quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Totem e Tabu e outros trabalhos (Parte III) – Sigmund Freud

Editora: Imago
ISBN: 978-85-3120-974-1
Tradução: Órizon Carneiro Muniz
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 278 
 
“O Herói da tragédia deve sofrer; até hoje isso continua sendo a essência da tragédia. Tem de conduzir o fardo daquilo que era conhecido como ‘culpa trágica’; o fundamento dessa culpa é fácil de descobrir, porque, à luz de nossa vida cotidiana, muitas vezes não há culpa alguma. Via de regra, reside na rebelião contra alguma autoridade divina ou humana e o Coro acompanhava o Herói com sentimentos de comiseração, procurava retê-lo, adverti-lo e moderá-lo, pranteando-o quando encontrara o que se sentia ser a punição merecida por seu ousado empreendimento.
Mas por que tinha de sofrer o Herói da tragédia? E qual era o significado de sua ‘culpa trágica’? Tinha de sofrer porque era o pai primevo, o Herói da grande tragédia primitiva que estava sendo reencenada com uma distorção tendenciosa, e a culpa trágica era a que tinha sobre si próprio, a fim de aliviar da sua o Coro. A cena no palco provinha da cena histórica através de um processo de deformação sistemática – um produto de refinada hipocrisia, poder-se-ia mesmo dizer. Na realidade remota, haviam sido verdadeiramente os membros do Coro que tinham causado o sofrimento do Herói; agora, entretanto, desmanchavam-se em comiseração e lamentações e era o próprio Herói o responsável por seus próprios sofrimentos. O crime que fora jogado sobre seus ombros, a presunção e a rebeldia contra uma grande autoridade era precisamente o crime pelo qual os membros do Coro, o conjunto de irmãos, eram responsáveis. E assim o Herói trágico tornou-se, ainda que talvez contra a sua vontade, o redentor do Coro.
Na tragédia grega, o tema especial da representação eram os sofrimentos do bode divino, Dionísio, e a lamentação dos bodes seus seguidores, que se identificavam com ele. Assim, sendo fácil compreender como o drama, que tinha se extinguido, voltou a brilhar com nova vida na Idade Média, em torno da Paixão de Cristo.
Ao concluir, então, esta investigação excepcionalmente condensada, gostaria de insistir em que o resultado dela mostra que os começos da religião, da moral, da sociedade e da arte convergem para o complexo de Édipo. Isso entra em completo acordo com a descoberta psicanalítica de que o mesmo complexo constitui o núcleo de todas as neuroses, pelo menos até onde vai nosso conhecimento atual. Parece-me ser uma descoberta muito surpreendente que também os problemas da psicologia social se mostrem solúveis com base num único ponto concreto: a relação do homem com o pai. (...)
Os preceitos e restrições morais mais antigos da sociedade primitiva foram por nós explicados como reações a um ato que deu àqueles que o cometeram o conceito de ‘crime’. Sentiram remorso por ele e decidiram que não se deveria repetir e que sua execução não traria vantagens. Este sentimento de culpa criativo ainda persiste entre nós. Encontramo-lo operando de uma maneira não social nos neuróticos e produzindo novos preceitos morais e restrições persistentes, como expiação por crimes que foram cometidos e precaução contra a prática de novos. Se, contudo, pesquisarmos entre esses neuróticos para descobrir quais foram os atos que provocaram tais reações, ficaremos desapontados. Não encontraremos atos, mas apenas impulsos e emoções, pretendendo fins malignos, mas impedidos de realizar-se. O que jaz por trás do sentimento de culpa dos neuróticos são sempre realidades psíquicas, nunca realidades concretas. O que caracteriza os neuróticos é preferirem a realidade psíquica à concreta, reagindo tão seriamente a pensamentos como as pessoas normais às realidades.
Não poderá o mesmo ser verdade quanto aos homens primitivos? Temos justificativas para acreditar que, como um dos fenômenos de sua organização narcisista, eles supervalorizam seus atos psíquicos a um grau extraordinário. Consequentemente, o simples impulso hostil contra o pai, a mera existência de uma fantasia – plena de desejo de matá-lo e devorá-lo, teriam sido suficientes para produzir a reação moral que criou o totemismo e o tabu. Desta maneira, evitaríamos a necessidade de atribuir a origem de nosso legado cultural, de que com justiça nos orgulhamos, a um crime odioso, revoltante para todos os nossos sentimentos. Nenhum dano seria assim feito à cadeia causal que se estende desde os começos aos dias atuais, pois a realidade psíquica seria suficientemente forte para suportar o peso dessas consequências. A isto se poderá objetar que realmente efetuou-se uma alteração na forma da sociedade, de uma horda patriarcal para um clã fraterno. Trata-se de um argumento poderoso, mas não conclusivo. A alteração poderia ter sido efetuada de uma maneira menos violenta e, não obstante, capaz de determinar o aparecimento da reação moral. Enquanto a pressão exercida pelo pai primevo podia ser sentida, os sentimentos hostis para com ele eram justificados e o remorso por sua causa teria de esperar por seu dia. E se se argumentar ainda que tudo que tem sua origem na relação ambivalente com o pai – o tabu e a ordenação sacrificatória – se caracteriza pela mais profunda seriedade e a mais completa realidade, essa nova objeção tem tão pouco peso quanto a outra, porque os cerimoniais e as inibições dos neuróticos obsessivos apresentam essas mesmas características e, não obstante, têm sua origem apenas na realidade psíquica – provêm de intenções e não da execução delas. Temos de evitar transplantar para o mundo dos homens primitivos e dos neuróticos, cuja riqueza reside apenas no interior deles próprios, o desprezo de nosso mundo corriqueiro – com sua riqueza de valores materiais – pelo que é simplesmente pensado ou desejado. (...)
Examinemos, então, mais de perto o caso da neurose – a comparação com a qual nos conduziu à nossa presente incerteza. Não é exato dizer que os neuróticos obsessivos, curvados sob o peso de uma moralidade excessiva, estão se defendendo apenas da realidade psíquica e se punindo através de impulsos que foram simplesmente sentidos. A realidade histórica também tem a sua parte na questão. Na infância, eles tiveram esses impulsos malignos de modo puro e simples e transformaram-nos em atos até onde a impotência da infância permitia. Cada um desses indivíduos excessivamente virtuosos passou por um período de maldade na infância – uma fase de perversão que foi precursora e pré-condição do período posterior de moralidade excessiva. A analogia entre os homens primitivos e os neuróticos será estabelecida assim de modo muito mais completo, se supusermos que também no primeiro caso a realidade psíquica – a respeito da qual não temos dúvida quanto à forma que tomou – coincidiu no princípio com a realidade concreta, ou seja, que os homens primitivos realmente fizeram aquilo que todas as provas mostram que pretendiam fazer.
Tampouco devemos deixar-nos influenciar demais em nosso julgamento dos homens primitivos pela analogia com os neuróticos. Há distinções, também, que devem ser levadas em conta. Sem dúvida alguma, é verdade que o contraste nítido que nós traçamos entre o pensar e o fazer acha-se ausente em ambos. Mas os neuróticos são, acima de tudo, inibidos em suas ações: neles, o pensamento constitui um substituto completo do ato.”


