terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Fundamentos da ética (Parte II) — Antonio Djalma Braga Junior e Ivan Luiz Monteiro

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-120-1
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
Sinopse: Parte I


A filosofia política de Maquiavel
Nicolau Maquiavel desenvolveu um tipo de pensamento político que se diferenciava do praticado na era medieval, encarregando-se de reformular a política do seu tempo, sua aliança com a ética e com os valores cristãos.
Enquanto, para os cristãos, o bom governante era aquele indivíduo que apresentasse virtudes cristãs e agisse de acordo com elas, o bom governante (o príncipe) de Maquiavel é aquele que faz o que for necessário para chegar ao poder e nele se manter, incluindo, se for preciso, violar os valores cristãos pregados em seu tempo. Ele criticou o direito divino de governar de seus predecessores e valorizou o desenvolvimento de algumas qualidades indispensáveis para aqueles que pretendiam ocupar o cargo de líder político: qualidades como a virtú e a capacidade de lidar com a fortuna.
O objetivo da política para Maquiavel é realizar a manutenção do poder com vistas ao bem comum e, para manter esse poder, o príncipe deve lutar com todas as suas forças. Justamente por conta disso é que os valores morais cristãos, tão apregoados em seu tempo, tornam-se obstáculos ao alcance desse propósito, isto é, cedo ou tarde, para não deixar de lado seu objetivo fundamental, o príncipe tem de abrir mão daqueles valores. Um príncipe não pode manter sua palavra (princípio moral cristão), por exemplo, se ela se voltar contra ele em suas decisões políticas ou forçar o surgimento de situações que o obriguem a tomar uma atitude contrária ao seu desejo. Se assim ocorrer, ele deve abrir mão de tal valor, como meio para a realização dos fins propostos. Da mesma forma, o príncipe deve, quando necessário, mentir para o povo, utilizar a força para repreendê-lo, enganá-lo (se não for possível dizer a verdade em determinados momentos) e fazer tudo o que for preciso para manter a ordem e o poder.
A manutenção da ordem e do poder é necessária para que o bem comum seja preservado. Os meios empregados serão honrosos e louvados se os fins forem alcançados por parte dos líderes políticos. Nesse sentido, vale ressaltar aqui que, para Maquiavel, o importante não é que o príncipe seja bom, basta que pareça bom; ele não precisa falar a verdade, basta que pareça estar dizendo a verdade; ele não precisa agir realmente de maneira justa, basta que pareça ao povo que sua atitude é justa. Essa diferença entre a essência (ser) e a aparência (parecer) é um elemento indispensável para um líder que queira manter o bem comum acima de tudo.
Essa nova forma de fazer política mostra que Maquiavel foi um pensador muito além do seu tempo e responsável por realizar a cisão entre o “ser” e o “dever ser” na política (Reale, História da filosofia, 2005, p. 93-94). Ele procurou pautar-se especificamente por um realismo político que procurava excluir toda e qualquer característica especulativa do dever ser, pois o príncipe (líder político de seu tempo) alcançaria sua ruína no momento em que deixasse de fazer aquilo que fazia para fazer aquilo que deveria fazer: um homem que quer em todo o lugar ser bom atrai ruína entre tantos que não são bons. Decorre disso que o príncipe que quer se manter no poder deve aprender os meios de não ser bom (apenas parecer bom já é suficiente) para, quando foi necessário, utilizar-se deles. Segundo Maquiavel, o líder ainda deve adotar remédios extremos para males extremos, ou seja, não deve fazer sempre o mal — deve fazer o bem quando possível e o mal apenas quando realmente for necessário.

