quinta-feira, 28 de junho de 2012

Em busca do tempo perdido: Sodoma e Gomorra - Marcel Proust

Editora: Ediouro

ISBN: 978-85-0002-554-9

Tradução: Fernando Py

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 432

Sinopse: Ver primeiro livro



“Mas às vezes o futuro nos habita sem que o saibamos, e nossas palavras que creem mentir estão descrevendo uma realidade que se aproxima.”

 

 

“– Adeus, mal pude lhe falar; é assim mesmo na sociedade, a gente mal se vê, não diz as coisas que gostaria de dizer. Aliás, dá-se o mesmo em toda parte na vida. Esperemos que após a morte as coisas sejam mais bem arranjadas. Pelo menos, não haverá necessidade de estar sempre a decotar-se. E mesmo assim, quem sabe? Talvez a gente exiba os ossos e os vermes para as grandes recepções. Por que não?”

 

 

“Finalmente, foi a própria vida que ela nos declarou ser uma coisa enfadonha, sem que se soubesse com certeza de onde tirava o seu termo de comparação.”

 

 

“Mesmo que o atavismo e as parecenças de família fossem as únicas causas em jogo, é inevitável que o tio que prega o sermão tenha mais ou menos os mesmos defeitos que o sobrinho a quem foi encarregado repreender. O tio, aliás, não põe nisso nenhuma hipocrisia, enganado que está pela faculdade que têm os homens de acreditar, em cada nova circunstância, que se trata de "outra coisa", faculdade que lhes permite adotar erros artísticos, políticos, etc.; sem se aperceberem de que são os mesmos que tomaram por verdades, dez anos antes, a propósito de outra escola de pintura, que condenavam, de outro caso político, que juravam merecer o seu ódio, de que se afastaram, e que esposam sem os reconhecer sob um novo disfarce.”

 

 

“Pensava nas imagens que me haviam decidido voltar a Balbec. Eram bem diferentes das de outrora, a visão de que eu vinha buscar era tão esplêndida como a primeira era brumosa; não deviam me decepcionar menos. As imagens escolhidas pela lembrança são tão arbitrárias, tão estreitas, tão inatingíveis como as que a imaginação havia formado e a realidade destruíra. Não há motivo para que, fora de nós, um local de verdade possua de preferência os quadros da memória do que os do sonho. E depois, uma nova realidade nos fará talvez esquecer, e até mesmo detestar, os desejos em virtude dos quais tínhamos partido.”

 

 

“Frequentemente faz mal pensar.”

 

 

“Sem dúvida, embora cada qual fale mentirosamente da ternura de ser amado, sempre recusada pelo destino, trata-se de uma lei geral a que diz que a criatura a quem não amamos que nos ama pareça-nos insuportável.”

 

 

“Os prazeres que temos no sono, não os fazemos figurar na conta dos prazeres experimentados durante a existência. Para só aludirmos ao mais vulgarmente sensual de todos, qual de nós, ao despertar, não sentiu alguma irritação por ter experimentado, enquanto dormia, um prazer que, se não queremos nos cansar demais, já não podemos, uma vez despertos, renovar indefinidamente nesse dia? É como uma riqueza perdida. Tivemos prazer em uma outra vida que não a nossa. Sofrimentos e prazeres do sonho (que em geral se dissipam rapidamente ao despertar), se os fizéssemos figurar num orçamento, não seria no da vida corrente.”

 

 

“Ninguém gosta de exibir os parentes que permanecem aquilo que tanto nos esforçamos para deixar de ser.”

 

 

“Há uma coisa ainda mais difícil do que seguir uma regra: é não impô-la aos outros.”

 

 

“Por mais que minhas malas já estejam prontas, a gente nunca dispõe de tempo num dia de partida.”

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Honoráveis bandidos: um retrato do Brasil na era Sarney (Parte I), de Palmério Dória

Editora: Geração Editorial

ISBN: 978-85-6150-136-5

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 208

Sinopse: Um dos jornalistas mais respeitados do país conta os bastidores do surgimento, enriquecimento e tomada do poder regional pela família Sarney. Do Maranhão ao Senado, o livro mostra os cenários e histórias protagonizadas pelo patriarca que virou presidente da República por acidente, transformou o Maranhão no quintal de sua casa e beneficiou amigos e parentes. Com 50 anos de vida pública, o político mais antigo em atividade no país enfrenta escândalos e a opinião pública. É a partir daí que o livro puxa o fio da meada, utilizando as ferramentas do bom jornalismo investigativo. Sempre com muito bom humor, o jornalista faz um retrato do Brasil na era Sarney, os mandos e desmandos do senador e seus filhos, no Maranhão e no Congresso Nacional.



“A filha Roseana Sarney, senadora pelo Maranhão, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro, o mesmo PMDB do pai, caminhava pelo plenário, muito nervosa. Estava em lágrimas quando o pai encerrou sua fala. Os oitenta pares o aplaudiram protocolarmente, mas um deles, de um salto pôs-se de pé e bateu palmas efusivas, acompanhadas do revoar de suas melenas. Tratava-se de Wellington Salgado, do PMDB mineiro, conhecido como Pedro de Lara ou Sansão.

Onde se encontravam os jornalistas de política nesse momento, que não registraram tal despautério? Pedro de Lara é aquela figura histriônica que roubava a cena no programa Silvio Santos como jurado ranzinza, debochado e falso moralista. E Sansão, o personagem bíblico que perdeu o vigor quando Dalila o traiu cortando-lhe a cabeleira.

Esta figura caricata pareceria um estranho no ninho em qualquer parlamento do mundo. Nascido no Rio, é dono da Universidade Oliveira Salgado, no município de São Gonçalo, e responde a processo por sonegação de impostos no Supremo Tribunal Federal. Conseguiu um domicílio eleitoral fajuto em Araguari, Minas Gerais, e praticamente comprou um mandato de senador ao financiar de seu próprio bolso, com 500 mil reais, uma parte da milionária campanha para o Senado de Hélio Costa, o eterno repórter do Fantástico da Rede Globo em Nova York.

Com a ida de Hélio para o Ministério das Comunicações de Lula, seu suplente Wellington então ganhou uma cadeira no Senado Federal, presente que ele paga com gratidão tão desmesurada, que separa da verba de seu gabinete todo santo mês os 7 mil reais da secretária particular do ministro. Nesse tipo de malandragem, fez como seu ídolo, colega de Senado Renan Calheiros, que vinha pagando quase 5 mil mensais para a sogra de seu assessor de imprensa ficar em casa sem fazer nada.

Mas o cabeludo senador chegou à ribalta em 2007, justamente como aguerrido integrante da tropa de choque que salvou o mandato de Renan Calheiros, então presidente do Senado e estrela principal do episódio mais indecoroso daquele ano, com amante pelada na capa da Playboy, bois voadores e fazendas-fantasma. O alagoano Renan, com uma filha fora do casamento, que teve com a apresentadora de tevê Mônica Veloso, bancava a moça com mesada paga por Cláudio Gontijo, diretor da construtora Mendes Júnior. Ao tentar explicar-se, Renan enredou-se em notas frias, rebanho superfaturado, rede de emissoras de rádio em nome de laranjas, enquanto Mônica mostrava aos leitores da revista masculina da Editora Abril a borboleta tatuada na nádega.”

