sexta-feira, 30 de abril de 2010

As Benevolentes – Jonathan Littell

Editora: Alfaguara
ISBN: 978-85-6028-123-7
Tradução: André Telles
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 908
Sinopse: Um ex-oficial nazista se reinventa anos após a guerra. Um intelectual versado em literatura e filosofia esconde um passado sombrio e monstruoso. As benevolentes coloca um espelho frente à humanidade, e o leitor não consegue se desviar de seu reflexo. Neste épico histórico, Eichmann, Himmler, Heydrich — até o próprio Hitler — desempenham papel fundamental.
Considerado pela crítica o “novo Guerra e Paz”, As benevolentes tornou-se fenômeno de vendas e já é visto como um clássico da literatura contemporânea. Para se ter ideia da repercussão da obra na França, Jonathan Littell chegou a ser comparado a Tolstói pelo jornal Le Monde.
Profundo e arrebatador, As benevolentes trata dos horrores da Segunda Guerra Mundial sob a ótica do carrasco. São as memórias de Maximilien Aue, jovem alemão de origem francesa que, como oficial nazista, participa de momentos sombrios da recente história mundial: da execução dos judeus, as batalhas no front de Stalingrado, a organização dos campos de concentração, até a derrocada final da Alemanha.
Aue, no entanto, não tem somente lembranças de guerra. Vivendo anonimamente na França, onde administra uma tecelagem, ele se recorda também de sua deturpada relação com a família. Seu relato compõe um livro impressionante, assombrado tanto por sua fria meticulosidade quanto por seu delírio insano. Através dos olhos de Aue, o leitor é levado a vislumbrar o mal de uma forma jamais imaginada.

“Rastejamos por muito tempo nesta terra como uma lagarta, à espera da borboleta esplêndida e diáfana que carregamos dentro de nós. O tempo passa, a ninfose não chega, permanecemos larva, constatação aflitiva, o que fazer? O suicídio, naturalmente, continua sendo uma opção. Mas, para falar a verdade, o suicídio não me atrai muito. Pensei nisso, claro, durante muito tempo, e se tivesse de recorrer a ele, eis como agiria: apertaria uma granada contra o peito e partiria numa viva explosão de alegria. Uma granadinha redonda da qual eu removeria o pino com delicadeza antes de soltar a trava, sorrindo ao barulhinho metálico da mola, o último que eu ouviria, afora os batimentos do coração nos ouvidos. E depois finalmente a felicidade, ou, em todo caso, a paz, e as paredes do meu escritório enfeitadas com retalhos de carne. A limpeza caberá às faxineiras, são pagas para isso, o problema é delas.”


“Apesar dos meus defeitos, e eles são muitos, ainda sou dos que acham que as únicas coisas indispensáveis à vida humana são o ar, a comida, a bebida e a excreção, além da busca pela verdade. O resto é facultativo.”


“A conclusão de tudo isso, se me permitem outra citação, a última, prometo, é, como dizia muito bem Sófocles: O que se deve preferir a tudo é não ter nascido. Schopenhauer, por sinal, escrevia claramente a mesma coisa: Seria melhor que não existisse nada. Como há mais sofrimento que prazer sobre a terra, toda a satisfação é apenas transitória, criando novos desejos e novas aflições, e a agonia do animal devorado é maior do que o prazer do devorador. Sim, eu sei, isso dá duas citações, mas a ideia é a mesma: na verdade, vivemos no pior mundo possível.”


“Apesar do entusiasmo, meus amigos mostravam-se pessimistas: “A direita francesa está mijando contra o vento”, disse-me Rebatet uma noite. “Pela honra”. Todo mundo na França parecia aceitar passivamente que a guerra chegaria, cedo ou tarde. A direita culpava a esquerda e os judeus; a esquerda e os judeus, naturalmente, culpavam a Alemanha.”


““Em todo caso”, acrescentava sentenciosamente Vogt, “Deus está com a nação e o Volkalemães. Não podemos perder esta guerra.” – “Deus?”, cuspia Blobel. “Deus é comunista. E se eu o encontrar pela frente, ele terminará como seus comissários”.”


