sábado, 23 de outubro de 2021

O tempo das catedrais: a arte e a sociedade (980-1420) (Parte V), de Georges Duby

Editora: Estampa

ISBN: 978-85-7559-548-0

Tradução: José Saramago

Opinião: ★★★★★

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Páginas: 316

Sinopse: Ver Parte I



“Contudo, à boca do palco, o teatro da devoção apresenta aos homens uma figura central, a de Deus. Deus em três pessoas. Numerosas confrarias colocaram-se no século XIV sob a invocação da Trindade. Pintores e escultores receberam, por consequência, ordem para figurar as três pessoas divinas. Nos seus extremos mais aventurosos, a ala mercantil do cristianismo punha em evidência a terceira delas, o Espírito Santo. Muitos fiéis pensavam então, com os Fraticelli, que o reino dele chegara. Todos lhe atribuíam o governo das relações entre a alma e o poder divino. Nas imagens da Trindade, porém, a pomba do Espírito Santo nunca é mais do que uma figura acessória, como um traço de união lírico. O próprio Pai não constitui mais do que uma decoração de fundo, uma espécie de trono vivo. No centro da composição ergue-se o Filho crucificado. Depois de cem anos de impregnação franciscana, a arte figurativa do século XIV dispõe-se em redor dum centro donde todo o amor irradia: Jesus. Mas que Jesus? Os Beneditinos da idade românica haviam ordenado o tímpano das abaciais em função do Cristo do Último Dia. No portal das catedrais, os intelectuais do século XIII haviam colocado Jesus doutor. O Cristo que uma cristandade enfim popular reclama é muito simplesmente um homem. Um homem comovedor, pois que a devoção moderna é “uma certa tendência de coração pela qual as pessoas se desfazem facilmente em lágrimas”. O Jesus de que falam os pregadores, aquele que as sacre rappresentazioni mostram, o Jesus do Natal e o Jesus da Páscoa. Isto é, um Deus também “historial”, a personagem duma narrativa: Cristo tornado mais próximo pelas fraquezas duma primeira infância, sobretudo pelo mergulhar na agonia.

Natal, Páscoa. A festa do Inverno é uma festa alegre. Proclama a esperança na profundidade da noite. Mas a sua alegria emana menos do menino do que da Mãe. Mais entregue às mulheres, o cristianismo vulgarizado entrança os seus arabescos um pouco afetados em torno do tema marial. Este desabrochara largamente no cristianismo dos clérigos. Exibe-se e perde qualidade. A arte do século XIV, que multiplica as figuras da Virgem, dessacraliza-as pouco a pouco: Maria ajoelhada diante do Filho recém-nascido, Maria perturbada na sua meditação pela anunciação do anjo, Maria vigiando as brincadeiras na erva macia e nas florinhas dos hortos fechados, Maria protetora, enfim, Virgem do manto levantado sobre a multidão dos santos, assumindo sozinha a função tutelar deles, e protegendo sob a sua capa azul, como única mediadora, todo o povo cristão reunido. Depois das penitências e macerações da Quaresma, a Páscoa irrompe, mas precedida pelo cortejo das dores divinas. Se Cristo, finalmente, leva todos os homens à salvação, é pela acumulação dos sofrimentos: é a vítima, o cordeiro portador do pecado do mundo. Nenhum espetáculo foi então mais popular do que o da Paixão e nenhuma imagem mais espalhada do que a da Cruz, do crucifixo, eixo trágico da religião dos pobres. Pouco a pouco, a atenção transporta-se do Cristo humilhado, do Cristo flagelado, do Cristo pregado na cruz para o Cristo morto. No regaço da Virgem em piedade, não já a mãe feliz dos vergéis floridos, das coroações, das assunções, mas cooperando na redenção pelo aprofundamento da sua própria dor, pelo olhar de amor sofredor fixado no destroço que é o Filho, jaz um cadáver. Cadáver cujo primeiro Santo Sepulcro, esculpido em representação teatral, pôs em cena em 1419 o sepultamento. Com efeito, desempenhar a personagem de Jesus, contemplar as cenas sucessivas do seu suplício, “ver com os olhos da alma uns que cravam a cruz na terra, outros que preparam os pregos e o martelo”, absorver-se nesta contemplação até receber no corpo os estigmas, era identificar-se com ele de maneira suficientemente íntima para finalmente vencer a morte, como ele mesmo a tinha vencido. É o medo da noite eterna que leva à imitação de Cristo.”

 

 

“Mais do que uma arte de viver, o cristianismo do século XIV foi uma arte de bem morrer, e a capela, mais do que o lugar das orações e da contemplação mística, o dum culto funerário. As forças associadas de vulgarização e de laicização colocaram o sentimento da morte nessa posição dominante, pondo no centro dos ritos e da imaginária religiosa esta interrogação primária: que aconteceu aos defuntos? onde estão?

A doutrina da alta Igreja propunha uma resposta tranquilizadora. A morte é uma passagem, o termo da viagem terrestre, a chegada ao porto. Um dia, talvez próximo, virá o fim dos tempos, o regresso glorioso de Cristo, a ressurreição da carne na sua plenitude. Então os bons serão separados dos maus e a imensa multidão dos ressuscitados repartida em dois grupos, que se encaminharão, um para as alegrias, o outro para as penas eternas. Enquanto esperam este último dia, os defuntos repousam num lugar de refrigério e de calma, dormem o sono da paz. Tal é o ensinamento da liturgia dos funerais. E a Igreja conquistadora da Alta Idade Média perseguira, ao tempo, para as destruir, as práticas funerárias do paganismo. Ameaçara com as mais graves penas os que se obstinassem em levar alimentos aos mortos. Esvaziara os túmulos das joias, das vestes, das armas, de todo o abundante mobiliário colocado junto dos cadáveres, para que o defunto pudesse viver em aprazimento a sua existência misteriosa e não viesse, insatisfeito, importunar os vivos. A morte instalara-se portanto na nudez, no despojamento tranquilo. Discrição surpreendente: nenhum adorno, nenhum emblema sobre os restos das princesas carolíngias inumadas no envasamento da basílica de Santa Gertrudes em Nivelles, e quando os arqueólogos abriram o único túmulo dum rei de França que ficara inviolado, o de Filipe I, em Saint-Benoit-sur-Loire, não descobriram nada junto do corpo defunto, a não ser os restos dum simples revestimento de folhagem.

Os padres haviam tido no entanto que transigir com crenças muito poderosas. Tinham dado cada vez mais amplitude à liturgia dos defuntos. Tinham acolhido o mito dum espaço e dum tempo intermédio entre a morte e o Juízo Final, tinham admitido que as almas dos mortos podiam sair do sono: não era a adormecidos que Dante ia visitar. Sob a incerta fiscalização da Igreja, o Purgatório estende-se como uma província reconquistada pelas concepções pré-cristãs da morte. O campo desta reconquista alarga-se mais na segunda metade do século XIII, quando afrouxou o domínio dos clérigos sobre as manifestações de piedade, quando os frades mendicantes trabalhavam para fazer verdadeiramente do cristianismo a religião do povo. A Igreja recusara durante muito tempo o acesso do santuário a sepulturas que não fossem de santos, de príncipes ou de prelados. A vontade dos vivos de pôr os seus mortos o mais perto possível dos altares venceu pouco a pouco essa repugnância. O cerimonial revestiu-se, para os ricos, de toda a ostentação do luxo. Era preciso que o defunto entrasse no reino dos mortos adornado com todos os prestígios da sua glória. Pois que o poder dum homem se media então pelo número dos seus “amigos”, dos que viviam sob a sua proteção e em dedicação a ele, o longo cortejo da sua casa, seguido por todos os pobres que alimentara com os seus donativos, acompanhou o esquife. O túmulo, finalmente, cobriu-se de numerosos ornamentos. Figurativos. Preocupado com não desaparecer completamente, o defunto quis ficar presente sobre a terra, ao menos em efígie.

A vontade de sobreviver na sepultura manifestava, contra o espírito cristão de renúncia, o desabrochar duma outra tendência, mais essencial, talvez, do espírito profano: o desejo de vencer o aniquilamento corporal e o terror do homem, não só diante dos mortos, mas diante da sua morte, diante da Morte. A Igreja quisera, desde o princípio, domesticar esta tendência e submetê-la aos seus fins. Sempre convidara, portanto, a meditar sobre a podridão do cadáver, apresentando-a como o sinal da imperfeição da carne, da sua inanidade, como a condenação dos prazeres transitórios, como o mais impressionante convite ao verdadeiro caminho, o de Deus, ao abandono do século. A imagem do esqueleto e do corpo decomposto constituiu uma das ilustrações mais persuasivas da pregação da penitência. Por isso, os laudi cantados nas confrarias italianas evocavam frequentemente o isolamento do corpo defunto, entregue aos vermes na fossa escura. Para essa obra de edificação cooperava um tema figurativo construído sobre o poema dos Três Mortos e dos Três Vivos, a representação dos três cavaleiros que esbarram com três sepulcros abertos, revelados os cadáveres no cheiro da podridão e mostrando bruscamente aos vivos a vaidade do mundo. O remexer dos vermes nas carnes destruídas dava um duplo ensinamento. A putrefação atestava, em primeiro lugar, a íntima união do invólucro carnal e do pecado. Não era verdade pensar-se que só o corpo dos santos escapava a esta decadência? E quando os frades pregadores abriram o túmulo de S. Domingos, não esperavam eles com ansiedade o suave “cheiro de santidade” que provaria a todos que o fundador da Ordem alinhava efetivamente entre os bem-aventurados? Mas o espetáculo do aniquilamento corporal devia incitar também o fiel a conduzir a sua vida com prudência, a estar constantemente pronto, como as Virgens sábias, em estado de graça, pois que a morte é um arqueiro cujo dardo fere de imprevisto e atinge o homem quando ele não espera. A visão do cadáver apodrecido erguia-se entre as representações do cristianismo litúrgico como uma muralha contra as seduções perniciosas dum mundo tentador e condenado.

