termos para espécies naturais. A qualidade fenomenológica da própria sensação, por seu lado, pode ser encarada como um quale em sentido puro. É possível que esteja a ser muito vago relativamente a estas questões, mas não parece que seja aqui necessária maior precisão.


         “A tradição lógica moderna, representada por Frege e por Russell, criticou a posição de Mill acerca dos nomes singulares, mas seguiu-o no que diz respeito aos nomes gerais. Assim, todos os termos, tanto singulares como gerais, têm uma «conotação» ou um sentido fregiano. Teóricos mais recentes têm seguido Frege e Russell, modificando as suas concepções somente neste aspecto: a noção de um sentido dado por uma certa conjunção de propriedades vê-se substituída pela de um sentido dado por um «feixe» de propriedades, no qual só um número suficiente delas é que tem de se aplicar. A perspectiva que defendo, fazendo o contrário de Frege e Russell, segue Mill (mais ou menos) no que diz respeito aos termos singulares, mas critica a sua posição acerca dos termos gerais.
Em segundo lugar, a perspectiva que defendo afirma que, tanto no caso de termos para espécies como no dos nomes próprios, devemos ter presente o contraste entre as propriedades a priori mas talvez contingentes que um termo transporta consigo, dadas pela maneira como a sua referência foi fixada, e as propriedades analíticas (e portanto necessárias) que um termo pode transportar, dadas pelo seu significado. Para as espécies, tal como para os nomes próprios, a maneira como se fixa a referência de um termo não deve ser vista como um sinónimo desse termo. No caso dos nomes próprios, há várias maneiras de fixar a sua referência. Num baptismo inicial, ela é tipicamente fixada por uma ostensão ou por uma descrição. Caso não seja assim, a referência é geralmente determinada por uma cadeia, que transmite o nome de elo em elo. O mesmo se pode dizer de um termo geral como «ouro». Se imaginarmos um hipotético (embora algo artificial) baptismo da substância, temos de imaginar que ela é seleccionada por alguma definição do género: «O ouro é a substância exemplificada pelos itens que estão ali ou, pelo menos, por quase todos eles.» Diversos aspectos deste baptismo são dignos de nota. Em primeiro lugar, a identidade presente na «definição» não expressa uma verdade (completamente) necessária: embora cada um destes itens seja, de facto, essencialmente (necessariamente) ouro, o ouro poderia existir mesmo que estes itens não existissem. No entanto, a definição expressa uma verdade a priori, no mesmo sentido (e aplicando-se as mesmas reservas) em que «1 metro = o comprimento de S»: ela fixa uma referência. Creio que, em geral, é desta maneira que se fixa a referência dos termos para espécies naturais (e.g., espécies animais, vegetais e químicas); define-se a substância como a espécie exemplificada por (a quase totalidade de) uma dada amostra. Dizendo «a quase totalidade» criamos espaço para que possa haver algum ouro dos tolos na amostra. Se a amostra original contiver um número pequeno de itens desviantes, eles serão rejeitados por não serem realmente ouro. Se, por outro lado, a suposição de que há uma substância ou espécie uniforme na amostra inicial se revela estar radicalmente errada, as reacções podem variar: umas vezes podemos declarar que há duas espécies de ouro, outras vezes podemos abandonar o termo «ouro». (Não julgo que estas possibilidades sejam exaustivas.) E a alegada nova espécie pode revelar-se ilusória por outras razões. (...)
No caso de um fenómeno natural perceptível pelos sentidos, a maneira como a referência é seleccionada é simples: «O calor = aquilo que é sentido pela sensação S.» Uma vez mais, a identidade fixa uma referência: portanto, é a priori, mas não necessária, dado que o calor poderia existir, e nós não. «Calor», tal como «ouro», é um designador rígido, cuja referência é fixada pela sua «definição». Outros fenómenos naturais, como a electricidade, são originalmente identificados como sendo as causas de certos efeitos experimentais concretos.”

domingo, 3 de junho de 2018

O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica (Parte IV) – Jean-Paul Sartre

Editora: Vozes
ISBN: 978-85-3261-762-0
Tradução e notas: Paulo Perdigão
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 784
Sinopse: Ver Parte I

“Com efeito, somente pelo fato de ter consciência dos motivos que solicitam minha ação, tais motivos já constituem objetos transcendentes para minha consciência, já estão lá fora; em vão buscaria recobrá-los: deles escapo por minha própria existência. Estou condenado a existir para sempre para-além de minha essência, para-além dos móbeis e motivos de meu ato: estou condenado a ser livre. Significa que não se poderia encontrar outros limites à minha liberdade além da própria liberdade, ou, se preferirmos, que não somos livres para deixar de ser livres.”