         “Entendo por parapraxias a ocorrência em pessoas sadias e normais de fatos como esquecimento de palavras e nomes que nos são normalmente familiares; esquecimento do que pretendíamos fazer; incursão em lapsos de linguagem e escrita; erros de leitura, colocação de coisas em lugares errados e incapacidade de encontrá-las; perda de objetos; enganos em assuntos que conhecemos muito bem e certos gestos e movimentos habituais. (...)
O motivo mais comum para reprimir uma intenção, que daí em diante tem de contentar-se em encontrar expressão numa parapraxia, resulta ser a necessidade de evitar o desprazer. Assim, esquecemos obstinadamente um nome próprio se nutrimos um rancor secreto contra o seu possuidor; esquecemos de levar adiante uma intenção se, na realidade, formulamo-la contra a vontade – apenas pressionados por alguma convenção, para dar um exemplo; perdemos um objeto se ele faz lembrar alguém com quem tivemos uma briga – a pessoa que nos deu o objeto, por exemplo; tomamos o trem errado se estivermos fazendo uma viagem contra a vontade e preferíssemos estar noutro lugar. Esta necessidade de evitar o desprazer é percebida mais claramente no que se refere ao esquecimento de impressões e experiências – fato que já fora observado por muitos escritores antes que a psicanálise existisse. A memória revela sua parcialidade mostrando-se pronta a impedir a reprodução de impressões comprometidas com uma emoção angustiante, se bem que este propósito não possa ser alcançado em todos os casos.
A perda de objetos preciosos com frequência mostra ser um ato de sacrifício destinado a impedir algum mal esperado; muitas outras superstições também sobrevivem sob a forma de parapraxias em pessoas instruídas. A colocação de objetos em lugares errados via de regra significa a intenção de livrar-se deles; os estragos que uma pessoa causa aos seus próprios objetos (ostensivamente por acidentes) podem ter o sentido de tornar necessário a aquisição de algo melhor – e assim por diante.
Não obstante, a despeito da aparente trivialidade destes fenômenos, a explicação psicanalítica das parapraxias implica algumas ligeiras modificações em nossa visão do mundo. Descobrimos que mesmo pessoas normais são movidas por motivos contraditórios com muito mais frequência do que era de se esperar. O número de ocorrências que podem ser descritas como ‘acidentais’ é consideravelmente pequeno. É quase uma consolação poder excluir a perda de objetos dos acontecimentos fortuitos da vida; nossos enganos com frequência resultam ser um disfarce para nossas intenções secretas. Mas – o que é mais importante muitos – acidentes sérios que de outro modo teríamos atribuído inteiramente ao acaso revelam, quando analisados, a participação da própria volição do sujeito, embora sem ser claramente admitida por ele. A distinção entre um acidente casual e autodestruição deliberada, que na prática muitas vezes é tão difícil de precisar, torna-se ainda mais dúbia quando examinada de um ponto de vista psicanalítico.
A explicação das parapraxias deve o seu valor teórico à facilidade com que podem ser solucionadas e à sua frequência nas pessoas normais. Entretanto, o sucesso da psicanálise em explicá-las é ultrapassado de muito, em importância, por outra conquista realizada pela própria psicanálise relacionada com outro fenômeno da vida mental normal. Trata-se de interpretação de sonhos, que causou o primeiro conflito da psicanálise com a ciência oficial, o que passou a ser seu destino. A pesquisa médica explica os sonhos como sendo fenômenos puramente somáticos, sem sentido ou significação, e considera-os como a reação de um órgão mental, mergulhado em estado de sono, aos estímulos físicos que o mantêm parcialmente desperto. A psicanálise eleva a condição dos sonhos à de atos psíquicos possuidores de sentido e intenção e com um lugar na vida mental do indivíduo, apesar de sua estranheza, incoerência e absurdo. Segundo esse ponto de vista, os estímulos somáticos simplesmente desempenham o papel de material que é elaborado no decurso da construção do sonho. Não existe um meio termo entre essas duas opiniões sobre os sonhos. O argumento usado contra a hipótese fisiológica é a sua esterilidade, e o que pode ser argumentado em favor da hipótese psicanalítica é o fato de ter traduzido e dado um sentido a milhares de sonhos, usando esse sentido para iluminar os pormenores mais íntimos da mente humana.”


