segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Ficções, de Jorge Luis Borges

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-3591-123-7

Tradução: Davi Arrigucci Jr.

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 174

Sinopse: Ficções – publicado originalmente em 1944 pelas Ediciones Sur – é a obra que trouxe o reconhecimento universal para Jorge Luis Borges, graças, entre outros motivos, ao caráter fora do comum de seus temas, abertos para o fantástico, e à inesperada dimensão filosófica do tratamento.

Ficções reúne os contos publicados por Borges em 1941 sob o título de O jardim de veredas que se bifurcam (com exceção de “A aproximação a Almotásim”, incorporado a outra obra) e outras dez narrativas com o subtítulo de Artifícios. Nesses textos, o leitor se defronta com um narrador inquisitivo que expõe, com elegância e economia de meios, de forma paradoxal e lapidar, suas conjecturas e perplexidades sobre o universo, retomando motivos recorrentes em seus poemas e ensaios desde o início de sua carreira: o tempo, a eternidade, o infinito. Os enredos são como múltiplos labirintos e se desdobram num jogo infindável de espelhos, especulações e hipóteses, às vezes com a perícia de intrigas policiais e o gosto da aventura, para quase sempre desembocar na perplexidade metafísica. Chamam a atenção a frase enxuta, o poder de síntese e o rigor da construção, que tem algo da poesia e outro tanto da prosa filosófica, sem nunca perder o humor desconcertante.

Em Ficções estão alguns de seus textos mais famosos, como “Funes, o Memorioso”, cujo protagonista tinha “mais lembranças do que terão tido todos os homens desde que o mundo é mundo”; “A biblioteca de Babel”, em que o universo é equiparado a uma biblioteca eterna, infinita secreta e inútil; “Pierre Menard, autor do Quixote”, cuja “admirável ambição era produzir páginas que coincidissem palavra por palavra e linha por linha com as de Miguel de Cervantes”; e “As ruínas circulares”, em que o protagonista quer sonhar um homem “com integridade minuciosa e impô-lo à realidade e no final compreende que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando”.


 

“Bioy Casares tinha jantado comigo naquela noite e nos reteve uma vasta polêmica sobre a elaboração de um romance em primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos, incorrendo em diversas contradições, capazes de permitir a uns poucos leitores — a muito poucos leitores — adivinhar uma realidade atroz ou banal. Do fundo remoto do corredor, o espelho nos espreitava. Descobrimos (noite alta essa descoberta se torna inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Bioy Casares lembrou então que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens.”

 

 

“Aqui dou fim à parte pessoal de minha narração. O restante está na memória (quando não na esperança e no temor) de todos os meus leitores.”

 

 

““Meu propósito é meramente assombroso”, escreveu-me de Bayonne, no dia 30 de setembro de 1934. “O termo final de uma demonstração teológica ou metafísica — o mundo exterior, Deus, a casualidade, as formas universais — não é menos anterior e comum que meu divulgado romance. A única diferença é que os filósofos publicam em agradáveis volumes as etapas intermediárias de seu trabalho e eu resolvi perdê-las.” Com efeito, não resta um só rascunho que testemunhe esse esforço de anos.”

 

 

“‘Minha empresa não é difícil, essencialmente’, leio noutro trecho da carta. “Bastaria que eu fosse imortal para levá-la a cabo’.”

 

 

“Não há exercício intelectual que não seja afinal inútil. Uma doutrina filosófica é no início uma descrição verossímil do universo; passam os anos e é um mero capítulo — quando não um parágrafo ou um nome — da história da filosofia. Na literatura, essa caducidade final é mesmo mais notória. “O Quixote”, disse-me Menard, “foi antes de tudo um livro agradável; agora é uma ocasião para brindes patrióticos, soberba gramatical, obscenas edições de luxo. A glória é uma incompreensão e, quem sabe, a pior delas”.”

 

 

“Às vezes, inquietava-o uma impressão de que tudo aquilo já acontecera... Em geral, seus dias eram felizes; ao fechar os olhos, pensava: “Agora estarei com meu filho”. Ou, mais raramente: “O filho que gerei me espera e não existirá se eu não for”.”

 

 

“Conheci o que os gregos ignoram: a incerteza.”

 

 

“Volto a dizer: basta que um livro seja possível para que exista. Somente fica excluído o impossível.”

 

 

“Depois refleti que todas as coisas sempre acontecem precisamente a alguém, precisamente agora. Séculos de séculos e só no presente ocorrem os fatos; inumeráveis homens no ar, na terra e no mar, e tudo o que realmente acontece acontece a mim...”

 

 

“Disse a mim mesmo que meu duelo já estava contratado e que eu ganhara o primeiro assalto, ao enganar, ainda que por quarenta minutos, ainda que por um favor do acaso, o ataque de meu adversário. Concluí que essa vitória mínima prefigurava a vitória total. Concluí que não era mínima, já que, sem essa diferença preciosa que o horário dos trens me concedia, eu estaria na prisão, ou morto. Concluí (não menos sofisticamente) que minha felicidade covarde provava que eu era um homem capaz de levar a cabo a aventura. Dessa fraqueza tirei forças que não me abandonaram. Prevejo que o homem se resignará cada dia mais a empresas mais atrozes; logo não haverá senão guerreiros e bandidos; dou-lhes este conselho: “O executor de uma empresa atroz deve imaginar que já a cumpriu, deve se impor um futuro que seja irrevogável como o passado”.”

 

 

“A verdade é que vivemos adiando tudo o que é adiável.”

 

 

“Dormir é distrair-se do mundo.”

 

 

“Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair.”

 

 

“Então compreendi que a covardia de Moon era irremediável. Pedi-lhe sem jeito que se cuidasse e me despedi. Aquele homem com medo me envergonhava, como se fosse eu o covarde, não Vincent Moon. O que um homem faz é como se todos os homens o fizessem. Por isso não é injusto que uma desobediência num jardim contamine a todos; por isso não é injusto que a crucificação de um único judeu baste para salvar todo o gênero humano. Talvez Schopenhauer tenha razão: eu sou os outros, qualquer homem é todos os homens, Shakespeare é de algum modo o miserável John Vincent Moon.”

 

 

“No dia 4, às 11 horas e 3 minutos a.m., um redator da Yiddische Zeitung chamou-o pelo telefone; o doutor Yarmolinsky não respondeu; encontraram-no em seu quarto, com o rosto já levemente escuro, quase nu sob uma grande capa anacrônica. Jazia não longe da porta que dava para o corredor; uma punhalada profunda lhe perfurara o peito. Um par de horas depois, no mesmo quarto, no meio de jornalistas, fotógrafos e gendarmes, o comissário Treviranus e Lönnrot debatiam com serenidade o problema.

— Não se deve procurar chifre em cabeça de cavalo — dizia Treviranus, brandindo um imperioso charuto. — Todos nós sabemos que o Tetrarca da Galiléia possui as melhores safiras do mundo. Alguém, para roubá-las, terá penetrado aqui por engano. Yarmolinsky levantou-se; o ladrão teve de matá-lo. Que lhe parece?

— Possível, mas não interessante — respondeu Lönnrot. — O senhor replicará que a realidade não tem a menor obrigação de ser interessante. Eu lhe replicarei que a realidade pode prescindir dessa obrigação, mas não as hipóteses. Na que o senhor improvisou, o acaso intervém fartamente. Eis aqui um rabino morto; eu preferiria uma explicação puramente rabínica, não os imaginários percalços de um imaginário ladrão.

Treviranus retrucou com mau humor:

— As explicações rabínicas não me interessam; o que me interessa é a captura do homem que apunhalou este desconhecido.

— Não tão desconhecido — corrigiu Lönnrot. — Aqui estão suas obras completas. — Indicou no armário uma fila de altos volumes: uma Vindicação da cabala; um Exame da filosofia de Robert Flood; uma tradução literal da Sepher Yezirah; uma Biografia de Baal Shem; uma História da seita dos hassidim; uma monografia (em alemão) sobre o Tetragrámaton; outra, sobre a nomenclatura divina do Pentateuco. O comissário olhou para eles com temor, quase com repulsa. Logo começou a rir.

— Sou um pobre cristão — retrucou. — Leve com você, se quiser, todos esses calhamaços; não tenho tempo para perder com superstições judaicas.

— Pode ser que este crime pertença à história das superstições judaicas — murmurou Lönnrot.

— Como o cristianismo — atreveu-se a completar o redator da Yiddische Zeitung. Era míope, ateu e muito tímido.

Ninguém lhe respondeu.”

 

 

“Não há homem que, fora de sua especialidade, não seja crédulo.”

 

 

“Logo refletiu que a realidade não costuma coincidir com as previsões; com lógica perversa inferiu que prever um detalhe circunstancial é impedir que este aconteça.”

 

 

“Aqueles que percorrerem este artigo, deverão levar em conta igualmente que ele registra apenas as conclusões de Runeberg, não sua dialética e suas provas. Alguém poderá observar que a conclusão precedeu, sem dúvida, as “provas”. Quem se resigna a procurar provas de algo em que não crê ou cuja prédica não lhe importa?”

domingo, 19 de setembro de 2021

História da vida privada (I): do Império Romano ao ano mil (Parte IV) — Philippe Ariès e Georges Duby (Org.)