 

 

“Memorável dia 2 de fevereiro (de 2009). Surpreendentes seriam as fotografias nos jornais do dia seguinte. Sarney de óculos escuros como os ditadores latino-americanos do passado, amparado pelo colega de PMDB Michel Temer, eleito presidente da Câmara, igualmente pela terceira vez. Barba e bigode. Este Michel Temer, com seu talhe de mordomo de filme de terror, merece umas pinceladas.

Michel Miguel Elias Temer Lulia, paulista de Tietê, nascido em 1940, é advogado, pai de três filhos. Casou em segundas núpcias em 2003 com uma jovem 42 outonos mais nova, “aspirante a Miss Paulínia”, de 20 anos.

Temer desponta no mundo político no começo da década de 1980. Filiado ao PMDB desde 1981, elegeu-se deputado federal em 1986. Foi secretário de Segurança no governo de Franco Montoro. Professor universitário de direito. Jeito cerimonioso, formal e educado.

Em 1990, Luís Antônio Fleury Filho se elege governador de São Paulo, numa eleição difícil bancada pelo governo Orestes Quércia – “quebrei o Banespa, mas elegi meu sucessor”, a frase de Quércia entrou para os anais da política desta Era Sarney. Pouco depois do massacre do Carandiru, em outubro de 1992, Fleury Filho indica Michel para a Segurança Pública. Ele organizou a Secretaria, criou condições de trabalho, deu recursos técnicos e operacionais.

Os admiradores e eleitores sabem que, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que conteve o crime organizado, foi a época de melhor coexistência pacífica entre jogo do bicho e cassinos clandestinos de um lado, e de outro lado o alto comando da polícia. Não se sabe de escândalo em sua gestão, mas não há quem não saiba em São Paulo que o comando da jogatina organizada e o impoluto jurista encarregado de reprimi-la se davam às mil maravilhas.

Michel talvez seja um dos políticos mais dissimulados do país. Não tem a arrogância de ACM, o sentimento oligárquico e o provincianismo de Sarney, o pavio curto de Ciro Gomes, os ademanes gatunos de Renan Calheiros. Usa abotoaduras de Saville Road, o templo londrino dos elegantes, ou as compra em Roma, quando vai dar aulas de direito como professor convidado. As meias são as mesmas de outro elegante, o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, de seda pura. A coleção de gravatas concorre com as 4 mil deixadas na mansão do Cosme Velho por Roberto Marinho, o general civil da ditadura militar. O cabelo, tingido, não chega a ser ridículo como o negro asa-de-graúna do presidente do Senado, que aparece ao seu lado nos jornais do dia seguinte ao indigitado 2 de fevereiro de 2009. A voz é do tipo frequência modulada, imperturbável e serena. Não há testemunho de uma grosseria, um ato tosco, um palavrão, um agravo que tenha partido de sua figura bem-posta.

No romance do cubano Alejo Carpentier, O Recurso do Método, o refinado e culto governante de uma nação caribenha é, ao mesmo tempo sanguinário ditador. O jurista Michel Temer, poderoso presidente da Câmara dos Deputados na década de 1990, foi ao mesmo tempo dono de um pedaço suculento da administração pública. Foi o padrinho, o chefe, o protetor de quem operou o maior esquema de corrupção da história das docas de Santos, maior porto comercial da América Latina.

Por lá passam 25% do que o Brasil importa ou exporta, e lá reinava um homem seu, um apadrinhado seu. Atende pelo nome de Wagner Rossi. Político de Ribeirão Preto, intimamente ligado ao quercismo, mas também a qualquer governo que possa lhe dar algo em troca. Na superintendência do porto de Santos, onde 8 mil estivadores pegam no pesado e 40 navios estão em operação num dia comum, Wagner Rossi criou um estilo debochado e extrovertido para não fazer nada pelo resto da vida, ele e os descendentes. Recebia empresários e fornecedores com um procedimento que marcou sua administração e traumatizou a maior parte de suas vítimas. Precavido, tinha no gabinete um aparelho de som potente, sintonizado nas mais inesperadas emissoras de Santos. E ao som de baladas brejeiras ou rock pauleira, tocados em altos decibéis, atendia os interessados. Assim evitava gravações. Falava quase no ouvido das pessoas, sussurrando uma cantilena de administrador ímprobo. Como se fosse o mímico Ricardo “Marcel Marceau” Bandeira das docas santistas, na calada do gabinete fechava os acordos mais espúrios com uma gesticulação que enojava ou divertia os empresários importadores ou exportadores. Sorridente, arregalava os olhos, levantava as mãos e esfregava freneticamente indicadores e polegares, sinal de dinheiro desde que o dinheiro existe. Se todo o empresariado brasileiro sabe disso, se toda a classe política sabe, se toda a imprensa nacional sempre soube, e agora você também já ficou sabendo, como Michel Temer não haveria de saber?

Este era o novo presidente da Câmara, que aparecia nas fotos praticamente amparando o novo presidente do Senado, Casas que entrariam numa fase de escândalos dia sim dia não, um deles carimbado pela mídia como “farra das passagens”.

Pois não é que Michel Temer logo usaria o agora famoso ato secreto para absolver um colega que “farreou”? O presidente da Câmara perdoaria o deputado potiguar Fábio Faria (PNM-RN), e por extensão a outros parlamentares que usam nosso dinheiro para a tal “farra das passagens". Em dezembro de 2007, Fábio Faria levou, para animar seu camarote de “carnaval fora de época” em Natal, artistas e a apresentadora de televisão Adriane Galisteu, a quem atribuiu o status de “namorada”.

Michel arquivaria o caso em 3 de junho de 2009. Respaldou a decisão em pareceres técnicos, pelos quais o erário pagou R$ 150 mil. A “análise ética”, que custou R$ 70 mil, foi do professor da Universidade de São Paulo Clóvis de Barros Filho, que ao jornal O Estado de S. Paulo declarou, em 24 de junho:

“Meu parecer é um pouco broxante, enigmático, porque não oferece uma condenação apressada nem uma absolvição ingênua. Não tenho elementos para condenar ou absolver.”

Trata-se, como se vê, de uma versão caríssima do que teria dito, de graça, o político mineiro Benedito Valadares (1892-1973), aquele que ficava “rouco de tanto ouvir”. Valadares simplificaria a questão, dizendo o seguinte:

“Deputado levar com dinheiro público acompanhante de luxo para evento carnavalesco, não sou contra nem a favor, muito pelo contrário.”

 

Já o parecer “jurídico” foi de Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Ao Estadão, este homem da lei disse sobre a ajuda de custo para comprar passagens de avião:

“Consiste na alocação de uma verba ao parlamentar para que este se transfira, com sua família, com suas amizades mais íntimas, seus empregados, animais de estimação etc., bem como os pertences de sua conveniência para a referida sede.”

Portanto, opina o jurista, ninguém tem nada com isso, se o parlamentar leva até a cadela para passear de avião. É, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, questão “de foro íntimo”. Seu parecer nos custou mais caro: R$ 80 mil. Parece que, com tão doutos pareceres encomendados pelo presidente da Câmara, a farra das passagens está doravante autorizada.”