“A psicanálise, portanto, demonstrou os fatos que se seguem. Todos os sonhos têm um significado. Sua estranheza é devida a distorções que foram feitas na expressão desse significado. Sua aparência absurda é deliberada e exprime zombaria, ridículo e contradição. Sua incoerência é uma questão de indiferença para com a interpretação. O sonho, tal como o recordamos depois de acordar, é descrito por nós através de seu ‘conteúdo manifesto’. No processo de interpretação deste, somos conduzidos aos ‘pensamentos oníricos latentes’, que jazem ocultos por trás do conteúdo manifesto, e são por este representados. Estes pensamentos oníricos latentes já não são estranhos, incoerentes ou absurdos, são constituintes completamente válidos de nosso pensamento quando despertos. Damos o nome de ‘elaboração onírica’ ao processo que transforma os pensamentos oníricos latentes no conteúdo manifesto do sonho; é essa elaboração a responsável pela deformação que torna os pensamentos oníricos irreconhecíveis no conteúdo manifesto do sonho.
A elaboração onírica é um processo psicológico que até hoje não encontrou similar na psicologia, reclamando o nosso interesse em dois sentidos principais. Em primeiro lugar, traz ao nosso conhecimento processos novos como a ‘condensação’ (de ideias) e o ‘deslocamento’ (da ênfase psíquica de uma ideia para outra), processos com os quais nunca, de forma nenhuma, nos deparamos em nossa vida desperta, a não ser como base daquilo que é conhecido como ‘erros de pensamento’. Em segundo lugar, nos permite detectar no funcionamento da mente um jogo de forças que estava escondido de nossa percepção consciente. Descobrimos que há uma ‘censura’, um órgão de verificação a funcionar em nós, que decide se uma ideia que surge na mente deve ter ou não permissão de chegar à consciência e que, até onde está em seu poder, exclui implacavelmente qualquer coisa que possa produzir ou reviver um desprazer. Aqui lembramos que na análise das parapraxias encontramos traços dessa mesma intenção de evitar desprazer na recordação de coisas, e de conflitos similares entre os impulsos mentais.”


“O que já foi descoberto sobre a formação dos sonhos funciona – onde quer que seja – no conflito psíquico; na repressão de certos impulsos instintivos enviados de volta para o inconsciente por outras forças mentais, nas formações reativas estabelecidas pelas forças repressoras, e nos substitutos construídos pelos instintos reprimidos, mas não despojados de toda a sua energia. Os processos acessórios de condensação e de deslocamento, tão familiares a nós nos sonhos, podem também ser encontrados em toda parte. A multiplicidade de quadros clínicos observada pelos psiquiatras depende de duas outras coisas: da multiplicidade dos mecanismos psíquicos à disposição dos processos repressivos e da multiplicidade de disposições desenvolvimentais, que dão aos impulsos reprimidos oportunidade de irromperem através de estruturas substitutivas. (...)
Quando interpretamos um sonho estamos apenas traduzindo um determinado conteúdo de pensamento (os pensamentos oníricos latentes) da ‘linguagem de sonhos’ para a nossa fala de vigília. À medida que fazemos isso, aprendemos as peculiaridades dessa linguagem onírica e nos convencemos de quem ela faz parte de um sistema altamente arcaico de expressão.”


“Se examinarmos a sexualidade do adulto com o auxílio da psicanálise e considerarmos a vida das crianças à luz dos conhecimentos que assim obtivermos, perceberemos que a sexualidade não é simplesmente uma função que serve aos fins da reprodução, no mesmo nível que a digestão, a respiração etc. Trata-se de algo muito mais independente, que se coloca em contraste com todas as outras atividades do indivíduo e só é forçado a uma aliança com a economia individual após um complicado curso de desenvolvimento que envolve a imposição de numerosas restrições. Casos – em teoria inteiramente concebíveis – em que os interesses desses impulsos sexuais deixam de coincidir com a autopreservação do indivíduo parecem realmente ser apresentados pelo grupo das doenças neuróticas, porque a fórmula final a que a psicanálise chegou quanto à natureza das neuroses é a seguinte: o conflito primário que leva às neuroses é um conflito entre os instintos sexuais e os instintos que sustentam o ego. As neuroses representam uma dominação mais ou menos parcial do ego pela sexualidade, depois de terem falhado os esforços do ego para reprimi-la. (...)
O contraste entre os instintos do ego e o instinto sexual, ao qual fomos obrigados a atribuir a origem das neuroses, é transposto para a esfera da biologia pelo contraste entre os instintos que servem à preservação do indivíduo e os que servem à sobrevivência da espécie. Na biologia encontramos a mais abrangente concepção de um plasma germinal imoral ao qual os diferentes indivíduos transitórios se ligam como órgãos que se desenvolvem sucessivamente. É somente essa concepção que nos permite compreender corretamente o papel desempenhado pelas forças instintivas sexuais na filosofia e na psicologia.
Apesar de todos os nossos esforços para que a terminologia e as considerações biológicas não dominassem o trabalho psicanalítico, não pudemos evitar o seu emprego mesmo na descrição dos fenômenos que estudamos. Não podemos deixar de considerar o termo ‘instinto’ como um conceito fronteiriço entre as esferas da psicologia e da biologia.”


“A psicanálise foi obrigada a atribuir a origem da vida mental dos adultos à vida das crianças e teve de levar a sério o velho ditado que diz que a criança é o pai do homem. Delineou a continuidade entre a mente infantil e a mente adulta e observou também as transformações e os remanejamentos que ocorrem no processo. Na maioria de nós existe, em nossas lembranças, uma lacuna que abrange os primeiros anos da infância dos quais apenas algumas recordações fragmentárias sobrevivem. Pode-se dizer que a psicanálise preencheu essa lacuna e aboliu a amnésia infantil do homem.
Algumas descobertas notáveis foram efetuadas no curso dessa investigação da mente infantil. Assim foi possível confirmar – o que já fora muitas vezes suspeitado – a influência extraordinariamente importante exercida pelas impressões da infância (e particularmente pelos seus primeiros anos) sobre todo o curso da evolução posterior. Isso nos conduz ao paradoxo psicológico – que somente para a psicanálise não é paradoxo – de serem precisamente estas, as mais importantes de todas as impressões, as que não são recordadas em anos posteriores. A psicanálise pôde estabelecer o caráter decisivo e indestrutível dessas primeiras experiências da maneira mais clara possível, no caso da vida sexual. ‘On revient toujours à ses premiers amours‘* é pura verdade. Os muitos enigmas da vida sexual dos adultos só podem ser solucionados se forem ressaltados os fatores infantis existentes no amor. Uma luz teórica é lançada sobre a influência deles depois de considerarmos que as primeiras experiências de um indivíduo na infância não ocorrem somente por acaso, mas correspondem também às primeiras atividades de suas disposições instintivas inatas ou constitucionais.
Outra descoberta muito mais surpreendente foi que, a despeito de toda a evolução posterior que ocorre no adulto, nenhuma das formações mentais infantis perece. Todos os desejos, impulsos instintivos, modalidades de reação e atitudes da infância acham-se ainda demonstravelmente presentes na maturidade e, em circunstância apropriada, podem mais uma vez surgir. Elas não são destruídas, mas simplesmente se sobrepõem.”
*: Sempre voltamos ao nosso primeiro amor.