Ora, os progressos do espírito laico vieram no limiar do século XIV infletir o tema até o virar completamente. O grande afresco pintado no Campo Santo de Pisa justapõe à imagem dos Três Mortos e dos Três Vivos uma outra cena de espírito radicalmente oposto, a do Triunfo da Morte. Brandindo uma gadanha, a figura da morte precipita-se em turbilhões furiosos sobre o vergel deleitável onde, entre as suavidades da vida cortês, uma sociedade de damas e senhores canta o amor e a alegria terrestres. Vai quebrar de um golpe esta alegria e, como a peste, como a morte negra, confundir esta assembleia cantante com os cadáveres que já se amontoam. A imagem não atua aqui como exemplo da vaidade dos prazeres. Grita a angústia do homem mortal diante das forças do seu destino. O recuodos cavalos, empinados diante dos Três Mortos e dos seus sarcófagos descobertos, esboçava um movimento de renúncia, de desprendimento. Os namorados, pelo contrário, desatentos, inconscientes do furor convulsivo que vai de repente ceifar a sua felicidade, agarram-se às suas alegrias, à sua vida. Para eles, como para os trovadores cujas canções acompanham as danças, este mundo é belo, cheio de delícias. Escândalo é ser arrancado a ele. Se a morte, a donna involta in vesta negra de Petrarca, arrebatada, como em Pisa, cerca de 1350, nos tumultos dum furacão, cavalgando, como em Palermo, cerca de 1450, o esqueleto dum cavalo, aparece na força inelutável dum terrível triunfo, é porque antes triunfara na cultura do século XIV a sede da felicidade carnal duma sociedade que se libertava da moral dos padres. Quando se levantou da sua prosternação, o homem encontrou diante de si, ameaçadora, uma morte à sua exata medida. A sua.

Os novos símbolos foram inscritos nas paredes das igrejas. Os pregadores, os animadores da vida piedosa, viam-se impotentes para reprimir o amor do mundo, para conter o surgimento do otimismo laico. Ao menos, procuraram utilizar na sua pastoral a perturbação inerente a esse mesmo otimismo, o horror da morte, destruidora dos prazeres do mundo. O afresco de Pisa é como a ilustração dum sermão que tivesse reforçado os efeitos dum antigo tema, cuja eficácia se atenuara, com um outro, mais perturbador porque tocava na sua profundidade trágica a mola duma sensibilidade nova. Assim se estabeleceram no fim do século XIV, no centro da iconografia religiosa, as formas renovadas do macabro. Cerca de 1400 aparecem na Alemanha as primeiras Artes de Morrer, conjuntos de gravuras que descrevem em cenas sucessivas o drama da agonia, o moribundo dilacerado pelo pesar do que deixa, atormentado pelos demônios que tentam uma última ofensiva e que finalmente são derrotados pelo Cristo irmão, a Virgem e os santos. Na mesma época, talvez em França, organizava-se a Dança Macabra. No mais fundo das crenças populares, a figura da morte vitoriosa juntava-se por vezes à do flautista enfeitiçador. Tocadora de música, encadeava com as suas melodias sorrateiras homens e mulheres, velhos e novos, ricos e pobres, o papa, o imperador, o rei, o cavaleiro, os membros de cada um dos “estados” do mundo. Irresistível, arrebatava-os a todos. Os pregadores imaginaram talvez fazer mimar esta sarabanda triunfante e terrível e depois a representação sacra foi fixada em imagens. Em 1424, o novo símbolo da mortalidade do homem erguia-se em Paris no cemitério dos Inocentes, não longe do grupo, agora menos persuasivo, dos Três Mortos e dos Três Vivos, que o duque João de Berry não havia muito tempo aí mandara colocar. Expressão da angústia de ser homem, o tema impôs-se por toda a parte, de Coventry a Lubeque, de Nuremberg a Ferrara. Atingia a inquietação no seu ponto mais sensível. Não a transportava já para o além longínquo e confuso dos Juízos Finais. Situava-a na certeza presente, atual, perante um fato de experiência, a agonia. “Quem morre, morre na dor”. A morte já não aparece como o adormecimento tranquilo do viajante que chega ao porto de salvação. É abertura vertiginosa para um abismo escancarado. Ora, não foi a miséria dos tempos, o redobrar dos flagelos, da guerra ou da epidemia que asseguraram o triunfo do macabro, mas o desenvolvimento do longo movimento que, desde há dois séculos, conciliava pouco a pouco o cristianismo com as aspirações religiosas dos laicos. Tremer perante a agonia não é resultado duma cristandade mais deprimida, menos segura de si mesma e menos crente, mas duma cristandade muito menos seletiva, largamente aberta a homens simples, de fé também sólida mas mais curta e menos capaz de abstração. A Dança Macabra, tal como o tema italiano do Triunfo, tal como a imagem de Cristo morto no regaço de sua mãe, convinha a uma sensibilidade religiosa que já não era a dos monges ou dos professores da Universidade, mas do povo. Dos ricos e dos pobres que, na igreja franciscana ou nas capelas, rezavam cercados de túmulos.

Quando a ideia da morte foi acolhida, em suas formas frustes, no coração da vida de piedade, autorizada a governá-la completamente, quando a angústia de desaparecer e a obstinação de sobreviver fizeram da imitação de Jesus Cristo a imitação, acima de tudo, da sua agonia, o túmulo apareceu à luz do dia o que era desde há séculos, por trás do biombo de serenidade disposto pela alta Igreja: o objeto de preocupações essenciais. No século XIV, as disposições do mecenato revelam-se principalmente orientadas para a pompa funerária. De todas as encomendas feitas aos artistas, as mais numerosas, as mais atentas, referem-se ao túmulo. A cláusula inicial de todos os testamentos contém a eleição da sepultura, a escolha do lugar que receberá o despojo mortal, que o abrigará até ao Último Dia. Todo o homem que pensa erigir uma capela, que concebe a decoração, que constitui rendas para assegurar o serviço, pensa menos nas suas orações do que no seu túmulo. É costume preparar com grande antecedência essa última morada, vigiar em pessoa a edificação e o ornamento, tal como regular em pormenor a ordenação do seu próprio funeral. A cerimônia fúnebre é, com efeito, concebida como uma festa, como a principal festa da existência. Ora, numa festa, exibe-se, desperdiça-se. As exéquias desse tempo desenrolam-se no aparato dum cortejo ruinoso.”

 

 

“Espezinhado pelos homens de armas, dizimado pelas pestes, o século XIV foi na Europa uma das grandes épocas da canção. Essas canções são naturalmente pastoris e rústicas e sempre primaveris. Foram compostas para os jardins. As moças dançam ao ritmo delas no prado, e, pela roda das donzelas de vestidos salpicados de flores, a graça das planícies vizinhas introduz-se no universo mineral e cubista da Siena de Lorenzetti. A alegria mundana encontra o seu pleno desabrochar na natureza, no ar dos campos e dos bosques, e a arte que suscita dispõe sobre as paredes das salas fechadas e sobre as páginas dos livros um simulacro dos prazeres agrestes. O sonho que ela propõe vai divagando em direção aos campos e às florestas familiares.

A cultura cavaleiresca, com efeito, nascera num mundo que praticamente ignorava as cidades. A riqueza senhorial assentava na terra e no trabalho camponês. Os príncipes viajavam constantemente de domínio em domínio e reuniam as suas cortes solenes em pleno campo. Sabe-se que, para administrar justiça, S. Luís gostava de se sentar debaixo dum carvalho, e as rudes volúpias que a guerra proporcionava aos guerreiros do século XIV resultavam em grande parte de a arte de combater se desenvolver como um desporto de ar livre. Travava-se o combate nas vinhas, na orla dos bosques e no perfume da terra calcada. As batalhas começavam sobre o orvalho, aqueciam pouco a pouco com o subir do sol. Por isso, quando a torre desapertou os seus cintos de muralhas e se aprestou para abrigar as doçuras da vida, logo se abriu para um jardim. O papa em Avignon teve o seu pomar no recinto do palácio, Karlstein ergueu-se longe de Praga, e Windsor longe de Londres. Em Paris, porque o velho palácio da Cité, porque o próprio Louvre se encontravam demasiado longe das verduras, Carlos V mandou comprar hortas no Marais para construir o palácio de Saint-Paul. A fim de viverem como nobres, no lazer rural, todos os mercadores ricos quiseram também possuir um domicílio fora das muralhas da cidade. Porque colocara a figura do senhor feudal no centro do seu ideal de felicidade terrestre, a civilização do Ocidente, que porém era governada cada vez mais pelos costumes, pelo trabalho e pelos gostos urbanos, não escaparia às seduções dos folguedos rústicos. Ora acontecia que o redescoberto Virgílio os celebrara já. O humanismo nascente começou então a cantar as alegrias bucólicas, a celebrar a felicidade dos pastores. Incitou os seus adeptos a trocar o luxo adulterado das cortes pela simplicidade dos prazeres campestres. Instalou, também ele, longe das cidades, os lugares ordenados das conversações ociosas. A companhia feliz do Decameron não se reuniu em Florença, e Petrarca trocava Avignon pela Fonte de Vaucluse. Mesmo as atitudes religiosas tendiam, entre as pessoas do mundo, a transportar-se para o ar livre. As únicas personagens que nos romances corteses tinham uma mensagem cristã eram ermitas retirados, com os feiticeiros, para as solidões silvestres. Talvez em parte alguma o otimismo cavaleiresco tenha encontrado melhor o seu Deus que no seio da natureza virgem. Para um cristão que se liberta das liturgias e tende a atingir o puro amor, Deus, diz Mestre Eckhart, “resplende em todas as coisas, porque todas as coisas têm para ele o gosto de Deus e ele vê a sua imagem em toda a parte”. A iluminação mística transporta a alma ao centro dum vergel, rodeado de muros, mas cheio de flores, de pássaros e do canto das fontes. A Igreja das catedrais coroara a Virgem, apresentara-a ao povo como uma rainha rodeada duma corte de anjos e das pompas litúrgicas do poder. O século XIV trouxe-a para si. Mergulhou-a, é certo, na dor redentora dos homens prosternados diante do seu Deus morto, mas fez dela também a imagem duma mulher feliz. A Virgem exultante da Visitação, da Natividade e da Infância de Cristo preside entre os ramos de flores e essas mesmas coroas que Joana d’Arc, com as suas companheiras, ia nas noites de Verão pendurar nas árvores das fadas. Sentada na erva dum jardim, preside como a rainha duma natureza reconciliada.