“A emoção não é uma tempestade fisiológica: é uma resposta adaptada à situação; é uma conduta cujo sentido e cuja forma são objeto de uma intenção da consciência que visa alcançar um fim particular por meios particulares. No medo, o desfalecimento, a cataplexia, visam suprimir o perigo suprimindo a consciência do perigo. Há intenção de perder consciência para abolir o mundo terrível no qual a consciência está comprometida e que advém ao ser pela consciência. Trata-se, pois, de condutas mágicas provocando satisfações simbólicas de nossos desejos e que revelam, ao mesmo tempo, um estrato mágico do mundo. Em oposição a tais condutas, a conduta voluntária e racional irá encarar tecnicamente a situação, rejeitar o mágico e empenhar-se em captar as séries determinadas e os complexos instrumentais que permitem resolver os problemas. Organizará um sistema de meios baseando-se no determinismo instrumental. De pronto, descobrirá um mundo técnico, ou seja, um mundo no qual cada complexo-utensílio remete a outro complexo mais amplo, e assim sucessivamente.”


“O ato racional ideal, pois, sena aquele para o qual os móbeis fossem praticamente nulos e inspirados unicamente por uma apreciação objetiva da situação. O ato irracional ou passional será caracterizado pela proporção inversa. Falta explicar a relação entre motivos e móbeis no caso trivial em que ambos existem. Por exemplo: posso aderir ao partido socialista por estimar que ele serve aos interesses da justiça e da humanidade, ou por acreditar que pra converter-se na principal força histórica nos anos seguintes à minha adesão: estes são os motivos. E, ao mesmo tempo, posso ter móbeis: sentimento de piedade ou caridade para com certas categorias de oprimidos, vergonha de estar “no lado bom da barricada” como disse Gide, ou ainda complexo de inferioridade, desejo de escandalizar meus familiares, etc. O que queremos dizer ao afirmar que aderimos ao partido socialista por causa desses motivos e desses móbeis? Trata-se evidentemente de dois estratos de significações radicalmente distintos. Como compará-los, como determinar o papel de cada um deles na decisão considerada? Tal dificuldade, sem dúvida a maior suscitada pela distinção corrente entre motivos e móbeis, nunca ficou resolvida; poucos, inclusive, chegam sequer a entrevê-la. Isso porque equivale, em outra forma, a situar a existência de um conflito entre a vontade e as paixões. Mas, se a teoria clássica revela-se incapaz de determinar para o motivo e o móbil sua influência própria no simples caso em que ambos se juntam para uma única decisão, ser-lhe-á totalmente impossível explicar e mesmo conceber um conflito entre motivos e móbeis em que cada grupo iria solicitar uma decisão em particular.”


“Uma vez que nosso ser é precisamente nossa escolha originária, a consciência (de) escolha é idêntica à consciência que temos (de) nós. É preciso ser consciente para escolher, e é preciso escolher para ser consciente. Escolha e consciência são uma só e mesma coisa. É o que muitos psicólogos pressentiram ao declarar que a consciência “é seleção”. Mas, por não reduzir esta seleção a seu fundamento ontológico, eles permaneceram em um terreno em que a seleção aparecia como função gratuita de uma consciência, por outro lado, substancial.”


“Escolher-nos é nadificar-nos, ou seja, fazer com que um futuro venha a nos anunciar o que somos, conferindo um sentido ao nosso passado. Assim, não há uma sucessão de instantes separados por nadas, como em Descartes, e de tal ordem que minha escolha no instante t não possa agir sobre minha escolha do instante t1. Escolher é fazer com que surja, com meu comprometimento, certa extensão finita de duração concreta e contínua, que é precisamente a que me separa da realização de meus possíveis originais. Assim, liberdade escolha, nadificação e temporalização constituem uma única e mesma coisa.”


“Heidegger mostrou como as preocupações cotidianas designam lugares aos utensílios que nada têm em comum com a pura distância geométrica: meus óculos, diz, uma vez colocados sobre meu nariz, estão muito mais longe de mim do que o objeto que vejo através deles.”


“O passado, com efeito, é originariamente projeto, como o surgimento atual de meu ser. E, na medida mesmo em que é projeto, é antecipação; seu sentido lhe chega do porvir que ele prefigura. Quando o passado penetra inteiramente no passado, seu valor absoluto depende da confirmação ou da invalidação das antecipações que ele ‘era. Mas é precisamente de minha liberdade atual que depende confirmar o sentido dessas antecipações assumindo a responsabilidade por elas, ou seja, dando seguimento a elas, antecipando o mesmo porvir que elas antecipavam, ou então invalidá-las, simplesmente antecipando outro porvir. Neste caso, o passado desaba como uma espera desarmada e lograda: está “sem forças”. Isso porque a única força do passado lhe vem do futuro: qualquer que seja a maneira como vivo ou avalio meu passado, só posso fazê-lo à luz de um projeto de mim sobre o futuro. Assim, a ordem de minhas escolhas do porvir determinará uma ordem de meu passado, e tal ordem nada terá de cronológica. Haverá, em primeiro lugar, o passado sempre vivo e sempre confirmado: meu compromisso de amor, tais ou quais contratos de negócios, tal ou qual imagem de mim mesmo à qual permaneço fiel. Depois, haverá o passado ambíguo que deixou de me agradar e mantenho de soslaio: por exemplo, a roupa que visto – e que comprei em uma época em que queria estar na moda – agora me desagrada demais, e, por isso, o passado no qual eu a “escolhi” está verdadeiramente morto. Mas, por outro lado, meu projeto atual de economia é de tal ordem que preciso continuar a usar essa roupa em vez de comprar outra. Daí que ela pertence a um passado ao mesmo tempo morto e vivo, tal como essas instituições sociais que, criadas para determinado fim, sobreviveram ao regime que as estabeleceu porque fizeram-nas servir a fins totalmente diversos, por vezes até mesmo opostos.”