 

 

“Pobre do congressista que viesse com conversa de moralidade naquele 2 de fevereiro de 2009. Todo o mundo sabia que na plataforma do rival de Sarney, o petista acreano Tião Viana, uma das primeiras providências era afastar o diretor-geral do Senado, Agaciel Maia. Quem em Brasília não sabia de sua casa de 5 milhões, às margens do Lago Paranoá, com quase mil metros quadrados, três andares, cinco suítes, campo de futebol, piscina em forma de taça e píer para barcos e lanchas, escamoteada em nome do irmão? Casa que o irmão, deputado João Maia (PR-RN), escondeu da Receita Federal e da Justiça Eleitoral, e para justificar tal fato, Agaciel usou o cândido argumento de que não podia pôr a casa em seu nome porque estava com os bens indisponíveis devido a outro rolo, conhecido como escândalo da gráfica do Senado – no ano eleitoral de 1994, candidatos imprimiam à custa do dinheiro público material de propaganda eleitoral. Adivinhe quem se beneficiou dessa falcatrua? Acredite se quiser: entre outros, a filha de Sarney, Roseana, então deputada e candidata vencedora ao governo do Maranhão, numa eleição que ela ganhou na mão grande.”

 

 

“José Sarney começa sem identidade própria. É apenas o “Zé do Sarney”, por sua vez com tal nome registrado porque o avô do nosso herói, diz a história, quis homenagear um inglês ilustre que aportou a serviço no Maranhão e a quem todos chamavam de Sir Ney.”

 

 

“Aderson Lago, de tradicional estirpe política, chefe da Casa Civil do governador maranhense Jackson Lago em 2009, é uma memória viva daqueles tempos:

“Sarney nasceu, cresceu e criou dentes dentro do Tribunal. O pai não era um fazendeiro abastado, empresário, não era porra nenhuma. Nunca tiveram nada. Nunca acertaram nem no jogo do bicho. Sarney não tem como explicar a fortuna que tem. Ele mesmo contou, quando presidente da República, na inauguração do Fórum Sarney Costa, que o pai teve que vender sua máquina de escrever para mantê-lo por uns tempos”.

 

 

“Aderson Lago narra a história de certo engenheiro italiano que havia construído a fortaleza de Dien Bien Phu, no Vietnã, e para cá veio tocar a construção do porto de Itaqui, perto de São Luís – por onde meio século depois sairia o minério de Carajás e outras mil riquezas do Brasil. Surgiu uma demanda judicial contra a empresa do italiano. No último julgamento, que a empresa perderia e, por isso, quebraria, descendo a escadaria do Tribunal, o italiano, referindo-se a Sarney, comentou com seus advogados:

“Se Al Capone estivesse vivo e aqui estivesse, diante desse rapaz de bigodinho seria um mero aprendiz”.

 

 

“Insondáveis são as razões do coração, realmente. Quando nos debruçamos sobre a folha corrida dos três pimpolhos do velho coronel Sarney, encontramos mais razões para um pai corar de vergonha do que para orgulhar-se. No entanto, o senador sempre demonstrou verdadeira devoção paterna por seus meninos, com indisfarçável xodó pela menina, a mimada mais velha dos três.

Roseana deu os primeiros passos na política em pleno Palácio do Planalto, no Gabinete Civil da Presidência da República, aos 32 anos, formada em ciências sociais, um vernizinho de esquerdista, um violão mal tocado, o apelido de Princesinha do Calhau – menção à mansão colonial na praia do Calhau, que ocupa um quarteirão inteiro de 20.000 metros quadrados, cercada por coqueiros de babaçu e um muro alto, em frente da Baía de São Marcos, em São Luís. Era onde se decidia a vida política do Maranhão. Ali pai e filha montaram suas mansões, vizinhas.

Quem entra na mansão de Sarney imagina tudo, menos uma residência. Com mania de colecionar anjinhos barrocos e outras antiguidades, chegou a retirar o portão de ferro fundido do cemitério de Alcântara, ilha tombada pelo Patrimônio Histórico, e levar para casa como peça de decoração. Quando o visitou, o ex-presidente socialista de Portugal, Mário Soares, levado à mansão, depois de algum tempo de espera, perguntou a Fernando, filho caçula do senador:

“Agora vamos à casa do presidente Sarney?”

Pensou que estava num museu.”

 

 

“Vizinha do pai na Praia do Calhau, vizinha do pai no Planalto: Roseana tinha gabinete montado pertinho do gabinete do pai presidente. Comportava-se como se estivesse na própria casa.

Bocuda. E desbocada. Mal chegando às bordas do poder federal, ela presenciou o encontro em que o deputado Cid Carvalho, seu conterrâneo, pediu a Sarney apoio para o PMDB nas eleições de 1985. Cid foi enfático:

Presidente, ao senhor interessa o PMDB erecto!

Cid voltou ao Planalto semanas depois desenxabido com o fracasso de seu candidato, que não passou do quarto lugar, com apenas dez mil votos. Roseana levantou o braço de punho fechado em posição fálica:

"Então, Cid? Cadê o PMDB erecto?

Baixou o cotovelo e o balançou em gesto obsceno:

“Broxou?

Ali ela já era funcionária do Senado, graças a um truque inacessível a nós mortais comuns. Consultemos a reportagem publicada na Folha Online de 25 de marco de 2009. Diz o título: “Sarney ACM e Renan criaram 4.000 vagas no Senado”. Um trecho da reportagem:

Trem da alegria Entre os servidores efetivos, nem todos são concursados. Estes somam cerca de 1.200. Entre 1971 e 1984, os senadores aproveitaram para efetivar servidores por meio de atos administrativos, embora isso fosse vedado pela Constituição. A atual líder do governo no Senado, Roseana Sarney (PMDB-MA), é servidora do Senado graças a um trem da alegria de 1982, assinado pelo então senador Jarbas Passarinho.

O coronel Jarbas Passarinho prestou grandes desserviços à nação, seja como ministro da Educação da ditadura militar quando reprimiu e perseguiu estudantes e professores, seja como incentivador do Ato Institucional 5, o AI-5, diante de cuja truculência mandou “às favas os escrúpulos” e apoiou com entusiasmo. No finalzinho da ditadura, serviu aos apaniguados com o ato que beneficiou a filha dileta de seu amigo José Sarney, antecipando o legítimo Trem da Alegria de 1984, do senador do PDS capixaba Moacyr Dalla, que embarcou 780 felizardos na gráfica do Senado e outros 600 nos gabinetes da Casa, entre eles a mesma Roseana, que nem morava em Brasília, mas no Rio.

“Essa moça é muito raivosa. E só tem duas amigas: a rainha de copas e a Viúva Clicquot”, disse um dia o ex-governador Epitácio Cafeteira, da família dos Bules, como brincava o jornalista Stanislaw Ponte Preta.

Rainha de copas refere-se a um dos vícios, segundo Cafeteira; e Viúva Clicquot se refere a outro: é meia tradução do nome do champanha francês Veuve Clicquot.