Quando falavam de Natureza, os monges e os padres da idade litúrgica evocavam a ideia abstrata duma perfeição inacessível aos sentidos. Para eles, a natureza era a forma conceitual em que a substância de Deus se revela. Não os aspectos transitórios e fictícios que a vista, o ouvido, o olfato podem captar. Não as aparências incertas e desordenadas do mundo —mas o que fora o Jardim do Paraíso para Adão antes da sua falta: um universo de paz, de medida e de virtude, posto em ordem pela razão divina e que escapa às alterações, às decadências mais tarde introduzidas ao mesmo tempo que os poderes do sexo e da morte. No seu espírito, natura opunha-se à gula, à voluptas, isto é, à natureza física desviada, rebelde aos mandamentos de Deus, indócil e por isso condenada, por isso desprezível, por isso indigna de atenção. Os intelectuais dos séculos XII e XIII formavam da natureza uma ideia espiritual e não carnal. Para desvendar os seus mistérios, o melhor era seguir pelos caminhos do raciocínio, de dedução em dedução, de abstração em abstração, até chegar à razão de Deus. A sua física era conceitual, e fora por isso que o seu pensamento acolhera tão bem o sistema de Aristóteles.

Mas no ponto de partida da física aristotélica colocava-se a observação. O caminho do conhecimento tendia por vezes a erguer-se, num movimento muito semelhante ao da lógica escolástica, do particular, do acidental, ao mais geral. A ciência ultrapassava assim, pouco a pouco, a superfície, para chegar, para além do movente e do mutante, à substância, sustentáculo e causa de todos os efeitos observados. Chegava desta maneira às formas, por três graus sucessivos de abstração, física, matemática e depois metafísica. Em Aristóteles, a física, ciência do que, no universo, é ainda mudança, encontrava-se estritamente separada da matemática, conhecimento do que, no universo, se torna estável, quando a abstração atinge o nível superior em que o movimento se elimina. Quando os tradutores do árabe a revelaram, os mestres e os estudantes de artes da Universidade de Paris deram uma adesão entusiasta a esta filosofia. Deixaram-se seduzir por uma cosmologia completa, hierarquizada, perfeitamente racional, e pela ciência do homem microcosmos que lhe era simetricamente conjunta. Esta conceitualização do mundo convinha à elucidação duma natureza em que os intelectuais viam a forma da razão divina. Dominada por homens que desprezavam o carnal, que o diziam infectado de pecado, que renegavam a observação direta e a experiência e que alimentavam a sua sede de conhecer com o silogismo e a razão pura, a arte do primeiro gótico, tal como a arte românica, foi abstrata. Não representava uma árvore, mas a ideia duma árvore, tal como não representava Deus, que não tinha aparência, mas a ideia de Deus.

Contudo, Deus encarnara. Por isso, na arte das catedrais a figuração da essência dos seres criados se aproximou, pouco a pouco, da das aparências. Em breve se pôde identificar na flora dos capitéis as folhagens da alface, do morangueiro e da vinha. A lenta propagação do novo cristianismo, aquele que S. Francisco pregara e que, num otimismo próximo da alegria cavaleiresca, propunha reabilitar o mundo carnal, o irmão Sol e as outras criaturas, contribuiu em muito para trazer para o concreto a atenção dos homens de cultura. Na Universidade de Paris, na corte de S. Luís, os Frades Menores eram numerosos e influentes. Falavam duma Natureza visível, que não era já culpada e para a qual podiam voltar-se os olhares. Mas intervieram também, no próprio seio da escola, certas reticências para com o sistema de Aristóteles, que não se mostrava completamente sem fissura. A lógica escolástica forjara-se para pôr em evidência as contradições das autoridades e para as resolver. Depressa descobriu que a cosmologia de Aristóteles não concordava exatamente com outros sistemas, como o de Ptolomeu, que as traduções do Almagesto revelavam. Para reduzir essas discordâncias, para decidir entre as opiniões diversas dos autores, era forçoso observar o mundo. No século XIII, os astrônomos de Merton College, em Oxford, os da Universidade de Paris, foram os primeiros sábios do Ocidente a recorrer deliberadamente à experiência.

A física de Aristóteles apresentava um outro defeito, mais grave. Não se conciliava com o dogma cristão. Colocando o homem prisioneiro do cosmos, negava-lhe a liberdade. Propondo a noção duma matéria eterna, não podia dar lugar nem à criação nem ao fim dos tempos. O comentário de Averróis iluminava claramente o que se mostrava irredutível ao cristianismo na física do Filósofo. Esta foi, por consequência, solenemente condenada em 1277, ao mesmo tempo que o averroísmo, pelo bispo de Paris, Étienne Tempier. Este ato de polícia intelectual, rejeitando um sistema confortável, que dava clara resposta a tudo, mergulhava outra vez o mundo no mistério. Incitava os sábios a procurar. Já nas escolas de Oxford os mestres franciscanos seguiam novos caminhos. Propondo, contra Aristóteles, ver na luz a substância comum a todo o universo, Roberto Grosseteste permitira conceber o mundo criado como não fechado, não encerrado, restituí-lo ao infinito. E pois que a luz pudera ter brotado e podia extinguir-se, o mundo pudera um certo dia ter começado e poderia um certo dia acabar. Este sistema trazia sobretudo um método. Pois que o universo era considerado como luz, para compreender as estruturas do mundo físico convinha estabelecer leis da ótica. Ora estas dependiam duma geometria e duma aritmética. A ciência matemática achava-se assim reunida à ciência física. Toda a mística dos números que o neoplatonismo veiculava podia legitimamente contribuir para a explicação do mundo e o novo sistema convidava, por outro lado, a medir o universo. Nesta via, a ciência exata tomou depois de 1280 o seu impulso. O sistema de Aristóteles atribuía aos quatro elementos apenas qualidades conceituais. Os sábios de Oxford e de Paris procuraram dar a essas qualidades valor quantitativo. Como, por outro lado, a luz era irrupção e dinamismo, a reflexão sobre o movimento levou a propor, contra a matemática grega, que era a do repouso, uma matemática da mudança. A nova doutrina, enfim, voltava a dar toda a sua importância ao olhar e situava na vanguarda da investigação a visão precisa, a observação direta. A ciência, desta maneira, tornou-se lúcida. E quando no limiar do século XIV um outro franciscano de Oxford, Guilherme d’Ockham, encheu o vazio aberto pela recusa do aristotelismo, quando convenceu a gente das escolas de que todo o conhecimento conceitual é ilusório, de que atingir a substância das coisas é proibido à inteligência do homem, de que esta só pode captar os atributos e os acidentes por uma experiência dos sentidos, dava ao espetáculo da natureza visível o seu valor essencial Todo o movimento de pensamento que leva ao ockhamismo e que irrompe com ele no século XIV trazia a natureza do abstrato ao concreto e reabilitava as aparências. Aliado à alegria franciscana e à alegria das cortes, incitava os artistas a olhar.

A olhar o mundo e a sua diversidade. A sociedade cavaleiresca que, para dirigir a criação artística, ocupava então o lugar do escol da Igreja, era espontaneamente curiosa e tinha prazer na contemplação das coisas. Tinha o gosto do estranho. O exotismo abria para ela uma das portas da evasão. Pelo seu estado, o cavaleiro vagueia à aventura e diverte-se a descobrir países novos. A cruzada fora pretexto, de fato, para maravilhosas viagens. A maior parte dos cruzados tinham, pelo caminho, passeado um olhar de turistas pelas regiões do Oriente mediterrânico. Quando para auditórios cavaleirescos uma literatura se formara, logo ela evocara as terras distantes. Já nas primeiras canções de gesta se erguiam o pinheiro e a oliveira, ao mesmo tempo como lembrança duma recordação e como incitamento a novas viagens. As narrativas de viagens autênticas fizeram concorrência aos contos que teciam em redor da demanda cortês um universo de fábula e de sonho. Os Espelhos do Mundo, os Livros das Maravilhas, os Livros do Tesouro, os Bestiários, os Lapidários apresentavam em dialeto vulgar, para a roda dos grandes senhores, a descrição minuciosa de criaturas desconhecidas. Estas, ao contrário dos dragões ou dos licornes, tinham o mérito de existir. Todos os príncipes do século XIV reuniram para seu divertimento, mas também por desejo de possuir todo o universo, coleções de objetos estranhos que os mercadores traziam do cabo do mundo. Nos seus jardins podiam-se ver, vivos, macacos e leopardos.