“A psicanálise estabeleceu uma estreita conexão entre essas realizações psíquicas de indivíduos, por um lado, e de sociedades, por outro, postulando uma mesma e única fonte dinâmica para ambas. Ela parte da ideia básica de que a principal função do mecanismo mental é aliviar o indivíduo das tensões nele criadas por suas necessidades. Uma parte desta tarefa pode ser realizada extraindo-se satisfação do mundo externo e, para esse fim, é essencial possuir controle sobre o mundo real. Mas a satisfação de outra parte dessas necessidades – entre elas, certos impulsos afetivos – é regularmente frustrada pela realidade. Isto conduz a uma nova tarefa de encontrar algum outro meio de manejar os impulsos insatisfeitos. Todo o curso da história da civilização nada mais é que um relato dos diversos métodos adotados pela humanidade para ‘sujeitar’ seus desejos insatisfeitos, que, de acordo com as condições cambiantes (modificadas, ademais, pelos progressos tecnológicos) defrontaram-se com a realidade, às vezes favoravelmente e outras com frustração.”


“O objetivo primário do artista é libertar-se e, através da comunicação de sua obra a outras pessoas que sofram dos mesmos desejos sofreados, oferecer-lhes a mesma libertação. Ele representa suas fantasias mais pessoais plenas de desejo como realizadas; mas elas só se tornam obra de arte quando passaram por uma transformação que atenua o que nelas é ofensivo, oculta sua origem pessoal e, obedecendo às leis da beleza, seduz outras pessoas com uma gratificação prazerosa. A psicanálise não tem dificuldade em ressaltar, juntamente com a parte manifesta do prazer artístico, uma outra que é latente, embora muito mais poderosa, derivada das fontes ocultas da libertação instintiva. A conexão entre as impressões da infância do artista e a história de sua vida, por um lado, e suas obras como reações a essas impressões, por outro, constitui um dos temas mais atraentes de estudo analítico. (...)
A arte é uma realidade convencionalmente aceita, na qual, graças à ilusão artística, os símbolos e os substitutos são capazes de provocar emoções reais. Assim, a arte constitui um meio-caminho entre uma realidade que frustra os desejos e o mundo de desejos realizados da imaginação – uma região em que, por assim dizer, os esforços de onipotência do homem primitivo ainda se acham em pleno vigor.”


“A psicanálise nos mostrou que as atitudes emocionais dos indivíduos para com outras pessoas que são de tão extrema importância para seu comportamento posterior, já estão estabelecidas numa idade surpreendentemente precoce. A natureza e a qualidade das relações da criança com as pessoas do seu próprio sexo e do sexo oposto, já foi firmada nos primeiros seis anos de sua vida. Ela pode posteriormente desenvolvê-las e transformá-las em certas direções mas não pode mais livrar-se delas. As pessoas a quem se acha assim ligada são os pais e irmãos e irmãs. Todos que vem a conhecer mais tarde tornam-se figuras substitutas desses primeiros objetos de seus sentimentos. (Deveríamos talvez acrescentar aos pais algumas outras pessoas como babás, que dela cuidaram na infância.) Essas figuras substitutas podem classificar-se, do ponto de vista da criança, segundo provenham do que chamamos as ‘imagos’, do pai, da mãe, dos irmãos e das irmãs, e assim por diante. Seus relacionamentos posteriores são assim obrigados a arcar com uma espécie de herança emocional, defrontam-se com simpatias e antipatias para cuja produção esses próprios relacionamentos pouco contribuíram. Todas as escolhas posteriores de amizade e amor seguem a base das lembranças deixadas por esses primeiros protótipos.
De toda as imagens (imagos) de uma infância que, via de regra, não é mais recordada, nenhuma é mais importante para um jovem ou um homem que a do pai. A necessidade orgânica introduz na relação de um homem com o pai uma ambivalência emocional que encontramos expressa de forma mais notável no mito grego do rei Édipo. Um rapazinho está fadado a amar e a admirar o pai, que lhe parece ser a mais poderosa, bondosa e sábia criatura do mundo. O próprio Deus, em última análise, é apenas uma exaltação dessa imagem do pai, tal como é representado na mente durante a mais tenra infância. Cedo, porém, surge o outro lado da relação emocional. O pai é identificado como o perturbador máximo da nossa vida instintiva; torna-se um modelo não apenas a ser imitado, mas também a ser eliminado para que possamos tomar o seu lugar. Daí em diante, os impulsos afetuosos e hostis para com ele persistem lado a lado, muitas vezes, até o fim da vida, sem que nenhum deles seja capaz de anular o outro. É nessa existência concomitante de sentimentos contrários que reside o caráter essencial daquilo que chamamos de ambivalência emocional.
Na segunda metade da infância, dá-se uma mudança na relação do menino com o pai – mudança cuja importância não pode ser exagerada. De seu quarto de criança, o menino começa a vislumbrar o mundo exterior e não pode deixar de fazer descobertas que solapam a alta opinião original que tinha sobre o pai e que apressam o desligamento de seu primeiro ideal. Descobre que o pai não é o mais poderoso, sábio e rico dos seres; fica insatisfeito com ele, aprende a criticá-lo, a avaliar o seu lugar na sociedade; e então, em regra, faz com que ele pague pesadamente pelo desapontamento que lhe causou. Tudo que há de admirável, e de indesejável na nova geração é determinado por esse desligamento do pai.
É nessa fase do desenvolvimento de um jovem que ele entra em contato com os professores, de maneira que agora podemos entender a nossa relação com eles. Estes homens, nem todos pais na realidade, tornaram-se nossos pais substitutos. Foi por isso que, embora ainda bastante jovens, impressionaram-nos como tão maduros e tão inatingivelmente adultos. Transferimos para eles o respeito e as expectativas ligadas ao pai onisciente de nossa infância e depois começamos a tratá-los como tratávamos nossos pais em casa. Confrontamo-los com a ambivalência que tínhamos adquirido em nossas próprias famílias, e, ajudados por ela, lutamos como tínhamos o hábito de lutar com nossos pais em carne e osso. A menos que levemos em consideração nossos quartos de crianças e nossos lares, nosso comportamento para com os professores seria não apenas incompreensível, mas também indesculpável.”