“Entrei no carro e segui os caminhões; na chegada, os Polizei faziam as mulheres e crianças descerem e se juntarem aos homens que chegavam a pé. Diversos judeus entoavam cânticos religiosos durante a caminhada; raros tentavam fugir, estes eram imediatamente detidos pelo cordão ou abatidos. Do alto, ouviam-se nitidamente as rajadas, as mulheres, sobretudo, começaram a entrar em pânico. Mas nada podiam fazer. Eram divididas em pequenos grupos e um suboficial sentado a uma mesa fazia a contagem; depois nossos ascaris se encarregavam delas e as guiavam pela beira da ravina. Após cada série de disparos, era a vez de outro grupo, a coisa funcionava bem. (...) Foram colocadas tábuas sobre o córrego para que judeus e atiradores pudessem atravessar com facilidade; mais além, espalhados um pouco por toda parte nos flancos nus das ravinas, pequenos cachos brancos multiplicavam-se. Os “empacotadores” ucranianos arrastavam seus fardos para esses aglomerados e os obrigavam a se deitarem em cima ou ao lado; os homens do pelotão avançavam então e passavam ao longo das fileiras de pessoas deitadas quase nuas, destinando a cada uma, uma bala de metralhadora na nuca; havia três pelotões ao todo. No intervalo entre as execuções, oficiais inspecionavam os corpos e administravam tiros de misericórdia com a pistola. Sobre uma colina, dominando a cena, grupos de oficiais SS e da Wehrmacht. Jeckeln estava lá com seu séquito, tendo ao lado o Dr. Rasch; reconheci também diversas altas patentes do 6º Exército. Vi Thomas, que me viu também mas não retribuiu minha saudação. Em frente, os pequenos grupos rolavam pelos flancos da ravina e juntavam-se aos cachos de corpos que aumentavam cada vez mais. O frio tornava-se dilacerante, mas o rum circulava e bebi um pouco. Blobel desembarcou do carro diretamente no lado da ravina que ocupávamos, devia estar vindo da inspeção; bebia numa garrafinha e vituperava, gritava que as coisas não estavam andando suficientemente rápido. Entretanto, o ritmo fora acelerado ao máximo. Os atiradores eram substituídos de hora em hora e aqueles que não atiravam os abasteciam com rum e completavam a munição dos carregadores. Os oficiais falavam pouco, alguns tentavam esconder a perturbação. A Ortskommandantur mandara vir uma bateria de cozinha de campanha e um pastor militar fazia chá para aquecer os Orpo e os membros do Sonderkommando. Na hora do almoço, os oficiais superiores voltaram para a cidade, mas os subalternos ficaram para comer com os homens. Como as execuções deviam prosseguir sem pausas, a cantina foi instalada mais embaixo, em uma depressão de onde a ravina não era vista. Hartl ordenou-me que substituísse Jeckeln quando terminasse o turno dele na ravina. “Está com sua arma? Está? Não quero nenhum maricas no meu Kommando, está entendendo?” Cuspia, estava completamente bêbado e quase não se controlava mais. Um pouco mais tarde avistei Janssen subindo de volta. Cravou os olhos em mim com maldade: “Sua vez.” Em torno dos corpos, a terra arenosa impregnava-se de um sangue negro, o riacho também estava escuro de sangue. O cheiro medonho dos excrementos predominava sobre o do sangue, muita gente defecava no instante de morrer; felizmente, o vento soprava com força e expulsava parte daqueles eflúvios. Vistas de perto, as coisas passavam-se menos tranquilamente; os judeus que chegavam no alto da ravina, empurrados pelos ascaris e os Orpo, berravam apavorados ao descobrirem a cena, debatiam-se, os “empacotadores” aplicavam-lhes golpes deschlag ou com fio metálico para obrigá-los a descer e se deitar, mesmo derrubados ainda gritavam e tentavam se levantar, as crianças agarravam-se à vida como os adultos, reerguiam-se de um pulo e escapuliam até que um “empacotador” as alcançasse e abatesse, em geral os tiros não acertavam em cheio e as pessoas ficavam apenas feridas, mas os atiradores se lixavam e já passavam à vítima seguinte, os feridos rolavam, contorciam-se, gemiam de dor; outros, ao contrário, sob o choque, calavam-se e quedavam paralisados, olhos esbugalhados. Os homens iam e vinham, desferiam um tiro atrás do outro, quase sem descanso. Quanto a mim, estava petrificado, não sabia o que fazer. Grafhorst chegou e sacudiu meu braço: “Obersturmführer!” Apontou sua pistola para os corpos. “Tente acabar com os feridos.” Saquei minha pistola e me dirigi para um grupo: um adolescente mugia de dor, apontei minha pistola para sua cabeça e apertei o gatilho, mas o disparo não partiu, eu esquecera de soltar a trava, retirei-a e lhe desferi um tiro na testa, ele estremeceu e se calou subitamente. Para alcançar alguns feridos, eu precisava andar sobre os corpos, escorregava terrivelmente, as carnes brancas e gelatinosas rolavam sob minhas botas, os ossos quebravam-se perfidamente e me faziam tropeçar, eu estava enfiado até os tornozelos na lama e no sangue. Era horrível e fui tomado por uma sensação rangente de nojo, como naquela noite na Espanha, na latrina com as baratas, eu era ainda garoto, meu padrasto nos dera de presente umas férias na Catalunha, dormíamos em uma aldeia e certa noite eu senti cólicas, corri para a latrina no fundo do quintal iluminando o caminho com uma lanterna de bolso, e a fossa, limpa de dia, estava tomada por enormes baratas marrons, fiquei assustado, tentei aguentar e voltar para a cama, mas as pontadas eram muito fortes, não havia penico, calcei minhas galochas e retornei à latrina, matutando que poderia expulsar as baratas a pontapés e fazer a coisa com agilidade, passei a cabeça pela porta iluminando o chão, depois notei um reflexo na parede, dirigi para lá o foco da lanterna, a parede também estava ocupada pelas baratas, todas as paredes, o teto idem, e a tábua em cima da porta, virei lentamente a cabeça passada pela porta e elas estavam ali também, uma pasta escura e buliçosa, então retirei lentamente a cabeça, muito lentamente, voltei para o quarto e me segurei até de manhã. Andar sobre os corpos dos judeus me dava uma sensação igual, atirei quase a esmo em tudo que eu via se mexer, depois me acalmei e tentei me concentrar, apesar de tudo convinha que as pessoas sofressem o mínimo possível, de toda forma eu só podia acabar com os mais recentes, embaixo já havia outros feridos, não mortos ainda, mas que logo o seriam. Eu não era o único a perder o ânimo, alguns atiradores também tremiam e bebiam entre as fornadas. Um jovem Waffen-SS chamou minha atenção, eu não sabia seu nome: começava a atirar de qualquer jeito, metralhadora na altura dos quadris, ria assustadoramente e esvaziava seu pente ao acaso, um tiro à esquerda, outro à direita, depois dois, depois três, como uma criança que segue o traçado do calçamento segundo uma misteriosa topografia interna. Aproximei-me dele e o sacudi, mas ele continuava a rir e atirar à minha frente, arranquei a metralhadora dele e o esbofeteei, depois aloquei-o entre os homens que reabasteciam os estoques; Grafhorst me designou outro homem para o lugar e joguei uma metralhadora para ele, gritando: “E trabalhe direito, entendeu?!!” Perto de mim, traziam outro grupo: meu olhar cruzou com o de uma moça bonita, quase nua mas muito elegante, calma, os olhos cheios de uma tristeza infinita. Afastei-me. Quando voltei ela ainda vivia, encolhida de barriga para cima, uma bala saíra embaixo de seu seio e ela arquejava, petrificada, seus belos lábios tremiam e pareciam querer formar uma palavra, fitava-me com os olhos arregalados, incrédulos, olhos de pássaro ferido, e aquele olhar grudou em mim, abriu minha barriga e fez escorrer uma onda de serragem de madeira, eu era uma boneca vulgar e não representava nada, ao mesmo tempo queria de todo meu coração me debruçar e limpar a terra e o suor misturados em sua testa, acariciar-lhe a face e lhe dizer que estava tudo bem, que estava tudo sob controle, mas em vez disso disparei convulsivamente uma bala em sua cabeça, o que afinal de contas dava no mesmo, para ela em todo caso, quando não para mim, pois eu, ao pensar naquele monturo humano insensato, estava tomado por uma raiva imensa, ilimitada, continuei a atirar nela e sua cabeça explodiu como uma fruta, então meu braço se desprendeu de mim e saiu sozinho pela ravina atirando em todas as direções, corri atrás dele, fazendo sinal para que esperasse o meu outro braço, mas ele não queria, ria de mim e atirava sobre os feridos por si só, à minha revelia; finalmente, extenuado, parei e comecei a chorar. Agora, eu pensava, acabou, meu braço não voltará nunca mais, mas para minha grande surpresa ele estava ali de novo, no lugar, solidamente preso no meu ombro e Häfner aproximava-se de mim e me dizia: “Chega, Obersturmführer. É minha vez”.”