“Ninguém pode ser considerado feliz antes de sua morte.” (Provérbio grego)


“Ser livre é ser perpetuamente liberdade em julgamento. Permanece o fato de que o passado – a nos atermos à minha livre escolha atual – é parte integrante e condição necessária de meu projeto, uma vez que tal escolha assim o determine. Um exemplo ajudara a compreender melhor esse ponto. O passado de um soldado aposentado sob a Restauração é ter sido um herói da retirada da Rússia. E o que explicamos até aqui permite compreender que esse passado mesmo é uma livre escolha de futuro. É escolhendo não aderir ao governo de Luis XVIII e aos novos costumes, escolhendo desejar até o fim o retorno triunfal do Imperador, escolhendo até mesmo conspirar de modo a apressar esse retorno, e preferir estar aposentado, com meio soldo, do que na ativa, com soldo integral, que o veterano soldado de Napoleão escolhe para si um passado de herói de Beresina. Aquele que fez o projeto de aderir ao novo governo certamente, não escolheu o mesmo passado. Mas, reciprocamente, se o veterano só recebe meio soldo, se vive em miséria quase indecente, exasperado e desejando o retorno do Imperador, é porque foi um herói da retirada da Rússia. Entendamos bem: esse passado não age antes de qualquer reassunção constituinte, e, de forma alguma, não se trata de determinismo: mas, uma fez escolhido o passado “soldado do Império”, as condutas do Para-si realizam esse passado. Inclusive, não há qualquer diferença entre escolher esse passado e realizá-lo através de condutas. Assim, o Para-si, ao esforçar-se para fazer de seu passado de glória uma realidade intersubjetiva, constitui esta realidade aos olhos dos outros a título de objetividade-Para-outro (por exemplo, informes dos prefeitos sobre o perigo que esses velhos soldados representam). Tratado pelos outros como tal, o veterano age daqui por diante de maneira a se fazer digno de um passado que escolheu para compensar sua atual miséria e decadência. Mostra-se perde toda oportunidade de obter uma pensão: isso porque “não pode” desmerecer seu passado. Assim, escolhemos nosso passado à luz de certo fim, mas, a partir daí, ele se impõe e nos devora; não que tenha uma existência de per si e diferente daquela que temos-de-ser, mas simplesmente porque: 1º) é a materialização atualmente revelada do fim que somos; 2º) aparece no meio do mundo, para nós e para outro; nunca está só, mas submerge no passado universal e com isso se oferece à apreciação do outro. Assim como o geômetra é livre para criar essa ou aquela figura que o agrade, mas não pode conceber qualquer uma que não mantenha de imediato uma infinidade de relações com a infinidade de outras figuras possíveis, também nossa livre escolha de nós mesmos, fazendo surgir certa ordem avaliadora de nosso passado, faz aparecer uma infinidade de relações desse passado com o mundo e com o outro, e esta infinidade de relações apresenta-se a nós como uma infinidade de condutas a adotar, já que é no futuro que apreciamos nosso próprio passado. E somos compelidos a adotar essas condutas, na medida em que nosso passado aparece no âmbito de nosso projeto essencial. Querer esse projeto, com efeito, é querer o passado, e querer esse passado é querer realizá-lo por milhares de condutas secundárias. Logicamente, as exigências do passado são imperativos hipotéticos: “Se queres ter tal ou qual passado, aja de tal ou qual maneira”. Mas, como o primeiro termo é escolha concreta e categórica, o imperativo também se transforma em imperativo categórico.
Mas, uma vez que a força compressora de meu passado é tomada emprestada de minha escolha livre e reflexiva, é impossível determinar a priori o poder coercitivo de um passado. Não é somente acerca do conteúdo desse passado e da ordem desse conteúdo que minha livre escolha decide, mas também acerca da adesão de meu passado à minha atualidade. Se, em uma perspectiva fundamental que ainda não determinamos, um de meus principais projetos é progredir, ou seja, estar sempre e a todo custo mais avançado em certo rumo do que estava na véspera ou uma hora antes, esse projeto progressivo envolve uma série de projetos desgarrados em relação a meu passado. É então que, do alto de meus progressos, olho o passado com uma espécie de piedade um tanto desdenhosa; um passado estritamente objeto passivo de apreciação moral e de juízo – “como eu era tolo então”, ou “como eu era malvado!” –, aquilo que só existe porque posso dele me dissociar. Já não me envolvo mais com esse passado, nem quero me envolver. Não que ele deixe de existir, certamente, mas existe apenas enquanto esse eu que já não sou, ou seja, este ser que tenho-de-ser enquanto eu que já não sou. Sua função é ser aquilo que escolhi de mim para a ele me opor, o que me permite me avaliar. Um Para-si dessa natureza. Portanto, escolhe-se sem solidariedade, consigo mesmo, o que não significa que tenha abolido seu passado, mas sim que o posiciona de modo a não ser solidário com ele, e, exatamente, afirmar sua total liberdade (aquilo que é passado é certo gênero de comprometimento com relação ao passado e certa espécie de tradição). Em troca, há Para-sis cujo projeto implica a rejeição do tempo e a estreita solidariedade com o passado. Em seu desejo de encontrar um terreno sólido, elegeram o passado, ao contrário, como aquilo que são, o resto nada mais sendo do que fuga indefinida e indigna de tradição. Escolheram primeiramente a rejeição da fuga, ou seja, a rejeição do rejeitar; o passado, por conseguinte, tem por função exigir-lhes fidelidade. Assim, veremos os primeiros (que escolhem o progredir) confessarem desdenhosamente e com facilidade uma falta cometida, ao passo que a mesma confissão será impossível para os demais (que escolhem o passado), a menos que, tinham modificado deliberadamente seu projeto fundamental; estes ultimas irão recorrer a toda má-fé do mundo e a todas as escapatórias que possam inventar de forma a evitar lesar esta fé depositada naquilo que é, a qual constitui uma estrutura essencial de seu projeto.
Assim tal como a localização, o passado se integra à situação quando o Para-si, por sua escolha do futuro, confere à sua facticidade passada um valor, uma ordem hierárquica e uma premência a partir dos quais essa facticidade motiva seus atos e suas condutas.”