Entretanto, a curiosidade cavaleiresca incidia também na natureza próxima, familiar, e contudo também ela misteriosa e matéria para descobertas apaixonantes. A caça era igualmente conquista, e esta quotidiana, maneira do homem se apropriar da criação, de a submeter ao seu poder. Caçadores, estes homens tiravam dos animais selvagens, dos seus costumes e dos seus abrigos, um conhecimento direto e muito preciso. Alguns deles, o imperador Frederico II em primeiro lugar, quiseram fixar a soma das suas experiências em tratados. Com as canções amorosas e as relações das expedições longínquas, os livros de montaria foram as primeiras obras literárias compostas por cavaleiros. Continham as primeiras histórias naturais. Tiveram imenso êxito. Os seus leitores comprazeram-se em encontrar nas margens dos saltérios e nas “sebes” dos livros de horas uma imagem fiel dos animais e das plantas que observavam durante as suas batidas, Os pintores mostraram-na, misturada com a dos animais de fábula, fechada nos arabescos divagantes duma flora sonhada.

A cultura cavaleiresca, com efeito, apelava para uma figuração precisa da realidade, mas duma realidade fragmentária. Queria que lhe mostrassem objetos imediatamente reconhecíveis na singularidade da sua aparência, mas isolados, estreitamente imbricados na trama da recordação ou da irrealidade poética. Nas festas corteses, a nobreza não organizava a natureza em espetáculo. Tirava dela elementos isolados que dispunha sobre os seus atavios em ornamentos ligados pela gratuidade dos bordados, com que semeava a decoração irreal, o fundo de ouro ou o enxadrezado vermelho e azul dos vitrais, estendido para a apresentação dos seus ritos. A unidade coerente dum universo conceitual era substituída pela dispersão, pela multiplicidade dos fenômenos da física ockhamista. Destruíra o espaço cheio de Aristóteles, enchia o vazio do mundo com as acumulações dum tesouro de colecionador, e apenas sonhava animar as peças separadas com o movimento do impetus, do impulso, cuja teoria matemática o mestre parisiense construía então, da mesma maneira que as sinuosidades das caroles arrastavam os chapéus de flores, que a justa e a sua fogosidade arrastavam em turbilhões os brilhos das montadas. Por isso não foi junto dos matemáticos de Oxford, apesar de descobrirem a ótica, que os pintores encontraram as regras da perspectiva. A natureza figurada nas ilustrações da alegria cavaleiresca não é estruturada pelo cálculo, como o são as basílicas românicas e as catedrais. O seu espaço dispersa-se na descontinuidade de olhares agudos, lúcidos, mas múltiplos. As primeiras tentativas para construir racionalmente uma paisagem não foram parisienses, mas italianas.

Na Itália, a ala móvel do franciscanismo professava a pobreza em espírito e lançava o anátema contra a investigação científica. As Universidades ficaram, no seu conjunto, impermeáveis ao ockhamismo e continuaram a comentar Aristóteles e Averróis. Ficaram-se na antiga filosofia, até que apareceu em Florença, subvertedora mas tardia, a mensagem de Platão. Todas as conquistas científicas do século XIV, exceto as dos médicos, operaram-se por consequência fora das escolas italianas. Os mestres de pensamento deste país, os prelados e os frades pregadores por quem o escol da sociedade urbana acedia ao saber escolar e que redigiam os programas iconográficos dos empreendimentos de decoração, propunham a imagem dum universo conceitual e uno, coordenado em todas as suas partes. Na península, porém, a linguagem dos artistas, renovada nas fontes da pintura antiga, descobrira, mais cedo do que em outros lugares, os antigos processos da ilusão. À grande arte teatral das representações da majestade civil e da imitação de Jesus Cristo convinha um cenário simples de símbolos, alguns sinais elementares que colocavam a ação dramática no seu lugar. Esta arte utilizou, por consequência, como o haviam feito a arte românica e a pintura de Bizâncio, um vocabulário abstrato. Implantou ao redor das suas personagens ideias de árvores, de rochedos, de construções e de tronos. Mas uma vez que se tratava agora de um teatro, era preciso que os elementos do cenário fossem ordenados racionalmente num espaço fechado, delimitado por um enquadramento, e que não surgissem, diante da verdade dos atores, numa irrealidade demasiado discordante. Sobre o vasto palco do seu drama, Giotto dispunha as figuras de Deus e dos santos numa materialidade plástica que lhes dava o peso e a presença corporal das estátuas. Mas importava ainda dispor em redor delas uma certa profundidade de campo. Giotto não procurou rodeá-las de atmosfera, tal como não procurou abrir o muro por trás delas para a fuga duma paisagem. Mas, pelo menos, quis pelos artifícios duma perspectiva ainda balbuciante que a imagem dos objetos simbólicos que localizavam a narrativa tomasse aos olhos dos espectadores a aparência de se desdobrar na terceira dimensão. A transferência, inerente à expressão teatral, que substituía então a expressão litúrgica, excluía a intrusão brutal do realismo. Convidava, em compensação, numa abstração quase aristotélica do acidente e do movimento, a não desprezar as leis óticas. Elas abriam os caminhos da ilusão.

Giotto estava longe de procurar o verismo. Contudo, poucos anos depois da sua morte, Bocácio louvava-o pela destreza em figurar a realidade: “A natureza não produz nada que ele não tenha pintado semelhante a ela e mesmo idêntico, de tal maneira que muitas vezes os homens se enganam vendo as coisas que ele fez, tomando por verdade o que é pintura”. Ora, a verdade de que fala Bocácio não é a verdade transcendente, e, por natureza, ele está a entender as aparências do mundo. Entretanto, também os mecenas italianos se tinham aberto à curiosidade pela natureza das coisas. Esperavam da arte que passasse a apresentar-lhes uma ilustração verídica do real.

É aqui que se deve fazer intervir a influência duma mentalidade a que não se poderá chamar burguesa sem trair as suas aspirações profundas, mas que era partilhada, com os práticos da medicina, do direito e da gestão pública, por todos os homens enriquecidos pelo trabalho que se tinham instalado no poder nos senhorios urbanos. Estes práticos não haviam frequentado as Universidades. Mas tinham adquirido no seu mister uma acuidade visual indispensável para avaliar ao primeiro relance a qualidade dos números objetos da mercatura. Os seus negócios, dispersos por toda a parte, exigiam-lhes uma vista de conjunto do mundo, exata e precisa. Tinham o sentido do número e para eles a palavra ratio designava também uma operação de contabilidade. Estes homens quiseram que o cenário das cenas pintadas refletisse mais fielmente a realidade do mundo, conservando a coerência, a unidade e a profundidade de campo teatrais. As alegorias do Bom Governo são conceitos. Estão situadas na abstração cênicas. Mas, em baixo, ao nível das curiosidades profanas, apareceu em Siena, para um senhorio coletivo de mercadores de panos e de especiarias e de manejadores de fundos, no mesmo momento em que Giovanni Villani utilizava, para descrever a cidade de Florença, os métodos da estatística, a primeira paisagem racionalmente construída. Forneceu um modelo. Após as desordens da peste, os imaginários da Lombardia inspiraram-se nele. Transportado em seguida de Milão a Paris, permitiu aos irmãos Limbourg, herdeiros da visão realista, fragmentária mas mais carnal, da imaginária de cavalaria, figurarem na sua verdade a natureza. Esta já não é um labirinto, um entrelaçado de interstícios, onde podemos insinuar-nos, perder-nos no mistério, de conquista em conquista, de surpresa em surpresa, para esbarrar finalmente no simulacro de céu que a fecha como uma tapeçaria. Jogando através da espessura da atmosfera, a luz rompe em profundidade o pano de fundo do teatro. Reúne os olhares descontínuos lançados sobre as coisas numa unidade que, contudo, não tem limites.”

O tempo das catedrais: a arte e a sociedade (980-1420) (Parte IV), de Georges Duby

Editora: Estampa

ISBN: 978-85-7559-548-0

Tradução: José Saramago

Opinião: ★★★★★

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Páginas: 316

Sinopse: Ver Parte I



“Os acontecimentos do passado não explicam o presente, prefiguram-no, ao mesmo tempo que o concluem.”

 

 

“Entre 1250 e 1280, o crescimento econômico prossegue na Europa, mas, lentamente, os eixos do seu progresso deslocam-se. A expansão brotara dos campos. As províncias mais dotadas para a atividade agrícola tinham portanto tomado a dianteira. À frente de tudo colocara-se assim a Ilha-de-França. Depois, o impulso profundo transportara-se para as cidades. Tinha, nessas mesmas províncias, acordado as cidades do seu torpor. As aglomerações urbanas continuam aqui a alargar-se durante toda a segunda metade do século, mas no Norte da França as conquistas camponesas atingiram os seus limites. Deixou de se arrotear. Os campos estenderam-se por todas as terras férteis. Levaram mesmo, aqui e além, longe de mais o avanço à custa de solos magros que rapidamente se esgotaram. Os agricultores desiludidos abandonaram-nos e deixaram-nos a mato. Principia um recuo. Não há progressos técnicos. Nestas terras desde há muito cultivadas, a produção começa por vezes a baixar. Em parte alguma, porém, o crescimento demográfico enfraquece. Multiplica nas aldeias os trabalhadores sem terras que não sabem onde empregar-se, que aceitam os mais baixos salários. As grandes empresas senhoriais aproveitam-se disso, contratam pelo preço mais baixo, vendem facilmente o trigo, e a sua prosperidade afirma-se. Em compensação, muitos camponeses são miseráveis, têm fome. Neste sobrepovoamento se originam as inquietações, os fogachos de revolta, todas as marchas indecisas, e essas cruzadas de “crianças” que reiteram periodicamente a aventura desesperada dos Pastorinhos. Nas regiões onde nasceu a arte gótica, acentua-se nessa época o contraste entre campos que recomeçam a ser percorridos pela penúria, pela epidemia e pelos terrores, e a cidade fechada nas suas muralhas, sempre ativa e até cada vez mais, onde os homens comem quanto lhes apetece, bebem vinho, aonde o dinheiro aflui. A riqueza do final do século XIII é burguesa. É dos que emprestam sobre penhores, dos patrícios que compraram os domínios dos nobres demasiado pródigos, que apertam a garganta dos lapuzes seus devedores, e que atraem os filhos dos camponeses às oficinas urbanas para pagarem menos aos operários. Em Paris, nas feiras de Champanha, nas cidades fabricantes de panos da Flandres, todos os homens de negócios enriquecem. Os que mais êxito tiveram esforçam-se por se libertar da incultura. Alguns desposaram meninas de bom nascimento e sem dote. Tentam copiar as maneiras dos cavaleiros. Por sua vez, encorajam os poetas: para fazer rir os banqueiros de Arras, cançonetistas e encenadores inventam o teatro cômico. Em França, no entanto, no final do século XIII, todos os burgueses continuam a ser rústicos. Não na Itália, o verdadeiro país das cidades.