“Agora julgava compreender melhor as reações dos homens e dos oficiais durante as execuções. Se sofriam, como eu sofrera durante a Grande Ação, não era apenas em virtude do cheiro e da visão do sangue, mas também em virtude do terror e da dor moral dos condenados; da mesma forma, em geral os que fuzilávamos sofriam mais com a dor e a morte, diante de seus olhos, daqueles a quem amavam, mulheres, pais e filhos queridos, do que com a própria morte, que recebiam no fim como uma libertação. Em muitos casos, eu arriscaria a dizer, o que eu tomara como sadismo gratuito, a brutalidade inaudita com que alguns homens tratavam os condenados antes de executá-los, não passava do efeito da piedade monstruosa que sentiam e que, incapazes de se exprimir de outra forma, transformava-se em raiva, mas uma raiva impotente, sem objeto, devendo portanto quase inevitavelmente voltar-se contra aqueles que eram sua causa primeira. Se os terríveis massacres do Leste provam uma coisa, é de fato, paradoxalmente, a terrível e inalterada solidariedade humana. Por mais brutalizados e acostumados que estivessem, nenhum dos nossos homens conseguia matar uma mulher judia sem pensar em sua mulher, em sua irmã ou sua mãe, ou matar uma criança judia sem ver seus próprios filhos à sua frente diante do fosso. Sua reações, sua violência, seu alcoolismo, as depressões nervosas, os suicídios, minha própria tristeza, tudo isso demonstrava que o outroexiste, existe como outro, como humano, e que nenhuma vontade, nenhuma ideologia, nenhuma montanha de estupidez e álcool é capaz de romper esse laço, sutil mas indestrutível.”


“Os homens grosseiros e ignorantes castigam-se a si mesmos.”


“(Em Stalingrado) Nišić apontou um buraco rodeado de sacos de areia escorado por tábuas. “Pode olhar por aqui. Mas não por muito tempo. Os snipers deles são de primeira. Parece que são mulheres.” Ajoelhei perto do buraco, depois estiquei lentamente a cabeça; a brecha era estreita, eu via apenas uma paisagem de ruínas informes, quase abstrata. Foi então que ouvi o grito, da esquerda: um longo uivo rouco, bruscamente interrompido. Então o grito voltou. Não havia mais nenhum outro barulho e eu ouvi nitidamente. Vinha de um rapazola e eram longos gritos dilacerantes, terrivelmente débeis; devia, pensei, estar ferido na barriga. Me debrucei e olhei de viés: percebi sua cabeça e uma parte do torso. Gritava até perder o fôlego, parava para inspirar e recomeçava. Sem saber russo, eu compreendia o que ele gritava: “Mama! Mama!” Era insuportável. “Que é isso?”, perguntei estupidamente a Nišić. – “É um dos sujeitos de agorinha.” – “Não pode acabar com ele?” Nišić fitou-me com um olhar duro, cheio de desprezo: “Não temos munição para desperdiçar”, grunhiu finalmente. Sentei-me contra a parede, como os soldados. Ivan apoiara-se no batente da porta. Ninguém falava. Fora, o garoto continuava a gritar: “Mama! Ia ne khatchu! Mama! Ia khatchu domoi!”, e outras palavras que eu não conseguia distinguir. Dobrei os joelhos e os enlacei com os braços. Nišić, agachado, continuava a olhar para mim. Eu queria tapar o ouvido, mas seu olhar de chumbo me petrificava. Os gritos do garoto perfuravam meu cérebro, uma colher de pedreiro remexendo uma lama grossa e viscosa, recheada de vermes e de uma vida imunda. E eu, pensei, será que chegado o momento vou implorar pela minha mãe? Entretanto, pensar nessa mulher me enchia de ódio e aversão. Fazia anos que não a via, e não queria vê-la; a ideia de invocar seu nome, sua ajuda, parecia-me inconcebível. Contudo, eu devia desconfiar que por trás dessa mãe havia outra, a mãe da criança que eu havia sido antes que alguma coisa se houvesse irremediavelmente rompido. Provavelmente também vou me retorcer e berrar por essa mãe. E, se não fosse por ela, seria pelo seu ventre, o de antes da luz, a malsã, a sórdida, a doentia luz do dia.”


“Em Rakotino, finalmente, encontrei Hohenegg em uma pequena isbá miserável enterrada até a metade na neve, batendo numa máquina de escrever portátil à luz de uma vela enfiada em uma conexão de PAK. Levantou a cabeça sem manifestar a menor surpresa: “Veja só. O Hauptsturmführer. Que bons ventos o trazem?” – “O senhor.” Passou a mão em seu crânio calvo: “Não sabia que era tão desejável. Mas aviso desde já: se estiver doente, veio à toa. Só cuido daqueles para quem já é tarde demais.” Fiz um esforço para me recobrar e encontrar uma réplica: “Doutor, sofro apenas de uma doença, sexualmente transmissível e irremediavelmente fatal: a vida”.”


“Também encontrei soldados nessas paisagens devastadas; alguns dirigiam-se a mim com hostilidade, outros educadamente, outros ainda com indiferença; contavam sobre a Rattenkrieg, a “guerra dos ratos” pela tomada daquelas ruínas, onde um corredor, um teto e uma parede serviam de linha de frente, onde se bombardeava cegamente à base de granadas em meio à poeira e à fumaça, onde os vivos sufocavam no calor dos incêndios, onde os mortos atravancavam as escadas, os andares, as soleiras dos apartamentos, onde se perdia toda noção de tempo e espaço e onde a guerra tornava-se quase um jogo de xadrez abstrato, tridimensional. Nossas forças, por sinal, chegaram às vezes a três, duas ruas do Volga, não mais longe que isso. Agora era a vez dos russos: todos os dias, geralmente de madrugada e à noite, lançavam investidas ferozes contra nossas posições, sobretudo no setor das fábricas, mas também no centro; as munições das companhias, rigorosamente racionadas, esgotavam-se, e, depois do ataque, os sobreviventes prostravam-se, arrasados; de dia, os russos passeavam a descoberto, sabendo que nossos homens não tinham condições de atirar. Nos porões, amontoados, viviam sob tapete de ratos, que, tendo perdido todo o medo, corriam tanto atrás dos vivos como dos mortos e, à noite, vinham lambiscar as orelhas, o nariz ou os dedos dos que se entregavam ao sono. Certo dia, encontrava-me no segundo andar de um prédio quando um pequeno obus de morteiro explodiu na rua; instantes depois, escutei uma risada ensandecida. Olhei pela janela e vi um torso humano pousado no meio do entulho: um soldado alemão, as duas pernas arrancadas pela explosão, ria desbragadamente. Olhei e ele não parava de rir no centro de uma poça de sangue que ia se ampliando por entre os escombros. Esse espetáculo me deixou arrepiado, deu um nó nas minhas entranhas; fiz Ivan sair e abaixei minhas calças no meio da sala. Quando a cólica me atacava durante alguma incursão, eu cagava em qualquer lugar, em corredores, cozinhas, quartos, até mesmo, dependendo das ruínas, acocorado numa pia de banheiro, nem sempre conectada a um cano, aliás. Esses grandes prédios destruídos, onde ainda no verão anterior milhares de famílias viviam a vida do dia-a-dia, banal, de todas as famílias, sem desconfiar que em breve homens dormiriam em grupos de seis em seu leito conjugal, se limpariam com suas cortinas ou lençóis, se massacrariam a golpes de pá em suas cozinhas e amontoariam os cadáveres dos mortos em suas banheiras, esses prédios me enchiam de uma angústia vã e amarga.”