“A tentativa idealista para recuperar a morte não foi originariamente obra de filósofos, mas de poetas como Rilke ou de romancistas como Malaux. Era suficiente considerar a morte como último termo pertencente à série. Se a série recupera assim o seu “terminus ad quem”*, precisamente por causa deste “ad” que indica sua interioridade, a morte como fim da vida interioriza-se e humaniza-se; o homem já nada mais pode encontrar senão o humano; já não há mais outro lado da vida, e a morte é um fenômeno humano, fenômeno último da vida, mas ainda vida. Como tal, influencia em refluxo a vida inteira: a vida limita-se com vida, torna-se, tal como o mundo einsteiniano, “finita mas ilimitada”; a morte converte-se no sentido da vida, assim como o acorde de resolução é o sentido da melodia; nada há de milagroso nisso: a morte é um termo da série considerada, e, como se sabe, cada termo de uma série está sempre presente a todos os termos da mesma. Mas a morte assim recuperada não permanece simplesmente humana, mas torna-se minha; ao interiorizar-se, ela se individualiza; já não é mais o grande incognoscível que limita o humano, mas o fenômeno de minha vida pessoal que faz desta vida uma vida única, ou seja, uma vida que não recomeça, uma vida na qual não podemos ter uma segunda chance. Com isso, torno-me responsável por minha morte, tanto quanto por minha vida. Responsável, não pelo fenômeno empírico e contingente de meu trespasse, mas por esse caráter de finitude que faz com que minha vida, como minha morte, seja minha vida. É nesse sentido que Rilke se esforça para mostrar que o fim de cada homem assemelha-se à sua vida, por que toda a vida individual foi preparação para este fim; também nesse sentido, Malraux, em Les Conquérants, mostra que a cultura europeia, ao dar a certos asiáticos o sentido de sua morte, de súbito os compenetra desta verdade desesperante e inebriante segundo a qual “a vida é única”.”
* Em latim: “limite para alguém” (N. do T.).


“O passado extrai seu sentido do presente.”


“Assim, a morte jamais é aquilo que dá à vida seu sentido: pelo contrário, é aquilo que, por princípio, suprime da vida toda significação. Se temos de morrer, nossa vida carece de sentido, porque seus problemas não recebem qualquer solução e a própria significação dos problemas permanece indeterminada.
Seria inútil recorrer ao suicídio para escapar a esta necessidade. O suicídio não pode ser considerado um fim de vida do qual eu seria o próprio fundamento. Sendo ato de minha vida, com efeito, requer uma significação que só o porvir pode lhe dar; mas, como é o último ato de minha vida, recusa a si mesmo este porvir; assim, mantém-se totalmente indeterminado. De fato, caso eu escape da morte, ou se “falho”, não irei mais tarde julgar meu suicídio como uma covardia? O fato não poderá demonstrar-me que outras soluções teriam sido possíveis? Mas, uma vez que essas soluções só podem ser meus próprios projetos, não podem aparecer a menos que eu continue vivendo. O suicídio é uma absurdidade que faz minha vida soçobrar no absurdo.”


“A realidade humana continuaria sendo finita, ainda que fosse imortal, porque se faz finita ao escolher-se humana. Ser finito, com efeito, é escolher-se, ou seja, anunciar a si mesmo aquilo que se é projetando-se rumo a um possível, com exclusão dos outros. Portanto, o próprio ato de liberdade é assunção e criação da finitude. Se eu me faço, faço-me finito e, por esse fato, minha vida é única. Consequentemente, mesmo se eu fosse imortal, me seria vedado “ter minha segunda chance”; é a irreversibilidade da temporalidade que me impede isso, e esta irreversibilidade nada é senão o caráter próprio de uma liberdade que se temporaliza. Por certo, se sou imortal e tive de me descartar do possível B para realizar o possível A, irá reaparecer a oportunidade de realizar esse possível descartado. Mas, pelo simples fato de que tal oportunidade irá surgir depois da oportunidade negada, já não será a mesma, e, então, eu me terei feito finito para toda a eternidade ao rejeitar irremediavelmente a primeira oportunidade. Por esse ponto de vista, tanto o imortal quanto o mortal nascem múltiplos e se fazem um só. Não é por ser temporalmente indefinida, ou seja, sem limites, que a “vida” do imortal será menos finita em seu próprio ser, por que faz-se única. A morte nada tem a ver com isso; sobrevém “entretempo”, e a realidade humana, ao revelar a si mesmo sua própria finitude, não descobre por causa disso a sua mortalidade.”