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-1378-1

Tradução: Hildegard Fiest

Organização: Paul Veiny

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 648

Sinopse: Ver Parte I



4. Alta idade média ocidentalMichel Rouche

 

A IMPOSSÍVEL DISTINÇÃO DO PÚBLICO E DO PRIVADO PELOS GERMANOS

Nessas tribos em que o poder, ao mesmo tempo de origem mágica, divina e guerreira, é exercido pelo rei, chefe de guerra eleito, e pelos guerreiros livres, o instável amálgama de um heer-könig condenado a vencer para manter sua autoridade e a de guerreiros fiéis se seu líder é o mais forte constitui o que se deve chamar de “Estado” de um tipo novo, espécie de comunidade de pessoas militares sem domicílio fixo nem duração garantida. O cimento dessa organização não é, como em Roma, a ideia de salvação pública e de bem comum, porém, antes, a reunião de interesses privados numa associação provisória automaticamente reconstruída pela vitória.”

 

 

CORPO VESTIDO, CORPO NU,

CORPO DOMINADO, CORPO ADORADO

Constatamos inicialmente que o uso de roupas costuradas é geral, mas que elas continuam muito amplas, presas por fíbulas e cintos. Não há diferença nenhuma entre os galo-romanos e os francos. Todos usam uma camisa de linho até os joelhos e uma túnica de mangas curtas ou compridas (é a atual biaude de Auvergne), calças com faixas ajustadas às pernas pouco abaixo dos joelhos e botinas de couro ou tamancos, segundo o nível social. As mulheres usam sobre a túnica um vestido comprido até os calcanhares, aberto na frente ou erguido por uma pequena corrente para que possam andar. Quando faz frio, acrescenta-se um colete de couro ou de pele e principalmente um manto quadrado de lã — o sagum —, jogado nas costas e puxado para a frente e preso por uma fíbula que une as duas pontas sobre o ombro direito. Tudo que indica a diferença social é a qualidade do tecido, o uso das armas e das joias. Nudez só existe em dois casos: durante o banho e na hora de dormir.

Os banhos romanos mantiveram-se durante algum tempo até nos mosteiros, reservando-se, porém, cada vez mais aos enfermos. Restam os rios e as piscinas das estações termais, como a de Aix, onde Carlos Magno adorava nadar com seus convidados, muitas vezes mais de cem pessoas. Os príncipes carolíngios trocavam de roupa e tomavam banho no sábado. Cada sexo tinha seus rituais e seus instrumentos de toalete presos ao cinto: pente, fórfice e pinças de depilação.

Os francos, assim como seus reis, usam os cabelos compridos — os romanos os cortam à altura da nuca —, deixando livres a nuca e a testa, e depilam o rosto. Os escravos e os eclesiásticos, porém, devem raspar a cabeça, padres e monges mantendo apenas uma coroa de cabelos ou, como os irlandeses, uma mecha que vai de uma orelha à outra. O simbolismo é evidente: os cabelos longos significam força, virilidade e liberdade. Se os escravos veem sua condição assim indicada, os clérigos demonstram com isso que pertencem a Cristo. As cabeleiras femininas permaneciam intactas e deviam ser elegantemente presas com longos alfinetes. Tosar um rapaz ou uma moça livre custava 45 soldos conforme a Lei Sálica, 42 para a jovem segundo a lei dos burgúndios. Ela estabelecia que esse crime não seria punido se tivesse sido cometido fora de casa, em situação de batalha da qual a mulher teria participado.

A lei dos franco-sálios era terrível quanto aos delitos que envolviam toda a concepção pagã do corpo: se um homem livre tocava a mão de uma mulher, devia pagar quinze soldos; o braço até o cotovelo, trinta; acima do cotovelo, 35; e, se chegasse ao seio, 45 soldos! O corpo feminino, portanto, constitui um tabu. Por quê? Os textos de alguns penitenciais revelam que durante cerimônias pagãs a moça ou a mulher se desnudava completamente a fim de provocar a fecundidade dos campos, a chuva etc. Tocar uma mulher significava, portanto, atentar contra o processo da vida. O homem e a mulher só podiam ficar nus num único lugar: aquele onde procriavam, o leito. Então o nu era sagrado.

Ora, o nu cristão tinha um significado muito diferente. Até o começo do século VIII, homens e mulheres eram batizados nus na piscina octogonal contígua a toda catedral, na noite do sábado santo. Nus como Adão e Eva na Criação, saíam da água, mortos para o pecado e ressuscitados para a vida eterna. A nudez constituía então uma afirmação de sua condição de criatura boa mas dependente de Deus, antes do pecado ou sem este. O nu cristão representa um ser criado; o nu pagão, um ser procriador. O desaparecimento do batismo por imersão na época carolíngia suscitou a retomada, podemos dizer, do simbolismo pagão e deu à nudez um significado sexual e genital que ela não tinha. Já no século VI foi preciso desaparecer com os crucifixos em que Cristo figurava nu como todos os escravos condenados ao mesmo suplício. Um padre de Narbonne um dia teve uma visão desse Cristo que lhe pediu que o vestisse. De fato, era a época em que, em Bizâncio, se difundia o Crucificado vestido numa longa túnica, o colobium. Obviamente a sensibilidade da época começava a recusar esse espetáculo que parecia indecente e até perigoso, pois Cristo corria o risco de ser adorado pelas mulheres como um deus da fertilidade, à maneira de Príapo ou, mais tarde entre os vikings, de Freyr, cujas representações em postura itifálica não deixavam dúvida sobre sua função. Assim, o corpo vestido, banhado, penteado, enfeitado acabava sendo adorado. Para que não se tornasse idolatrado era preciso vesti-lo. São Bento tanto compreendera isso que em sua regra recomendou aos monges que dormissem vestidos. “Cada qual terá um leito para dormir” e “se possível for todos dormirão num mesmo local”, “para que […], ao soar o sinal, se levantem sem demora e se apressem em consagrar-se à obra de Deus.” A noite do monge também deve ser consagrada, mas, nesse caso, ao amor de Deus pela oração.

Como sempre, essa adoração pagã do corpo inevitavelmente comporta seu contrário: o ódio e o medo do corpo. De fato, a Lei Sálica é obrigada a castigar o estupro e a castração. Mais adiante veremos o que acontece com o estupro, mas é curioso observar que nem a lei romana nem a dos burgúndios punem esse ato, enquanto Carlos Magno foi obrigado a acrescentar um artigo suplementar contra os que praticavam a castração, obrigando-os a pagar uma multa de cem a duzentos soldos, que subia para seiscentos se o castrado fosse um antrustião. Assim, o costume não havia desaparecido no século VIII, e no inconsciente coletivo dos francos a castração equivalia à morte, mesmo prevendo-se nove soldos para o médico que cuidasse da vítima. Os escravos ladrões podiam ser castrados, mas em geral eram açoitados, sendo às vezes torturados nos casos litigiosos. A lei romana previa a tortura para todos os criminosos condenados. Os relatos de Gregório de Tours revelam o extraordinário grau de sadismo que se manifestava no carrasco e na multidão. Abriam-se as chagas dos supliciados que acabavam de cicatrizar, chamava-se um médico para tratar do infeliz a fim de “poder torturá-lo num suplício ainda mais longo”. Gregório conseguiu livrar o diácono Ricou da pena de morte, mas não da tortura:

Nenhum objeto, nenhuma peça de metal pôde suportar tantos golpes como esse miserável. Com efeito, desde a terceira hora do dia [nove da manhã] ele ficou pendurado numa árvore, com as mãos atadas às costas, e até a nona hora, quando o estenderam sobre um cavalete, foi submetido a golpes de bastão, chicote e correias duplas, desferidos não só por uma ou duas pessoas, e sim por todos que puderam se aproximar de seus miseráveis membros.

Tais práticas continuaram na época carolíngia enquanto o sistema de ordálio, de origem pagã, parece mais usual que antes. A provação mais conhecida consistia em fazer o acusado caminhar descalço sobre nove relhas de arado incandescentes. A divindade protegeria o inocente de qualquer queimadura e este só tinha de apresentar as plantas dos pés róseos como ameixas para ser liberado. Assim, Deus passava através dos corpos puros, mas recusava qualquer contato com o corpo maculado pelo homicídio. E essa concepção pagã perdurou no cristianismo até o século XII, apesar de alguns bispos mas graças ao arcebispo Hincmar de Reims.”

 

 

“Os numerosos processos de pessoas que receberam um milagre, redigidos às centenas tanto na época merovíngia como na carolíngia por monges médicos que sabiam expressar um diagnóstico à maneira de Hipócrates, permitem-nos delinear um quadro da saúde da população bastante revelador dos sofrimentos do período. Em qualquer região da Gália onde se encontram os grandes centros de peregrinação, é impressionante constatar, entre as curas, 41% de doentes afetados por paralisia, fraqueza física ou atrofia, 19% de cegos, 17% de enfermos de males diversos, 12,5% de loucos e possuídos, e, enfim, 8,5% de mudos, surdos-mudos e surdos. A importância das paralisias se explica pelas carências alimentares já assinaladas, notadamente as avitaminoses que provocam polineurites, tracomas ou glaucomas, e muitas vezes o raquitismo entre as crianças, numerosas no meio dos infelizes que frequentam os adros dos santuários. A falta de higiene devida ao abandono dos aquedutos, ao consumo de água parada, à multiplicação das zonas pantanosas quando se abandonam as terras cultivadas provoca inumeráveis poliomielites, cujos efeitos deformadores e paralisantes conhecemos, o paludismo ou febre quarta e todas as febres paratífícas. Um número considerável de crianças aleijadas por acidentes perinatais ou pós-natais permite perceber e compreender o quanto deviam ser usuais a mortalidade infantil e a das parturientes. Os casais e as mulheres que vêm implorar o fim de sua esterilidade ou o final feliz de um parto mostram como a procriação chega às raias da obsessão. Isso nos leva às doenças psicossomáticas e mentais. Muitas neuroses explicam algumas paralisias, como as mãos fechadas a ponto de as unhas penetrarem na carne das palmas, e numerosas deficiências sensoriais. Mas a isso se somavam neuroses histéricas com desdobramento da personalidade, estados maníacos acompanhados de logorreias muitas vezes de origem alcoólica. Os monges médicos descrevem bastante bem as manias agudas ou depressivas ligadas à epilepsia e que colocavam, para os religiosos, o problema das possessões diabólicas. Nesses casos, acreditando firmemente em tais fenômenos, os autores dos processos de comprovação de milagres consideram os possuídos como doentes infectados mental e fisicamente por Satanás. Ressaltam o fato de que a expulsão do demônio se acompanha de emissões de humores viciados, sanguinolentos ou purulentos, às quais se seguem exalações pestilentas. Assim, todos esses corpos enfermos eram corroídos pelo sofrimento e dominava-os uma culpa surda, preço inevitável das idas e vindas entre a adoração e a execração da carne. Pelo lugar concedido às vestes e aos cabelos, pelo tabu relativo à nudez, pelo gosto mórbido da castração e da tortura, pelas doenças orgânicas e pelos sintomas maníaco-depressivos, o estudo do corpo e das sensações que provoca revela, pois, que essa humanidade superestimava os valores de força, procriação e saúde física e moral, provavelmente porque lhe eram indispensáveis num mundo instável, ameaçador e incompreensível.”