“Obuses haviam esmagado os degraus e destroçado as pesadas portas de madeira; no interior do grande saguão, entre fragmentos de mármore e colunas estilhaçadas, amontoavam-se dezenas de cadáveres que enfermeiros traziam dos porões e colocavam ali, esperando para incinerá-los. Um mau cheio interminável refluía dos acessos aos subterrâneos, impregnando o saguão: “Vou esperar aqui”, declarou Ivan postando-se perto das portas principais para enrolar um cigarro. Contemplei-o e meu espanto diante de sua fleuma transmutou-se em uma tristeza súbita e aguda: com efeito, eu tinha toda a probabilidade de ali permanecer, mas ele não tinha nenhuma de sair. Fumava tranquilamente, indiferente. Encaminhei-me para o subsolo. “Não se aproxime muito dos corpos”, disse um enfermeiro perto de mim. Apontou com o dedo e olhei: uma procissão escura e indistinta corria por cima dos cadáveres empilhados, saía deles, movia-se por entre os escombros. Olhei mais de perto e meu estômago revirou. As pulgas deixavam os corpos frios, em massa, em busca de novos hóspedes. Contornei-os cuidadosamente e desci; atrás de mim, o enfermeiro ria. Na cripta, o mau cheiro me envolveu como um pano molhado, uma coisa viva e multiforme que grudava nas narinas e na garganta, feita de sangue, gangrena, feridas putrefatas, fumaça de lenha úmida, lã molhada ou empapada de urina, diarreia quase caramelada, vômitos. Respirei pela boca, tentando segurar o enjoo. Os feridos e doentes haviam sido alinhados sobre cobertores ou diretamente no chão, em meio a todos os vastos porões frios e cimentados do teatro; os gemidos e gritos ressoavam nas abóbadas; uma grossa camada de lama cobria o chão. Alguns médicos ou enfermeiros com aventais imundos evoluíam lentamente por entre as fileiras de moribundos, procurando precavidamente onde pisar para evitar esmagar um membro.”


“Ela ou outras também me alimentavam, deslizando colheres de caldo entre meus lábios; eu teria preferido um bife sangrento, mas não ousava pedir, afinal, aquilo não era um hotel, mas, finalmente eu compreendera, um hospital: e ser um paciente é isso também, a palavra significa precisamente o que significa.”


“No fundo, repetia para mim com uma vã amargura, é só nos nove primeiros meses que nos sentimos tranquilos, depois o arcanjo da espada de fogo nos expulsa para todo o sempre pela porta que diz Lasciate ogni speranza, e passamos a querer apenas uma coisa, voltar atrás, embora o tempo continue a nos empurrar impiedosamente à frente e no fim não haja nada, absolutamente nada.”


“Desliguei o telefone e desci até o andar debaixo do meu; achei com facilidade uma porta e bati. Quem abriu foi uma mulher bonita e alta em trajes de soirée bem informais, os olhos cintilantes: “Pois não?” Atrás dela, a música bramia, dava para ouvir copos tilintando, gargalhadas. “O quarto é seu?”, perguntei, com o coração a mil. – “Não, espere”. Virou-se: “Dicky! Dicky! Um oficial quer falar com você.” Um homem de casaca, um tanto embriagado, veio até a porta; a mulher olhava-nos sem esconder a curiosidade. “Pois não, Herr Sturmbannführer”, disse ele. “Que posso fazer pelo senhor?” Sua voz afetada, cordial, quase confusa, refletia uma aristocracia de velha cepa. Inclinei-me ligeiramente e articulei no tom mais neutro possível: “Meu quarto fica no andar em cima do seu. Estou voltando de Stalingrado, onde fui gravemente ferido e onde quase todos os meus companheiros foram mortos. Suas festas me incomodam. Quis descer para matá-lo, mas telefonei para um amigo que me aconselhou a falar primeiro com o senhor. Então aqui estou, vim falar com o senhor. Seria melhor para todos nós que eu não tivesse que descer de novo.” O homem empalidecera: “Não, não...” Virou-se para trás: “Gofi! Pare a música! Pare!” Olhou para mim: “Desculpe-nos. Vamos parar imediatamente.” – “Obrigado”. Enquanto eu subia, vagamente satisfeito, ouvi-o gritar: “Todo mundo para fora! Terminou. Debandar!” Eu havia tocado num nervo, e não era questão de medo: subitamente ele também compreendera, e tivera vergonha.”


“Muito se discorreu, depois da guerra, para tentar explicar o que acontecera, a desumanidade. Mas a desumanidade, me desculpem, não existe. Existe apenas o humano e o mais humano: e esse Döll é um bom exemplo disso. Quem é Döll senão um bom pai de família que queria alimentar os filhos e que obedecia ao seu governo, ainda que em seu foro íntimo não concordasse plenamente com aquilo? Se houvesse nascido na França ou nos Estados Unidos, teria sido considerado um pilar de sua comunidade e um patriota; mas, nasceu na Alemanha, então é um criminoso. A necessidade, os gregos já sabiam disso, é uma deusa não apenas cega, como cruel.”


“Schellenberg tinha o hábito de referir-se àqueles de quem não gostava como putas, termo que caía como uma luva nele, e, pensando bem, não deixa de ser verdade que os insultos prediletos das pessoas, os que lhes vêm mais espontaneamente aos lábios, revelam no fim das contas frequentemente seus próprios defeitos ocultos, pois elas odeiam por natureza aquilo com que mais se assemelham. Essa ideia não me abandonou aquela noite, e, de volta em casa, já tarde, um pouco bêbado talvez, peguei em uma prateleira uma coletânea dos discursos do Führer pertencente à Frau Gutknecht e comecei a folhear, procurando as passagens mais virulentas, sobretudo sobre os judeus, e ao lê-las eu me perguntava se, vociferando: Faltam aos judeus capacidade e criatividade em todos os domínios da vida, menos um: mentir e trapacear, ou O edifício inteiro do judeu irá desmoronar se nos recusarmos a segui-lo, ou ainda São mentirosos, falsários, hipócritas. Só chegaram aonde estão graças à ingenuidade dos que os cercam, ou ainda Podemos viver sem o judeu. Mas ele não pode viver sem nós, o Führer, à sua revelia, não descrevia a si próprio. Ora, aquele homem nunca falava em seu próprio nome, os acidentes da sua personalidade não contavam muito: seu papel era quase o de uma lente, captava e concentrava a vontade do Volk para dirigi-la para um foco óptico, sempre no ponto mais correto. Assim, se com essas palavras falava de si mesmo, não falava de todos nós? Mas isso, só agora posso dizê-lo.”