A ética maquiavélica
No tocante à ética, vale destacar que Maquiavel reformula o conceito de virtude cristã vigente em sua época, baseada em princípios. Enquanto para os cristãos medievais o príncipe deveria ser portador das virtudes cristãs, ser bom, praticar sempre a temperança, falar a verdade aos seus súditos etc., a virtude a que Maquiavel se refere é exatamente a qualidade que o príncipe deve ter para chegar ao poder e nele se manter, o que ele chama de virtú. Ela é apreendida por Maquiavel em um sentido grego de “força, vontade, habilidade, astúcia e capacidade de dominar a situação” (Reale, 2005, p, 94). A virtú é a capacidade de derrotar a sorte e o acaso: segundo o autor italiano, metade das coisas que acontecem ao ser humano é proveniente da sorte, e a outra metade é de responsabilidade de cada indivíduo.
Diante dessa nova concepção de virtude, Maquiavel cria também uma nova ética, específica para todos aqueles que desejarem entrar para a vida política. Essa nova ética se preocupa não com os princípios (cristãos), mas com as consequências que as ações dos líderes políticos (os príncipes) terão sobre o povo, é uma ética de consequências que visa sempre à ação que beneficie o bem comum e o coletivo. Sempre que houver situações que fogem dos objetivos definidos pela República, o príncipe deve pensar quais serão as consequências que melhor atenderão ao bem comum e ao coletivo. Se as atitudes do príncipe não forem condizentes com os princípios dos indivíduos — no tempo de Maquiavel, eles eram os princípios cristãos da bondade, da verdade, da honra etc. — ele não deve deixar de realizá-las, pois é a consequência da ação que deve ser levada em conta. Portanto, se, para alcançar seus objetivos, o príncipe precisar matar, roubar, saquear, destruir, mentir, manipular, explorar, entre outras ações, ele deve fazê-lo, contanto que a consequência da ação seja para o bem comum de seu povo e a manutenção da ordem. Justamente por isso é que pensadores posteriores procuraram resumir todo o seu pensamento político com a seguinte frase: “Os fins justificam os meios”. Se a finalidade é o bem comum, não importa de quais meios o príncipe se utilize, assim ele deve fazer. O príncipe não pode se dar ao luxo, para conquistar seus objetivos, de agir politicamente tomando como base princípios (o homem comum, na vida privada, pode se dar ao luxo disso); deve agir levando em conta as consequências que suas ações trarão ao seu país. Desse modo, contra todos aqueles que consideram Maquiavel um sujeito sem ética (os que afirmam isso o fazem considerando que a ética cristã é a ética válida universalmente), um de seus intérpretes, o filósofo Isaiah Berlin, no livro Estudos sobre humanidade: uma antologia de ensaios (2002), mais especificamente no ensaio intitulado “A originalidade de Maquiavel”, afirma que existem duas éticas: uma baseada em princípios (a ética cristã), que prega a salvação da alma, e outra baseada nas consequências, que valoriza a cidade, o mundo e as ações dos políticos que estão na organização desse mundo (é a ética criada por Maquiavel).”


“Todavia, no início do que chamamos de contemporaneidade, Nietzsche revolucionou a forma como compreendemos o papel da razão na formulação de nossas concepções e valores morais, entendendo-a como algo que nos conduz a uma vida de valorização do nada (niilismo), de negação de nossos impulsos vitais, que é nossa vontade de poder, e, portanto, nos faz viver uma vida ética própria da classe dos escravos e ressentidos.
A razão, portanto, na concepção contemporânea, deve ser deixada de lado por não favorecer nossa liberdade, ou melhor, nossa vontade livre, pois, ao contrário, ela coloca limites e proibições a nossa conduta em vista de princípios metafísicos (niilistas). Com efeito, o fato de entendermos a razão sem a hipocrisia iluminista nos faz compreender que uma vida ética excelente é aquela que nos permite maior grau de liberdade e, por consequência, de responsabilidade pelos nossos atos, valorizando os impulsos vitais inerentes ao homem, contrariamente ao que pensavam os cristãos, que negavam esses impulsos, trocando-os pela promessa do paraíso, do céu, ou seja, de valores válidos universalmente e que são impostos a todos como deveres.”


Id, ego e superego
Em sua obra O ego e o id (1976a, p. 14), que é o último dos seus grandes trabalhos teóricos, Freud “oferece uma descrição da mente e de seu funcionamento que, à primeira vista, parece nova e até mesmo revolucionária”. Ele elabora uma teoria da mente mais sofisticada em comparação com as anteriormente propostas, aprimorando e clarificando sua grande descoberta teórica — que o lançou ao hall dos grandes pensadores de todos os tempos a saber, que nós não somos senhores de nossa própria casa, mas governados por nossos impulsos e desejos que ficam guardados no inconsciente*.
Formamos a ideia de que em cada indivíduo existe uma organização coerente de processos mentais e chamamos a isso o seu ego. É a esse ego que a consciência se acha ligada: o ego controla as abordagens à motilidade — isto é, à descarga de excitações para o mundo externo. Ele é a instância mental que supervisiona todos os seus próprios processos constituintes e que vai dormir à noite, embora ainda exerça a censura sobre os sonhos. (Freud, 1976a, p. 28)
Freud relaciona o ego com a parte do aparelho mental que é consciente. No aprofundando a análise, ele percebe que há no próprio ego algo que é também inconsciente, “que se comporta exatamente como o reprimido — isto é, que produz efeitos poderosos sem ele próprio ser consciente e que exige um trabalho especial antes de poder ser tornado consciente” (1976a, p. 30, grifo do original). É com base nisso que Freud passa a caracterizar o aparelho mental e suas divisões com outras denominações mais sofisticadas, preservando a originalidade principal. Nesse contexto, surgem os termos id, ego e superego.
Wilson Castello de Almeida (Defesas do ego, 1996, p. 15) explica de forma clara e didática esses conceitos.
O chamado Id (Isso) nomeia a instância virtual da personalidade correspondente à carga instintiva radicada na estrutura constitucional da espécie humana, exigindo respostas imediatas para suas necessidades básicas, elementares e vitais: pulsões de autoconservação, por exemplo. [...] Do Id sairiam os impulsos, passíveis de serem modificados pelo Ego, tarefa que este consegue através dos mecanismos de defesa. [...] O Ego (Eu) formar-se-ia do Id, seria mesmo uma parte dele, surgindo através de um processo de diferenciação. Se fosse possível situá-lo espacialmente, ocuparia uma zona entre o Id e a realidade do mundo externo. O Ego poderá inibir ou modificar o Id e também permitir-lhe transformar-se diretamente em ação; e registraria os impulsos do Id projetando-os sobre os objetos externos em forma de sentimentos e afetos.”
Em relação ao superego, Almeida (1996, p, 16) nos mostra que se formaria a partir do processo de identificação das figuras parentais que se inicia durante a fase de alimentação dos recém-nascidos. A partir dessa fase de desenvolvimento da criança, surge o superego, o qual tem a função de representar internamente as exigências normativas que a sociedade impõe a todos os sujeitos por meio dos códigos morais e éticos, que cumprem o papel de disciplinar, coagir e punir aqueles que não se enquadram no sistema social.
*: Esse foi o terceiro grande golpe que a humanidade sofreu em seu narcisismo. O primeiro golpe foi a criação da teoria do heliocentrismo por Nicolau Copérnico, que tirou a Terra do centro do Universo (e, consequentemente, 0 homem). O segundo golpe foi dado por Charles Darwin com sua teoria do evolucionismo: com ela, o homem passou a estar no mesmo nível dos outros animais, deixou de ser uma criatura especial, criada imagem e semelhança de Deus, e passou a ser uma criatura que provém de um processo evolutivo de outras criaturas, de outros animais.