Cafeteira, mais tarde um aliado, era então o mais popular dos adversários políticos e inimigos dos Sarney. Foi ele que em 1994, por apenas um por cento dos votos, perdeu para Roseana o governo do Estado. Ganhou folgado o primeiro turno e no segundo foi derrotado por um triz graças, segundo denúncias documentadas, a uma fraude grosseira nas apurações. O que se sabe com certeza é que papai Sarney instalou-se pessoalmente dentro do Tribunal Regional Eleitoral, o TRE, e de lá só saiu quando os votos para a vitória da filha estavam assegurados.”

 

 

“‘Roseana é muito inteligente, mas não tem bom coração. Zequinha tem bom coração mas não tem inteligência. Fernando não tem nenhum dos dois’, define João Castelo, outro ex-aliado que virou adversário e, até 2009, quando era prefeito de São Luís, não havia se reconciliado.”

 

 

“Tal era a confiança de Sarney em Tauser Quinderé – nascido em Codó e ex-dono da Companhia Maranhense de Mineração –, que o usou como pombo-correio. Por mais de 20 anos, de tempos em tempos Tauser ia pessoalmente à Suíça levar a mala com as “economias” de Sarney. Certo começo de tarde, instalado numa mesa do Bar da Onça, no térreo do edifício Copan, em São Paulo, Helito, bisneto do Barão de Amparo, conta entre talagadas de uísque:

“Na ditadura, não tinha esse problema, na Suíça entra tudo, então ia com a mala. Não tinha negócio de doleiro não, economizava os quatro por cento do doleiro. E, numa dessas viagens, em Genebra, o Tauser teve um ataque fulminante do coração e morreu, no saguão do aeroporto. Atenderam o Tauser e levaram a mala. O Sarney ainda não era o bilionário que é hoje, mas já era um homem rico. Tinha sido governador, era senador, já tinha os diretorezinhos e o próprio Fernando Sarney na Eletronorte, o Astrogildo Quental levantando dinheiro pra ele, que estava começando a argamassar a fortuna. E nessa mala tinha muito, era uma mala de viagem lotada de dinheiro, e o Tauser morre com ela. Como o Sarney é sabidamente sovina, o Tauser viajava sozinho, de classe econômica, aquelas coisas, sem acompanhante, nada. Pegaram o corpo do Tauser e a grana não apareceu até hoje. Tem mais um rico no mundo.”

Depois de dois belos goles de uísque, com o copo longo envolto por um guardanapo de papel, a aristocrática figura do ex-subchefe da Casa Civil de Maluf retoma o fio da história:

“Ao saber da notícia de que perdeu o fiel escudeiro – e também a mala – o coração de Sarney fraquejou. Impactado por ambas as perdas, deixou Brasília em direção aos cardiologistas de São Paulo. No learjet do dono do cimento Cauê, o mineiro Juventino Dias, dona Marly acompanhou o marido enfartado com o rosário nas mãos”.”

 

 

“O novo golpe de mestre de Fernando Sarney se dará então na nova transição de governo. Fernando Collor, que havia acabado de vencer Lula no segundo turno, nas eleições de 15 de novembro de 1989, chamou José Sarney para uma conversa reservada poucos dias antes de tomar posse. Conversa entre presidente que sai e presidente que entra. Collor ia tomar posse dia 15 de março de 1990, uma quinta. Ele pediu a Sarney que decretasse feriado bancário, a fim de facilitar a tomada de medidas econômicas do novo governo.

Só quem viveu aqueles dias sabe a hecatombe que aconteceu. Não só os 31 milhões de brasileiros que votaram em Lula, mas também os 35 milhões que votaram em Collor caíram das nuvens naquele início de novo governo. Collor confiscou por 18 meses as contas bancárias acima de 50 mil cruzados de todos os cidadãos e empresas – muitas delas pela primeira vez em sua história deixaram de pagar os funcionários em dia. Houve gente que havia poupado durante anos e anos e só contava com aquela soma para tocar a vida, gente que tinha acabado de vender a casa para construir outra, gente que se suicidou, e toda sorte de atropelo para milhões de brasileiros. Não se sabe até que ponto Collor informou Sarney, mas com certeza o clã ficou sabendo que haveria confisco.

Um passarinho contou a Fernando Sarney, ou terá sido um bumba-meu-boi. Usando suas prerrogativas de filho do presidente da República, Fernandinho sorrateiramente dirigiu-se à agência do extinto BBC, Banco Brasileiro Comercial, de propriedade do ex-governador goiano e ex-senador Irapuã Costa Júnior, para combinar o resgate de dezenas de certificados de depósitos bancários (CDBs) ao portador. Não era pouco. Foi preciso fretar um carro blindado, como um daqueles da Brink's, para retirar a dinheirama, que saiu do subsolo do BBC no Setor Comercial Sul da capital federal. Fernando Sarney comandou a operação pessoalmente.

A capacidade dessa gente de escapar das maiores safadezas de que se tem notícia neste país é de dar um friozinho na barriga, ao imaginar que nem uma Operação Mãos Limpas poria esses colarinhos sujos atrás das grades. Ora veja que, em 2001, sequer uma Comissão Parlamentar de Inquérito relou num dedinho deles. Foi a CPI da CBF-Nike, e quem tentou mexer com eles foi quem se estrepou: a editora Casa Amarela, que publicava a revista Caros Amigos, produziu um livro-reportagem sobre a maracutaia e amargou o prejuízo de ver o trabalho impedido de sair pela Justiça. O presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira, se safou mais uma vez. Ele e seu vice predileto, Fernando Sarney.”

 

 

“Fernando, um dos vice-presidentes da CBF, antes da Operação Boi-Barrica tinha vasta pretensão: chegar a presidente da entidade-mor do futebol brasileiro, sob a bênção de Ricardo Teixeira. Todo o mundo sabe da grande amizade entre os dois. Ricardo sempre foi presença certa nas comemorações da família Sarney. Imagine o que a dupla vinha maquinando para faturar na Copa de 2014. Construção ou reforma de estádios? Muito pouco. Era sintomático que Ricardo Teixeira viesse se batendo pela privatização da Infraero, que toma conta dos aeroportos. Dizia que o país só poderia ser sede de uma Copa de padrão de primeiro mundo com aeroportos modernizados. A ideia geral era deixar Carlos Arthur Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, envergonhado com a mixaria que a turma dele faturou no Pan-Americano do Rio em 2007.

Ricardo Teixeira e Fernando Sarney iriam provar, na Copa de 2014, que dinheiro pode dar em árvore, sim.”

 

 

“Vanitas vanitatum, vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Está no Eclesiastes, livro da Bíblia sagrada que todo velho pecador teme ao abrir. A vaidade não se dá jamais por vencida; desmesurada, vai contra a lei dos homens – e até de Deus, se você crê. Como a esperteza, como dizem os mineiros, quando é demais engole o dono. O neocoronel segue como purpurado em cortejo sem ouvir a criança na calçada gritar que ele está é nu, pelado, peladinho.

Corre o mundo virtual o anedotário. Num blog, Veridiana Serpa, que se apresenta como bacharel em Turismo, se estarrece com o que descobriu. Em meados de 2009, ela postou na internet que, em São Luís e outras cidades do Maranhão, pode-se:

• Nascer na Maternidade Marly Sarney.

• Morar numa dessas vilas: Sarney, Sarney Filho, Kyola Sarney ou Roseana Sarney.