“Pensei no seu medo diante daquela coisa que crescia dentro dela. “Sempre tive medo”, me dissera um dia, muito tempo atrás. Onde, isso? Não sei mais. Ela me falara do medo permanente das mulheres, esse velho amigo que convive com elas o tempo todo. Medo quando sangram todos os meses, medo de receberem alguma coisa em seu interior, de serem penetradas pelas partes dos homens que são frequentemente egoístas e brutais, medo da gravidade que puxa a carne e os seios para baixo. Devia ser a mesma coisa no caso do medo de ficar grávida. Algo cresce, cresce no ventre, um corpo estranho dentro de você, que se agita e bombeia todas as forças do corpo, e sabemos que tem que sair, ainda que mate você, aquilo tem que sair, que horror. Nenhum homem me fazia chegar perto disso, eu nada compreendia daquele medo insensato das mulheres. E, uma vez nascido os filhos, devia ser pior ainda, porque então começa o medo constante, o terror que assombra noite e dia e que só termina com você ou com eles. Eu via a imagem dessas mães apertando suas crianças enquanto eram fuziladas, eu via aquelas judias húngaras sentadas sobre suas malas, mulheres grávidas e meninas que esperavam o trem e o gás no fim da viagem, devia ter sido isso que eu vira nelas, isso de que nunca conseguira me livrar e nunca soubera exprimir, esse medo, não o medo delas aberto e explícito dos gendarmes e dos alemães, de nós, mas o medo calado que vivia dentro delas, na fragilidade de seus corpos e de seus sexos aninhados entre suas pernas, fragilidade que íamos destruir sem jamais vê-la.”


“A população, por sua vez, perdia toda esperança, e a propaganda de Goebbels não consertava as coisas: à guisa de consolo, prometia que o Führer, em sua imensa sabedoria, preparava uma morte serena, nas câmaras de gás, para o povo alemão. Era realmente muito encorajador e, como diziam as más línguas: “Um covarde? É um sujeito que está em Berlim e que resolve ir para o front.” Na segunda semana de abril (de 1945), a Filarmônica deu seu último concerto. O programa, execrável, era típico do gosto desse período – a última ária de Brünnhilde, o Götterdämmerung naturalmente, e, para terminar, a Sinfonia romântica de Bruckner –, mas fui assim mesmo. A sala, glacial, estava intacta, os lustres brilhavam com todas as suas lâmpadas, avistei Speer de longe, com o almirante Dönitz, no camarote de honra; na saída, Hitlerjugend de uniforme e guarda-pó ofereciam cápsulas de cianureto aos espectadores, gesto que quase me fez engolir uma ali na hora, de vergonha. Flaubert, tenho certeza, espernearia frente a tal exibição de burrice. Essas demonstrações ostentatórias de pessimismo se alternavam com efusões exaltadas de alegria otimista: no mesmo dia desse famoso concerto, Roosevelt morria, e Goebbels, confundindo Truman com Pedro III, já no dia seguinte lançava a palavra de ordem A czarina morreu.”


“Senti de repente todo o peso do passado, do sofrimento da vida e da memória inalterável e fiquei sozinho com o hipopótamo agonizante, alguns avestruzes e os cadáveres, sozinho com o tempo e a tristeza e a dor da lembrança, a crueldade da minha existência e a minha morte ainda por vir. As Benevolentes haviam encontrado meu rastro.”

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Futebol ao sol e à sombra – Eduardo Galeano

Editora: L&PM
ISBN: 978-85-2541-436-6
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 240
Sinopse: Acima do futebol está a lenda. Uma estranha magia se impõe ao esporte. E o jogo se transforma em saga, desperta paixões, cria mitos, heróis, glórias e tragédias. Exaltado pelas multidões, criou em seu lado sombrio um mundo à parte, onde envolve poderosíssimos interesses políticos e financeiros.
Mas nada se sobrepõe ao encanto desta “festa pagã”. Para captar este fascinante universo de perdas e conquistas, Eduardo Galeano penetrou nas profundezas da história e das histórias que se passam dentro e fora das quatro linhas. Construiu este livro como um verdadeiro monumento à paixão. Através de sua prosa consagrada, tudo tem sabor. Pelé, Di Stéfano, Maradona, Zizinho, Didi, Garrincha, Obdúlio Varella o carrasco uruguaio de 1950, o aranha negra Yashin, Leônidas, Platini, Domingos da Guia, Friedenreich e muitos outros craques são mostrados nos seus momentos de esplendor e desgraça.
Ágil, emotivo, este livro flui prazerosamente. Não é preciso ser um apaixonado da bola para apreciar esta saga. Basta se apreciar a grande literatura.



“É raro o torcedor que diz: “Meu time joga hoje”. Sempre diz: “Nós jogamos hoje”. Este jogador número doze sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, do mesmo jeito que os outros onze jogadores sabem que jogar sem torcida é como dançar sem música.”


“O gol é o orgasmo do futebol. E, como o orgasmo, o gol é cada vez menos frequente na vida moderna.”


“Às vezes, raras vezes, alguma decisão do árbitro coincide com a vontade do torcedor, mas nem assim consegue provar sua inocência. Os derrotados perdem por causa dele e os vitoriosos ganham apesar dele. Álibi de todos os erros, explicação para todas as desgraças, as torcidas teriam que inventá-lo se ele não existisse. Quanto mais o odeiam, mais precisam dele.
Durante mais de um século, o árbitro vestiu-se de luto. Por quem? Por ele. Agora, disfarça com cores.”


“Antigamente, existia o treinador, e ninguém dava muita atenção a ele. O treinador morreu, de boca fechada, quando o jogo deixou de ser jogo e o futebol profissional precisou de uma tecnocracia da ordem. Então nasceu o técnico, com a missão de evitar a improvisação, controlar a liberdade e elevar ao máximo o rendimento dos jogadores, obrigados a transformar-se em atletas disciplinados.
O treinador dizia:
– Vamos jogar.
O técnico diz:
– Vamos trabalhar.
Agora se fala em números. A viagem da ousadia ao medo, história do futebol no século vinte, é um trânsito do 2-3-5 para o 5-4-1, passando pelo 4-3-3 e o 4-4-2. Qualquer leigo é capaz de traduzir isso, com um pouco de ajuda, mas depois, não há quem possa. A partir dali, o técnico desenvolve fórmulas misteriosas como a sagrada concepção de Jesus, e com elas elabora esquemas táticos mais indecifráveis que a Santíssima Trindade.
Do velho quadro-negro às telas eletrônicas: agora as jogadas magistrais são desenhadas em computadores e ensinadas em vídeos. Essas perfeições raras vezes são vistas, depois, nas partidas que a televisão transmite. A televisão se deleita exibindo o rosto crispado do técnico, e o mostra roendo as unhas ou gritando orientações que mudariam o curso de uma partida se alguém pudesse entendê-las.
Os jornalistas o sufocam de perguntas nas entrevistas, quando o jogo termina. O técnico jamais conta o segredo de suas vitórias, embora formule explicações admiráveis para suas derrotas:
– As instruções eram claras, mas não foram seguidas – diz, quando a equipe perde de goleada para um timinho qualquer. (...)
A engrenagem do espetáculo tritura tudo, tudo dura pouco e o técnico é tão descartável como qualquer outro produto da sociedade de consumo. Hoje o público grita para ele:
– Não morra nunca!
e, no domingo que vem, quer matá-lo.
Ele acredita que o futebol é uma ciência e o campo um laboratório, mas os dirigentes e a torcida não apenas exigem a genialidade de Einstein e a sutileza de Freud, mas também a capacidade milagrosa de Nossa Senhora de Lourdes e a paciência de Gandhi.”