Ética e psicanálise
O superego cria nossa consciência moral e nos leva a seguir as regras e normas sociais. Ele procura introjetar os valores morais em nós e nos obriga a cumpri-los sob pena de punição.
Claro que esse cumprimento nem sempre é feito de maneira pacífica pelo aparelho psíquico do indivíduo, e o superego, por vezes, é tomado como a instância que pune o próprio sujeito por não conseguir se adequar às regras e aos valores sociais. Como efeito dessa punição, surge o que Freud designa como culpa. Foi observado por Freud (1976a, p. 65) que, em muitos casos, a culpa era o mais poderoso obstáculo à cura de uma enfermidade. (...)
Uma das questões éticas que Freud procura resolver durante essa análise é o porquê de o superego desenvolver tanta rigidez para com o ego, introjetando neste valores e ideias morais que exigem a repressão dos instintos vitais de maneira radical. Segundo Freud, isso ocorre porque existem no ser humano basicamente dois impulsos básicos: os instintos de vida, ou instintos sexuais (de amor), Eros, e os instintos de morte, ou de agressividade, Thanatos.
Freud compreende que o objetivo primário de todo homem é a satisfação integral de suas necessidades. A partir do momento em que isso não ocorre, acontece um fenômeno interessante: os instintos voltam-se para trás, para o interior, para dentro do próprio homem. É aí que residem as doenças estudadas por Freud, é nessa repressão dos instintos básicos do homem, por meio da introjeção dos ideais e dos valores morais pelo superego ao ego, que surge a culpa e, como efeito desse poderoso sentimento, surgem a neurose e outras doenças psíquicas.
Freud, em sua obra O mal estar na civilização (1974b, p, 146), afirma que a agressividade que o ego gostaria de ter descarregado sobre outros indivíduos — sobre o pai, no caso do complexo de Édipo — é introjetada, internalizada, mandada de volta para o lugar de onde proveio, no sentido de seu próprio ego, sob a forma do superego.
A tensão entre o severo superego o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada. (Freud, 1974b, p. 147)
O sentimento de culpa seria, portanto, fruto da ação desse guardião da moral internalizado em nós na forma de superego. Este tem a função de formar nossa consciência moral e fazer com que nossas ações estejam em concordância com as leis sociais. Com efeito, vemos que, na concepção formulada por Freud, nós somos impulsos e desejos inconscientes, não somos senhores de nós mesmos se nossa razão não consegue nos governar. Para a ética, isso tem consequências graves, pois, se não somos senhores de nossas ações, como podemos ser responsáveis por elas? Nesse caso, não somos livres, pois não conseguimos manter uma vontade livre que aja em conformidade com os deveres sociais.
Quando descrevemos as reflexões éticas elaboradas ao longo de toda a história, procuramos demonstrar como cada pensador, em seu tempo histórico, buscou contribuir com esse estudo e apresentar soluções para conflitos de ordem moral, mostrando-nos o caminho para uma vida virtuosa — a qual anseia pelo bem, pela verdade — e que, de certa forma, foi cristalizado em forma de leis, que devem ser seguidas por todos, leis que são frutos da autonomia moral e de uma liberdade que visa a trazer benefícios para os seres humanos como um todo. Todavia, diante da proposta de reflexão apresentada por Freud, vemos alguns problemas surgirem: o que produzimos é fruto do nosso inconsciente ou de nossos impulsos e instintos, mas a razão não tem autonomia sobre eles e muito menos consegue controlá-los. A razão, nesse caso, seria uma ficção moderna criada para iludir os indivíduos.
Da mesma forma, ao entendermos que a repressão dos impulsos vitais causa uma série de prejuízos ao homem (como a culpa ou as doenças de ordem psíquica), não podemos falar de autonomia moral que seja capaz de criar regras e deveres possíveis de serem cumpridos na prática, possíveis de serem realizados: a moral seria apenas um elemento criador de doenças e nunca um elemento virtuoso que visa à construção de uma sociedade harmoniosa e à felicidade.
Justamente por isso é que a psicanálise fundada por Freud nos mostra que praticar atos que ao longo da história foram considerados delitos ou violações de regras morais não podem ser tomados como tal:
Do ponto de vista do inconsciente, mentir, matar, roubar, seduzir, destruir, temer, ambicionar são simplesmente amorais, pois o inconsciente desconhece valores morais. Inúmeras vezes, comportamentos que a moralidade julga imorais são realizados como autodefesa do sujeito, que os emprega para defender sua integridade psíquica ameaçada (real ou fantasmagoricamente). Se são atos moralmente condenáveis, podem, porém, ser psicologicamente necessários. (Chaui, 2000, p. 458)”