Totem e Tabu e outros trabalhos (Parte II) – Sigmund Freud

Editora: Imago
ISBN: 978-85-3120-974-1
Tradução: Órizon Carneiro Muniz
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 278

“Na fase animista, os homens atribuem a onipotência a si mesmos. Na fase religiosa, transferem-na para os deuses, mas eles próprios não desistem dela totalmente, porque se reservam o poder de influenciar os deuses através de uma variedade de maneiras, de acordo com os seus desejos. A visão científica do universo já não dá lugar à onipotência humana; os homens reconheceram a sua pequenez e submeteram-se resignadamente à morte e às outras necessidades na natureza. Não obstante, um pouco da crença primitiva na onipotência ainda sobrevive na fé dos homens no poder da mente humana, que entra em luta com as leis da realidade.
Se acompanharmos retrospectivamente o desenvolvimento das tendências libidinais, tal como as encontramos no indivíduo, desde suas formas adultas até os seus começos na infância, surge uma importante distinção, que descrevi em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Manifestações dos instintos sexuais podem ser observadas desde os começos, mas, de saída, elas ainda não são dirigidas para qualquer objeto externo. Os componentes instintivos separados da sexualidade atuam independentemente uns dos outros, a fim de obter prazer e encontrar satisfação no próprio corpo do sujeito. Essa fase é conhecida como a do auto-erotismo, sendo sucedida por outra, na qual um objeto é escolhido.
Estudos ulteriores demonstraram que é conveniente e verdadeiramente indispensável inserir uma terceira fase entre aquelas duas, ou, em outras palavras, dividir a primeira fase, a do auto-erotismo, em duas. Nessa fase intermediária, cuja importância a pesquisa tem evidenciado cada vez mais, os instintos sexuais até então isolados já se reuniram num todo único e encontraram também um objeto. Este objeto, porém, não é um objeto externo, estranho ao sujeito, mas se trata de seu próprio ego, que se constituiu aproximadamente nessa mesma época. Tendo em mente as fixações patológicas dessa nova fase, que se tornam observáveis mais tarde, demos-lhe o nome de ‘narcisismo’. O sujeito comporta-se como se estivesse amoroso de si próprio; seus instintos egoístas e seus desejos libidinais ainda não são separáveis pela nossa análise.
Embora ainda não estejamos em posição de descrever com exatidão suficiente as características dessa fase narcisista, na qual os instintos sexuais até então dissociados se reúnem numa unidade isolada e catexizam* o ego como objeto, já temos motivos para suspeitar que essa organização narcisista nunca é totalmente abandonada. Um ser humano permanece até certo ponto narcisista, mesmo depois de ter encontrado objetos externos para a sua libido. As catexias de objetos que efetua são, por assim dizer, emanações da libido que ainda permanece no ego e pode ser novamente arrastada para ele. A condição de apaixonado, que é psicologicamente tão notável e é o protótipo normal das psicoses, mostra essas emanações em seu máximo, comparadas com o nível do amor a si mesmo.”
* Catexia: concentração de todas as energias mentais sobre uma representação bem precisa, um conteúdo de memória, uma sequência de pensamentos ou encadeamento de atos; catexe.


“Se podemos considerar a existência da onipotência de pensamentos entre os povos primitivos como uma prova em favor do narcisismo, somos incentivados a fazer uma comparação entre as fases do desenvolvimento da visão humana do universo e as fases do desenvolvimento libidinal do indivíduo. A fase animista corresponderia à narcisista, tanto cronologicamente quanto em seu conteúdo; a fase religiosa corresponderia à fase da escolha de objeto, cuja característica é a ligação da criança com os pais; enquanto que a fase científica encontraria uma contrapartida exata na fase em que o indivíduo alcança a maturidade, renuncia ao princípio de prazer, ajusta-se à realidade e volta-se para o mundo externo em busca do objeto de seus desejos.
Apenas em um único campo de nossa civilização foi mantida a onipotência de pensamentos e esse campo é o da arte. Somente na arte acontece ainda que um homem consumido por desejos efetue algo que se assemelhe à realização desses desejos e o que faça com um sentido lúdico produza efeitos emocionais – graças à ilusão artística – como se fosse algo real. As pessoas falam com justiça da ‘magia da arte’ e comparam os artistas aos mágicos. Mas a comparação talvez seja mais significativa do que pretende ser. Não pode haver dúvida de que a arte não começou como arte por amor à arte. Ela funcionou originalmente a serviço de impulsos que estão hoje, em sua maior parte, extintos. E entre eles podemos suspeitar da presença de muitos intuitos mágicos.”


“Os espíritos e os demônios, como demonstrei no último ensaio, são apenas projeções dos próprios impulsos emocionais do homem. Ele transforma as suas catexias emocionais em pessoas, povoa o mundo com elas e enfrenta os seus processos mentais internos novamente fora de si próprio.”


“Existe em nós uma função intelectual que exige unidade, conexão e inteligibilidade de qualquer material, seja da percepção ou do pensamento, que cai sob o seu domínio e se, em consequência de circunstâncias especiais, não pode estabelecer uma conexão verdadeira, não hesita em fabricar uma falsa. Os sistemas construídos desta maneira chegam ao nosso conhecimento não apenas através dos sonhos, mas também das fobias, do pensamento obsessivo e dos delírios. A construção de sistemas é percebida de modo mais notável nas perturbações delirantes (na paranoia), onde domina o quadro sintomático; mas sua ocorrência em outras formas de neuropsicoses não deve ser subestimada. Em todos esses casos pode-se demonstrar que uma nova arrumação do material psíquico foi feita com um novo objetivo em vista, e muitas vezes essa redisposição tem de ser radical, se é que se quer que o resultado pareça inteligível do ponto de vista do sistema. Assim, um sistema é mais bem caracterizado pelo fato de pelo menos duas razões poderem ser descobertas para cada um de seus produtos: uma razão baseada nas premissas do sistema (uma razão, que pode ser, então, delirante) e uma razão oculta, que devemos julgar como sendo a verdadeiramente operante e real.”