Desde há muito tempo, os grandes negociantes do Norte compravam além dos Alpes as suas mercadorias mais fascinantes, aquelas de que se tiravam melhores lucros: as especiarias, a pimenta e o anil, e os tecidos preciosos que iam propor às mais altas princesas e aos arcebispos, as sedas de Luca, os panos acabados em Florença. Da Itália vinha-lhes sobretudo a moeda. O poder econômico das regiões francesas firmara-se numa região onde o metal precioso era raro, na sua maior parte imobilizado nos tesouros dos santuários, na decoração dos altares, nas inúmeras relíquias e nos ornamentos rutilantes com que os senhores gostavam de enfeitar a sua pessoa. O comércio tinha falta de meios de pagamento: os Italianos forneceram-lhos. Viu-se virem de Asti, de Placência, homens de sacola que se instalavam nas feiras e dispunham as suas bancas na praça dos mercados. Praticavam o câmbio, aceitavam emprestar dinheiro a juro. Estes estrangeiros inspiravam desconfiança e inveja. Odiavam-nos tanto como aos judeus. Mas o príncipe protegia-os porque eram seus credores. Em Paris, os Lombardos tiveram rua, perto da Grève. Administravam as finanças reais e todo o movimento dos capitais na cidade. E quando, por meados do século, se recomeçou na Europa a cunhar peças de ouro, a maior parte delas saiu das oficinas de Gênova e de Florença.

Pode-se considerar a preeminência monetária das cidades italianas como fruto longínquo das cruzadas. Estas tinham encontrado poucos cavaleiros nesta região do mundo, mas haviam excitado o espírito de empreendimento de todos os aventureiros dos mares. Tinham levado os seus barcos até às margens do Oriente mediterrânico, até aos portos florescentes e seus mercados cheios de mercadorias tentadoras. No século XI, desde que a piedade dos cristãos do Ocidente se voltara para Jerusalém, começara-se a construir navios nas cidades marítimas da Itália para conduzir ao túmulo de Cristo as primeiras companhias de peregrinos. Estes pagavam a passagem. Tinham vendido os domínios aos mosteiros, ou posto de penhor e reunido assim algum dinheiro. Uma parte desse dinheiro passou para as mãos dos bateleiros e entrou nas primeiras operações comerciais. Veio a cruzada. Os seus grandes exércitos alcançaram a Terra Santa por terra, mas as frotas de Pisa e de Gênova ajudaram a conquistar a Palestina. Sustentaram sem descanso o esforço dos cavaleiros de Cristo. No século XIII, a maior parte destes vinha embarcar a Pisa, a Veneza, a Gênova, em navios que se aperfeiçoavam e que o êxito dos negócios multiplicava. Isso significou novos lucros para os armadores e marinheiros. Os príncipes que comandavam as expedições cristãs deixavam fortunas nas suas mãos. Concediam-lhes entrepostos e isenções aduaneiras nas praças mercantes tornadas cristãs. Se não podiam desobrigar-se doutra maneira, prestavam-lhes serviços de passagem. O mais belo golpe foi o dos venezianos: querendo defender os seus privilégios comerciais, conseguiram desviar uma cruzada inteira que, para eles, em 1204, tomou Bizâncio, o tesouro do mundo.

Aos homens do mar todas as pessoas da cidade confiavam capitais para traficar nos portos do Levante; jogar sobre as cotações dos câmbios, trazer as mercadorias que se vendiam muito caro nas feiras da França. O papa proibia o comércio com o infiel. Os mercadores riam-se disso. Muitos pereciam no mar, ou de febres, mas os outros amontoavam peças de prata que os seus associados partiam a fazer frutificar na banca além-montanhas. Em meados do século XIII, os navios de Gênova tinham ganho corpo, aventuravam-se mais longe; um deles transportava para Tunes, em 1251, duzentos passageiros e duzentas e cinquenta toneladas de mercadorias; um outro, em 1277, dobrou pela primeira vez a Espanha e chegou aos portos da Flandres. Assim se inaugurava o novo itinerário que iria mais tarde arruinar as feiras de Champanha e desviar algumas das rotas comerciais que eram ainda a prosperidade das terras francesas. Este movimento, que se ampliava desde há dois séculos, colocara em 1250 os homens de negócios italianos à frente da economia do mundo. Atraía insensivelmente para eles as alavancas da criação cultural. Quando por toda a parte ainda se celebrava a translação secular que transportara primeiro da Grécia a Roma, depois de Roma a Paris, as luzes do pensamento e da arte, uma nova transferência se operava obscuramente, e que não avançara ainda muito longe. A Universidade de Paris ia, por muitos anos ainda, reinar como senhora, e nenhum monumento italiano contemporâneo pode comparar-se com Notre-Dame de Reims, Contudo, o grande santo do século XIII já não era Luís, rei de França. Era o filho dum traficante de Assis.

Nas cidades de Itália, o progresso dos negócios fazia surgir uma sociedade nova. Desde há muito que as gentes da cidade tinham reduzido o clero urbano às suas funções litúrgicas e se tinham libertado do poder dos barões. Mas enquanto nas cidades francesas a comuna já era só constituída por burgueses, aqui continuava a ser aristocrática. Os nobres haviam-na dominado nos primeiros tempos. No século XIII, contudo, nas cidades mais prósperas, a parte ativa do povo disputava-lhes o poder e começava a suplantá-los. Em todo o caso, as barreiras entre a cavalaria e o comum eram ali muito menos altas do que em qualquer outro lugar. Baixaram mais ainda. Muitos nobres, obrigados a isso ou não, entravam nas sociedades de comércio, participavam no negócio e na banca, enquanto os patrícios burgueses adotavam a maneira de viver deles, construíam torres, usavam armas e queriam entrar nas justas da cortesia. Fora como cavaleiro que Francisco passara a sua juventude. Na Itália, no ponto mais alto da sociedade citadina, os homens de negócios de 1200 começavam a adornar-se com valores aristocráticos.

Desta fusão nascia uma cultura cuja singularidade se vê afirmar-se em 1250. Exprimira-se primeiramente pelas aspirações à pobreza, que começaram por se desviar para a heresia e depois seguiram, entusiastas, os passos de São Francisco. Nas comunas italianas, o clero era suspeito. A maior parte das escolas episcopais vegetavam. A devoção dos nobres e do povo virava-se espontaneamente para os eremitas iluminados que cantavam Deus nas grutas do contado, ou para os frades mendicantes. A cidade professava um cristianismo ardente mas lírico, que se derramava em movimentos de afetividade. Quanto às atividades intelectuais, desenvolviam-se fora da Igreja, em estudos práticos, o do Direito, que preparava para o exercício das magistraturas, ou o do cálculo, que servia para orientar os negócios. Nos portos do Mediterrâneo, os filhos dos mercadores aprendiam árabe. Alguns souberam-no suficientemente bem para ler alguns tratados de aritmética. Em 1202, o pisano Leonardo Fibonacci revelou no seu livro Liber abaci todo o corpo da álgebra muçulmana. No entanto, estes processos matemáticos foram utilizados por contabilistas mais do que por construtores de igrejas. A nova cultura, de fato, tardou a exprimir-se em formas artísticas que lhe fossem próprias.

O dinheiro manobrava os negócios. Emprestado ao rei de França e aos seus bispos, ajudava-os a construir catedrais além-montanhas. Na própria cidade, investia-se pouco na obra de arte. O acesso dos mercadores à autoridade comunal, assim como a força das correntes evangélicas, refreavam a tendência para o luxo. Não tardaria que Dante fustigasse os impudores da elegância das florentinas. Contudo, em Florença como aliás em toda a Europa, a decoração da vida profana continuava a ser duma extrema sobriedade. Quanto às igrejas, pouco se inventava para as adornar: modelos bizantinos guiavam os mosaístas e os pintores; modelos românicos, os arquitetos e os escultores. Os únicos frêmitos que os modificavam pouco a pouco vinham todos da santidade franciscana. Não ainda da Roma antiga: os juristas descobriam-lhe já as máximas, mas liam-se pouco os seus poetas, e o prestígio da sua arte continuava enterrado sob as camadas culturais que pouco a pouco a tinham escondido desde o fim do Império e que se tornavam mais espessas ainda pelos contatos retomados com o Oriente. Em Roma, o papa saía das escolas parisienses. Encontrava na arte de França as formas mais aptas para celebrar o seu poder e o da Igreja. Propagava-as, e para ele a arte antiga tinha o defeito de exaltar o poder laico dos imperadores, seus concorrentes. A primeira ressurgência das formas romanas não se deu portanto nas cidades da Lombardia ou da Toscânia, nem mesmo em Roma, mas na parte da Itália onde o poder imperial se firmara antes de vir a afundar-se sob os golpes do papado, isto é, na Sicília.”