• Estudar nas escolas: Municipal Rural Roseana Sarney (Povoado Santa Cruz, BR-135, Capinzal do Norte); Marly Sarney (Imperatriz); José Sarney (Coelho Neto).

• Pesquisar na Biblioteca José Sarney.

• Informar-se pelo jornal Estado do Maranhão, TV Mirante, Rádios Mirante AM e FM, todos de Sarney; no interior, por uma de suas 35 emissoras de rádio ou 13 repetidoras da TV Mirante.

• Saber das contas públicas no Tribunal de Contas Roseana Murad Sarney.

• Entrar de ônibus na capital pela Ponte José Sarney, seguir pela Avenida Presidente José Sarney, descer na Rodoviária Kyola Sarney.

• Reclamar? No Fórum José Sarney de Araújo Costa, na Sala de Imprensa Marly Sarney, e dirigir-se à Sala da Defensoria Pública Kyola Sarney.

Veridiana encontrou mais estas:

• Travessa José Sarney, Anil, São Luís, Rua José Sarney, Tirirical, São Luís.

• Rua Marly Sarney, Açailândia.

• Rua Fernando Sarney, Santa Inês.

• Travessa Roseana Sarney, São Francisco, São Luís.

• Avenida Governadora Roseana Sarney, Barra da Corda.

• Avenida José Sarney, Chapadinha.

• Travessa José Sarney, Caxias.

• Avenida Sarney Filho, Vila Embratel, São Luís.

• Avenida Senador José Sarney, São Luís.

Divirta-se! O Google está aí para isso. Procure que você acha mais. Nem Tiradentes, mártir da Inconfidência e Herói Nacional, recebe tanta honraria. E está morto. Eles estão muito vivos.”

 

 

“O deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), tal como aquele ministro que ditou nossa política econômica nos “anos de chumbo”, seu negócio é números. Trabalhou na Xerox e na auditoria Arthur Andersen, então entrou para a política. E passou a inscrever no currículo inumeráveis suspeições.

Em 2000, a Receita Federal acusou “incompatibilidade entre sua movimentação financeira e o montante declarado ao Imposto de Renda”. Três anos depois, segundo denúncia que chegou ao presidente da Câmara, Aldo Rebelo, do PCdoB paulista, Eduardo Cunha e dois colegas deputados estavam tomando dinheiro de empresários do setor de combustíveis. Usavam a Comissão de Fiscalização e Controle para os convocar e, se quisessem livrar-se da convocação, pagavam “pedágio”. A denúncia não deu em nada.

A deputada estadual Cidinha Campos, do PDT do Rio de Janeiro, mais tarde acusou Eduardo de esquisita transação com o traficante colombiano Juan Carlos Abadia, preso em agosto de 2007 num condomínio de alto luxo em São Paulo. Cidinha afirmou em discurso na Assembleia que Eduardo vendeu para Juan Carlos uma casa no litoral fluminense por 800 mil dólares. Casa recomprada, em seguida, por 100 mil dólares a menos. Negócio feito por meio de laranjas, segundo Cidinha. Eduardo nega.

Eduardo tem afinidades com o clã Sarney – adora, por exemplo, lidar com energia. E fundos de pensão. Contra a posição da ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, e usando artifícios regimentais da Câmara que lhe permitiam chantagear, pôs na presidência de Furnas Centrais Elétricas o ex-prefeito carioca Luiz Paulo Conde. Após 14 meses no cargo, Conde ficou doente e se afastou, depois de lutar para pôr a mão no fundo de pensão Real Grandeza, dos funcionários de Furnas, que detém mais de RS 6 bilhões em caixa (lutando por seu próprio futuro, os funcionários de Furnas chegaram a entrar em greve tendo como pauta somente a não aceitação da nomeação de um apaniguado de Eduardo Cunha para seu fundo de pensão).

Entre 2003 e 2006, outro fundo de pensão, o Prece, da companhia de saneamento do Rio, gerido por gente que Eduardo indicou, deu prejuízo de mais de R$ 300 milhões, segundo apurou a CPI dos Correios. Parte do dinheiro regou o “valerioduto”, esquema de desvio de verbas públicas para comprar apoio de parlamentares – o chamado Mensalão.

Quem o pôs na política foi o tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor, de trágica memória, Paulo César Farias, o PC. Com menos de 30 anos, Eduardo era figura importante na campanha de Collor no Rio. Virou presidente da Telerj, companhia de telecomunicações fluminense. Aliou-se a Anthony Garotinho e à mulher dele, Rosinha. Evangélico, em 2000 elegeu-se deputado estadual pelo PPB de Paulo Maluf.

Deputado federal, reeleito em 2006, tornou-se especialista em energia. Então, em 25 de março de 2009, incluiu uma mudança na regra das licitações, abrindo a possibilidade de a Eletrobrás comprar bens e contratar serviços por meio de um “procedimento licitatório simplificado”. Em seu blog, o preparado jornalista de economia Luis Nassif chamou Eduardo pelo eufemismo de “operador”. Ou seja: Eduardo Cunha operou, e doravante a turma do Sarney e do Lobão pode fechar negócio com quem quiser, como quiser. Comentário do mesmo Luis Nassif sobre a nova regra:

Sempre existe o risco de deixar a raposa solta no galinheiro”.

 

 

“O Maranhão, depois de 40 anos de predação promovida pelo clã dos Sarney, tornou-se o maior exportador de gente do país. Na primeira década do século 21, você encontraria maranhense nos lugares mais improváveis, nos garimpos da fronteira com a Venezuela, no corte de cana do interior paulista, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, na lavoura do Tocantins, no Amapá, nas Guianas, até em Florianópolis – que jamais havia visto um maranhense ao vivo, salvo turista.

A maioria dos passageiros que, partindo de São Luís, seguia no trem da ferrovia Carajás em direção ao Pará, era de maranhenses que possivelmente nunca mais voltariam. Espalhavam-se pela Amazônia como formiguinhas sem rumo em busca de migalhas. No sul do Pará, um em cada quatro habitantes já era maranhense. Dos 19 sem-terra assassinados em 1996 pela PM do Pará em Eldorado dos Carajás, 11 tinham vindo do Maranhão. Mas a que se deve tanta desgraça?”

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Os Templários e o pergaminho de Chinon encontrado nos Arquivos Secretos do Vaticano – Barbara Frale

Editora: Madras
ISBN: 978-85-3700-300-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 183
Sinopse: Ordem monástica constituída para defender a Cristandade na Terra Santa, os Templários têm desde sempre exercido um imenso fascínio no imaginário ocidental. Numa investigação que teve pela primeira vez acesso aos Arquivos do Vaticano, a autora traça o percurso da ordem desde a sua fundação, deslindando as causas e reais motivações por detrás do fantástico processo que no século XIV levaria à extinção dos cavaleiros do Templo.



“O signo mais forte que Hugues de Payns desejava imprimir à sua fraternidade era aquele da pobreza e da penitência. O grupo devia viver com o espírito de serviço voltado à Terra Santa, cumprir a missão militar de defesa dos cristãos, para expiar os seus pecados. Por esse motivo, os cavaleiros não possuíam inicialmente uma sede fixa, vestiam-se com as roupas dadas pela população como esmola e obedeciam ao capítulo dos Cânones do Templo. Foi o rei de Jerusalém que interveio na estrutura original da fraternidade para modificar suas intenções e tal transformação teria feito sentir imediatamente seus efeitos.”