 

 

“Golpes e feridas levam à morte. Nessas últimas etapas que conduzem ao assassinato, devemos primeiro nos convencer de que tais atos são proporcionais à população da época e, portanto, bem mais comuns que hoje em dia. Haja vista a cansada indiferença de um Gregório de Tours em seus relatos, os protestos horrorizados de Teodulfo, bispo de Orléans, e de Hincmar, arcebispo de Reims, em cujas poesias e sermões percebemos como a violência é cotidiana. Que os leigos se matem ainda passa; mas o que dizer dos clérigos revoltados contra seu bispo, o que pensar das freiras do mosteiro de Santa Cruz de Poitiers que maltratam sua abadessa e seu bispo, perturbam um concílio a ponto de dissolvê-lo, reúnem “um bando de assassinos, feiticeiros e adúlteras” e assaltam o próprio mosteiro? Pierre Riché cita, no século IX, o caso de um bispo de Mans que, descontente com seus clérigos, mandava castrá-los. Carlos Magno precisou interferir e depor esse louco furioso. Mas nos enganaríamos se atribuíssemos todos esses atos a um desvio mental. São práticas agressivas habituais, como o assassinato do arcebispo Foulque de Reims, no começo do século X, por instigação do conde de Flandres. Os velhos sábios proprietários da Lei Sálica desfiam uma verdadeira litania dos golpes e feridas indenizados por uma multa, o wergeld, ou ouro do homem. A expressão é bastante significativa: só o ouro consegue impedir que corra sangue. Por isso cada caso está previsto, do mais perigoso — aquele em que o assassino tenta atingir o outro com uma flecha envenenada — até o golpe suficiente para arrancar sangue. Três murros custam nove soldos de multa; uma mão, um pé, uma orelha ou um nariz decepados, bem como um olho vazado, cem soldos; se a mão ou o polegar não forem totalmente arrancados, a soma será inferior. A fastidiosa aritmética se complica, pois um indicador cortado — dedo que serve para esticar o arco — vale 35 soldos, enquanto o mindinho custa somente quinze. Pior ainda, alguns chegam ao ponto de arrancar a língua do adversário, “de tal modo que ele não possa falar”: cem soldos de multa. É fácil perceber a causa de tamanha violência: vingança! Pois para que se dar ao trabalho de realizar uma “operação cirúrgica” tão difícil, entre os urros do infeliz e com a ajuda de amigos que o seguram, senão por um desejo profundo de anular a parte do corpo que prejudicou o agressor? Apenas esse desejo explica tal atitude, já que é mais fácil matar sozinho outro homem — o que custa o mesmo preço, exceto no caso de antrustiões e de convivas do rei. Cada assassinato é codificado segundo a condição social do morto, sendo as multas pagas pelo criminoso à família da vítima rigorosamente iguais tanto para um franco como para um romano. Tudo que conta é sua posição na hierarquia social, homem do rei ou simples homem livre. Pela terceira vez deparamos com essa curiosa prática franca: a morte para o ladrão, a multa para o assassino. Ela ainda é mais surpreendente quando sabemos que entre os romanos e os burgúndios todo assassinato é passível da pena de morte. Apenas o homicídio em legítima defesa acarreta, entre os burgúndios, o pagamento da metade da indenização à família da vítima, variando conforme sua condição: nobre, livre ou de nível social inferior. Devemos levar mais longe nossa explicação sobre a vingança, “essa vingança de um parente a que chamamos faida”, como diz Réginon de Prüm.

Cometido um assassinato, a linhagem da vítima tinha o imperioso dever religioso de vingar essa morte, fosse no culpado, fosse num membro de sua parentela. E esta, por sua vez, devia fazer a mesma coisa. Toda a educação para a agressividade culminava nessas intermináveis vinganças privadas que às vezes se prolongavam durante séculos e que conhecemos desde Gregório de Tours, no século VI, até Raoul Glaber, no XI. De fato era absolutamente vergonhoso não vingar a família. Sabendo da própria boca do assassino que seus pais foram degolados, o jovem Sicário, apesar de romano, declarou a si mesmo: “Se não vingo a morte de meus pais, não mais mereço o nome de homem, porém o de fraca mulher”. E de imediato corta com uma serra a cabeça do outro adormecido. Depois do assassinato de Chilperico, o rei Gontran exclama: “Não devemos nos considerar homens se não somos capazes de vingar tal morte neste ano!”. Ainda uma vez, o homicídio equivale a virilidade. Ninguém reprova o ato de matar. Mais, este se torna hábito. “Se alguém encontrar numa encruzilhada um homem que seus inimigos deixaram sem pés nem mãos […] e o liquidar, será punido em cem soldos.” Assim também, “se alguém tirar a cabeça de um homem que seus inimigos espetaram numa estaca sem a concordância de outro […] será punido em quinze soldos”. Realmente eram muito graves esses atos, incompreensíveis para nós hoje em dia. Em ambos os casos a vítima fora assim exposta em público num lugar sagrado — encruzilhada ou estaca de cerca — para significar a execução religiosa de uma vingança privada. A interferência de um terceiro desencadeava outra série de vinganças. Três parentelas passavam então a envolver-se na mesma faida! Esses casos eram tão complicados que a rainha Brunehaut só encontrou um jeito de resolvê-los: mandar seus sectários massacrarem a machadadas os membros de duas famílias envolvidas numa faida e previamente embriagados por ela!

No entanto havia, como ressalta Sylvie Desmet, um meio muito simples de interromper a cadeia de vinganças: a indenização, o wergeld. Pois cada ferimento, cada pessoa era literalmente “etiquetada” com um valor bem preciso em soldos de ouro; bastava a parentela exigir o preço do homem, ou o ouro do homem, e a do assassino aceitar pagá-lo para terminar a vingança privada. Numa sociedade em que a vida humana não conta, em que só importa o dano sofrido, tal solução evidentemente era sedutora, pois, tendo em vista as enormes quantias em jogo, seguia-se um enriquecimento imediato. Contudo, muitas vezes a capacidade era varrida pelo ódio, pelo medo de ser tido na conta de covarde ou de mulher. Ainda aí a sociedade era ameaçada em seu equilíbrio se um homem não se comportava como homem. Também, com muita frequência, não se utilizava a indenização, e a vingança prosseguia cada vez mais bela.

Ainda mais: constituía uma obrigação. Lembremo-nos daqueles banquetes nos quais as pessoas se associavam, os conjurados prestavam juramento de matar este ou aquele ou de defender seus companheiros em qualquer circunstância. Os redatores que no final do século VIII acrescentaram um capítulo à Lei Sálica sabiam disso. Sentiram a necessidade de esclarecer “que quando a lei foi escrita os francos não eram cristãos. Por causa disso prestam juramento com a mão direita e sobre as armas”. Aceitaram, mais tarde, a maneira cristã de jurar. Mas o velho comportamento desencadeado sob o signo da morte ameaçadora não podia desaparecer rapidamente. Sempre era possível o reflexo de desembainhar a espada. Os burgúndios puniam tal gesto com multa, e no entanto a violência entre eles parecia menor, pois suas leis se referiam sobretudo a questões de dentes quebrados a murros. A mão e a arma formavam, pois, uma coisa só; nada refreava o ato instintivo de sangrar o outro. O reflexo e a vontade são uma só e mesma coisa, porque, principalmente entre os francos — mas isso se difundiu nas outras populações —, a palavra e a ação constituem também uma coisa única. Por quê? O estudo das injúrias nos provará. A injúria torna a violência obrigatória.