“Aparentemente, a concepção dos direitos humanos apoia sua ideia de dignidade humana sobre a própria noção antropológica que indica, ou seja, sobre a afirmação de que nós, como seres racionais e autoconscientes, detemos uma condição única no mundo. Tal entendimento nos deve permitir constatar que a condição humana se determina como sendo digna na medida em que efetiva o seu ser no mundo, ou seja, por meio das experiências vivenciadas que possam humanizá-la. Se assim for, devemos compreender eticamente o ser humano mediante seu caráter volitivo, que sempre busca aperfeiçoar as condições de sua existência.
Os direitos humanos têm como objetivo sintetizar os mais variados referenciais éticos desenvolvidos ao longo da história para nos ajudar a compreender a existência humana como um processo, ou seja, para nos mostrar que o homem é um ser que está em constante transformação e que, por isso, precisamos estar atentos para que, em meio a essas mudanças, não percamos de vista alguns elementos essenciais que nos tornam humanos. Em outras palavras, mesmo que as sociedades produzam transformações inimagináveis para a espécie humana, devemos sempre preservar o que nos humaniza. Assim, a ética que ancora os direitos do indivíduo em transformação adota o existir da espécie humana sob desenvolvimento constante. Dá-se então que, humanamente, existimos sobre um solo axiológico, para o qual servem de base os direitos humanos como cabedal teórico/prático, impelindo nossa vontade — como capacidade de escolha racional — a superar nossos instintos de amor próprio, por vezes prejudiciais à vivência comunitária.”

Fundamentos da ética (Parte I) — Antonio Djalma Braga Junior e Ivan Luiz Monteiro

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-120-1
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
Sinopse: Temas como aborto, clonagem, eutanásia e fertilização in vitro têm causado muita divergência na sociedade e inspirado opiniões, ações e comportamentos controversos. Como se posicionar eticamente em relação a essas questões? Como aplicar a ética na realidade em que vivemos? Para que você possa refletir criticamente sobre tantos assuntos polêmicos da atualidade e desenvolver posicionamentos éticos a respeito dessas questões, apresentamos nesta obra o desenvolvimento histórico da ética e as ideias de seus principais pensadores.