“Há atores insuperáveis na arte de ganhar tempo: o jogador coloca a máscara do mártir que acaba de ser crucificado, e então rola em agonia, agarrando o joelho ou a cabeça, e fica estendido na grama. Passam os minutos. Em ritmo de tartaruga chega o massagista, o mão-santa, gordo suado, cheirando a linimento, com a toalha no pescoço, o cantil numa mão e na outra alguma poção infalível. E passam as horas e os anos, até que o juiz manda tirar aquele cadáver do campo. E então, subitamente, o jogador dá um pulo, e ocorre o milagre da ressurreição.”


“Depois os locutores tomam a palavra. Os da televisão acompanham as imagens, mas sabem muito bem que não podem competir com elas. Os do rádio, ao contrário, não são recomendados para cardíacos: esses mestres do suspense correm mais que os jogadores e mais que a própria bola, e em ritmo de vertigem narram uma partida que pode não ter muita relação com o que se está olhando. Nessa catarata de palavras, passa roçando o travessão o disparo que se vê roçando o mais alto céu, e corre iminente perigo de gol a meta onde uma aranha tece sua teia, de trave a trave, enquanto o goleiro boceja.
Quando conclui a vibrante jornada no colosso de cimento, chega a vez dos comentaristas. Antes os comentaristas interromperam várias vezes a transmissão da partida, para indicar aos jogadores o que deviam fazer, mas eles não puderam escutá-los porque estavam ocupados em errar.”


“Na sua forma moderna, o futebol provém de um acordo de cavalheiros que doze clubes ingleses selaram no outono de 1863, numa taverna de Londres. Os clubes assumiram as regras estabelecidas em 1846 pela Universidade de Cambridge. Em Cambridge, o futebol se havia divorciado do rugby: era proibido conduzir a bola com as mãos, embora fosse permitido tocá-la e era proibido chutar os adversários. “Os pontapés só devem ser dirigidos para a bola”, advertia uma das regras: um século e meio depois, ainda há jogadores que confundem a bola com o crânio do rival, por sua forma parecida.”


“Abdón Porte defendeu a camisa do Nacional do Uruguai durante mais de duzentas partidas, ao longo de quatro anos, sempre aplaudido, às vezes ovacionado, até que sua boa estrela apagou.
Então foi tirado da equipe titular. Esperou, pediu para voltar, voltou. Mas não tinha jeito, a má fase continuava, as pessoas o vaiavam: na defesa, até as tartarugas conseguiam fugir dele; no ataque, não faturava uma.
No final do verão de 1918, no estádio do Nacional, Abdón Porte se matou. À meia-noite, com um tiro, no centro do campo onde tinha sido querido. Todas as luzes estavam apagadas. Ninguém escutou o tiro.
Foi encontrado ao amanhecer. Numa mão tinha o revólver e na outra, uma carta.”


“Em 1919, o Brasil venceu o Uruguai por 1 a 0 e se sagrou campeão sul-americano. O povo se lançou às ruas do Rio de Janeiro. Presidia os festejos, levantada como um estandarte, uma barrenta chuteira, com um cartazinho que proclamava: O glorioso pé de Friedenreich. No dia seguinte, aquela chuteira que tinha feito o gol da vitória foi parar na vitrina de uma joalheria, no centro da cidade.
Artur Friedenreich, filho de um alemão e de uma lavadeira negra, jogou na primeira divisão durante vinte e seis anos, e nunca recebeu um centavo. Ninguém fez mais gols que ele na história do futebol. Fez mais gols que outro grande artilheiro, Pelé, também brasileiro, que foi o maior goleador do futebol profissional. Friedenreich somou 1.329 gols. Pelé, 1.279.
Este mulato de olhos verdes fundou o modo brasileiro de jogar. Rompeu com os manuais ingleses: ele, ou o diabo que se metia pela planta de seu pé. Friedenreich levou ao solene estádio dos brancos a irreverência dos rapazes de cor de café que se divertiam disputando uma bola de trapos nos subúrbios.
Assim nasceu um estilo, aberto a fantasia, que prefere o prazer ao resultado. De Friedenreich em diante, o futebol brasileiro que é brasileiro de verdade não tem ângulos retos, do mesmo jeito que as montanhas do Rio de Janeiro e os edifícios de Oscar Niemeyer.”


O segundo descobrimento da América
Para Pedro Asripe, a pátria não significava nada. A pátria era o lugar onde ele tinha nascido, e dava na mesma, porque ninguém o tinha consultado, e era o lugar onde ele se arrebentava trabalhando como peão para um frigorífico, e também dava na mesma ter um ou outro patrão em qualquer outra geografia. Mas quando o futebol uruguaio ganhou a olimpíada de 1924 na França, Arispe era um dos jogadores triunfantes; e enquanto olhava a bandeira nacional que se levantava lentamente no mastro de honra, com o sol em cima e as quatro barras celestes, no centro de todas as bandeiras e mais alta que todas, Arispe sentiu que seu peito estufava.
Quatro anos depois, o Uruguai ganhou a olimpíada da Holanda. E um dirigente uruguaio, Atílio Narancio, que em 24 tinha hipotecado sua casa para pagar as passagens dos jogadores, comentou:
– Agora já não somos mais aquele pequeno ponto no mapa do mundo.
A camisa celeste era a prova da existência da nação, o Uruguai não era um erro: o futebol havia arrancado aquele minúsculo país das sombras do anonimato universal.
Os autores daqueles milagres de 1924 e 1928 eram operários e boêmios que só recebiam do futebol a pura felicidade de jogar, Pedro Arispe era operário de frigorífico. José Nasazzi cortava pedras de mármore. Perucho Petrone era verdureiro. Pedro Crea, entregador de gelo. Jose Leandro Andrade, compositor de carnaval e engraxate. Todos tinham vinte anos, ou pouco mais, embora nas fotos pareçam tão senhores, e curavam as pancadas recebidas com água e sal, panos molhados com vinagre e alguns copos de vinho.
Em 1924, chegaram à Europa com passagens de terceira classe e lá viajaram de favor em vagões de segunda, dormindo em assentos de madeira e obrigados a disputar uma partida depois da outra em troca de teto e comida. A caminho da Olimpíada de Paris, disputaram nove partidas na Espanha e ganharam as nove.
Era a primeira vez que uma equipe latino-americana jogava na Europa. O Uruguai enfrentava a Iugoslávia na partida inicial. Os iugoslavos mandaram espiões ao treino. Os uruguaios perceberam, e treinaram dando chutes no chão, jogando a bola para as nuvens, tropeçando a cada passe e chocando-se entre si. Os espiões informaram:
– Dão pena esses pobres rapazes, que vieram de tão longe...
Apenas duas mil pessoas assistiram àquela primeira partida. A bandeira uruguaia foi içada ao contrário, com o sol para baixo, e em lugar do hino nacional escutou-se uma marcha brasileira. Naquela tarde, o Uruguai derrotou a Iugoslávia por 7 a 0.
E então aconteceu algo como a segunda descoberta da América. Uma partida após a outra, a multidão se aglomerava para ver aqueles homens escorregadios como esquilos, que jogavam o xadrez com a bola. A escola inglesa tinha imposto o passe longo e a bola alta, mas esses filhos desconhecidos, gerados na remota América, não repetiam o pai. Preferiam inventar um futebol de bola curtinha e no pé, com relampejantes mudanças de ritmos e fintas na corrida. Henri de Montherlant, escritor aristocrático, publicou seu entusiasmo: “Uma revelação! Eis aqui o verdadeiro futebol. O que nós conhecíamos, o que nós jogávamos, não era, comparado com isto, mais que um passatempo de escolares”.