Pode parecer irrisório e lastimável o fato de um legislador se rebaixar ao nível de taxar os insultos que todos se lançavam. Mas tratava-se da honra de cada um, ofensor e ofendido. Não responder significava aceitar a autenticidade do qualificativo infamante. Lançar uma acusação obscena era o único meio de um fraco aviltar e rebaixar um poderoso. Tudo isso procedia de uma crença íntima na eficácia da palavra. Os romanos limitavam-se a punir a ofensa proferida em público. Para os germanos, o insulto sempre é destrutivo porque se volta para as virtudes privadas que o ideal social e a moral paga preconizam. O cúmulo da desonra é o qualificativo de prostituída: 45 soldos. Novamente deparamos com essa obsessão pela pureza das mulheres, das quais nunca se deve suspeitar. Depois vêm, de acordo com uma ordem reveladora porém com tarifas de apenas três soldos, vários insultos que desacreditam os homens. Só a acusação de pederastia acarreta uma multa de quinze soldos. Segue-se-lhe imediatamente o termo concagatus, que só podemos traduzir pelo velho adjetivo medieval conchiê*. A associação por proximidade dessas duas injúrias revela como, num mundo ao mesmo tempo guerreiro e rural, o homossexual masculino não é mais o honrado “penetrador” de antigamente, mas um ignóbil “vira-bosta” impuro. Quanto às virtudes reclamadas, são a probidade, pois os outros insultos são chamar alguém de raposa, traidor e delator, e a coragem física, pois é ignóbil proclamar que alguém jogou o escudo no campo de batalha para fugir ou qualificá-lo de poltrão. Reencontramos aqui a conivência com o mundo animal e seus vícios. Todo esse quadro do imaginário injurioso constitui a prova de uma mentalidade pré-lógica individualista, em que o ódio é criador de males e o inconsciente coletivo secreta sentimentos que engendram a destruição da honra alheia. Ninguém discordará de que a palavra pode causar mal, porém, para as pessoas da Alta Idade Média, ela operava uma verdadeira transmutação psicossomática. A réplica era, portanto, obrigatória e a violência inevitável.”

*: Termo registrado pela primeira vez por volta de 1150, nas obras de Wace; significa: sujar, cobrir de lixo, ultrajar, desonrar. (FBN)

 

 

“Os momentos de crise de civilização sempre são favoráveis ao surgimento de individualidades místicas que cristalizam os receios e as esperanças secretas de cada um.”

 

 

“Não esqueçamos que o cosmo pagão, sem origem nem fim, é presa de forças perpetuamente renovadas. Amedrontado com a danação — mais tarde, não agora —, o visionário levava a imaginação de cada um para fora do pesadelo incessantemente recomeçado — primavera, verão, outono, inverno, nascimento, crescimento, colheita ou razia, morte — e, ao mesmo tempo, quebrava o mito pagão do eterno retorno com a visão de um tempo linear irreversível.”

 

 

“A inferioridade da mulher e da criança deve-se à onipresença da violência privada. Esta última era indispensável num país onde a natureza incompreensível sempre ameaçava o homem. Ele julgava decifrar na luta feroz pela vida à qual se entregavam os animais um convite para cultivar a agressividade em si mesmo e proteger a fecundidade na mulher. A caça era, pois, o momento privilegiado para assimilar as leis da sobrevivência — ou melhor, a única lei, a do mais forte. Consequência natural, o roubo, autoafirmação, e o incêndio, autocompensação, fazem parte de uma contínua agressividade cuja origem sexual não se percebia. Com efeito, a lei da sobrevivência impunha a faida como um dever religioso para manter a linhagem. O sangue devia correr em troca daquele que devia se perpetuar. A morte constituía uma temida necessidade, porque remetia o indivíduo ao mundo subterrâneo, um mundo com suas leis privadas que as práticas funerárias não deviam transgredir. Assim, um vínculo profundo unia a violência, o sexo e a morte. A violência era normal, até obrigatória. Em compensação, temia-se tanto o sexo e a morte que se tornava necessário rodeá-los de proibições. Com suas fobias em relação a insultos, o imaginário pagão confirma que uma sexualidade de sangue pura, uma coragem física feita de probidade podem afastar uma morte ruim. O sangue não deve ser nem poluído nem sugado, mas simplesmente derramado. Em contrapartida, a transferência dos cemitérios para os arredores da igreja, tornando a morte pública, procura livrá-la de seus tabus. O imaginário cristão então pode responder à angústia referente ao sexo e à morte com seu deslocamento para o além. Para tanto, as visões utilizam uma pedagogia moralizante pessimista ou uma perspectiva mística otimista.”

 

 

“Acreditar na loucura do amor é já vivê-la.”

 

 

“(...) Isso prova que os monges e os padres são tidos por privilegiados mediadores que, através de seus laços pessoais com a divindade, podem ser muito úteis tanto para a vida cotidiana como para a do além. Esses homens, que criaram espaços sagrados, mosteiros, igrejas, terras de asilo, que são os guardiães das relíquias dos santos, os portadores de livros sagrados e que se abstêm de sexo, afastaram-se do resto da população. Assim, de maneira mais ou menos consciente, alimentam a confusão entre sacer e sanctus, entre tabu e santificado. Ademais, no final da época carolíngia, o retorno voluntário do clero à velha pedagogia do medo e do temor, única eficaz contra uma violência desenfreada, acentuou a impressão de que a Igreja era detentora do sagrado.

Assim, para obter a salvação pessoal, era preciso apoderar-se dela. Raciocínio simplista que está na origem do que se chamou a “Igreja privada”, Eigenkirche. Desde os primórdios da missão na Gália, os aristocratas germanos ajudaram os recém-chegados concedendo-lhes terras e bens necessários para fundar os primeiros edifícios do culto. Mas em sua mente continuaram considerando-se proprietários da nova igreja, patronos do título e titulares. Para eles nada era mais fácil que tirar um escravo dos campos, libertá-lo para satisfazer as leis eclesiásticas e manter sua formação sacerdotal. O grande proprietário tinha então seu padre pessoal, o qual, através de preces e missas, lhe obteria a vida eterna. Os príncipes protetores dos mosteiros e dos bispados faziam o mesmo cálculo mais ou menos consciente. O sistema da “Igreja privada” transformava os padres em domésticos, principalmente no norte, em Francie. Como diz amargamente Jonas de Orléans: “Existem padres tão pobres e tão desprovidos de dignidade humana, tão desprezados por alguns leigos que estes não só os tomam como intendentes e contadores de seus bens (evidentemente porque são os únicos que sabem ler e escrever), mas ainda se servem deles como domésticos leigos e não os admitem como convivas a sua mesa”. Esse domínio dos grandes leigos sobre o clero foi tal que chegou a uma intensa degradação ao longo do século X e provocou a reforma gregoriana, verdadeira liberação do clero. No final do século IX só alguns leigos piedosos, como Girard de Vienne ou Géraud d’Aurillac, tinham percebido o perigo. Fundaram mosteiros isentos de toda autoridade leiga. Mas Géraud era um dos raros nobres de sua época que tiveram uma vida pessoal de oração mesmo permanecendo no mundo. Enquanto se vestia, ao levantar-se da cama, recitava os salmos; à mesa, mandava ler textos bíblicos que comentava e explicava para os hóspedes. Em suma, a primazia da vida interior acarretava uma santificação das relações interpessoais entre leigos e clérigos. Porém a ausência de vida interior acentuava a sacralização do clero e a privatização da Igreja. Finalmente, uma cristianização incompleta da vida privada acarretava um retrocesso ao sagrado pagão. Assim se explica que a Alta Idade Média termine por volta do ano 1000 com o desejo dos grandes de se apoderarem dos segredos do clero e das receitas do sagrado para aplacar uma angústia que o exercício do poder político, enfim totalmente privatizado, não permite aliviar.

Assim, apesar de tudo, a cristianização, embora mais forte na época carolíngia que nos tempos merovíngios, não conseguiu eliminar esse conglomerado de crenças subjetivas que chamei de sagrado pagão. O saber pré-lógico, as intuições femininas, as receitas mágicas, poções, filtros e outros giram em torno das mesmas obsessões: o amor, a morte, o além. Os esforços de cristianização tentaram afastar o medo das forças más transferindo-se para o diabo a fim de libertar a consciência pessoal. Porém essa lenta passagem de uma consciência exterior ao homem a uma consciência interior mais pessoal permanece incompleta. A prática dos sacramentos, como o batismo e a eucaristia, não continua isenta de um certo toque de crença mágica. A penitência e o casamento foram provavelmente os meios mais eficazes de cristianização da vida privada. Com certeza, os penitenciais, em seu decorrer cronológico do século VI ao XI, revelam um incontestável progresso na consciência moral. Provam uma verdadeira intransigência com relação ao homicídio, à poligamia, ao divórcio, e reclamam igualdade de todos os leigos diante do pecado, assim como certa igualdade da mulher perante o homem. Ademais, privilegiam o ser em relação ao ter. Nisso contradizem completamente as leis germânicas e permitiram profundas transformações do comportamento pessoal e social. No interior do casamento, a abrupta reivindicação de indissolubilidade e de uma ordem natural nas relações sexuais ia contra recusas veementes das quais uma das menores foi o caso Lotário-Theutberge. Entretanto, o corpo episcopal tinha perfeita consciência dos pesados comprometimentos que os penitenciais permitiam estabelecer com as crenças pagãs, pois inutilmente tentou impedi-las. Com demasiada frequência, a conscientização do pecado aparentava-se mais à de um delito ou de uma impureza material que à de uma recusa do amor divino. A penitência automática mantinha a relação religiosa no nível de um contrato de igual para igual. A aceitação dos motivos pagãos de recusa de certas práticas levava a contradições com o Evangelho. Enfim, a não-consideração da intenção (exceto nos casos de ódio) deixava a consciência na total ignorância dos motivos do ato. Havia progresso, pois agora era julgado o resultado, em lugar do prejuízo sofrido, mas esse progresso demandava outro, que só ocorreu com a obra de Pedro Abelardo.