“Os militares cristãos não eram muito clementes, mas os sarracenos, às vezes, faziam exibições de crueldade exasperada contra o inimigo: no final de junho de 1119, os soldados turcomanos do príncipe sírio Ilghazi haviam arrastado os prisioneiros francos para uma planície de Aleppo e os massacraram, mas não tanto a ponto de matá-los, porque o chefe deles não queria privar a plebe da cidade de toda a diversão. Logo, foram levados da planície e torturados até a morte nas vias públicas da mesma cidade. As reticências do prior da Grand-Chartreuse correspondiam a uma linha de pensamento antiga, mas muito compartilhada. A moral cristã sempre se mostrou contra a realização da guerra, mesmo que nenhuma das passagens do Evangelho a condene. Já nos primeiros passos do Cristianismo, a escolha militar era considerada como um ato de desprezo em relação às leis de Deus, havendo diversos exemplares de santos que, para abraçar a vida cristã, haviam dado solenemente o adeus às armas. Essa questão, porém, havia sido enfrentada nos tempos de Ambrósio e Agostinho, mas o tema da legalidade das armas e da guerra justa era extremamente delicado.”


A finalidade de quem se faz Templário é aquela de expiar os seus próprios pecados, colocando a vida em risco para proteger Jerusalém e a Terra Santa. É uma espécie de cruzado em vida, mas que depois da morte terá sua alma como a de um homem dedicado, a serviço da Igreja e da fé. A morte dos sarracenos significa assassinato aos assassinos; é a eliminação de todos que se fazem instrumentos do mal: não homicídio, mas malicídio, ou a morte do mal. Como São Miguel Arcanjo, chefe das hostes celestes contra o poder das trevas, trespassa o demônio na grande batalha do último dia, o cavaleiro Templário far-se-á servo da fé combatendo e dando a sua vida; e a própria Virgem, pela qual Bernardo tem uma devoção fortíssima, não seria aquela que esmagaria sob o seu pé a cabeça da serpente, encarnação do mal.”


“Ainda que as argumentações dos estudiosos sejam muito válidas, não se deve esquecer da opinião de São Bernardo, preposta ao nascimento da Ordem, e da qual não se têm dúvidas:
É, portanto, coisa digna de admiração e de singularidade ver como estes são os mais moderados dos cordeiros e, ao mesmo tempo, os mais ferozes dos leões, sim que quase duvido se será melhor chamá-los monges do que soldados, amenos que talvez não seja oportuno chamá-los de ambos os modos, enquanto a eles não falta nem a suavidade do monge nem a coragem do guerreiro.”


“A excelência militar dos cavaleiros templários devia ser evidente no momento do combate: o prestigioso emblema bipartido branco e preto, cujo significado os historiadores ainda não estão certos, era a imagem visível do orgulho religioso e militar da Ordem. Não eram admitidas recusas a esse espírito de heroísmo, em nome da imagem moral do Templo que era defendida a todo custo. O único refúgio era a solidariedade dos outros confrades, prontos a se expor pessoalmente para salvar um companheiro:
Ninguém deve se afastar da sua posição sem a
permissão do superior, nem mesmo se estiver ferido. E se
estiver em situação de não conseguir pedir licença, deve
mandar um companheiro que o faça. E se por acaso ocorrer
dos cristãos serem derrotados, que Deus os receba! Nenhum
frade deve afastar-se do campo de batalha até que seja
exposta ao inimigo a insígnia do Templo: e quem desrespeitar
essas normas será caçado e excluído para sempre da Ordem.
Quando um frade vir que não há mais nenhum estandarte do
Templo nas imediações, deverá deslocar-se para o estandarte
dos Hospitalários mais próximo que puder ser encontrado, e se
mesmo estes estiverem próximos da derrota, desde então
estará livre para se colocar a salvo da forma que Deus lhe
sugerir.”


“O especialista em história militar Claude Gaier afirma que a organização templária era muito eficiente, pois representava uma inovação: a normativa havia sido pensada para exaltar a coesão interna, o espírito de corpo, a ação coordenada em uma época em que a tática ainda se baseava fortemente no valor individual. A análise das fontes revela que a Ordem era caracterizada por uma notável compactação, enquanto na cavalaria laica as iniciativas pessoais frequentemente provocavam desordem. O Templo era o único corpo do exército cruzado capaz de manter uma disciplina constante.”


“Os cavaleiros do Templo deviam compartilhar substancialmente aquilo que os antropólogos chamam de “cânone social”, isto é, um sistema de valores que devia ser respeitado caso quisesse ser considerado como parte do grupo. De um modo mais simples, poderíamos falar de uma visão compartilhada de mundo que devia ser obedecida e unanimemente aceita.
O cânone social é imposto a todos os indivíduos que fazem parte de um grupo específico, e isso dá a marca ao comportamento e à sensibilidade individual.
Os cavaleiros formavam, então, um grupo potencialmente coeso na mentalidade mesmo antes de seu ingresso à Ordem: um grupo que andava, assim, acostumado com seu comportamento moderado, disciplinado e oportunamente catequizado mesmo enquanto a educação típica da aristocracia militar tivesse produzido convicções divergentes a respeito da moral cristã.”


“Em 1291, a queda de Acri, último baluarte da presença cristã na Terra Santa, pôs fim ao Ultramar e inferiu um golpe fatal à honra das ordens militares. O Grão-Mestre do Templo, Guillaume de Beaujeu, pertencente à maior nobreza da França e magnífico exemplo de valores cavalheirescos e de virtudes cristãs, morreu na tentativa de salvar a cidade e foi sepultado pelos companheiros na igreja da Ordem pouco antes que os Templários, últimos entre todos, abandonassem a cidade em chamas. Mas nem mesmo a reputação de Beaujeu, caracterizada pelo heroísmo e pelas muitas contribuições que fazia publicamente e também às escondidas, nem o comportamento honroso dos Templários puderam apagar a amarga verdade: o sonho cruzado estava completamente falido.”


“O corpo dos Estatutos Hierárquicos templários, na parte que regulava as normas a serem obedecidas durante a batalha, previa que os Cavaleiros do Templo não podiam abandonar o campo de batalha nem mesmo se ficassem completamente desarmados: a honra da Ordem requeria o sacrifício da vida. De uma fonte islâmica, como visto, aprendemos que, quando os Templários defendiam uma cidade, faziam baluarte com os seus próprios corpos, assim que o inimigo abrisse uma brecha nas muralhas: tão logo um deles caía, outro logo vinha substituí-lo. Uma igual capacidade de abnegação requeria obviamente fortíssima adesão ideológica às motivações éticas que animavam a Ordem, e também um oportuno condicionamento psicológico, para tornar esses guerreiros capazes de tais sacrifícios. Assim, a educação ao conceito de obediência absoluta era evidentemente a chave do problema.”