“‘‘Um totem’, escreve Frazer em seu primeiro ensaio sobre o assunto, ‘é uma classe de objetos materiais que um selvagem encara com supersticioso respeito, acreditando existir entre ele e todos os membros da classe uma relação íntima e inteiramente especial (…) A vinculação entre um homem e seu totem é mutuamente benéfica; o totem protege o homem e este mostra seu respeito por aquele de diversas maneiras, não o matando, se for um animal; não o cortando, nem colhendo, se for um vegetal. Distintamente de um fetiche, um totem nunca é um indivíduo isolado, mas sempre uma classe de objetos, em geral uma espécie de animais ou vegetais, mais raramente uma classe de objetos naturais inanimados, muito menos ainda uma classe de objetos artificiais.”


“As autoridades, como de costume, são mais eficientes em suas críticas das obras dos outros do que em sua própria produção.”


“Não é fácil perceber porque qualquer instinto humano profundo deva necessitar ser reforçado pela lei. Não há lei que ordene aos homens comer e beber ou os proíba de colocar as mãos no fogo. Os homens comem e bebem e mantém as mãos afastadas do fogo instintivamente por temor a penalidades naturais, não legais, que seriam acarretadas pela violência aplicada a esses instintos. A lei apenas proíbe os homens de fazer aquilo a que seus instintos os inclinam; o que a própria natureza proíbe e pune, seria supérfluo para a lei proibir e punir. Por conseguinte, podemos sempre com segurança pressupor que os crimes proibidos pela lei são crimes que muitos homens têm uma propensão natural a cometer. Se não existisse tal propensão, não haveriam tais crimes e se esses crimes não fossem cometidos, que necessidade haveria de proibi-los? Desse modo, em vez de presumir da proibição legal do incesto que existe uma aversão natural a ele, deveríamos antes pressupor haver um instinto natural em seu favor e que se a lei o reprime, como reprime outros instintos naturais, assim o faz porque os homens civilizados chegaram à conclusão de que a satisfação desses instintos naturais é prejudicial aos interesses gerais da sociedade.” (James Frazer)