 

 

“Durante o século XIV, revelam-se e acusam-se no corpo da cristandade do Ocidente os indícios duma retração. O desejo de cruzada mantém-se vivo, obsidiante. Está no coração da política da Igreja e do comportamento de todos os cavaleiros. Mas deriva lentamente para o lado dos mitos e das nostalgias. Entre a queda de S. João de Acre em 1291, última possessão franca da Terra Santa, e a debandada dos cruzados em Nicópolis, em 1396, diante do exército turco que invadia os Balcãs, a realidade é o lento abandono do Mediterrâneo oriental. Bizâncio, depois de 1400, não é senão uma praça investida, ansiosa, uma espécie de vanguarda condenada perante as pressões dos infiéis e da Ásia. Se a Europa não se espalha mais, antes recua, é porque o número dos seus habitantes, que não parara de crescer desde há pelo menos três séculos, começou a decair nas proximidades do ano 1300 e porque a grande peste de 1348-1350 e as vagas epidêmicas que a seguiram transformaram essa regressão em catástrofe. Nos primeiros anos do século XV, a população, em muitos países da Europa, é metade da de cem anos antes: inúmeros campos a mato, milhares de aldeias desertas e, nas muralhas que se haviam tornado demasiado largas, uma ruína que atinge os bairros da maior parte das cidades. Acrescentam-se as agitações da guerra. A força agressiva que ainda não há muito se desenrolara por fora, em expedições de conquistas, sente-se agora que se recolhe. Suscita constantes defrontamentos entre os Estados, grandes e pequenos, que se reforçam, que dividem a cristandade e que, rivalizando, se opõem. Por toda a parte bandos armados, que pilham e devastam, quadrilhas, condotte. Por toda a parte os “salteadores” e os “esfoladores”, profissionais da guerra. No período de cinquenta anos que a fronteira do século XIV enquadra, situa-se uma das grandes viragens que na Europa infletiram a história da civilização material. Esta história desenvolveu-se em dois amplos impulsos separados por uma depressão muito longa. O século XIV situa-se na abertura da fase estagnante que se prolongou até às proximidades de 1750.

Esta verificação não basta para que sigamos os historiadores que, demasiado sensíveis a este recuo, a este despovoamento, a estas dilacerações, alargam o seu juízo pessimista à história das ideias, das crenças e da criação artística na cristandade latina. Incontestavelmente, o século XIV não foi, na ordem dos valores culturais, um momento de contração, mas, pelo contrário, de fecundidade e progresso. As próprias degradações e as alterações da civilização material parecem ter estimulado a marcha da cultura para a frente, e isto de três maneiras. Em primeiro lugar, modificando sensivelmente a geografia da prosperidade, logo colocando nos lugares novos os fermentos da atividade intelectual e artística.

As epidemias, as desordens na produção, os tumultos militares afetaram duramente, com efeito, certas regiões alemãs, o reino de Inglaterra e, de maneira sem dúvida mais cruel do que em qualquer outro lado, a França, isto é, o foco privilegiado da anterior expansão. Em compensação, outras províncias foram quase poupadas. Na Alemanha renana, na Boêmia, em alguns países ibéricos, sobretudo na Lombardia, veem-se então crescer as cidades, prosperar os negócios, nascer novas curiosidades e novas inquietações. E enquanto os navegadores de Gênova, de Cádis e de Lisboa se aventuram cada vez mais longe nos itinerários atlânticos, inicia-se a inversão do comércio europeu para o Oceano, que depressa iria compensar amplamente todos os recuos no Mediterrâneo. Por outro lado, as desgraças do século XIV, especialmente a regressão demográfica, não foram em todos os casos fatores de decaimento. Favoreceram uma concentração das riquezas individuais e uma alta geral do nível de vida e prepararam desta maneira as condições materiais dum mecenato mais ativo e duma vulgarização da alta cultura. De fato, nesses tempos perturbados pelo encadeamento das calamidades, enquanto a população se reduz em saltos bruscos, os ricos parecem menos raros do que o haviam sido durante a serenidade e a expansão do século XIII, quando as riquezas, é certo, se multiplicavam, mas menos depressa, no entanto, do que os homens. Eis por que certas práticas e certos gostos, ainda não há muito reservados à mais alta aristocracia, se difundiram então progressivamente por camadas sociais cada vez mais largas. Quer se tratasse do uso de beber vinho ou de usar roupa branca, ou de utilizar livros, adornar a casa ou o túmulo, apreender o sentido duma imagem ou dum sermão, ou de fazer encomendas aos artistas. Eis por que, apesar da estagnação da produção e do marasmo das trocas, a propensão para o luxo, longe de diminuir, se exasperou. Finalmente, e sobretudo, o decaimento das estruturas materiais provocou o esboroamento, o desmoronamento dum certo número de valores que até aí tinham enquadrado a cultura do Ocidente. Assim se instalou uma desordem, mas que foi rejuvenescimento e, em parte, libertação. Atormentados o foram decerto os homens desse tempo, mais do que os seus antepassados, mas pelas tensões e lutas duma libertação inovadora, Todos os que eram capazes de reflexão tiveram, em todo o caso, o sentimento, e por vezes até à vertigem, da modernidade da sua época. Tinham consciência de abrir caminho, de os preparar. Sentiam-se homens novos.

O destino das grandes obras literárias aparecidas ao redor de 1300, a segunda parte do Romance da Rosa ou, incomparavelmente mais bela, a Divina Comédia, dá claramente testemunho desse sentimento de modernidade. Estas obras falavam a todos. Compostas em língua vulgar, destinadas portanto a auditores que não eram da Igreja, ofereciam-lhes a suma de todas as conquistas intelectuais e de todos os saberes da idade anterior. A sua primeira intenção era abrir enfim a cultura erudita, a cultura das escolas, a cultura dos clérigos, aos círculos dominantes da sociedade laica, que ardiam por se instruir. Tiveram um êxito imenso. Depressa se tornaram objeto de comentários, de leituras públicas, de discussões. Imediatamente foram consideradas clássicos. Em relação a elas, em relação ao balanço de conhecimentos que traçavam, ao sistema do mundo de que davam imagem, as gerações sucessivas marcaram progressivamente as suas distâncias. Foi a propósito delas que nasceu a crítica literária, isto é, ao mesmo tempo uma certa tomada de consciência estética e o sentido do passado, o sentido da história vivida, o sentido do moderno. De fato, uma renovação afetou nesse tempo todas as atividades do espírito e do coração. Alargou-se por consequência às atitudes religiosas: aquilo, a que se começava a chamar, em cerca de 1380, devotio moderna, era a maneira “moderna” de se aproximar de Deus. Mas essencialmente e sempre, e mesmo no domínio da oração, a libertação que este modernismo implicava operou-se em relação aos quadros eclesiásticos, em relação ao padre. Ao mesmo tempo que se vulgarizava, e no mesmo movimento, a cultura europeia desclericalizou-se durante o século XIV. E a arte — foi então que se tornou mais moderna — deixou, nesta viragem importante da história material e espiritual da Europa, de ser acima de tudo a significação do sagrado. Passou a oferecer-se igualmente aos homens, e a cada vez mais homens, como o apelo ou a reminiscência dos prazeres.”

 

 

“Se considerarmos, por exemplo, a fatura dos afrescos e dos painéis pintados na Itália central, pode-se ver, por alturas de 1350, um corte súbito. A tônica de dignidade, de elegância, que marcara a narração de Giotto ou de Simone Martini dissipa-se então bruscamente. Uma entonação mais vulgar lhe sucede, a de Andrea da Firense ou de Gaddi. Que o desaparecimento brutal de certos mestres tenha subvertido as oficinas, que essa ruptura seja também o eco das falências estrondosas que agitaram em Florença o mundo dos grandes homens de negócios, que arruinaram uns e ergueram outros, não se pode negá-lo. Todavia, a baixa de tensão, que a invasão do pitoresco, da anedota, a procura do efeito tocante manifestam na pintura, resulta sem dúvida alguma, e de maneira decisiva, duma renovação súbita do corpo da cidade. A peste de 1348, depois as epidemias periódicas que se lhe seguiram, cavaram largos hiatos nos níveis superiores da sociedade urbana, por onde já o humanismo penetrava. Os vazios foram cheios pela brusca ascensão dos filhos da fortuna. Estes novos ricos não tinham cultura, ou antes, a sua cultura, enquadrada pela pregação popular dos Mendicantes, situava-se alguns graus abaixo. Para se ajustarem ao gosto deles, as formas da expressão artística tiveram de reduzir-se em elevação. Assim, movimentos acelerados de ascensão social determinaram, desde meados do século XIV, na Toscânia do século XIV, como aliás em toda a Europa, uma nítida regressão da agudeza estética.

Estas promoções rápidas não eram apenas efeitos das pestes, Os acasos da guerra — quase permanente na Europa desse tempo — favoreciam-nas também. Não que as confrontações militares tenham então morto muitos homens ricos. O aperfeiçoamento constante das armaduras assegurava-lhes uma proteção eficaz e aliás, nos combates, os adversários não desejavam, de ordinário, matá-los. Procuravam capturá-los vivos, porque a guerra do século XIV é uma caçada. É, na verdade, um jogo de dinheiro: leva ao resgate. Todo o cavaleiro que se quer digno da sua posição, que por consequência despreza a riqueza e apenas sonha com a glória, deseja, no fundo de si, quando é feito prisioneiro e tem de pagar o preço do resgate, ver este avaliado no mais alto preço pelo vencedor, porque assim se manifesta concretamente o que vale. Aceita então alegremente a ruína. Por isso, a qualquer batalha ou torneio segue-se uma ampla transferência de riqueza. Acontece a combatentes afortunados, enriquecidos pelas suas presas, afetarem a encomendas artísticas uma porção desses ganhos inesperados. Lord Beaverley empreendeu a construção do seu castelo de Beverston quando voltou vitorioso, carregado de ouro, duma das grandes batalhas da guerra dos Cem Anos. Em verdade, este senhor inglês era já rico. Se a guerra, como a peste, introduz na alta aristocracia homens vindos dos níveis médios da sociedade e de tradição cultural menos requintada, é porque se torna nessa época obra de profissionais, de capitães de salteadores, de condottieri, de aventureiros empresários de combates. Esta gente apressa-se a adoptar os usos da alta nobreza, particularmente os gostos artísticos, mas fazem-no como filhos da fortuna, inabilmente e sempre de maneira demasiado ostentatória. Os dois impulsos conjugaram-se, pois, durante o século XIV, estimulando a ascensão de homens novos, para alterar o gosto. Cooperaram na tendência de conjunto para o vulgar.