“Imagine ainda que você esteja vivendo em um país que está passando por diversas transformações políticas. Elas causam uma série de conflitos entre policiais e civis. Em um momento de choque entre eles, um dos manifestantes foge para dentro de sua casa para se esconder de policiais furiosos. Tudo acontece muito rápido e você não tem oportunidade de processar direito o que está acontecendo. O fato é que o manifestante está ali, escondido em sua residência, quando então chega um policial e pergunta se você viu determinado manifestante, considerado pelo policial como um fora da lei que merece a morte. Você sabe que, se falar a verdade para o policial, ele matará o manifestante ali mesmo, no exato momento em que o vir. O que você faria em uma situação dessas: falaria a verdade e permitiria que o policial matasse o manifestante ou mentiria para preservar a vida do rapaz que está escondido? Qual valor deve prevalecer: falar a verdade ou preservar uma vida humana?
Também podemos perceber conflitos dessa natureza, quando um pai ou uma mãe, desesperados por salvar o filho da fome, decidem roubar; quando um soldado, cumprindo ordens, acaba tendo de puxar o gatilho de sua arma para ferir ou matar civis; quando pessoas que passam uma imagem de caridosas quando estão em uma igreja, mas em suas residências demonstram ações altamente contraditórias com essa imagem e fazem com que pessoas as julguem de maneira desonrosa; quando um ente querido está em estado vegetativo no hospital e os médicos aconselham os familiares a desligar os aparelhos por não haver mais esperança de recuperação da saúde do paciente por conta de uma grave doença; quando jovens, que têm uma vida inteira pela frente; ao terem relações sexuais, acabam engravidando e pensam na hipótese de um aborto; quando a ciência pode curar, por meio de células-tronco embrionárias, um indivíduo que poderia ficar tetraplégico em decorrência de um acidente, mas seus princípios religiosos o levam crença de que tais embriões são considerados vidas humanas e por isso não deveriam ser sacrificados; entre outros casos.
Em situações como essas, nem sempre temos uma visão clara e precisa do que é certo ou errado ou do que realmente devemos fazer, qual caminho devemos tomar, o que é justo ou injusto fazer. Em todas essas circunstâncias, deparamo-nos com algum problema prático próprio da vida humana, o qual não diz respeito apenas aos indivíduos citados, podendo envolver inúmeras outras pessoas e a sociedade como um todo.
Diante disso, presenciamos diariamente atitudes e comportamentos de diferentes pessoas para tentar solucionar esses conflitos; ao mesmo tempo, há observadores que julgam esses atos e comportamentos como bons ou maus, justos ou injustos, certos ou errados. Esse julgamento, que é a emissão de um juízo de valor sobre situações consideradas morais na sociedade, é uma forma de valoração que todos nós praticamos, tomando sempre como base aquilo que entendemos e incorporamos como valor: um valor moral.
Neste ponto, caro leitor, apresentamos uma definição essencial que envolve a temática e servirá de base para todo o desenvolvimento deste livro: moral é um conjunto de normas, regras, valores e costumes que rege uma sociedade ou um grupo de indivíduos. Essas normas, regras, valores e costumes são considerados os parâmetros do nosso juízo sobre os fatos, os acontecimentos e os comportamentos dos homens diante de situações como as descritas anteriormente. O objetivo da moral é normalizar as ações dos indivíduos de um agrupamento humano.
A moral, por se referir ao conjunto de valores de um grupo de tem de ser pensada com base em seu caráter histórico. Em outras palavras, assim como os diversos agrupamentos humanos variam ao longo da história, os valores morais também se alteram. Portanto, temos uma primeira característica da moral: ela é relativa a um grupo de indivíduos. Se o grupo muda, a moral pode mudar também. Por isso, Adolfo Sánchez Vázquez (2014, p, 37), em seu livro Ética, afirma: “pode-se falar da moral da Antiguidade, da moral feudal própria da Idade Média, da moral burguesa na sociedade moderna etc. Portanto, a moral é um fato histórico. Essa característica histórica e relativa da moral se define pelo fato de que os seres que a produzem são históricos também, conforme ressalta o autor:
Mas a moral é histórica precisamente porque é um modo de comportar-se de um ser — o homem — que por natureza é histórico, isto é, um ser cuja característica é a de estar-se fazendo ou se autoproduzindo constantemente tanto no plano de sua existência material, prática, como no de sua vida espiritual, incluída nesta a moral. (Vásquez, 2014, p. 37)
Diante dessa primeira caracterização da moral, como histórica e relativa, podemos analisar como os filósofos e pensadores, ao longo da história, refletiram sobre o conjunto de normas, regras, valores e costumes de cada povo, em cada contexto histórico. Ao ponderarmos sobre essa questão, temos a definição de mais um conceito fundamental para nossos estudos na área: ética é uma reflexão que fazemos sobre os vários padrões morais instituídos pelas diversas culturas e sociedades dos mais variados períodos e contextos históricos. Ser ético, portanto, é refletir sobre os valores que permeiam as sociedades, sejam do nosso tempo, sejam dos tempos antigos. Assim, quando buscamos identificar os princípios e os fundamentos que estão na base dos valores morais, quando nos questionamos sobre o porquê da existência desses valores, estamos sendo éticos.”


“Na esfera moral, temos conjuntos de valores e costumes cristalizados por um agrupamento humano que são considerados válidos ou inválidos, bons ou maus, justos ou injustos e benéficos ou maléficos para a sociedade como um todo, tendo em vista ainda que, se os atos dos indivíduos convergem para o que é considerado válido, são atos morais; se convergem para o que é considerado inválido, são considerados imorais.
Na esfera civil, os valores, os costumes e as regras morais consideradas como fundamentais para o grupo se tornam leis. Essas leis são fruto de uma convenção entre os indivíduos que compõem a sociedade e são de caráter obrigatório, válidas para todos aqueles que pertencem ao grupo, para garantir o que este compreende como justiça, assegurando direitos considerados por ele como fundamentais.
Com efeito, podemos afirmar que a esfera da moralidade e a esfera civil apresentam algumas características semelhantes, tais como: tanto uma quanto a outra se transformam em instrumentos para alcançar o que se compreende ser justo, bom, válido, correto; ambas são fruto de uma necessidade humana que visa a erradicar (ou ao menos diminuir) a violência na sociedade; essas esferas, embora diferentes entre si, caracterizam-se por serem convencionais, históricas, sociais, questionáveis e dependem de instituições para sua preservação. Um bom exemplo disso é que os valores da esfera moral podem ser transmitidos por meio de instituições como a família, igrejas e escolas. Já as leis civis são asseguradas pelo Estado.
Todavia, algumas diferenças entre essas duas esferas se sobressaem. Em primeiro lugar, podemos entender que, enquanto a moral é um instrumento informal que as sociedades utilizam para alcançar ajustiça, a lei é um instrumento formal por excelência criado e promulgado pelo Estado para assegurar a justiça.
Em segundo lugar, podemos falar de uma infinidade de códigos e valores morais de uma única sociedade, como os valores morais religiosos tão diversos que permeiam nossa nação — cristãos, afrodescendentes, indígenas, espíritas etc. ao contrário das leis, que apresentam um sistema jurídico único, válido para todos que pertencem a um grupo ou uma nação. Independentemente dos valores morais religiosos que permeiam nossa existência, temos de seguir as leis que o Estado brasileiro impõe como obrigatórias.
Outro aspecto de distinção importante acerca dessas duas áreas é que a moral, quando não cumprida, causa a rejeição e o afastamento do indivíduo em relação ao grupo; já a lei, quando violada, gera mais do que uma rejeição, gera uma punição.
Por fim, podemos afirmar também que a moral é sempre compreendida como algo bom a ser seguido, como um direcionamento e uma orientação para que os indivíduos do grupo cheguem à felicidade e à justiça. Já a lei é imposta como obrigatória, e cada pessoa deve segui-la independentemente de sua noção de felicidade.”