“Por fim, vimos que são sempre previsíveis desorganizações internas da situação devido a mudanças autônomas dos arredores. Tais mudanças jamais podem provocar uma mudança de meu projeto, mas podem, sobre o fundamento de minha liberdade, levar a uma simplificação ou uma complicação da situação. Por isso mesmo, meu projeto inicial irá revelar-se a mim com maior ou menor simplicidade. Porque uma pessoa jamais é simples ou complexa: a situação é que pode ser uma coisa ou outra. Com efeito, nada mais sou senão o projeto de mim mesmo para-além de uma situação determinada, e esse projeto me pré-esboça a partir da situação concreta, assim como, além disso, ilumina a situação a partir de minha escolha. Portanto, se a situação se simplifica em seu conjunto, se ruínas, desabamentos, erosões, nela imprimiram um aspecto marcante, de traços grosseiros, com violentos contrastes, eu mesmo serei simples, porque minha escolha – a escolha que sou –, sendo apreensão desta situação-aí, não poderia deixar de ser simples. O surgir de novas complicações terá por efeito apresentar-me uma situação complicada, para-além da qual irei encontrar-me complicado. E o que todos puderam constatar se observaram a simplicidade quase selvagem que os prisioneiros de guerra recuperavam após a extrema simplificação de sua situação; tal simplificação não podia modificar a significação dos próprios projetos desses prisioneiros; mas, sobre o fundamento mesmo de minha liberdade, trazia uma condensação e uma uniformização dos arredores, que se constituíam em e por uma apreensão mais nítida, mais rude e mais condensada dos fins fundamentais da pessoa cativa. Trata-se, em suma, de um metabolismo interno, e não de uma metamorfose global que também dissesse respeito à forma da situação. Todavia, são mudanças que descubro como sendo mudanças “em minha vida”, ou seja, nos limites unitários de um mesmo projeto.”