O Templo ou a Igreja de Roma
Com a investigação de Chinon, Clemente V pretendia, talvez, devolver a Felipe, o Belo, o tiro pela culatra dado no ano anterior quando ele, às vésperas de retornar das férias e de instruir a investigação da Igreja sobre os Templários, havia ouvido de um mensageiro que os seus imputados já tinham sido capturados, interrogados e declarados culpados. Mesmo assim, obteve um sucesso efêmero, como ele mesmo logo pôde verificar.
O antigo plano régio de processar Bonifácio VIII não havia caído no esquecimento nem mesmo após a morte do pontífice, já que o desaparecimento físico de Benedito Caetani não dava fim nas sanções que ele havia decretado a Felipe, o Belo. Entre as sanções decretadas estava a perigosa excomunhão redigida na Super Petri solio, com a finalidade de impedir a oficialização do que havia sido concretizado durante o atentado de Anagni: sabia-se que a bula havia sido emitida pelo papa em suas plenas faculdades mentais, e o texto, ainda que jamais promulgado, era uma perigosa espada de Dâmocles que poderia comprometer a legitimidade da Coroa francesa. Havia, depois, outros documentos contra Felipe, o Belo, e que o papa havia emitido nos momentos mais ásperos de seu conflito, como a bula Ausculta filii além da Unam sanctam, que sancionava a impossibilidade da salvação eterna para quem se encontrasse fora da Igreja de Roma, condição esta que Felipe, o Belo, entrado em profundo conflito com o pontífice, beirava perigosamente.
Clemente V encontrara em sua longa experiência jurídica e diplomática um hábil estratagema para reduzira tensão fazendo riscar dos suntuosos registros de Bonifácio VIII os passos que soavam demasiadamente duros contra o rei, de modo que, eliminada a matéria contrastante, Felipe, o Belo, não teria mais interesse em declarar como ilegítimo todo o pontificado dos Caetani. A tarefa do Templo e especialmente o golpe executado pelo papa com o evento de Chinon induziram os estrategistas régios a se desfazer da espinhosa questão do processo contra Bonifácio VIII para usá-la como moeda de troca.
O soberano solicitou formalmente a abertura de um processo em memória do falecido Benedito Caetani que teve de seguir as pegadas de um terrível precedente ocorrido no período mais negro de toda a história do papado, quando o trono apostólico estava à mercê dos conflitos entre as facções da nobreza romana. No ano de 891, Formoso havia subido ao trono apostólico, clérigo este com uma carreira eclesiástica complexa e muito discutível. Enquanto ocupou o cargo de bispo do Porto, Formoso fez-se conhecer por intermédio de sua brilhante habilidade política e diplomática, no entanto, uma facção rival interrompeu a carreira, boicotando sua candidatura a Patriarca da Bulgária, com o pretexto de que os cânones vetavam a um bispo passar de uma sede episcopal para outra. Envolvido nas tramas de um alto funcionário da corte apostólica, Formoso cometeu o erro de fugir, o que o tornou culpado perante os olhos de todos, sendo excomungado com outros conspiradores verdadeiros. Em seguida, durante o Concilio de Troyes, atirara-se aos pés do papa Giovanni VIII que o absolvera, fazendo com que, em troca, o mesmo jurasse não retornar mais a Roma e que não procurasse mais reassumir seu lugar na antiga sede no Porto. Nos anos seguintes, Marino I foi eleito papa e, já sendo bispo em Caere, fez cair no esquecimento a convocação aos cânones que privou Formoso do Patriarcado da Bulgária. De resto, Marino operou uma espécie de reparos nas relações que os partidos mantinham entre si, e, com essa linha política, Formoso recebeu sua cátedra episcopal do Porto, apesar do juramento prestado anteriormente a Giovanni VIII.
Com a morte de Estêvão V, no ano de 891, o nome de Formoso impôs-se pela sua experiência e também pela indubitável qualidade que os historiadores lhe atribuem. Como papa, talvez o único erro cometido foi o de se comprometer em favor de Arnolfo, rei da Alemanha, que aspirava reconquistar a coroa imperial contra a casa dos duques de Spoletò, que ambicionava o mesmo título. Em 895, Arnolfode de Carinzia chegou a Roma, onde Formoso, durante uma solene cerimônia, coroou o imperador. O soberano logo depois seria morto, seguido por Formoso, que foi sepultado na Basílica de São Pedro, juntamente com seus predecessores. A eleição de Estêvão VI, um expoente da facção hostil a Formoso ao partido alemão, foi a premissa do episódio passado para a história como o "Concílio do Cadáver". O novo pontífice naquela sede teria a possibilidade de declarar ilegítimo o papa Formoso e, por consequência, invalidar a coroação que este havia promulgado. Os despojos do papa, que jaziam na tumba há diversos meses, foram exumados e ele, ainda paramentado como papa, foi colocado sobre um assento e, em uma macabra recitação, o mesmo Formoso "reconhecia" suas culpas por intermédio de um diácono aterrorizado.
Condenado como papa ilegítimo por ter violado as prescrições canônicas que na realidade o papa Marino teria revogado, o seu cadáver foi mutilado na língua e nos três dedos da mão direita, pelos quais haviam partido as ordenanças. Enfim, foi atirado no rio Tevere, sendo recuperado secretamente em suas margens por um corajoso monge. O cenário que Felipe, o Belo, pretendia expor à custa do falecido Benedito Caetani seria o de percorrer exatamente todas as macabras passagens do concilio do cadáver, com exceção do uso do próprio cadáver, que, jazendo em sua tumba há cerca de cinco anos, presumia-se estar já reduzido a somente um punhado de ossos. Assim, interpretando o pavoroso ato noir com o qual os estrategistas de Felipe, o Belo, prepararam todos os processos políticos de seu reino, chantagearam Clemente V com a ameaça de se reexumar os ossos do falso papa Bonifácio VIII em um procedimento declarado como herético, blasfemo, ateu, dedicado à feitiçaria, queimando, enfim, os restos dos inimigos da fé. O resultado da operação contra a autoridade apostólica superava em muito a de seu precedente: Formoso, de fato, havia sido processado por ter violado a proibição canônica de passar de uma sede episcopal para outra, sem prejuízo moral, enquanto neste caso um papa era acusado por um titular do poder laico por atos religiosos de heresia e feitiçaria, como se o rei da França representasse a boa fé ao pontífice corrompido. A fogueira feita com os restos de Bonifácio VIII teria servido somente para mostrar com o seu espetáculo a total inversão no sistema das instituições, a fim de imprimir no imaginário coletivo a ideia de que uma nova época se iniciava e que o poder laico carismático da monarquia francesa guiaria a sociedade cristã, se necessário, como alternativa à autoridade papal, julgada num estado tal de decadência que não podia mais desenvolver seu papel. E enquanto se preparava a fogueira a ser acesa na praça, no Palácio Real os homens do Conselho redigiam um programa para reformar completamente a estrutura da Igreja, reunindo em torno do soberano a fidelidade dos bispos, na hipótese de se criar uma Igreja francesa autônoma e separada de Roma.
Em outubro de 1308, quando Clemente V apenas havia assinalado a sua vitória judiciária em Chinon, o plano régio dava seu primeiro passo: o bispo Guichard de Troyes foi acusado de bruxaria e queimado na fogueira, embora o mesmo pontífice o tivesse absolvido. Com esse gesto, Felipe, o Belo, pretendia demonstrar que a Igreja de Roma estava contaminada completamente pela heresia, uma vez que um papa, um bispo e por que não toda uma ordem religiosa estavam afundados na corrupção. Poucos meses depois, o cardeal Napoleão Orsini escrevia ao rei alegando ter encontrado na Itália a autoridade máxima que provaria a culpa de Bonifácio VIII e que estava pronto para trazê-la à França a fim de que participasse do processo. O papa, já neste momento afastado pela doença que o afligia há anos, renunciou à luta abandonando a Ordem Templária ao seu próprio destino. Enquanto fosse chefe da Igreja de Roma, ele era antes de tudo responsável pela segurança daquela instituição, fazendo a chantagem de Felipe, o Belo, partir-se em duas. Foi, sobretudo, um cálculo de ordem prática guiou o pontífice a uma escolha que lhe parecia óbvia: os membros da Ordem, que não haviam sido mortos na prisão ou sob a tortura dos soldados régios, estavam desmotivados e derrotados, vencidos pela infâmia que se abatera sobre o grupo, e, mesmo que fossem bem-sucedidos em salvar a Ordem, pouquíssimos deles teriam desejado fazer parte dela.
Igreja precisou embarcar então em outro embate similar ao que foi enfrentado por Bonifácio VIII em seu tempo, com a perspectiva de ir ao encontro de uma ruína certa, dada a desproporção de forças, mas visando a obter a sobrevivência jurídica de uma ordem já manchada com a infâmia, e que talvez continuasse existindo somente na vontade de alguns de seus membros mais ferrenhos. Em agosto de 1309, quando a ação do rei já havia dado convincente prova de força, Clemente V escrevia uma carta a todos os bispos da cristandade que, apesar de já há quase um ano estarem encarregados de abrir inquéritos sobre os Templários de suas dioceses, não haviam ainda sido instruídos sobre qualquer procedimento. A carta explicava “a todos aqueles que tinham a esperança de que o pontífice destilasse uma nova regra para os Templários” que aquilo não ocorreria, logo, exortava-os a não prorrogar por mais tempo as audiências. Aquela parte do bispado que não se opunha ao Templo estava convencida de que Clemente V pretendia salvar e reformar a Ordem, um fato bem compreensível se considerarmos que a bula enviada aos bispos para ordenar o desenvolvimento das investigações diocesanas iniciava-se com a frase “Concedendo o perdão” e que nenhum outro documento com uma premissa daquelas poderia conter uma ordem de condenação.
Toda uma série de fontes escritas por pessoas que se encontravam junto à corte pontifícia exprime a mesma convicção, ou seja, a de que o papa estava trabalhando um modo para garantir a sobrevivência do Templo. À luz desses conhecimentos, explicam-se as atitudes de alguns altos prelados como Rinaldo da Concorezzo, arcebispo de Ravenna, que ordenou a absolvição dos Templários de sua diocese por falta de provas, ou como Peter di Magonza, que se preocupou em redigir um inventário detalhado dos bens possuídos pela Ordem em seu território, de modo a poder recuperar todos os bens quando o Templo estivesse reabilitado.
Em agosto de 1309, Clemente V, que se deu conta de estar pressionado e escolhendo aquilo que em sua consciência lhe parecia o mal menor, sacrificou a existência da Ordem Templária para salvar a unidade da Igreja. O fim da Ordem estava então decretado, tratava-se agora de salvar os ex-Templários.”