“Diante disso, podemos tomar as palavras de Chaui (Convite à filosofia, 2000, p, 434) para resumir os fatores essenciais que constituem o campo da ética e da moral:
O sujeito ético, isto é, a pessoa, só pode existir se preencher as seguintes condições:
·        ser consciente de si e dos outros, isto é, ser capaz de reflexão e de reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a ele;
·        ser dotado de vontade, isto é, de capacidade para controlar e orientar desejos, impulsos, tendências, sentimentos (para que estejam em conformidade com a consciência) e de capacidade para deliberar e decidir entre várias alternativas possíveis;
·        ser responsável, isto é, reconhecer-se como autor da ação, avaliar os efeitos e consequências dela sobre si e sobre os outros, assumi-la bem como às suas consequências, respondendo por elas;
·        ser livre, isto é, ser capaz de oferecer-se como causa interna de seus sentimentos, atitudes e ações, por não estar submetido a poderes externos que o forcem e o constranjam a sentir, a querer e a fazer alguma coisa. A liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder para autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta. [grifo do original]


“Em Sócrates, devemos entender que o termo alma (psyché) é a própria consciência humana; trata-se de nossa faculdade intelectual e moral. Nesse sentido, a alma diz respeito a nossa habilidade de compreender. Sócrates procurou, durante muito tempo, compreender qual era a essência do homem, até que chegou à conclusão de que o homem é sua alma. Ela é que permite a virtude (em grego, areté), isto é, a realização do melhor que pode ser alcançável pelo ser humano. Isso é assim pois a alma, como nossa “atividade cognoscitiva”, possibilita a nós a promoção ou a ação em favor de conhecer as coisas como são em si mesmas. Portanto, um conceito que está intrinsecamente conectado com o conceito de alma em Sócrates é o de virtude. Por meio dele buscamos o conhecimento certo e seguro (entendido como ciência, como episteme).
Ao investigarmos a ética socrática, temos de entender um elemento central: há uma só virtude, que, por seu turno, serve de princípio ao conjunto de ações virtuosas. Essa virtude é o conhecimento, um saber seguro e certo sobre si mesmo. Decorre daí o jargão “Conhece a ti mesmo”, que se refere propriamente à virtude. Quando o ser humano comete um erro ao agir, devemos entender esse erro, ou a ação não virtuosa, como fruto da ignorância (desconhecimento de algo). Assim, compreendemos que é a falta de conhecimento que nos leva a agir errado.
Como forma de evitar o erro, devemos entender que o conhecimento das essências seria, então, aquilo que nos possibilita conhecer as coisas como realmente são, e não somente como parecem ser. O conhecimento seguro e certo (epistemé — ciência) é aquele tipo de saber que a alma racional alcança e por meio do qual podemos saber o que é bem e, assim, escolher sem cair no erro.
Com base nesse conceito de alma, podemos determinar outro conceito central para Sócrates, a saber, o de liberdade. Esse termo é entendido como “disposição interna” (como autocontrole — enkráteia). É aquilo que nossa alma racional nos possibilita escolher racionalmente, prescindindo dos impulsos e das paixões. Por meio dessa disposição de autodomínio, podemos nos lançar ao saber seguro e certo das essências. Por meio da natureza racional que define o ser do homem, podemos, ou melhor, devemos — já que estamos nos referindo ao tema da ética prescindir das paixões e dos instintos na realização de nossas ações. Com o conhecimento de si mesmo, o homem usufrui de sua liberdade diante das coisas do mundo, pois pode julgar a contingência das coisas mundanas em relação àquilo que é necessário (na qualidade de essência) mediante o autoconhecimento de sua própria essência (sua alma).
Como consequência ou resultado das ações para o bem, mediante a virtude, que é o conhecimento alcançado pela alma racional, temos então a felicidade. Ela é, para Sócrates, o estado de ordem em que a alma se encontra: “0 homem age retamente quando conhece o bem e, conhecendo-o, não pode deixar de praticá-lo; por outro lado, aspirando ao bem, sente-se dono de si mesmo e, por conseguinte, é feliz.” (Vázquez, 2014, p. 271-272).
Isso nos permite entender que a virtude é um bem em si mesma. Não é a busca pela felicidade que nos leva à ação virtuosa, mas é a própria ação realizada com base na virtude que possibilita que sejamos felizes, ou seja, que percebamos que nossa alma está em ordem, pois ela está buscando aquilo que é próprio dela.”