“A consequência essencial de nossas observações anteriores é a de que o homem, estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser. Tomamos a palavra “responsabilidade” em seu sentido corriqueiro de “consciência (de) ser o autor incontestável de um acontecimento ou de um objeto”. Nesse sentido, a responsabilidade do Para-si é opressiva, já que o Para-si é aquele pelo qual se faz com que haja um mundo, e uma vez que também é aquele que se faz ser, qualquer que seja a situação em que se encontre, com seu coeficiente de adversidade próprio, ainda que insuportável; o Para-si deve assumi-la com a consciência orgulhosa de ser o seu autor, pois os piores inconvenientes ou as piores ameaças que prometem atingir minha pessoa só adquirem sentido pelo meu projeto; e elas aparecem sobre o fundo de comprometimento que eu sou. Portanto, é insensato pensar em queixar-se, pois nada alheio determinou aquilo que sentimos, vivemos ou somos. Por outro lado, tal responsabilidade absoluta não é resignação: é simples reivindicação lógica das consequências de nossa liberdade. O que acontece comigo, acontece por mim, e eu não poderia me deixar afetar por isso, nem me revoltar, nem me resignar. Além disso, tudo aquilo que me acontece é meu; deve-se entender por isso, em primeiro lugar, que estou sempre à altura do que me acontece, enquanto homem, pois aquilo que acontece a um homem por outros homens e por ele mesmo não poderia ser senão humano. As mais atrozes situações da guerra, as piores torturas, não criam um estado de coisas inumano; não há situação inumana; é somente pelo medo, pela fuga e pelo recurso a condutas mágicas que irei determinar o inumano, mas esta decisão é humana e tenho de assumir total responsabilidade por ela. Mas, além disso, a situação é minha por ser a imagem de minha livre escolha de mim mesmo, e tudo quanto ela me apresenta é meu, nesse sentido de que me representa e me simboliza. Não serei eu quem determina o coeficiente de adversidade das coisas e até sua imprevisibilidade ao decidir por mim mesmo? Assim, não há acidentes em uma vida; uma ocorrência comum que irrompe subitamente e me carrega não provém de fora; se sou mobilizado em uma guerra, esta guerra é minha guerra, é feita à minha imagem e eu a mereço. Mereço-a, primeiro, porque sempre poderia livrar-me dela pelo suicídio ou pela deserção: esses possíveis últimos são os que devem estar sempre presentes a nós quando se trata de enfrentar uma situação. Por ter deixado de livrar-me dela, eu a escolhi; pode ser por fraqueza, por covardia frente à opinião pública, por que prefiro certos valores ao valor da própria recusa de entrar na guerra (a estima de meus parentes, a honra de minha família, etc.). De qualquer modo, trata-se de uma escolha. Essa escolha será reiterada depois, continuamente, até o fim da guerra; portanto, devemos subscrever as palavras de J. Romains: “Na guerra, não há vítimas inocentes”. Portanto, se preferi a guerra à morte ou à desonra, tudo se passa como se eu carreasse inteira responsabilidade por esta guerra. Sem dúvida, outros declararam a guerra, e eu ficaria tentado, talvez, a me considerar simples cúmplice. Mas esta noção de cumplicidade não tem mais do que um sentido jurídico; só que, neste caso, tal sentido não se sustenta, pois de mim dependeu o fato de que esta guerra não viesse a existir para mim e por mim, e eu decidi que ela existisse. Não houve coerção alguma, pois a coerção não poderia ter qualquer domínio sobre uma liberdade; não tenho desculpa alguma, porque, como dissemos e repetimos nesse livro, o próprio da realidade-humana é ser sem desculpa. Só me resta, portanto, reivindicar esta guerra como sendo minha. Mas, além disso, ela é minha por que, apenas pelo fato de surgir em uma situação que eu faço ser e de só poder ser revelada a mim caso eu me comprometa pró ou contra ela, não posso distinguir agora a escolha que faço de mim da escolha que faço da guerra: viver esta guerra é escolher-me através dela e escolhê-la através de minha escolha de mim mesmo. Não caberia encarar a guerra como “quatro anos de férias” ou “quatro anos em suspenso”, ou como “recesso”, já que o essencial de minhas responsabilidades se encontra em outra parte, na minha vida conjugal, familiar ou profissional. Nesta guerra que escolhi, escolho-me dia a dia, e, fazendo-me, faço-a minha. Se hão de ser quatro anos vazios, a responsabilidade é minha. Enfim, como assinalamos no parágrafo precedente, cada pessoa é uma escolha absoluta de si a partir de um mundo de conhecimentos e técnicas que tal escolha assume e ilumina; cada pessoa é um absoluto desfrutando de uma data absoluta e totalmente impensável em outra data. Portanto, é uma perda de tempo perguntar que teria sido eu se esta guerra não houvesse eclodido, posto que me escolhi como um dos sentidos possíveis da época que imperceptivelmente conduzia à guerra; não me distingo desta época mesmo, nem poderia, sem contradição, ser transportado a outra época. Assim, sou esta guerra que demarca e torna compreensível o período que a antecedeu. Nesse sentido, de forma a definir com maior nitidez a responsabilidade do Para-si, é necessário, à fórmula recém-citada – “não há vítimas inocentes” –, acrescentar esta outra: “Cada qual tem a guerra que merece”. Assim, totalmente livre, indiscernível do período cujo sentido escolhi ser, tão profundamente responsável pela guerra como se eu mesmo a houvesse declarado, incapaz de viver sem integrá-la à minha situação, sem comprometer-me integralmente nessa situação e sem imprimir nela a minha marca, devo ser sem remorsos nem pesares, assim como sou sem desculpa, pois, desde o instante de meu surgimento ao ser, carrego o peso do mundo totalmente só, sem que nada nem ninguém possa aliviá-lo.”


“Se o homem possui uma compreensão pré-ontológica do ser de Deus, esta não lhe é conferida nem pelos grandes espetáculos da natureza nem pelo poder da sociedade: é que Deus, valor e objetivo supremo da transcendência, representa o limite permanente a partir do qual o homem anuncia a si mesmo aquilo que é. Ser homem é propender a ser Deus; ou, se preferirmos, o homem é fundamentalmente desejo de ser Deus.”