“Um dos uruguaios campeões do mundo, Perucho Petrone, foi para a Itália. Estreou em 1931, no Fiorentina: nessa tarde, Petrone fez onze gols.
Na Itália, durou pouco. Foi o goleador do campeonato italiano, e o Fiorentina lhe ofereceu o que quisesse; mas Petrone se cansou muito depressa das fanfarras do fascismo em ascensão. O tédio e a saudade o devolveram a Montevidéu, onde continuou fazendo seus gols de terra arrasada durante um tempinho. Ainda não tinha feito trinta anos quando teve de deixar o futebol. A FIFA obrigou-o, porque não tinha cumprido seu contrato com o Fiorentina.
Dizem que Petrone era capaz de derrubar uma parede com uma bolada. Quem sabe? Está comprovado, isso sim, que desmaiava os arqueiros e perfurava as redes.”


Deus e o Diabo no Rio de Janeiro
Certa noite de muita chuva, enquanto morria o ano de 1937, um torcedor inimigo enterrou um sapo no campo do Vasco da Gama e lançou sua maldição:
– Que o Vasco não seja campeão por doze anos! Se existir um Deus no céu, que o Vasco não seja campeão!
O nome deste torcedor de um time humilde, que o Vasco da Gama tinha goleado por 12 a 0, era Arubinha. Escondendo um sapo de boca costurada nas terras do vencedor, Arubinha estava castigando o abuso.
Durante anos, torcedores e dirigentes procuraram o sapo no campo e em seus arredores. Nunca o encontraram. Crivado de buracos, aquilo era uma paisagem lunar. O Vasco da Gama contratava os melhores jogadores do Brasil, organizava as equipes mais poderosas, mas continuava condenado a perder.
Finalmente, em 1945, o time ganhou o troféu do Rio e quebrou a maldição. Tinha sido campeão, pela última vez, em 1934. Onze anos de seca.
– Deus nos fez um descontinho – declarou o presidente.
Tempos depois, em 1953, quem estava com problemas era o Flamengo, o time mais popular do Rio de Janeiro e de todo o Brasil, o único que, onde jogar, joga sempre como o time da casa. O Flamengo estava há nove anos sem ganhar o campeonato. A torcida, a mais numerosa e fervorosa do mundo, morria de fome. Então um sacerdote católico, o padre Goes, garantiu a vitória, em troca de que os jogadores assistissem sua missa antes de cada partida, e rezassem o rosário de joelhos perante o altar.
Assim, o Flamengo conquistou o campeonato três anos seguidos. Os times rivais protestaram ao cardeal Jaime Câmara: o Flamengo estava usando armas proibidas. O padre Goes se defendeu alegando que não fazia mais que iluminar o caminho do Senhor, e continuou rezando junto com os jogadores seu rosário de contas vermelhas e pretas, que são as cores do Flamengo e de uma divindade africana que encarna ao mesmo tempo Jesus e Satanás. Mas no quarto ano, o Flamengo perdeu o campeonato. Os jogadores deixaram de ir à missa e nunca mais rezaram o rosário. O padre Goes pediu ajuda ao papa, que nunca respondeu.
O padre Romualdo, em troca, obteve permissão do Papa para se tornar sócio do Fluminense. O padre assistia a todos os treinos. Os jogadores não gostavam nem um pouco. Fazia doze anos que o fluminense não ganhava o campeonato do Rio e era de mau agouro aquele passarinhão de plumagem negra ali de pé, na beira do campo. Os jogadores o insultavam, ignorando que o padre Romualdo era surdo de nascença.
Um belo dia, o Fluminense começou a ganhar. Conquistou um campeonato, e outro, e outro. Os jogadores já não podiam treinar a não ser à sombra do padre Romualdo. Depois de cada gol, beijavam sua batina. Nos finais de semana, o padre assistia às partidas da tribuna de honra e murmurava-se sabe-se lá o que contra o juiz e os adversários.


Gol de Atílio
Foi em 1939. O Nacional de Montevidéu e o Boca Juniors de Buenos Aires estavam empatados em dois gols, e a partida estava chegando ao fim. Os do Nacional atacavam; os do Boca, recuados, aguentavam. Então Atílio García recebeu a bola, enfrentou uma selva de pernas, abriu espaço pela direita e engoliu o campo comendo adversários.
Atílio estava acostumado às machadadas. Batiam nele de tudo que é jeito, suas pernas eram um mapa de cicatrizes. Naquela tarde, a caminho do gol, recebeu entradas duras de Angeletti e Suárez, e deu-se ao luxo de esquivá-los duas vezes. Valussi rasgou sua camisa, agarrou-o pelo braço e lhe deu um pontapé e o corpulento Ibáñez plantou-se na sua frente em plena corrida, mas a bola fazia parte do corpo de Atílio e ninguém podia parar aquele redemoinho que derrubava jogadores como se fossem bonecos de trapo, até que no fim Atílio desprendeu-se da bola e seu tiro tremendo sacudiu a rede.
O ar cheirava a pólvora. Os jogadores do Boca cercaram o juiz: exigiam que anulasse o gol pelas faltas que eles tinham cometido. Como o árbitro não lhes deu atenção, os jogadores se retiraram, indignados, do campo.