“De acordo com a concepção socrática, somente podemos conhecer o bem mediante o alcance de nossa alma racional. É esse o limite, é essa a condição que Sócrates coloca para fundamentar sua ética. Isso porque somos essencialmente alma. Assim, devemos compreender que a alma se serve do corpo (como instrumento) para praticar o bem que ela alcançou como resultado de um conhecimento certo e seguro. Quando o corpo passa a ditar as regras, invertemos a ordem, e as paixões e os instintos corpóreos nos fazem (irracionalmente) admitir como bem aquilo que, na realidade, se fosse lançado ao crivo da razão, se mostraria como equivocado.
Conforme a filosofia moral de Platão, o homem deve compreender que sua alma racional é o meio pelo qual ele pode atingir a redenção de sua existência, via conhecimento do mundo. A virtude é esse conhecimento, pois diz respeito diretamente ao elemento intelectual, que é próprio da alma do homem. Na essência humana, encontram-se dispostos elementos de três tipos, que são desenvolvidos ou suprimidos pelo indivíduo e refletem o seu agir, permitindo a alguns conhecer e ensinar o bem; a outros proteger e fazer respeitar o bem; a outros, ainda, vivenciar de forma limitada o bem, sob a influência dos tipos anteriores.
Já a filosofia moral aristotélica é tida como uma ética eudaimônica. Foca na racionalidade, a exemplo de todas as éticas do período, procurando estabelecer que a virtude do homem está no agir justo, ou seja, na ação moral capaz da justa medida entre o excesso e a falta. Isso somente é possível de ser alcançado mediante o emprego da deliberação, da escolha e da vontade humana em cada situação particular que se apresente ao homem.
A ética epicurista é mais um exemplo de ética pautada na capacidade racional da alma humana. Como o epicurismo é uma filosofia materialista, sua ética segue essa concepção e atribui a virtude ao plano da disposição ordenada dos átomos presentes em uma forma, a saber, a humana. A vivência dos prazeres é a virtude para o homem, que busca a ataraxia por meio da autarquia. Nesse sentido, o indivíduo precisa saber que há uma hierarquia dos prazeres e que necessita trilhar um caminho seguro, por meio dos “quatro remédios”, que podem auxiliá-lo na obtenção de uma vida prazerosa.
Por fim, vimos que reconhecer-se como parte de um plano cósmico engendrado pela razão universal (logos) é a tarefa do sábio estoico, que busca a virtude na vida de acordo com a sua natureza, ou seja, de acordo com a racionalidade que nele opera. A imperturbabilidade da alma (ataraxia) é o cume a ser atingindo pelo homem virtuoso, que busca alcançá-lo por meio da eliminação das paixões (apatia), centrado em conhecer as ações que são boas e que pode promover, outras que são más e que não deve promover e, ainda, aquelas às quais ele deve ser indiferente, pois estão fora do poderio humano no que diz respeito à capacidade tanto de promovê-las quanto de evitá-las.”


“Marcada essencialmente pela conduta embasada na religiosidade cristã, a ética medieval inaugura novos modos de pensar e propor a moralidade. Podemos entender a inovação sob dois aspectos, a saber, pelo abandono da cosmovisão mundana e pelo surgimento acentuado da subjetividade (a ideia de indivíduo é fundamental na moral medieval). No que diz respeito ao abandono da cosmovisão mundana, devemos compreender que a ética medieval concebe a ideia de que o fim último da vida humana (a felicidade) não está neste mundo, mas em outro plano a ser alcançado após a vida terrena. Nesse sentido, a recompensa (ser feliz) fica vinculada à condição de uma conduta pautada na busca pela perfeição moral (santidade), a qual, por sua vez, estava centrada no amor a Deus.
Naquilo que se refere ao surgimento da subjetividade, a noção de indivíduo assume uma importância jamais vista na história do pensamento ocidental. Isso porque, na ética antiga, que também pode ser chamada de ética pagã, prevalecia na moral o sentido de comunidade, marcando a centralidade de pensarmos a conduta dos sujeitos em relação intrínseca com a comunidade. Ao contrário, na ética medieval (intitulada também de ética cristã), há o trato da moral do ponto de vista estritamente pessoal, ou seja, da relação entre cada indivíduo e Deus. Desse modo, a subjetividade assume uma importância desconhecida se comparada ao período antigo.
Contudo, precisamos notar que a ética medieval herda da filosofia moral do período grego alguns aspectos e conceitos que são recombinados na formação da doutrina cristã. Um dos conceitos que são centrais para ambas é a noção de virtude como melhor ação possível para o homem. No período medieval (todo ele), a virtude é a santidade. Trata-se de como nós, seres humanos, buscamos agir de acordo com a vontade divina, correspondendo ao fundamento que deve sustentar as ações do homem de bem, que, naquele momento histórico, era entendido como sendo o cristão temente a Deus.”