“O princípio desta psicanálise (existencial) consiste na assertiva de que o homem é uma totalidade e não uma coleção; em consequência, ele se exprime inteiro na mais insignificante e mais superficial das condutas – em outras palavras: não há um só gosto, um só tique, um único gesto humano que não seja revelador.
O objetivo da psicanálise é decifrar os comportamentos empíricos do homem, ou seja, clarificar ao máximo as revelações que cada homem contém e determiná-las conceitualmente.
Seu ponto de partida é a experiência; seu ponto de apoio, a compreensão pré-ontológica e fundamental que o homem tem da pessoa humana. Embora a maioria das pessoas possa, com efeito, negligenciar as indicações contidas em um gesto, uma palavra, uma expressão significante, e equivocar-se a respeito da revelação que trazem, cada pessoa humana não deixa de possuir a priori o sentido do valor revelador dessas manifestações, nem de ser capaz de decifrá-las, na pior hipótese se bem auxiliada e conduzida. Neste como em outros casos, a verdade não é encontrada por acaso; não pertence a um domínio no qual seria preciso buscá-la sem jamais termos presciência dela, tal como podemos sair em busca das fontes do Nilo ou do Niger. Pertence a priori à compreensão humana, e o trabalho essencial é uma hermenêutica, ou seja, uma decifração, uma determinação e uma conceituação.
Seu método é comparativo: uma vez que, com efeito, cada conduta humana simboliza à sua maneira a escolha fundamental a ser elucidada, e uma vez que, ao mesmo tempo, cada uma delas disfarça essa escolha sob seus caracteres ocasionais e sua oportunidade histórica, é pela comparação entre tais condutas que faremos brotar a revelação única que todas elas exprimem de maneira diferente. A investigação primordial deste método nos é fornecida pela psicanálise de Freud e seus discípulos. Eis por que convém sublinhar aqui, com mais precisão, em que medida a psicanálise existencial irá inspirar-se na psicanálise propriamente dita, e em que medida irá diferir radicalmente dela.
Tanto uma como outra consideram todas as manifestações objetivamente discerníveis da “vida psíquica” como sustentando relações de simbolização a símbolo com as estruturas fundamentais e globais que constituem propriamente a pessoa. Tanto uma como outra consideram a inexistência de dados primordiais – inclinações hereditárias, caráter, etc. A psicanálise existencial nada reconhece antes do surgimento original da liberdade humana; a psicanálise empírica postula que a afetividade primordial do indivíduo é uma cera virgem antes de sua história. A libido nada é à parte de suas fixações concretas, salvo uma possibilidade permanente de fixar-se não importa como sobre não importa o quê. Ambas as psicanálises consideram o ser humano como uma historização perpétua e procuram descobrir, mais do que dados estáticos e constantes, o sentido, a orientação e os avatares desta história. Por isso, ambas consideram o homem no mundo e não aceitam a possibilidade de questionar aquilo que um homem é sem levar em conta, antes de tudo, sua situação. As investigações psicanalíticas visam reconstituir a vida do sujeito desde o nascimento até o momento da cura; utilizam todos os documentos objetivos que possam encontrar: cartas, testemunhos, diários íntimos, informações “sociais” de todo tipo. E o que visam restaurar é menos um puro acontecimento psíquico do que uma estrutura dual: o acontecimento crucial da infância e a cristalização psíquica em torno dele. Ainda aqui, trata-se de uma situação. Cada fato “histórico”, por esse ponto de vista, será considerado ao mesmo tempo como fator da evolução psíquica e como símbolo desta evolução. Pois, em si mesmo, nada é, e só age conforme a maneira como é assumido; e este modo mesmo de assumi-lo traduz simbolicamente a disposição interna do indivíduo.”


“O desejo, como vimos, é falta de ser. Enquanto tal, é diretamente sustentado no ser do qual é falta.”


“A curiosidade, no animal, é sempre sexual ou alimentar. Conhecer é comer com os olhos72.”
72. Para a criança, conhecer é efetivamente comer; ela quer saborear aquilo que vê.


“Há seriedade quando se parte do mundo e se atribui mais realidade ao mundo do que a si mesmo; pelo menos, quando se confere a si mesmo uma realidade, mas na medida em que se pertence ao mundo. Não por acaso, o materialismo é sério; tampouco por acaso acha-se sempre e por toda parte como a doutrina favorita do revolucionário. Isto se dá porque os revolucionários são sérios. Eles se conhecem primeiro a partir do mundo que os oprime e querem mudar esse mundo opressor. Nesse ponto, acham-se de acordo com seus velhos adversários, os possessores, que também se conhecem e se apreciam a partir de sua posição no mundo. Assim, todo pensamento sério é espessado pelo mundo e coagula; é uma demissão da realidade humana em favor do mundo. O homem sério é “do mundo” e já não tem qualquer recurso em si mesmo; sequer encara mais a possibilidade de sair do mundo, pois deu a si próprio o tipo de existência do rochedo, a consistência, a inércia, a opacidade do ser-no-meio-do-mundo. É evidente que o homem sério enterra no fundo de si a consciência de sua liberdade; é de má-fé, e sua má-fé visa apresentá-lo aos próprios olhos como uma consequência: para ele, tudo é consequência e jamais há princípio; eis porque está tão atento às consequências de seus atos. Marx colocou o dogma primordial da seriedade ao afirmar a prioridade do objeto sobre o sujeito; e o homem é sério quando se toma por um objeto.”


“É verdade, com efeito, que toda psicanálise deve ter seus princípios a priori. Em particular, deve saber o que procura, senão como poderia encontrá-lo? Mas, como o objetivo de sua investigação não poderia ser estabelecido em si mesmo pela psicanálise, sob pena de círculo vicioso, é preciso que seja objeto de um postulado – quer o busquemos na experiência, quer o estabeleçamos por meio de alguma outra disciplina. A libido freudiana é, evidentemente, um simples postulado; a vontade de poder adleriana parece uma generalização sem método dos dados empíricos – e decerto é preciso que não tenha método, já que ela é que permite lançar as bases de um método psicanalítico. Bachelard parece reportar-se a seus antecessores; o postulado da sexualidade parece dominar suas investigações; em outras ocasiões, somos remetidos à Morte, ao traumatismo do nascimento, à vontade de poder; em suma, sua psicanálise parece mais segura de seu método do que de seus princípios, e sem dúvida conta com os resultados para esclarecê-la a respeito do objetivo preciso de sua investigação. Mas isso é botar o carro adiante dos bois: jamais as consequências permitirão estabelecer o princípio, assim como a soma dos modos finitos não permitirá captar a substância. Portanto, parece-nos ser necessário abandonar aqui esses princípios empíricos ou esses postulados que fariam do homem, a priori, uma sexualidade ou uma vontade de poder, e também ser conveniente estabelecer rigorosamente o objetivo da psicanálise a partir da ontologia. Foi o que tentamos no parágrafo precedente. Vimos que a realidade humana, muito antes de poder ser descrita como libido ou vontade de poder, é escolha de ser, seja diretamente, seja por apropriação do mundo. E vimos que – quando a escolha recai sobre a apropriação – cada coisa é escolhida, em última análise, não por seu potencial sexual, mas conforme a maneira como entrega o ser, a maneira pela qual o ser aflora em sua superfície. Uma psicanálise das coisas e de sua matéria, portanto, deve preocupar-se antes de tudo em estabelecer o modo em que cada coisa constitui o símbolo objetivo do ser e a relação entre a realidade humana e este ser. Não negamos que seja preciso descobrir depois todo um simbolismo sexual na natureza, mas trata-se de um estrato secundário e redutível que pressupõe uma psicanálise das estruturas pré-sexuais.”