“Robertson Smith mostrou-nos que a antiga refeição totêmica se repete sob a forma original de sacrifício. O significado do ato é o mesmo: santificação por meio da participação numa refeição comum. O sentimento de culpa, que só pode ser aliviado pela solidariedade de todos os participantes, persiste também. O que é novo é a divindade do clã, em cuja suposta presença o sacrifício é executado, que participa da refeição como se fosse um membro do clã e com quem aqueles que consomem se tornam identificados. Como veio o deus a colocar-se numa situação à qual era originalmente estranho?
A resposta poderia ser que, nesse meio tempo, surgiu – de alguma fonte desconhecida – o conceito de Deus assumindo o controle de toda a vida religiosa; e que, como tudo o mais que quisesse sobreviver, a refeição totêmica foi obrigada a encontrar um ponto de contato com o novo sistema. A psicanálise dos seres humanos de per si, contudo, ensina-nos com insistência muito especial que o deus de cada um deles é formado à semelhança do pai, que a relação pessoal com Deus depende da relação com o pai em carne e osso e oscila e se modifica de acordo com essa relação e que, no fundo, Deus nada mais é que um pai glorificado. Como no caso do totemismo, a psicanálise recomenda-nos ter fé nos crentes que chamam Deus de seu pai, tal como o totem era chamado de ancestral tribal. Se a psicanálise merece alguma atenção, então – sem prejuízo de quaisquer outras fontes ou significados do conceito de Deus, sobre os quais não pode lançar luz – o elemento paterno nesse conceito deve ser um elemento muito importante. Mas, nesse caso, o pai é representado duas vezes na situação do sacrifício primitivo: uma vez como Deus e outra como a vítima animal totêmica. E, mesmo pressupondo o número restrito de explicações aberto à psicanálise, tem-se de perguntar se isto é possível e que sentido pode ter.
Sabemos existir uma multiplicidade de relações entre o deus e o animal sagrado (o totem ou a vítima sacrificatória). (1) Cada deus geralmente possui um animal (e muito frequentemente diversos animais) que lhe é consagrado. (2) No caso de certos sacrifícios especialmente sagrados – os sacrifícios ‘místicos’ – a vítima era exatamente o animal consagrado ao deus (Smith). (3) O deus era frequentemente adorado sob a forma de um animal (ou, encarando o fato de outra maneira, os animais eram adorados como deuses), muito tempo após a época do totemismo. (4) Nos mitos, o deus muitas vezes se transforma em animal e, com frequência, no animal que lhe é consagrado.
Dessa maneira, parece plausível supor que o próprio deus era o animal totêmico, e que deste se desenvolveu numa fase posterior do sentimento religioso. Mas somos liberados da necessidade de novos exames pela consideração de que o totem nada mais é que um representante do pai. Assim, embora o totem possa ser a primeira forma de representante paterno, o deus será uma forma posterior, na qual o pai reconquistou sua aparência humana. Uma nova criação como esta, derivada do que constitui a raiz de toda forma de religião – a saudade do pai – poderia ocorrer se, no decurso do tempo, alguma mudança fundamental se houvesse efetuado na relação do homem com o pai e, talvez, também na sua relação com os animais.
Sinais da ocorrência de modificações dessa espécie podem ser facilmente percebidos, mesmo se deixarmos de lado o começo de um afastamento afetivo dos animais e a desagregação do totemismo devida à domesticação. Houve, no estado de coisas, um fator produzido pela eliminação do pai que estava destinado, com o decorrer do tempo, a provocar um enorme aumento na saudade que dele sentiam. Cada um dos irmãos que se tinham agrupado com o propósito de matar o pai estava inspirado pelo desejo de tornar-se semelhante a ele e dera expressão ao mesmo incorporando partes do representante paterno na refeição totêmica. Entretanto, em consequência da pressão exercida sobre cada participante pelo clã fraterno como um todo, esse desejo não pôde ser realizado. De futuro, ninguém poderia nem tentaria atingir o poder supremo do pai, ainda que isso fosse o objetivo pelo qual todos tinham-se empenhado. Assim, após um longo lapso de tempo, o azedume contra o pai, que os havia impulsionado à ação, tornou-se menor e a saudade dele aumentou, tornando-se possível surgir um ideal que corporificava o poder ilimitado do pai primevo contra quem haviam lutado, assim como a disposição de submeter-se a ele. Em consequência de mudanças culturais decisivas, a igualdade democrática original que havia predominado entre os membros do clã tornou-se insustentável e desenvolveu-se ao mesmo tempo uma inclinação, baseada na veneração sentida por determinados seres humanos, a reviver o antigo ideal através da criação de deuses. A noção de um homem que se torna deus ou de um deus que morre nos impressiona hoje como chocantemente presunçosa, mas, mesmo na antiguidade clássica, nada havia de revoltante nela. A elevação do pai que fora outrora assassinado à condição de um deus de quem o clã alegava descender constituía uma tentativa de expiação muito mais séria do que fora o antigo pacto com o totem.
Não posso sugerir em que ponto deste processo de evolução é possível encontrar lugar para as grandes deusas-mães, que podem talvez em geral ter precedido os deuses-pais. Parece certo, contudo, que a mudança na atitude para com o pai não se restringiu à esfera da religião, mas se estendeu de maneira harmônica àquele outro lado da vida humana que fora afetado pela eliminação do pai – à organização social. Com a introdução das divindades paternas, uma sociedade sem pai gradualmente transformou-se numa sociedade organizada em base patriarcal. A família constituiu uma restauração da antiga horda primeva e devolveu aos pais uma grande parte de seus antigos direitos. Mais uma vez apareceram pais, mas as conquistas sociais do clã fraterno não foram abandonadas; e a distância existente entre os novos pais de uma família e o irrefreado pai primevo da horda era suficientemente grande para garantir a continuidade do anseio religioso, a persistência de uma saudade não apaziguada do pai.
Vemos então que, na cena do sacrifício perante o deus do clã, pai é, na realidade duas vezes – como o deus e como a vítima animal totêmica. Entretanto, em nossas tentativas de compreensão dessa situação, devemos ter cuidado com as interpretações que procuram traduzi-la de maneira bidimensional, como se fosse uma alegoria, e para que, assim procedendo, não nos esquecemos de sua estratificação histórica. A dupla presença do pai corresponde aos dois significados cronologicamente sucessivos da cena. A atitude ambivalente para com o pai encontrou nela uma expressão plástica e assim também a vitória das emoções afetuosas do filho sobre as hostis. A cena da sujeição do pai, de sua maior derrota, tornou-se o estofo da representação de seu triunfo supremo. A importância que em toda parte, sem exceção, é atribuída ao sacrifício reside no fato de ele oferecer satisfações ao pai pelo ultraje que lhe foi infligido no mesmo ato em que aquele feito é comemorado.
À medida que o tempo foi passando, o animal perdeu seu caráter sagrado e o sacrifício, sua vinculação com o festim totêmico; tornou-se uma simples oferenda à divindade, um ato de renúncia em favor do deus. O próprio Deus foi sendo exaltado tão acima da humanidade que as pessoas só podiam aproximar-se dele através de um intermediário – o sacerdote. Ao mesmo tempo, os reis divinos fizeram seu aparecimento na estrutura social e introduziram o sistema patriarcal no Estado. Devemos reconhecer que a vingança tomada pelo pai deposto e restaurado foi rude: o domínio da autoridade chegou ao seu clímax. Os filhos subjugados utilizaram-se da nova situação para aliviar-se ainda mais de seu sentimento de culpa. Não eram mais, de maneira alguma, responsáveis pelo sacrifício, tal como agora se fazia. Era o próprio Deus que o exigia e regulamentava. Esta é a fase em que encontramos mitos apresentando o próprio deus matando o animal que lhe é consagrado e que, na realidade, é ele próprio. Temos aqui a negação mais extrema do grande crime que constituiu o começo da sociedade e do sentimento de culpa. Mas há, nesta última representação do sacrifício, um significado que é inequívoco. Ele expressa a satisfação pelo primitivo representante paterno ter sido abandonado em favor do conceito superior de Deus. Neste ponto, a interpretação psicanalítica da cena coincide aproximadamente com a tradução alegórica e superficial dela, que representa o deus a vencer o lado animal de sua própria natureza.