A consciência pessoal emerge lentamente, pois, da ação contraditória da Igreja. Essa mistura de intransigência e comprometimento explica o fato de o amor e a morte passarem, ao longo de dez séculos, do sagrado pagão aos segredos cristãos, sem desaparecer a mentalidade primitiva. Toda aculturação necessita, na verdade, dessa mistura de rigorismo e laxismo. O filósofo Jacques Maritain utilizou em seu último livro o conceito de “ajoelhar-se perante o mundo” para designar essa maneira ambígua da Igreja de respeitar os valores não cristãos capitulando diante deles. Tornando-se proprietária do sagrado pagão, a Igreja da Alta Idade Média como que brincou com fogo sob o risco de se queimar, porém libertou os indivíduos para que se tornassem eles mesmos.

A criação da interioridade pela prece, pela solidão e pelo silêncio constituía o único meio de dessacralizar a relação subjetiva com Deus. Aqui a ambiguidade não é mais admissível. A ascese deve substituí-la, a do corpo e a do coração, pelo trabalho manual e intelectual, pelo jejum e pela oração. Bento de Nursia introduziu uma verdadeira revolução mental generalizando a lectio divina e a leitura em geral. Assim como o escriba solitário diante de seu pergaminho, o homem em oração se impõe uma verdadeira violência trabalhando o cérebro e o coração sem cessar para abrir seu entendimento ao apelo de alguém. O prestígio do monge que reza, unido à sacralização em geral do clero criada pelas severidades dos penitenciais a ele relativos e à sacralização do livro em particular, leva a uma inversão de situação, pois então os grandes leigos se apoderam desses vestíbulos do além que eram os mosteiros e as igrejas. Aquele que ora ou o padre tornavam-se um meio mágico de assegurar-se o paraíso. O progresso interior, descoberta individual e intransmissível, transformava-se em receita vulgar.”

 

 

“Do Estado, propriedade privada, à Igreja privada o círculo se fecha. Do político ao religioso, a Alta Idade Média é a época forte das individualidades, da recusa do abstrato e dos grandes horizontes, dos pequenos grupos e das comunidades de calorosa afetividade. A instintividade constitui o valor primeiro: voracidade, rapacidade são as duas mamas de um mundo ávido de viver e gozar. O corpo e o coração estão em desacordo. A natureza parte para o assalto da cultura. O animal fascina o homem. O corpo é venerado, mutilado ou torturado. Só a violência permite sobreviver. A morte está atrás de todos.

Não se trata absolutamente de uma visão romântica, passada pelo crivo do Grande dicionário histórico de Louis Moreri, sobre o sangue, o ouro e a púrpura de nossas origens. Consideremos antes a Idade Média nosso inconsciente coletivo e a grande fase de dissimulação de nossas paixões espontâneas, aquela em que a recusa de toda estrutura pública desnuda os impulsos de cada um e permite uma nova educação do homem. Foi um combate entre duas religiões, pagã e cristã, a propósito da família, do sexo e da morte.

A obsessão dos povos que entraram na Gália e a transmitiram aos galo-romanos girava em torno da sobrevivência. Tal obsessão, legada pelos solos pobres e pelas florestas da Europa, impunha o dever de reduzir o homem à arte de matar e a mulher à de procriar. A sexualidade constituía, pois, um instrumento de construção da sociedade que era preciso utilizar em conformidade com os ensinamentos da natureza: lei do mais forte, pureza da mãe e da esposa. O amor, essa loucura destrutiva, devia ser banido. Era necessário captar as boas forças do cosmo misterioso e rechaçar seus maus impulsos. A morte era tão perigosa quanto o sexo, pois pertencia a outra parte do cosmo, ao subterrâneo invisível. Entre os dois a violência constituía uma obrigação para dominar um e apaziguar a outra. Assim se podiam formar, como bandos inquietos de feras aspirando o ar que veicula o cheiro do caçador, essas parentelas endogâmicas que enterravam os mortos nos confins de suas propriedades.

A essa religião do medo devia responder a da esperança. E ela responde, ao mesmo tempo de muito perto e de muito longe, na simpatia e na hostilidade. Aceitou toda a religiosidade pagã com relação à criança, à pureza do casamento, mas logo procurou quebrar a parentela para impor o casamento monogâmico. Compondo com o sagrado pagão, a Igreja das Gálias desviou-o para os sacramentos. Operou principalmente importantes transferências entre os dois setores: público e privado. Contra a angústia da morte, deslocou os defuntos para colocá-los à vista de todos, ao redor dos vivos. Contra o medo da punição, transferiu a penitência da praça pública para o ouvido do padre. Enfim, ao homem que só experimentava o sentimento de sua existência diante de um mundo hostil no interior de um grupo armado, ofereceu a loucura do eremita isolado ou o silêncio do monge em seu oratório. Quaisquer que fossem as ambiguidades profundas da ação da Igreja sobre a vida privada, essa lenta aculturação pontilhada de fracassos — o mais patente dos quais era o do Império Carolíngio — levava ao desprendimento, à autonomia de cada ser humano em relação a seu ambiente. Do medo do mundo, passando pelo desprezo ao mundo, o homem em breve partiria para a conquista do mundo.”

 

 

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5. Bizâncio: séculos X-XIÉvelyne Patlagean

 

“Na mesma época o discurso ascético apresenta novidades no tom, a despeito das referências que sempre é possível encontrar. Já falamos de Simeão, o Novo Teólogo, e sua reivindicação de uma relação pessoal com o Espírito Santo na solidão da cela. Sua ascese se apresenta tão pouco inovadora que encontra um ponto de partida numa frase do tratado de João da Escada (Climacos) sobre a vida contemplativa. Durante uma estada junto aos seus, ele descobre na biblioteca da família um exemplar dessa obra muito lida do século VII e aí encontra que “não mais sentir é fazer a alma morrer, é a morte do espírito antes da do corpo”.”

História da vida privada (I): do Império Romano ao ano mil (Parte III) — Philippe Ariès e Georges Duby (Org.)

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-1378-1

Tradução: Hildegard Fiest

Organização: Paul Veiny

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 648

Sinopse: Ver Parte I


 

2. Antiguidade tardiaPeter Brown

 

“Seja qual for a cidade, o fato fundamental da sociedade do Império Romano é a convicção de que existe uma distância social intransponível entre os notáveis “bem-nascidos” e seus inferiores. A evolução mais sensível do período romano é a discreta mobilização da cultura e da educação moral para afirmar tal distância. As classes superiores procuram diferenciar-se das inferiores através de um estilo de cultura e vida moral cuja mensagem mais vibrante é que não pode ser partilhado pelos outros. Elas criaram uma moral da distância social, estreitamente ligada à cultura tradicional posta à disposição das elites em suas cidades. No próprio seio dessa cultura e da moral que a acompanha reside a necessidade de assimilar as regras concretas do intercâmbio entre pessoas das classes superiores na condução dos negócios públicos da civitas.”

 

 

“Baseada na posição e na autovigilância, a qualidade de uma moral, arraigada na necessidade de uma pessoa da classe superior de provar a distância social por meio de um código excepcional de comportamento, imediatamente aparece nas preocupações morais da época antonina. Tomemos dois exemplos: as relações com os inferiores e as relações sexuais. Veremos que são igualmente regulamentadas por um exigente código de comportamento público.

Condena-se espancar um escravo num acesso de raiva. Não porque se trata de cometer um ato desumano contra um irmão humano, mas porque tal rompante representa uma ruptura da autoimagem harmoniosa do homem “bem-nascido”. A irrupção de uma violência anormal constitui uma forma de “contágio moral” que leva o senhor a comportar-se com um escravo de modo tão incontrolado quanto o do próprio escravo.

 

MEDO DO PRAZER

Preocupações similares determinam as atitudes frente às relações sexuais. Não se estabelece distinção entre amor homossexual e amor heterossexual; o prazer físico é visto como uma continuidade subjacente entre os dois; o prazer sexual, enquanto tal, não coloca nenhum problema para o moralista da classe superior. Em compensação, julga-se — e muito severamente — o efeito que tal prazer pode exercer sobre o comportamento público e as relações sociais do homem. A vergonha que pode estar ligada a uma relação homossexual reside apenas no “contágio moral” que pode levar um homem das classes superiores a submeter-se ou fisicamente, adotando uma posição passiva no ato sexual, ou moralmente, entregando-se a um inferior de qualquer sexo. As relações entre homens e mulheres estão sujeitas às mesmas limitações. As inversões da verdadeira hierarquia — da qual constitui um exemplo típico a prática da sexualidade oral com uma parceira — são as mais reprovadas e (será preciso dizer?) estimulantes formas de degradação, sob o efeito do “contágio moral” de uma pessoa inferior: a mulher. O medo da efeminação e da dependência emocional, fundamentado na necessidade de manter a imagem pública de um homem realmente integrado à classe superior, e não em escrúpulos relativos à sexualidade em si, determina o código moral segundo o qual a maioria dos notáveis conduz sua vida sexual.

Nos dois casos o medo da sujeição social a um inferior é sutilmente apoiado por uma ansiedade fisiológica convergente. Um homem é um homem porque evolui com eficácia no mundo público. E evolui porque seu feto “cozinhou” no calor do ventre mais completamente que o de uma mulher; também seu corpo é um reservatório dos “calores” preciosos dos quais depende a energia masculina. Embora se possa estabelecer seguramente a diferença entre homens e mulheres — no caso da mulher pelo baixo nível de “calor” e pela consequente fraqueza moral de seu temperamento —, o homem ativo não se beneficia de semelhante segurança. Sempre pode perder “calor”. Uma descarga sexual excessiva pode “resfriar-lhe” o temperamento, e a perda de seus recursos se revelaria então com impiedosa clareza, através de uma perda de entusiasmo na cena pública. Assim, a voz plena e musical do homem público, que Quintiliano e seus contemporâneos tanto gostam de ouvir ressoar pelos barulhentos espaços públicos da cidade, é o fruto precioso de uma masculinidade cuidadosamente preservada pela “abstinência sexual”. O puritanismo bem real das morais tradicionais das classes superiores nos mundos grego e latino pesa muito sobre aqueles que as adotaram. Não depende da sexualidade em si, mas baseia-se, antes, na sexualidade como fonte possível de “contágio moral”. Através da “efeminação”, supostamente resultante de prazeres sexuais excessivos com parceiros de ambos os sexos, a complacência sexual pode com efeito corroer a superioridade incontestada do “bem-nascido”.