“Compreende-se que, com isso, o sabor recebe uma arquitetura complexa e uma matéria diferenciada; é esta matéria estruturada – que nos apresenta um tipo de ser singular – que podemos assimilar ou rejeitar com náuseas, segundo nosso projeto original. Portanto, não é em absoluto indiferente gostar de ostras ou moluscos, caracóis ou camarões, por pouco que saibamos deslindar a significação existencial desses alimentos. De modo geral, não há paladar ou inclinação irredutível. Todos representam certa escolha apropriadora do ser. Cabe à psicanálise existencial compará-los e classificá-los. Aqui, a ontologia nos abandona; ela simplesmente nos capacitou a determinar os fins últimos da realidade humana, seus possíveis fundamentais e o valor que a impregnam. Cada realidade humana é ao mesmo tempo projeto direto de metamorfosear seu próprio Para-si em Em-si-Para-si e projeto de apropriação do mundo como totalidade de ser-Em-si, sob as espécies de uma qualidade fundamental. Toda realidade humana é uma paixão, já que projeta perder-se para fundamentar o ser e, ao mesmo tempo, constituir o Em-si que escape à contingência sendo fundamento de si mesmo, o Ens causa sui que as religiões chamam de Deus. Assim, a paixão do homem é inversa à de Cristo, pois o homem se perde enquanto homem para que Deus nasça. Mas a ideia de Deus é contraditória, e nos perdemos em vão; o homem é uma paixão inútil.”


“O homem se faz homem para ser Deus, pode-se dizer, e a ipseidade, considerada por esse ponto de vista, pode parecer um egoísmo; mas, precisamente porque não há qualquer medida comum entre a realidade humana e a causa de si que pretende ser, pode-se dizer também que o homem se perde para que a causa de si exista. Consideraremos então toda a existência humana com uma paixão, o tão famoso “amor-próprio” não sendo mais do que um meio escolhido livremente entre outros para realizar esta paixão. Mas o resultado principal da psicanálise existencial deve ser fazer-nos renunciar ao espírito de seriedade. O espírito de seriedade tem por dupla característica, com efeito, considerar os valores como dados transcendentes, independentes da subjetividade humana, e transferir o caráter de “desejável” da estrutura ontológica das coisas para sua simples constituição material. Para o espírito de seriedade, de fato, o pão é desejável, por exemplo, porque é necessário viver (valor inscrito no céu inteligível) e porque é nutritivo. O resultado do espírito de seriedade, o qual, como se sabe, reina sobre o mundo, consiste em fazer com que a idiossincrasia empírica das coisas beba, como um mata-borrão, os valores simbólicos destas: destaca a opacidade do objeto e o coloca, em si mesmo, como um desejável irredutível. Também já estamos no plano da moral, mas, concorrentemente, no plano da má-fé, pois é uma moral que se envergonha de si mesmo e não ousa dizer seu nome; obscureceu todos os seus objetivos para livrar-se da angústia. O homem busca o ser às cegas, ocultando de si mesmo o projeto livre que constitui esta busca; faz-se de tal modo que seja esperado pelas tarefas dispostas ao longo de seu caminho. Os objetos são exigências mudas, e ele nada mais é em si do que a obediência passiva a essas exigências.”


“Muitos homens sabem, com efeito, que o objetivo de sua busca é o ser; e, na medida em que possuem este conhecimento abstêm-se de se apropriar das coisas por si mesmas e tentam realizar a apropriação simbólica do ser-Em-si das mesmas. Mas, na medida em que tal tentativa ainda compartilha do espírito de seriedade e em que ainda podem supor que sua missão de fazer existir o Em-si-Para-si acha-se inscrita nas coisas, esses homens estão condenados ao desespero, pois descobrem ao mesmo tempo que todas as atividades humanas são equivalentes – já que todas tendem a sacrificar o homem para fazer surgir a causa de si – e que todas estão fadadas por princípio ao fracasso. Assim, dá no mesmo embriagar-se solitariamente ou conduzir os povos. Se uma dessas atividades leva vantagem sobre a outra não o será devido ao seu objetivo real, mas por causa do grau de consciência que possui de seu objetivo ideal; e, nesse caso, acontecerá que o quietismo do bêbado solitário prevalecerá sobre a vã agitação do líder dos povos.”