“Enrique Pichon-Rivière passou a vida penetrando nos mistérios da tristeza humana e ajudando a abrir as cadeias da incomunicação.
No futebol, encontrou um aliado eficaz. Lá pelos anos quarenta, Pichon-Rivière organizou uma equipe de futebol com seus pacientes do manicômio. Os loucos, imbatíveis nas canchas do litoral argentino, praticavam, jogando, a melhor terapia de socialização.
– A estratégia da equipe de futebol é minha tarefa prioritária – dizia o psiquiatra, que também era treinador e artilheiro do time.
Meio século depois, nós seres urbanos estamos mais ou menos loucos, embora quase todos vivamos, por razões de espaço, fora do manicômio. Desalojado pelos automóveis, encurralados pela violência, condenados ao isolamento, estamos cada vez mais amontoados e cada vez mais sozinhos e temos cada vez menos espaços de encontro e menos tempo para nos encontrarmos.”


Gol de Zizinho
Foi no mundial de 50. Na partida contra a Iugoslávia, Zizinho fez um gol bis.
Este senhor da graça do futebol tinha feito um gol legítimo, que o juiz anulou injustamente. Então, ele repetiu igualzinho, passo a passo. Zizinho entrou na área pelo mesmo lugar, esquivou-se do mesmo beque iugoslavo, com a mesma delicadeza, escapando pela esquerda como tinha feito antes, e cravou a bola exatamente no mesmo ângulo. Depois chutou-a com fúria, várias vezes, contra a rede.
O árbitro compreendeu que Zizinho era capaz de repetir aquele gol dez vezes mais, e não teve outro remédio senão aceitá-lo.


Gol de Garrincha
Foi em 1958, na Itália. A seleção do Brasil jogava contra o Fiorentina, a caminho do Mundial da Suécia.
Garrincha invadiu a área, deixou um beque sentado e se livrou de outro, e de outro. Quando já tinha enganado até o goleiro, descobriu que havia um jogador na linha do gol: Garrincha fez que sim, fez que não, fez de conta que chutava no ângulo e o pobre coitado bateu com o nariz na trave. Então, o arqueiro tornou a incomodar. Garrincha meteu-lhe a bola entre as pernas e entrou no arco.
Depois, com a bola debaixo do braço, voltou lentamente ao campo. Caminhava olhando para o chão, Chaplin em câmera lenta, como que pedindo desculpas por aquele gol, que levantou a cidade de Florença inteira.


“No mundial de 70, o Brasil jogou um futebol digno do gosto pela festa e da vontade de beleza de sua gente. Já se impusera no mundo a mediocridade do futebol defensivo, com o time inteiro atrás, armando a retranca, e lá na frente um ou dois homens jogando na maior solidão; já tinham sido proibidos o risco e a espontaneidade criadora. E aquele Brasil foi um assombro: apresentou uma seleção lançada na ofensiva, que jogava com quatro atacantes, Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivelino, que às vezes eram cinco e até seis, quando Gérson e Carlos Alberto chegavam de trás. Na final, esse trator pulverizou a Itália.
Um quarto de século depois, semelhante audácia seria considerada um suicídio. No mundial de 94, o Brasil ganhou outra final contra a Itália. Ganhou na cobrança de pênaltis, depois de cento e vinte minutos sem gols. Não fosse pelos pênaltis, as metas teriam continuado invictas por toda a eternidade.”


Os cânticos do desprezo
Não figura nos mapas, mas existe. É invisível, mas existe. Há uma parede que ridiculariza a memória do Muro de Berlim: levantada para separar os que têm dos que necessitam, ela divide o mundo inteiro em norte e sul, e também traça fronteiras dentro de cada país e dentro de cada cidade. Quando o sul do mundo comete a ousadia de saltar esse muro e se mete onde não deve, o norte lhe recorda, a pauladas, qual é o seu lugar. E o mesmo acontece com as invasões de cada país e de cada cidade a partir das zonas malditas.
O futebol, espelho de tudo, reflete essa realidade. Em meados dos anos oitenta, quando o Nápoles começou a jogar o melhor futebol da Itália, graças ao influxo mágico de Maradona, o público do norte do país reagiu desembainhando as velhas armas do desprezo. Os napolitanos, usurpadores da glória proibida, estavam arrebatando seus troféus aos poderosos de sempre, e eles castigaram aquela insolência da ralé intrusa, vinda do sul. Das arquibancadas dos estádios de Milão ou de Turim, os cartazes insultavam: Napolitanos, bem-vindos à Itália, ou exerciam a crueldade: Vesúvio, contamos contigo.
E com mais força do que nunca ressoaram os cânticos filhos do medo e netos do racismo:

Que mau cheiro
até os cães fogem,
os napolitanos estão chegando.
Oh coléricos, terremotados,
com sabão nunca lavados.
Nápoles merda, Nápoles cólera,
és a vergonha de toda a Itália.

Na Argentina, acontece o mesmo com o Boca Juniors. O Boca é o time preferido pela pobreza de cabelo eriçado e pele morena que invadiu a senhorial cidade de Buenos Aires, em rajadas vindas dos macegais do interior e dos países vizinhos. As torcidas inimigas exorcizam o temido demônio:

Já todos sabem que o Boca está de luto,
são todos negros, são todos putos.
Deve-se matar os bostas,
são todos putos, todos caipiras,
que precisam ser jogados no Riachuelo.

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“Uma jornalista perguntou à teóloga alemã Dorothee Solle:
– Como a senhora explicaria a um menino o que é a felicidade?
– Não explicaria – respondeu. – Daria uma bola para que jogasse.”


Fervores
Em abril de 97, tombaram crivados de balas os guerrilheiros que ocupavam a embaixada do Japão na cidade de Lima. Quando os comandos irromperam, e num relâmpago executaram a espetacular carnificina, os guerrilheiros estavam jogando futebol. O chefe, Néstor Cerpa Cartolini, morreu vestindo as cores do Alianza, o clube de seus amores.
Poucas coisas ocorrem na América Latina, que não tenham alguma relação, direta ou indireta, com o futebol. Festa compartilhada ou compartilhado naufrágio, o futebol ocupa um lugar importante na realidade latino-americana, às vezes o lugar mais importante, ainda que ignorem os ideólogos que amam a humanidade e desprezam as pessoas.”


“Obediência, velocidade, força – e nada de firulas: este é o molde que a globalização impõe. Fabrica-se, em série, um futebol mais frio que uma geladeira. E mais implacável que uma centrífuga. Um futebol de robôs. Supõe-se que esta chateação é o progresso, mas o historiador Arnold Toynbee tinha passado por muitos passados quando comprovou: “A característica mais consistente das civilizações em decadência é a tendência à estandardização e à uniformidade”.”


“Salvo a seleção equatoriana, que jogou lindamente, ainda que não tenha ido longe, a Copa de 2006 não teve surpresas. Um espectador a resumiu assim:
– Os jogadores têm uma conduta exemplar. Não fumam, não bebem, não jogam.”