O outro movimento não afetava os destinos individuais, mas todo o corpo social. Tendia a modificar a circulação dos bens, logo a alterar a ordem dos patrimônios, e a deslocar para novos setores sociais as riquezas necessárias à prática do mecenato. Antigamente, toda a riqueza assentava na terra, no senhorio rural gerador de rendimentos estáveis, e sabe-se que os corpos mais bem dotados de rendimentos agrícolas eram precisamente as grandes comunidades religiosas, os mosteiros, os capítulos catedrais, todos os órgãos eclesiásticos que ainda não há muito tempo haviam suscitado as mais altas criações artísticas. Três tendências vieram, depois de 1280, introduzir a desordem neste campo. Uma mutação da economia agrária perturbou em primeiro lugar a instituição senhorial, privando por um lado a aristocracia fundiária duma boa parte dos seus recursos, e particularmente os estabelecimentos religiosos antigos. Por outro lado, os Estados principescos continuaram a reforçar-se e conseguiram, em particular, construir em seu benefício um sistema fiscal muito eficaz Por toda a Europa desse tempo, instaura-se o imposto de Estado, isto é, um mecanismo que desvia uma porção considerável da circulação monetária e a dirige para os cofres do príncipe, para o seu luxo, para os gestos de prestígio a que se julga obrigado pela sua própria dignidade e pela noção, também ela nova, que cada um adquire da sua majestade, enfim para enriquecimento de todos os que o servem. Desta maneira, na cristandade que se contrai e enfraquece, podem não obstante irradiar um brilho cada vez mais vivo alguns focos de plena opulência: as cortes principescas. Mas mesmo esta disposição — e esse é o terceiro movimento — favorecia as atividades dum certo número de grandes homens de negócios, manejadores de dinheiro, auxiliares dos soberanos para a cobrança dos impostos ou emissão de moedas e sabendo tirar daí proveito, e que aliás abasteciam as cortes de objetos de sumptuária. Na maior parte das cidades, que se despovoavam, o negócio e a banca baixaram, mas continuaram florescentes nas capitais, nos principais nós dos grandes circuitos do metal precioso e dos artigos de luxo. Aí, alguns burgueses enriquecidos pelo serviço próximo ou longínquo dos grandes príncipes do Ocidente ganharam então o gosto da magnificência, da gratuidade do donativo, enquanto acediam ao nível de riqueza e de maturidade cultural em que o homem rico podia pensar em fazer encomendas importantes aos artistas.

Estas transformações de ordem econômica explicam, em boa parte, que a intervenção das instituições da Igreja na atividade artística se tenha progressivamente reduzido durante o século XIV. Arruinadas, exploradas, esmagadas de impostos pelo papa e pelos reis, desorganizadas pelos processos novos de recrutamento e pelos métodos de atribuição das prebendas, as comunidades monásticas ou canoniais cessaram nesse momento, quase por toda a parte, de contar entre os promotores das grandes obras artísticas. Na sociedade eclesiástica só algumas instituições e alguns homens continuaram ativos. Em primeiro lugar, certas ordens religiosas, os Cartuxos, os Celestinos, os Frades mendicantes, sobretudo. Paradoxalmente, estas ordens eram as mais austeras. Queriam-se símbolos e exemplos de despojamento e do desprezo por todas as coisas terrestres. Deveriam portanto, parece, ter condenado qualquer forma de ornamento e mostrar-se os piores inimigos do ato criador de obras de arte. Algumas o foram. Se Giotto teve de reduzir o programa decorativo da capela da Arena, em Pádua, foi sob a pressão dos ermitas agostinhos, encarregados de vigiar a execução da obra, e que o acusaram de fazer muitas coisas “mais por pompa e vã glória de interesse do que para a glória e a honra de Deus”. No entanto, os conventos das ordens pobres foram, na sua maior parte, na arte do século XIV, focos irradiantes, e isto por duas razões. Instalados nas cidades ou às suas portas, recolhiam abundantemente as esmolas principescas e burguesas, porque as virtudes de despojamento e de ascetismo que encarnavam atraíam para esses corpos a devoção de todos os homens ricos, demasiado ricos, cuja opulência e o luxo em que viviam lhes carregavam a consciência. Por outro lado, estas comunidades preenchiam na sociedade funções maiores de celebração funerária e de pregação, e nenhuma delas se concebia então sem um certo fausto e sem o recurso à imagem.

Da Igreja do século XIV saíam ainda outros mecenas, abades, cônegos, cardeais sobretudo e papas. No entanto, estes prelados, quando sustentavam artistas, não agiam como ministros dum culto ou como os chefes responsáveis duma comunidade, mas como indivíduos animados por um desejo de magnificência pessoal. Mais claramente ainda, comportavam-se como príncipes. Da Igreja, exceto as ordens pobres, só participava portanto na criação artística a parte mais ligada ao temporal, a menos litúrgica, diria mesmo aquela que já se laicizara. Porque os bispos de Inglaterra ou de França que prosseguiram a decoração das catedrais, se não eram eles próprios príncipes, eram pelo menos servidores dos príncipes. A fiscalidade real tornava-os ricos, como a dos cardeais tinha como fonte a fiscalidade pontifical. Dos príncipes vinham-lhes às vezes os gostos e as intenções, e especialmente a preocupação de manifestar a sua própria glória juntando determinado ornamento de marca pessoal à igreja de que estavam encarregados. Se o papa Bonifácio VII, em Roma, o papa Clemente VI, em Avignon, exerceram no seu tempo o mais amplo e mais estimulante mecenato, se encorajaram as pesquisas dum Giotto ou dum Matteo da Viterbo, pensavam menos em celebrar a glória de Deus do que em tornar sensível pelos prestígios dum monumento a majestade do Estado, na medida, pelo menos, tanto temporal como espiritual, em que seguravam as rédeas dele.

De fato, foram os príncipes que tomaram então a vez da Igreja na condução dos grandes programas artísticos e instalaram nas suas cortes a vanguarda da criação e da pesquisa. É certo que, de todas estas cortes principescas, as mais brilhantes e poderosas ainda eram as do papa, do rei de França, do imperador, isto é, de personagens sagradas que, desde o alvorecer da arte cristã, haviam tido por missão animar os melhores grupos de artistas. Mas, por um lado, o século XIV foi precisamente o momento em que, na concepção do poder pontifical, imperial ou real, os valores profanos começaram a predominar sobre os religiosos, reduzindo, nos que exerciam esse poder, a função sacerdotal, alargando em compensação a parte do imperium, a noção civil do poder que os intelectuais da época discerniam mais nitidamente à medida que descobriam a Roma antiga. Laicização mais uma vez. E, por outro lado, muitos príncipes, e dos mais opulentos, tal como aqueles que a falta da pessoa real fez em França, cerca de 1400, os condutores da renovação da estética parisiense, o duque de Anjou, o duque de Borgonha, o duque de Berry — ou como também todos os “tiranos” que nas grandes comunas da Itália do Norte se tinham apoderado da signoria —, não tinham recebido a unção divina e não sentiam em si nada que tivesse que ver com o padre. Em todas as cortes, portanto, nesses ajuntamentos de homens e de finanças, ainda muito viajantes e cada vez mais abertos ao mundo, lugares por excelência da promoção social, os únicos onde gente de origem modesta podia, pelas armas, pela gestão econômica ou pelas funções de capela, elevar-se ao mais alto grau da distinção, nessas casas, nessas grandes famílias, em todas as cortes, as intenções litúrgicas cederam pouco a pouco o lugar às intenções políticas, os valores sagrados aos valores profanos. Valores de poder, de majestade, que “legistas” formados em Universidades, nas Faculdades de Leis, extraíam do direito romano, e que outros servidores intelectuais formados em Universidades, nas Faculdades de Artes, extraíam dos clássicos latinos. Valores mais brilhantes ainda de cavalaria e corteses, que eram transportados e propagados pela larga corrente de hábitos e de ritos sociais brotados da Idade Média feudal.

Ora, foram estes valores, universitários e cavaleirescos, que dominaram os poucos grandes homens de negócios que, na sociedade urbana, constituíam aqui e além, sobretudo na Itália, o único escol susceptível nessa época, fora da Igreja e do mundo das cortes, de um mecenato verdadeiramente criador. Porque as burguesias, no seu conjunto, participavam ainda pouquíssimo na condução da atividade artística. A sua intervenção situava-se quase sempre nos níveis mais baixos da criação, nos domínios da produção vulgarizada. Operava-se as mais das vezes também de maneira coletiva, nos limites das confrarias em que se encontrava inserido o homem das cidades e cuja vida cultural era inteiramente governada pelo ensino dos frades mendicantes. Por esta razão, é temerário dizer que existe no século XIV uma arte burguesa, e mesmo, na arte, valores burgueses. É ao erguer-se para fora da burguesia que o banqueiro ou o grande negociante se torna mecenas, ligando-se ao meio principesco que serve, ou então, mas muito raramente, e só em algumas grandes cidades de Itália, revestindo a comuna, o principado coletivo para cuja direção concorre, a majestade, o imperium dos príncipes, mas também os atributos da nobreza cortês. Todos estes grandes homens de negócios, e por trás deles, claro está, a massa do povo, farto ou pequeno, ficavam fascinados pelos costumes das cortes, por aquilo que deles viam, e pelo duplo ideal de clerezia e de cavalaria que propunham. Nenhum “espírito burguês”, portanto, antes a impregnação progressiva de grupos muito restritos, vindos da burguesia e soltos dela, pelo espírito cortês, isto é, pelos valores cavaleirescos, e pelo humanismo, isto é, pelos valores universitários. O que, por consequência, não significa mais que, numa fraca medida, vulgarização e, numa larga medida, laicização.”