 

BOM PARA O POVO

Daí também o particularismo restritivo dos códigos sexuais da época, que não se aplicam a todos. Os notáveis tendem a se submeter e a submeter suas famílias a um código de austero puritanismo masculino, mais próximo do que ainda se pratica nas regiões islâmicas do que do puritanismo da Europa setentrional moderna. Entretanto, envoltos em suas atitudes obrigatórias, os notáveis são mais livres para manifestar a outra face de seu eu público, sua popularitas [vontade de agradar ao povo]. Nas relações com os inferiores, como distribuidores das boas coisas da vida urbana, prodigalizam, àqueles que a seu ver devem desfrutá-los, prazeres mais vulgares que os seus: uma sucessão de espetáculos, comodidades e decorações cujas crueza e franca obscenidade contrastam de modo flagrante com o autocontrole altaneiro que esses homens se arrogaram com o sinal de sua condição superior dentro da cidade. Aristocratas muito cultos patrocinam as medonhas carnificinas das lutas de gladiadores nas cidades gregas da época antonina. E a ascensão do cristianismo não muda muito esse aspecto de sua vida pública. Se um leitor contemporâneo se lembra do imperador Justiniano, possivelmente é por causa da descrição que Procópio faz da carreira juvenil de sua esposa, Teodora, uma dançarina de striptease do teatro público de Constantinopla, onde os gansos iam comer grãos em suas partes íntimas diante de milhares de cidadãos. É importante reter na mente a precisão venenosa desse detalhe: trata-se de uma mulher do povo, e as restrições morais dos códigos das classes superiores simplesmente não lhe dizem respeito. Sob todos os aspectos, Teodora é a antítese das respeitáveis mulheres casadas da classe superior, que, nessa época, se velam sobriamente e vivem reclusas em Constantinopla. Não obstante, como notáveis, os maridos dessas damas respeitáveis durante séculos financiaram tal gênero de exibições para a glória eterna de sua pessoa e de sua cidade. Também não deve nos surpreender a longa sobrevivência da indiferença com relação à nudez na vida pública romana. Essa sociedade não está presa à generalização implícita da vergonha sexual. A nudez do atleta continua sendo um indício de posição para os “bem-nascidos”. O papel essencial dos banhos públicos como pontos de reunião da vida cívica faz da nudez entre os pares e diante dos inferiores uma experiência cotidiana inevitável. Como vimos, os códigos de comportamento também concernem ao corpo; por isso as roupas das classes superiores na época antonina, embora caras, não têm a magnificência cerimonial daquelas dos períodos ulteriores. A postura de um homem, nu ou vestido, é a verdadeira marca de sua condição, uma marca tanto mais convincente quanto minimizada. Para as mulheres, a vergonha social que haveria em se exibir de modo inconveniente constitui uma preocupação, não o simples fato de se mostrar nua: a nudez diante dos escravos é moralmente tão insignificante quanto a nudez diante dos animais; e a exibição física das mulheres das classes inferiores constitui outro sinal de sua desregrada inferioridade em relação aos poderosos.

Nas cidades da época dos Antoninos, as realidades do poder pesam como uma atmosfera carregada ainda que impalpável sobre os súditos da classe superior de um império mundial. Por íntima que seja a vida de uma cidade média, Roma é um império fundado na violência e protegido pela violência. A crueldade dos combates de gladiadores é exibida como parte da celebração oficial do imperador em todas as grandes cidades do Mediterrâneo. Esses espetáculos fazem compreender a vontade sanguinária de governar da elite italiana. Mesmo os jogos a que se dedicam os humildes quando lançam dados nos recantos do foro são jogos guerreiros; os lances significam: “Os partos estão mortos; os bretões estão conquistados; os romanos podem jogar”. Não se dissimula o fato de que a política das cidades pequenas, que continuam sendo a principal escola do caráter dos notáveis em todas as regiões, desenrola-se doravante “sob vigilância”: está submetida à constante intervenção do governador romano ladeado por sua guarda de honra militar, que empunha o gládio e o dardo do legionário. Para que a vida das cidades continue, a disciplina e a solidariedade das elites locais e sua capacidade de controlar seus administrados devem ser mobilizadas ainda com mais consciência do que antes. Um sentimento de disciplina pública é levado a penetrar mais profundamente nas vidas privadas dos notáveis: é o preço a pagar para manter o status quo da ordem imperial. Daí a profunda mudança da atitude com relação aos cônjuges no decorrer do século II.”

 

 

UMA IGREJA RICA E MARGINAL

Na nova cena urbana o bispo cristão e sua Igreja não passam de um elemento. Agora pode-se construir numerosas e magníficas igrejas graças às doações imperiais e segundo o novo modelo imperial, a basílica, edifício muito semelhante à “sala de audiência” do imperador e ao trono do juízo de Deus, o imperador invisível da cidade. O clero pode se beneficiar com exonerações e alocações de alimento a título de privilégio. O bispo tem acesso aos governadores e aos potentes; intervém sobretudo em favor dos pobres e oprimidos. Agostinho nota, porém, que muitas vezes o fazem esperar na antecâmara dos grandes e que gente mais importante entra antes dele. Por impressionante que pareça, a Igreja do século IV continua marginal em relação ao saeculum, a um “mundo” cujas estruturas principais evoluem sob as fortes pressões do poder e da necessidade de segurança e hierarquia. O cristianismo é periférico a esse saeculum, mesmo que agora seja a fé nominal dos poderosos.

A comunidade cristã permanece unida através de uma miragem muito particular: a da solidariedade, que doravante pode exprimir-se abertamente no decorrer de cerimônias na basílica do bispo. Assim, conquanto não constitua realmente uma “assembleia dos santos”, a basílica cristã é um lugar do qual estão francamente ausentes as estruturas do saeculum. A hierarquia do século é menos nítida na basílica do que nas ruas da cidade. Apesar da nova importância do clero, apesar da cuidadosa segregação de homens e mulheres — o mais das vezes apartados de um lado e outro das grandes naves da basílica —, apesar da consumada habilidade dos poderosos para se destacarem da massa obscura dos inferiores com suas espetaculares vestes domingueiras bordadas com cenas dos Evangelhos, as basílicas cristãs permanecem uma reunião de homens e mulheres e pessoas de todas as classes, igualmente expostos, sob a tribuna do bispo na abside, ao olhar inquisidor de Deus. Sabemos que João Crisóstomo, quando estava em Constantinopla, se tornou deliciosamente impopular graças a seu hábito de acompanhar com os olhos cada um dos grandes proprietários de terras e os cortesãos que deambulavam dentro e fora da basílica durante os sermões; seu olhar penetrante os designava publicamente como os autores dos pecados e das injustiças sociais que ele denunciava do alto de sua tribuna. E a velha “liberdade de expressão” do filósofo, crítico dos grandes, que doravante pesa sobre toda uma comunidade urbana, reunida por seu clero na “sala de audiência” de Deus. Uma comunidade conduzida dessa maneira e por tais pessoas não podia deixar de tentar transformar a cidade antiga numa comunidade moldada segundo uma imagem, insólita, que lhe fosse própria.

Ao olhar de seus dirigentes, a igreja é uma nova comunidade pública unida pela extraordinária importância atribuída a três temas, delimitados com uma acuidade até então inexistente no mundo antigo: o pecado, a pobreza, a morte. Esses três sombrios conceitos, aparentemente abstratos e estreitamente interligados, habitam o horizonte do cristão da Antiguidade tardia. Apenas afrontando-os de maneira definida já sem equívocos pelo clero é que o homem e a mulher comuns poderão ganhar a “cidade de Deus”, cujas delícias e prazeres francamente sensuais os mosaicos cristãos da Antiguidade tardia evocam. Neles os cristãos dessa época contemplam o rosto eternamente belo e tranquilo dos santos, dos homens e mulheres agradáveis a Deus, que os colocou não no “além” asséptico e etéreo, nascido da imaginação moderna, mas no antigo “paraíso das delícias”, “um lugar fertilizado pelas águas refrescantes e de onde desapareceram a dor, o sofrimento e as lágrimas”.