“Os historiadores têm acreditado que os prelados escolhidos pelo papa tivessem sido completamente coniventes com Felipe, o Belo, mas essa consideração é exagerada e os eventos o demonstrarão. Escutando o veredicto do cárcere em vida, o Grão-Mestre e o seu mais fiel companheiro, o Preceptor da Normandia Geoffroy de Charny, rebelam-se e proclamam a completa inocência do Templo em todas as suas culpas que lhe foram imputadas: nesse ponto, os bispos da comissão foram confundidos e decidiram interromper seus trabalhos, já que um fato dessa magnitude necessitava de certa ponderação, sendo necessário consultar a vontade do papa. Vendo escapar de suas mãos aquela solução do compromisso que provavelmente Clemente V havia proposto e que a parte regia já havia aceitado, o rei começou a temer que a desativação do Templo não fosse mais tão segura aos seus olhos, retornando ao espectro da absolvição ou de outro ato imprevisto que pudesse recolocar em discussão todo o êxito do processo. Foi decidida uma maneira de encerrar de uma vez por todas a questão templária, de modo que esta não pudesse mais ser rediscutida: o rei manda raptar Jacques de Molay e Geoffroy de Charny, subtraindo-lhes da legítima custódia dos comissários, mandando-os à morte pelo fogo em uma pequena ilha do Senna, pouco após o anoitecer.
As fontes que nos falam desses fatos concordam com o grande heroísmo dos dois dignitários, que enfrentaram uma morte que teriam escolhido voluntariamente como ato supremo de testemunho pela própria Ordem. Jacques de Molay pediu aos carrascos que afrouxassem a corda que lhe cerravam os pulsos para que pudesse dirigir seus olhares à Catedral de Notre-Dame, que por mais de uma vez já havia visto testemunhar a sua inocência e rezou à Virgem Maria a quem São Bernardo havia dedicado a Ordem. Os Templários diziam que em nome da Virgem tudo havia tido início e que, em nome dela, tudo terminaria. Assim, com essa prece, o Grão-Mestre pretendia encerrar gloriosamente o fim do Templo, proclamando sua perfeita fé cristã.
A multidão presente agitou-se e para acender a fogueira foi necessário esperar que parte da mesma fosse dispersada. Segundo o testemunho do poeta Geoffroy de Paris, que provavelmente assistiu em pessoa à execução, Jacques de Molay teria chamado diante do Tribunal de Deus tanto o rei da França (que o havia traído) quanto o papa (que o havia abandonado). Clemente V morreu no dia 20 de abril seguinte, pouco mais de um mês depois da fogueira: parece que no momento de sua morte ele não teria perdoado o mísero fim dos Templários, aos quais sempre tratou de se opor. O fato de ambos morrerem logo um ano depois de terem sido chamados pelo Mestre para responderem as suas culpas diante do juízo de Deus favoreceu o surgimento de lendas que proliferaram naqueles tempos, alimentadas pelo mistério da extraordinária coragem que os dois fanáticos dignitários haviam mostrado diante de seus executores.
Setecentos anos depois daquele evento, o mito dos Templários, dado como história verdadeira ainda que recheado de invenções, está inacreditavelmente vivo. A pesquisa deu-nos novas certezas ao abrir portas para se descobrir o quanto ainda deve ser esclarecido. Clemente V jamais lançou sentenças de condenação contra os Templários; em vez disso, procurou reverter a excomunhão que havia sido lançada contra eles. Aquela absolvição jamais foi revogada, e a sentença de suspensão das atividades da Ordem, sancionada no Concilio de Viena, permanece ainda hoje inalterada, mesmo após sete séculos, sob a forma de uma decisão não definitiva.
Grão-Mestre e o Preceptor da Normandia, sequestrados e assassinados pelo soberano antes que a comissão destinada a julgá-los pudesse emitir um veredicto, morreram no mesmo estado em que a autoridade pontifícia os havia colocado, isto é, cristãos absolvidos e reintegrados à comunhão católica, assim como os plenipotenciários apostólicos haviam decidido por ordem de Clemente V em Chinon.