 

 

“Para a cultura cavaleiresca, em verdade, trata-se menos duma transformação do que duma afirmação. Fixa-se, ganha estilo, para além da força persuasiva que a impõe, que a faz irradiar, que difunde largamente o seu valor central, valor de alegria e de otimismo. Foi no século XIV que triunfou o espírito de cavalaria. Havia muito tempo que os diversos elementos de que se compunha a figura ideal do perfeito cavaleiro, aquela que propunham os romances e as canções corteses, se tinham constituído e reunido. Os primeiros, os mais profundamente enraizados, encontravam-se instalados já no coração da consciência aristocrática na fronteira do século XI, em França, no momento em que se instaurara a forma de sociedade a que chamamos feudal. Essa base primordial consistia em virtudes estritamente masculinas e militares, de força, de valentia, de lealdade para com o chefe livremente escolhido. Em redor dela ordenava-se a proeza, a prova de coragem e de mestria técnica que define a perfeição cavaleiresca. No centro da cultura profana brilha ainda no século XIV a alegria de combater, de vencer, de dominar, de afirmar-se em poder conquistador.

Um segundo conjunto de valores viera juntar-se quando na alta sociedade a condição feminina começou a sair do seu rebaixamento — o que sucede por alturas de 1100 no Sudoeste do reino de França. No círculo dos homens de guerra, fora preciso dar lugar, primeiramente, à esposa do senhor, à dama. Novas conveniências se tinham por este fato imposto, as regras da conduta cortês a que todo o cavaleiro cioso da sua glória e da sua honra teve de passar a submeter-se. Então foi inventada a forma nova de relações entre os sexos que é o amor do Ocidente. A guerra e o amor. Gostaria de escolher, para definir a cultura cavaleiresca, três palavras: Canti guerrieri e amorosi (assim se intitulavam madrigais de Monteverdi, o que manifesta também que o prestígio de ambos não se tinha extinguido ainda na idade barroca). Com efeito, esta cultura, primeiro, exprimiu-se sobretudo em cantos, canções de gesta ou canções de amor. Por outro lado, desenvolve-se como uma estratégia. Quer seja preciso reduzir o combatente adverso, quer seja preciso atrair e depois reter o amor da esposa de outrem. Na verdade, num e noutro caso, esta estratégia foi quase concebida na origem, e afirmou-se cada vez mais como um jogo. Um jogo regulamentado, que diverte, mas com honra. Isto é, com estrito respeito dum código.

Esse código acabava de se formar na segunda metade do século XII. Nas gerações seguintes, uma literatura sobreabundante difundiu as estipulações dele entre todos os homens que queriam na Europa estar acima do comum. Essa literatura produzira as suas obras-primas antes de 1200. Tinham então surgido as personagens exemplares dos mitos cavaleirescos, o rei Artur ou Percival. No entanto, o seu pleno êxito e a sua ação em profundidade sobre as atitudes comuns datam do século XIV. Neste momento da história cultural da Europa, a narrativa de cavalaria é o agente duma verdadeira intoxicação no conjunto da aristocracia. Encerra o comportamento de parada desta classe num sistema de ritos cada vez mais fixos, que têm cada vez menos coincidências com as condutas espontâneas. A realidade do século XIV é a guerra selvagem, são os incêndios, as violações e as estripações à faca, é o mundo entrincheirado por trás de bastilhas eriçadas de lanças que um campo despojado e deserto rodeia, tal como magnificamente traça Simone Martini, como fundo da figura do condottiere. Este, no entanto, quer-se cavaleiro: pavoneia-se no meio dos combates em trajo de festa. Em Crécy, em Poitiers, em Azincourt, os senhores franceses, flor da aristocracia do seu tempo, os melhores representantes da cultura cavaleiresca, fizeram questão, para seu grande dano, de combater cortesmente; os príncipes cegos fizeram-se atar ao cavalo e conduzir ao centro da batalha para morrer com honra como os heróis de Lançarote (Lançelote). E os mais sangrentos chefes de bandos jogavam nas cortes o jogo de amor pelas princesas. No próprio momento em que a evolução econômica começava a arruinar as famílias da velha nobreza, a rebaixá-las a menos que certos filhos da fortuna da guerra, da alta finança ou do serviço doméstico, e a destruir as antigas hierarquias, via-se construir dessas hierarquias imagens simbólicas e vãs, mas que mantinham eficazmente os valores de jogo. Tais foram as ordens de cavalaria que os reis de Castela, o Imperador, o delfim do Viennois, os reis de França, os de Inglaterra, fundaram sucessivamente no século XIV, para se rodearem, como o rei Artur, doutros cavaleiros da Távola Redonda. Para os homens novos, o único meio de se fazerem aceitar nos círculos mundanos eram exibirem, na estratégia amorosa e guerreira, uma habilidade mais perfeita, um mais perfeito respeito pelas regras. Em torno de Proeza e Cortesia ordena-se a verdadeira liturgia desse tempo, a única que recebe ainda a adesão dos corações, a que se desenvolve nas festas e nas paradas que são as batalhas, tanto quanto os torneios e os bailes noturnos. Eis justamente por que, no século XIV, a grande arte cessa de se ajustar à liturgia sacra, começa a exprimir este cerimonial profano e, ao fazê-lo, mais o vai fixando e mais concorre para o seu êxito. A mais forte novidade na arte desse tempo consiste talvez nesta revelação faustosa da cultura cavaleiresca.

Esta continha certos valores que desde muito cedo a ligaram à cultura dos clérigos. Com efeito, a Igreja, nos tempos feudais, dedicara-se a cristianizar a cavalaria, como todas as formas maiores das relações sociais. Entre as virtudes do homem de guerra, algumas, a força, a prudência, podiam confundir-se facilmente com as virtudes da teologia. Mas os eclesiásticos haviam ido mais longe. A cristandade do século XI fora ao ponto de sacralizar a violência agressiva: a cruzada é a justificação cristã da proeza. No entanto, embora admitindo a guerra, o jogo de espada e abençoando as chacinas, a Igreja persistia em condenar a tendência de que a cavalaria e a cortesia eram mais do que qualquer outra portadoras: a aspiração à alegria terrestre. Tanto quanto os melhores dos monges, o cavaleiro devia desprezar o ouro e os valores mercantis. Mas, se desejava destruí-los, era encontrando prazer no desperdício, no luxo e na extravagância. Quanto ao amor cortês, adúltero por princípio e carnal, parecia menos conciliável com o espírito evangélico do que a agressividade militar. A Igreja, em todo o caso, renunciara a sacralizá-lo também, após alguns esforços para fazer desviar esse sentimento para as devoções mariais. Reprovava-o. Eis por que, sob o véu da ironia em Aucassin et Nicolette, violentamente nas canções de Rutebeuf, da maneira mais ingenuamente livre em Joinville, a literatura cavaleiresca do século XIII afirmava o antagonismo fundamental entre aqueles que ela denunciava como beatos falsos e beguinos, os defensores dum cristianismo gelado, de austeridade e de penitência, e, por outro lado, os verdadeiros cavaleiros, aqueles que aspiravam a conciliar os princípios menos severos duma religião salvadora com o seu amor pela vida e pelo mundo.

No entanto, nesse momento, os valores de alegria da cavalaria haviam já avançado até ao seio da cultura dos clérigos. Tinham colocado em certas províncias do cristianismo o fermento duma reviravolta fundamental. Filho de burguês rico, Francisco de Assis estava impregnado de espírito cortês. Como todos os jovens da sua classe, antes da sua conversão sonhara com a aventura cavaleiresca e compusera canções alegres. Quando escolhe, como um servidor de amor, a Pobreza por sua Dama, pensava atingir dessa maneira, de acordo com os modelos do espírito cortês, a alegria perfeita. Mais de acordo que qualquer outro com o Evangelho, o cristianismo franciscano quer-se fundamentalmente otimista. Conquistador, lírico, propõe uma reconciliação da criação, proclama a bondade e a beleza de Deus no amor das criaturas. Porque não renega nada dos princípios do cristianismo mais exigente, mas também porque não recusa o mundo e, pelo contrário, nele mergulha para o conquistar, o franciscano assume com efeito o arrebatamento alegre da cultura cavaleiresca. A mensagem de Se Francisco era nova de mais e demasiado perturbadora para ser admitida tal qual pela hierarquia romana. Uma parte perdeu-se no decorrer do século XIII. Mas, pelo menos, o que dela subsistiu invade em seguida o universo religioso, espalha-se muito amplamente na Igreja, fora da ordem dos Frades menores, ganhou a milícia rival dos Frades pregadores. Quando no século XIV pensadores sagrados consideram que toda a coisa criada contém uma parcela do divino e é por isso digna de atenção e de amor, quando o dominicano Henrique Suso, num arrebatamento lírico que é um eco do Cântico das Criaturas, exclama, dirigindo-se a Deus: “Admirável Senhor, não sou digno de vos louvar, contudo a minha alma deseja que o céu vos louve quando, na sua beleza mais deslumbrante, é iluminado em sua plena claridade pelo brilho do sol e a multidão inumerável das estrelas luminosas. Que os campos belos vos louvem quando, nas delícias do Verão, brilham segundo a sua nobreza natural, no múltiplo enfeite de suas flores e de requintada beleza”, situam-se, uns e outro, na linha reta do Poverello. Mas encontram-se também, por seu intermédio, em correspondência com a ética da cavalaria e do espírito cortês. Estes não veem já apenas o seu valor próprio impor-se a todos os laicos cultos da Europa, impregnam na sua profundidade as formas novas da cultura eclesiástica.”