 

O PECADO

A basílica cristã abriga uma assembleia de pecadores iguais em sua necessidade da misericórdia de Deus. As fronteiras mais firmes no interior do grupo são aquelas que o pecado traça. Não se deve subestimar o elemento de novidade de tal definição da comunidade. Questões tão profundamente íntimas como os mores [costumes] sexuais ou as opiniões pessoais sobre o dogma cristão podem ser julgadas pelos membros do clero e justificar um ato público e vibrante de exclusão da Igreja cristã. Um sistema inteiramente público de penitência impera nesse período. A excomunhão acarreta a exclusão pública da eucaristia, e seus efeitos só podem ser revogados por um ato igualmente público de reconciliação com o bispo. Assim, na basílica do século IV, a solidariedade pública está normalmente ligada à consequência do pecado e ao “crime por pensamento” de heresia, com uma nitidez que desaparecerá nas épocas posteriores. O acesso à eucaristia implica uma série de atos plenamente visíveis de separação e adesão. O rebanho dos catecúmenos é expulso do edifício ao iniciar-se a liturgia principal da eucaristia. A cerimônia começa pelo movimento dos crentes que colocam suas oferendas no altar. Por ocasião da solene subida dos fiéis para participarem do “alimento místico”, evidencia-se a hierarquia estabelecida no grupo cristão: os bispos e o clero são os primeiros a se adiantar, seguidos pelos fiéis castos dos dois sexos; os últimos de todos são os leigos casados. Num espaço especialmente designado no fundo da basílica, muito longe da abside, ficam os “penitentes”, cujos pecados os excluíram dos atos de participação tão concretos. Moralmente humilhados, vestidos com mais simplicidade do que sua posição autoriza e com a barba por fazer, esperam, sob o olhar da assistência, o gesto público de reconciliação de seu bispo. Às vezes a hierarquia do saeculum e a igualdade perante o pecado se chocam, e as consequências são memoráveis: em Cesareia, Basílio recusa as oferendas do imperador herético Valente; em Milão, Ambrósio coloca o imperador Teodósio no meio dos penitentes — o senhor do mundo despojado de seu manto e do diadema — por haver ordenado o massacre da população de Tessalônica.

 

A POBREZA

Os pobres também chamam a atenção. Estropiados, indigentes, vagabundos e imigrantes de campos muitas vezes assolados, aglomeram-se às portas da basílica e dormem sob os pórticos que rodeiam seus pátios internos. Sempre se fala dos pobres no plural, em termos que não têm mais relação nenhuma com a classificação “cívica” precedente da sociedade dividida em cidadãos e não-cidadãos. São o anônimo rebotalho humano da economia antiga. Tal anonimato precisamente os transforma em remédio para os pecados dos membros mais afortunados da comunidade cristã. Pois a esmola aos pobres constitui uma parte essencial da longa reparação dos penitentes e o remédio normal para os pecados “veniais”, como a preguiça e os pensamentos impuros e fúteis, que não demandam penitência pública.

A condição miserável dos pobres recebe pesada carga de significados religiosos. Eles representam o estado do pecador que diariamente precisa do perdão de Deus. A equação simbólica entre o pobre e o pecador miserável e abandonado por Deus retorna com insistência na linguagem dos Salmos, que formam a coluna vertebral da literatura da Igreja e especialmente das cerimônias penitenciais. Tal simbolismo era indispensável para despertar a empatia graças à qual o citadino, habituado a ver essas desagradáveis ruínas humanas como exceções ameaçadoras para a regra da antiga comunidade cívica de cidadãos, concede ao pobre a privilegiada posição de símbolo da miserável condição da humanidade da qual participa seu eu que é pecador. A esmola torna-se uma analogia poderosa da relação de Deus com o homem pecador. Os gemidos que os mendigos dirigem aos fiéis que entram na basílica para rezar preludiam os apelos desesperados dos fiéis à misericórdia divina. “Quando estiveres cansado de rezar e não receber”, diz João Crisóstomo, “pensa no número de vezes em que escutaste um pobre pedir e não lhe deste ouvidos.” “Não é erguendo as mãos [na atitude de rezar do orans suplicante] que serás ouvido. Estende a mão não para o Céu, mas para o pobre.”

O anonimato do pobre efetivamente ajuda a manter o sentimento da solidariedade indiferenciada dos pecadores na Igreja. O ideal cívico, segundo o qual os grandes são obrigados a dar generosamente, desempenha um papel atuante na Igreja cristã, pois implica também que as prodigalidades estabeleçam a evidência do direito dos poderosos de controlarem sua comunidade. Afinal, poucas basílicas teriam sido construídas sem tal retorno. As mais espetaculares são oferecidas pelo imperador ou pelos dirigentes do clero; são os atos de homens muito desejosos de provar à maneira antiga que têm o direito de “alimentar” e portanto de controlar as congregações cristãs que ali se reúnem. Os nomes dos que levam as oferendas ao altar são lidos em voz alta durante as orações solenes que precedem a eucaristia e muitas vezes aclamados, como na bela época da munificência cívica. Graças à noção de pecado, pode-se esperar reduzir essa audaciosa pirâmide de patronato e dependência. Os bispos, portanto, insistem no fato de que cada membro da comunidade cristã, homem ou mulher, é pecador e que toda esmola, por modesta que seja, é bem-vinda para os verdadeiros pobres. Por conseguinte, o aspecto ostensivo do patronato dos grandes, que se expressa em pedras, mosaicos, tapeçarias de seda e candelabros reluzentes, de cima para baixo à maneira da antiga munificência cívica, é velado pela garoa leve mas persistente das esmolas cotidianas do cristão pecador aos desgraçados anônimos.

 

AS MULHERES RICAS

Com efeito, a miséria real dos pobres os torna clientes ideais para um grupo desejoso de evitar as tensões causadas por relações de patronato com uma verdadeira clientela. De todas as formas de patronato às quais o clero notoriamente foi exposto durante muito tempo, a mais perigosa e aviltante aos olhos dos pagãos é a estreita dependência com relação a mulheres ricas. Desde Cipriano, a pobreza e o papel das mulheres influentes na Igreja são preocupações estreitamente ligadas. A fortuna de numerosas virgens, viúvas e diaconisas cria laços de patronato e de obrigação humilhante entre o clero e as mulheres que, no final do século IV, são membros dirigentes da aristocracia senatorial. Tal riqueza e o patronato que lhe é associado tocarão de modo muito mais certo os pobres, que, como todos sabem, não podem retribuir prestando serviço, e sua clientela não vale nada. Ademais, códigos estritos de segregação entre os sexos vetaram o acesso das mulheres ao poder público dentro da Igreja. Toda infração a esses códigos provoca um escândalo que se procura alimentar desde que desponte a ameaça de mulheres virem a exercer influência na Igreja graças a sua fortuna, cultura ou coragem superior. Esses tabus, no entanto, não se aplicam ao papel público de uma mulher que socorre pobres farrapos humanos. Como protetoras dos pobres, através da esmola e dos cuidados com os doentes e os estrangeiros nos hospitais, as mulheres abastadas desfrutam de uma verdadeira posição pública nas cidades da região mediterrânea, posição excessivamente rara nos outros aspectos da vida pública dos poderosos sob o Império tardio, vida hierarquizada e dominada pelos homens.

 

O BISPO

Patrono dos pobres e protetor das mulheres influentes, cujas energias e fortuna coloca a serviço da Igreja, diretor espiritual de vastos grupos de viúvas e virgens, o bispo adquire importância na cidade do século IV; deliberadamente se associa em público a essas categorias de pessoas cuja existência fora ignorada pelo antigo modelo “cívico” dos notáveis urbanos. Segundo os termos dos Cânones de santo Atanásio: “Um bispo que ama os pobres é rico, e a cidade e sua circunscrição o honrarão”. Dificilmente se podia desejar um contraste mais agudo com a imagem “cívica” que os notáveis ostentavam dois séculos antes.

A comunidade cristã que cresce paralela à cidade antiga, onde está longe de ser dominante no século IV, criou, todavia, através de suas cerimônias públicas, seu tipo pessoal de uma nova forma de espaço público, dominado com segurança por um novo tipo de personagem público: apoiados com firmeza por mulheres celibatárias, os bispos celibatários fundamentam seu prestígio sobre sua capacidade de “alimentar” uma nova categoria de pessoas, a categoria anônima e profundamente anticívica dos pobres sem raízes e abandonados. No século V, as cidades do Mediterrâneo passam por novas crises. As gerações que precedem e seguem imediatamente o ano 400 conhecem importantes catástrofes urbanas, como o saque de Roma pelos visigodos em 410 e o surgimento de bispos influentes: Ambrósio em Milão, Agostinho em Hipona, o papa Leão em Roma, João Crisóstomo em Constantinopla e o implacável Teófilo em Alexandria. A questão que se coloca para tais gerações é saber como a fachada restaurada da antiga cidade romana corre o risco de desmoronar, deixando o bispo cristão, munido por sua própria definição “não cívica” da comunidade, livre para intervir como o único ator representativo da vida urbana nas margens do Mediterrâneo.

 

A MORTE

No exterior das cidades estende-se a solidariedade mais tranquila e definitiva dos túmulos cristãos. Em qualquer museu moderno, passar das salas pagãs às cristãs equivale a penetrar num mundo de claros significados gerais. A diversidade pouco clara dos sarcófagos da classe social superior dos séculos II e III — os eruditos não acabaram de interrogá-los — deixa lugar a um repertório de cenas facilmente reconhecíveis, inscritas, com poucas variações, em todas as tumbas cristãs. A surpreendente variedade de inscrições funerárias pagãs e da arte funerária pagã testemunha uma sociedade pouco rica em opiniões comuns referentes à morte e ao além. A tumba era então um lugar privado porém privilegiado. A pessoa morta, sustentada por seus grupos tradicionais — a família, os pares, os associados funerários e, no caso dos grandes, a própria cidade —, devia, em sua linguagem peculiar, explicar aos vivos o sentido de sua morte. Daí a extraordinária proliferação de associações funerárias entre os humildes, o papel crucial do mausoléu de família entre os abastados e a bizarra diversidade das declarações do defunto ou a propósito do defunto. Pensamos num notável grego, Opramoas, que cobriu seu túmulo com cartas de governadores romanos elogiando-lhe as generosidades cívicas, e na mensagem de um humilde pedreiro que pede desculpa pela qualidade dos versos de seu epitáfio! Esses túmulos constituem a alegria dos leitores de epitáfios gregos e romanos, mas o desespero do historiador das religiões que gostaria de retirar deles uma doutrina coerente sobre o além. No mundo pagão dos séculos II e III nenhuma comunidade religiosa amplamente difundida interferiu para sufocar tantas vozes privadas, e tão diferentes, surgidas do além-túmulo.