Não obstante, seria um equívoco supor que os impulsos hostis inerentes ao complexo-pai foram completamente silenciados durante esse período de autoridade paterna revivida. Pelo contrário, as primeiras fases da dominância dos dois novos representantes paternos – deuses e reis – apresentam os mais vigorosos sinais da ambivalência que continua sendo uma das características da religião.
Em sua grande obra, The Golden Bough, Frazer apresenta o ponto de vista de que os primeiros reis das tribos latinas foram estrangeiros que desempenhavam o papel de um deus e eram solenemente executados num determinado festival. O sacrifício anual (ou, como variante, o auto-sacrifício) de um deus parece ter sido um elemento essencial das religiões semíticas. Os cerimonias de sacrifício humano, realizados nas mais diferentes partes do globo habitado, deixam pouca dúvida de que as vítimas encontram seu fim como representantes da divindade e esses ritos sacrificatórios podem ser remontados a épocas antigas, com uma efígie ou boneco inanimado tomando o lugar do ser humano vivo. O sacrifício teantrópico do deus, no qual, infelizmente, me é impossível aqui deter-me de modo tão completo quanto no sacrifício animal, lança uma luz retrospectiva sabre o significado das formas mais antigas de sacrifício. Ele reconhece, com uma franqueza que dificilmente pode ser excedida, o fato de que o objeto do ato de sacrifício sempre foi o mesmo, a saber, aquilo que é hoje adorado como Deus, ou seja, o pai. O problema da relação entre o sacrifício animal e o sacrifício humano admite assim uma solução simples. O sacrifício animal original já constituía um substituto de um sacrifício humano – a morte cerimonial do pai; assim sendo, quando o representante paterno mais uma vez reassumiu sua figura humana, o sacrifício animal também podia ser retransformado num sacrifício humano.
A lembrança do primeiro grande ato de sacrifício mostrava-se assim indestrutível, não obstante todos os esforços para esquecê-lo; e, no próprio ponto em que os homens procuravam colocar-se a maior distância dos motivos que os levaram a ele, sua reprodução indeformada surgiu na forma do sacrifício do deus. Não é necessário estender-se aqui sobre os desenvolvimentos do pensamento religioso que, sob a forma de racionalizações, tornaram possível esta recorrência. Robertson Smith, que nada sabia de nossa interpretação que atribui a origem do sacrifício a esse grande acontecimento da pré-história humana, declara que as cerimônias dos festivais em que os antigos semitas celebravam a morte de uma divindade ‘eram correntemente interpretadas como a comemoração de uma tragédia mítica’. ‘O luto’, declara, ‘não é uma expressão espontânea de pesar pela tragédia divina, mas obrigatória e forçada pelo temor da ira sobrenatural. E um dos principais objetivos dos enlutados é rejeitar a responsabilidade pela morte do deus – ponto que já foi examinado em conexão com os sacrifícios teantrópicos, tais como a “morte do boi em Atenas”.’ Parece mais provável que essas ‘interpretações correntes’ fossem corretas e que os sentimentos dos celebrantes fossem integralmente explicados pela situação subjacente.
Vamos presumir ser um fato, então, que no decurso do desenvolvimento posterior das religiões, os dois fatores propulsores, o sentimento de culpa do filho e sua rebeldia, nunca se tenham extinguido. Todas as tentativas feitas para solucionar os problemas religiosos, todos os tipos de reconciliação efetuados entre essas duas forças mentais opostas mais cedo ou mais tarde ruíam sob a influência combinada, sem dúvida, dos fatos históricos, das mudanças culturais e das modificações psíquicas internas.
Os esforços do filho para colocar-se no lugar do deus-pai tornaram-se ainda mais óbvios. A introdução da agricultura aumentou sua família patriarcal. Ele aventurou-se a novas demonstrações de sua libido incestuosa, que encontraram satisfação simbólica no cultivo da Terra-Mãe. Surgiram figuras divinas como Átis, Adônis e Tamuz, espíritos da vegetação e, ao mesmo tempo, divindades cheias de juventude, a desfrutar dos favores das deusas-mães e a cometer incesto com a mãe, em desafio ao pai. Mas o sentimento de culpa, que não fora aliviado por essas criações, encontrou expressão em mitos que conferiam apenas vidas breves a esses favoritos juvenis das deusas-mães e decretavam sua punição pela emasculação ou pela ira do pai manifestada sob a forma de um animal. Adônis foi morto por um javali, o animal sagrado de Afrodite; Átis, amado de Cibele, pereceu por castração. O luto por esses deuses e o júbilo por sua ressurreição foram transferidos para o ritual de outra divindade-filho que estava destinada a alcançar um sucesso permanente.
Quando o cristianismo pela primeira vez penetrou no mundo antigo, defrontou-se com a competição da religião de Mitras e, durante algum tempo, houve dúvida em relação a qual das duas divindades alcançaria a vitória. Não obstante o halo de luz que rodeia a sua forma, o jovem deus persa continua a ser obscuro para nós. Podemos talvez deduzir das esculturas de Mitras matando um touro que ele representava um filho sozinho no sacrifício do pai, redimindo assim os irmãos do ônus de cumplicidade no ato. Havia um método alternativo de mitigar a culpa e ele foi adotado pela primeira vez por Cristo. Sacrificou a própria vida e assim redimiu do pecado original o conjunto de irmãos. A doutrina do pecado original era de origem órfica. Constituía parte dos mistérios e deles propagou-se para as escolas de filosofia da antiga Grécia (Reinach). A humanidade, dizia-se, descendia dos Titãs, que haviam matado o jovem Dioniso-Zagreus e o despedaçado. A carga desse crime pesava sobre eles. Um fragmento de Anaximandro conta como a unidade do mundo foi rompida por um pecado primevo e que tudo dele surgido devia sofrer o castigo. A malta tumultuosa, a matança e o despedaçamento pelos Titãs fazem-nos recordar com bastante clareza o sacrifício totêmico descrito por São Nilo – bem como, a propósito, também muitos outros mitos antigos, inclusive, por exemplo, o da morte do próprio Orfeu. Não obstante, existe uma diferença perturbadora no fato de o assassinato ter sido cometido contra um deus jovem.
Não pode haver dúvida de que no mito cristão o pecado original foi um pecado cometido contra o Deus-Pai. Se, entretanto, Cristo redimiu a humanidade do peso do pecado original pelo sacrifício da própria vida, somos levados a concluir que o pecado foi um homicídio. A lei de talião, que se acha tão profundamente enraizada nos sentimentos humanos, estabelece que um homicídio só pode ser expiado pelo sacrifício de outra vida: o auto-sacrifício aponta para a culpa sanguínea. E se este sacrifício de uma vida ocasionou uma expiação para com o Deus-Pai, o crime a ser expiado só pode ter sido o homicídio do pai.
Na doutrina cristã, assim, os homens estavam reconhecendo da maneira mais indisfarçada o ato primevo culpado, uma vez que encontraram a mais plena expiação para ele no sacrifício desse filho único. A expiação para o pai foi ainda mais completa visto que o sacrifício se fez acompanhar de uma renúncia total às mulheres, por causa de quem a rebelião contra aquele fora iniciada. Mas, neste ponto, a inexorável lei psicológica da ambivalência apareceu. O próprio ato pelo qual o filho oferecia a maior expiação possível ao pai conduzia-o, ao mesmo tempo, à realização de seus desejos contra o pai. Ele próprio tornava-se Deus, ao lado, ou, mais corretamente, em lugar do pai. Uma religião filial deslocava a religião paterna. Como sinal dessa substituição, a antiga refeição totêmica era revivida sob a forma da comunhão, em que a associação de irmãos consumia a carne e o sangue do filho – não mais do pai – obtinha santidade por esse e identificava-se com ele. Assim podemos acompanhar, através das idades, a identidade da refeição totêmica com o sacrifício animal, com o sacrifício humano teantrópico e com a eucaristia cristã, podendo identificar em todos esses rituais o efeito do crime pelo qual os homens se encontravam tão profundamente abatidos, mas do qual, não obstante, devem sentir-se tão orgulhosos. A comunhão cristã, no entanto, constitui essencialmente uma nova eliminação do pai, uma repetição do ato culposo. Podemos perceber a inteira justiça da declaração de Frazer de que ‘a comunhão cristã absorveu um sacramento que é sem dúvida muito mais antigo que o cristianismo’.”