Com a ascensão da cristandade, a Igreja se introduz entre o indivíduo, a família e a cidade. O clero afirma ser o grupo mais capaz de preservar a memória dos mortos. Uma sólida doutrina cristã sobre o além, pregada pelo clero, esclarece os vivos sobre o sentido da morte do defunto. As celebrações tradicionais no cemitério permanecem habituais, porém já não bastam. Oferendas, no momento da eucaristia, garantem que durante as orações o nome dos mortos será lembrado em toda a comunidade cristã, apresentada como a mais vasta parentela artificial do crente. Festas anuais em memória dos mortos e em benefício de suas almas — oferecidas, como sempre, em favor dos pobres (esse eterno pretexto) — desenrolam-se nos átrios das basílicas e mesmo em seu interior. Pois a Igreja, e não mais a cidade, celebra a glória dos desaparecidos. E, uma vez introduzida no recinto da basílica, a democracia do pecado estende-se para além do túmulo de modo inconcebível para os pagãos. O clero pode recusar as oferendas feitas em nome de membros não convertidos da família, de pecadores não arrependidos e de suicidas.

 

A TUMBA

Uma nova acepção da expressão “terra consagrada” persistentemente atrai os mortos à sombra das basílicas. Grandes cemitérios cristãos, administrados pelo clero, existiram em Roma desde o início do século III. Comportavam galerias subterrâneas cuidadosamente construídas e concebidas de tal modo que grande número de pobres encontrava sepultura. Talhados em nichos superpostos nas catacumbas, tais túmulos constituem ainda hoje os testemunhos silenciosos da determinação do clero de agir como patrono dos pobres. Até na morte os pobres são mobilizados: as fileiras de túmulos humildes situadas a uma distância decente do mausoléu dos ricos testemunham a solicitude e a solidariedade da comunidade cristã.

No final do século IV, a difusão da prática do depositio ad sanctos — o privilégio de ser enterrado perto do túmulo dos mártires — garante que, se a comunidade cristã exigia uma hierarquia de estima entre seus membros, o clero, que controlava o acesso a esses lugares consagrados, erigia-se em árbitro de tal hierarquia. Virgens, monges e membros do clero são agrupados mais perto de numerosas tumbas de mártires nos cemitérios de Roma, Milão e outros lugares. Essas novas elites da Igreja urbana são seguidas de leigos humildes, admitidos ali em recompensa de sua boa conduta cristã. “Probiliano […] a Hilaritas, uma mulher cuja castidade e bondade natural eram conhecidas de todos os vizinhos […], Em minha ausência ela permaneceu casta durante oito anos; por isso repousa neste lugar santo.”

Integrados de modo bem visível nas Igrejas cristãs, os mortos são imperceptivelmente retirados de sua cidade. A fim de assegurar o repouso e a permanente reputação de seus defuntos, a família cristã doravante trata apenas com o clero. As formas cívicas de testemunho passam a segundo plano. É só nas pequenas cidades italianas tradicionais que o aniversário de um personagem público ainda constitui ocasião para um grande banquete cívico para os notáveis e seus concidadãos. No século IV a corte imperial celebra publicamente o luto do “primeiro cidadão”, Petrônio Probo, o maior dos potentes de Roma. Mas, em seguida, sua memória é confiada à tumba de são Pedro. Um esplêndido sarcófago de mármore proclama a certeza da nova intimidade de Probo com Cristo na corte celeste. O grande homem repousou a alguns metros de são Pedro até que, no século XV, alguns operários encontram seu sarcófago cheio dos fios de ouro com os quais fora tecida sua veste derradeira. Quanto ao clero e aos cristãos mortos santamente, os mosaicos os mostram longe da cidade antiga, caminhando sobre a relva verde do paraíso de Deus, sob as palmeiras orientais, cercados de um grupo de pares de modo nenhum clássico:

E agora [ele vive] entre os patriarcas,

entre os profetas que claramente veem o futuro,

na companhia dos apóstolos

e dos mártires, homens de grande poder.

 

 

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3. Vida privada e arquitetura doméstica na África romanaYvon Thébert

 

“Na cidade grega clássica, a arquitetura e a decoração das residências privadas confinam-se estreitamente em limites modestos: o majestoso e o luxuoso só convêm ao setor público, à cidade que repousa na fusão do indivíduo com a comunidade, na adequação do privado e do público. Nesse quadro, o indivíduo deve tudo — inclusive sua condição de súdito dotado de uma vida privada — ao fato de pertencer à comunidade política. Na época helenística, a crise da cidade clássica sublinha uma mudança em que é fácil ler uma evolução que se pode resumir numa extensão notável da esfera privada à custa do público.”

 

 

“Cabe-nos, pois, abordar um problema teórico da mesma natureza que aquele encontrado a propósito dos trabalhos efetuados pelos proprietários. Que papel o comanditário desempenhava na concepção do programa decorativo? Devemos realmente aceitar o termo “programa” para qualificar os temas que adornam uma residência? As duas perguntas estão ligadas, e atualmente tendem a prevalecer respostas que resultam de uma mesma atitude negativa: o proprietário participa bem pouco da escolha dos motivos, os mosaicistas impõem seu repertório; tal repertório é quase nada carregado de valores simbólicos e sobretudo não se deve “superinterpretar” os temas, querer lhes dar um significado mais profundo que uma vaga referência a uma herança cultural que constitui o quinhão comum de todos e não envolve ninguém.

Tal procedimento se opõe com razão às especulações, tão abusivas quanto engenhosas, suscitadas por algumas pavimentações particularmente excitantes para a imaginação. Mas também parece excessivo. Com efeito, atribui ao artesão-artista da Antiguidade um papel que não lhe cabe: em sua relação com o comanditário, é este último que desempenha o papel determinante: está em posição de impor os temas que lhe interessam — ou até a maneira de tratá-los. Para nos convencermos disso, basta verificar como a evolução do estilo e dos motivos corresponde perfeitamente à evolução de toda a sociedade e de modo mais preciso às novas necessidades das classes dirigentes do Baixo Império. Ademais, nada permite rejeitar a priori o que aparece como uma evidência de bom senso, a saber, que um assunto figurado possui um sentido e não é escolhido sem razão.

O problema se coloca claramente quando a decoração compreende cenas da mitologia pagã. Tornou-se de bom-tom considerar que estas não traduzem em nada as tendências religiosas dos proprietários: seriam apenas as sequelas assépticas de uma cultura, no sentido menos significativo do termo. Tal abordagem antecipa em alguns séculos uma situação cultural em que o cristianismo dominante poderá com efeito retomar por sua conta, sem risco excessivo, os farrapos de uma cultura antiga desmembrada porém prestigiosa. Em compensação, ela não corresponde à situação política, cultural e religiosa do Baixo Império. Primeiro é preciso observar que, se muitas vezes se nega a mosaicos claramente pagãos uma dimensão religiosa, não ocorre a ninguém agir da mesma forma com relação aos pavimentos de motivos cristãos. O procedimento é curioso e só se justificaria caso se pudesse afirmar o desaparecimento no Império tardio de toda religião além do cristianismo. Da mesma forma, frequentemente se afirma que a justaposição de mosaicos cristãos e pagãos demonstra que estes últimos não possuem significado preciso. Tal raciocínio não permite explicar casos em que se verifica uma destruição voluntária desses motivos: numa residência recentemente escavada em Mactar, no coração da Tunísia, um mosaico de um tanque com cena marinha e o de uma fonte com uma Vênus foram escondidos sob uma camada de cimento, operação que tudo leva a crer ter sido obra de cristãos.{21} Surpreender-se com tais justaposições equivale a desconhecer a maneira como a religião cristã se difundiu no mundo romano. Essa difusão não é a fonte de uma mudança radical da sociedade e das pessoas: não passa de um dos aspectos de uma evolução geral que promove o cristianismo bem mais do que este a promove. Em tais condições, exceto para uma minoria entre a qual essa conversão corresponde a uma revolução espiritual e a uma subversão das práticas, as novas crenças se acrescentam às antigas bem mais do que as substituem. Nesse contexto devemos compreender a reunião de mosaicos de temas díspares, e não é por acaso se o espaço privado constitui um lugar que se presta à leitura de tais atitudes cumulativas. Seus proprietários com efeito são mais livres para desenvolver suas concepções pessoais: Agostinho condena com violência a opinião dominante segundo a qual o homem é inteiramente senhor do que se passa em sua casa (Sermões, 224, 3). Ora, sejam quais forem suas opiniões religiosas, todos os homens dessa época pensam que o mundo é presa de demônios maléficos: se a defesa do espaço coletivo compete à cidade, cada um deve proteger a própria morada. Nessas condições, nada tem de surpreendente o fato de acrescentar-se aos penates e a outras divindades pagãs que residem na casa e a protegem os símbolos de uma religião que, apoiada em milagres, passa o tempo a proclamar sua eficácia protetora. Seria muito mais surpreendente se o responsável pela família renunciasse deliberada e bruscamente a uma dessas garantias. Uma pessoa não muda sua visão de mundo porque se torna cristã, mas é o contrário que ocorre: a fase de transição só pode ser muito longa.”

{21} G. Picard, “La maison de Vénus”, Recbercbes archéologiques franco-tunisiennes à Mactar, I, Roma, 1977, pp. 18, 20.