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Introdução histórica à filosofia das ciências (Parte II) – Luiz Felipe Sigwalt de Miranda

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-045-7
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 328
Sinopse: Ver Parte I

“A redução do círculo hermenêutico ao método hipotético-dedutivo das ciências naturais não é de todo tão simples. Existem pelo menos duas boas razões para isso. Em primeiro lugar, ao considerar os pontos de partida da investigação empírica e da interpretação da ação humana. “As hipóteses científicas podem ter múltiplas origens; podem ser sugeridas pela observação, mas também podem resultar de rasgos imaginativos, especulações metafísicas ou mesmo de crenças religiosas” (Silva, O círculo hermenêutico e a distinção entre ciências humanas e ciências naturais, 2012, p. 68). Lembra Silva (2012), a respeito de Popper, que regras metodológicas são empregadas somente para o teste empírico das hipóteses, cuja formação (liberal) não depende de quaisquer regras. Isso é bem diferente daquilo que Gadamer assevera em relação ao círculo hermenêutico, pois, “na interpretação de entidades ou acontecimentos com sentido, o ponto de partida é constituído por pressuposições de racionalidade” (Silva, 2012, p. 68, grifo do original). Essa expressão é mais comum no círculo anglo-saxônico em discussões acerca da interpretação e da explicação da ação humana. Gadamer diria se tratar de um princípio do círculo hermenêutico, a saber, “antecipação da perfeição” (Gadamer, citado por Silva, 2012, p. 68). É um princípio consequente do círculo hermenêutico que consiste na compreensão exclusiva diante da apresentação efetiva de uma unidade de sentido perfeita e na pressuposição da verdade do que é dito (Gadamer, Warheit und Methode, 1990). Esse último ponto vai de encontro a um sentido da hermenêutica gadameriana: “que a interpretação do sentido é indissociável de uma busca da verdade sobre o tema em questão” (Silva, 2012, p. 68). Essas são as pressuposições de racionalidade das quais o círculo hermenêutico parte, e isso marca a sua especificidade em relação à investigação científico-natural.”


“Uma diferença objetiva fundamental entre o círculo hermenêutico das ciências humanas e o método hipotético-dedutivo das ciências naturais é que “o próprio objeto da investigação se move num domínio normativo e regula-se por interpretações” (Silva, 2012, p. 70). Outra diferença toca o âmbito do método e, para entendê-la melhor, Silva (2012) apela à tese de uma “hermenêutica dupla” nas ciências humanas. Enquanto nas ciências naturais o cientista tem acesso à realidade empírica a partir de uma tradição científica determinada em certo quadro conceitual, as ciências humanas apresentam sua questão epistemológica complexificada em função do objeto (comportamento ou ação que se pretende explicar) e de seu intérprete (sujeito da investigação), os quais se caracterizam por uma rede interpretativa.
O domínio das ciências humanas não é só estudado a partir dos princípios normativos de racionalidade, como além disso é constituído por normas e racionalidade; não é só investigado a partir de um quadro interpretativo, como além disso se regula por quadros interpretativos. (Silva, 2012, p. 71)
Nas palavras de Taylor, sintetiza Silva, os seres humanos são “self-interpreting animals” (Taylor, citado por Silva, 2012, p. 71), ou seja, são seres capazes de definirem a si próprios de modos múltiplos, “moldando com estas interpretações o próprio objeto estudo das ciências humanas, que se caracteriza, assim, por uma instabilidade que não tem paralelo nas ciências naturais” (Silva, 2012, p. 71). Essa é uma das razões por que explicações nomológicas têm um alcance limitado nas ciências humanas e sociais. Ora, pelo fato de o homem caracterizar-se como um ser capaz de inovar no âmbito do pensamento (com novos conceitos e novas interpretações), isso se reflete no nível da ação (com novos comportamentos e novas práticas). Assim, regularidades no comportamento humano (mesmo que estáveis) não devem ser confundidas com regularidades naturais, pois a imprevisibilidade e a instabilidade são características próprias de um animal que se interpreta por si próprio. Contudo, muitas generalizações nas ciências humanas não deixam de ser úteis e de ter, em certos casos, um poder explicativo relevante. O problema é que “terão de ser complementadas por métodos interpretativos que apreendam as razões da ação ou as crenças e valores que dão sentido ao comportamento humano” (Silva, 2012, p. 71). Métodos como esses têm a capacidade de explicar exceções às generalizações das ciências humanas e esclarecem uma importante dimensão de nossa ação que não se revela quando fazemos uso de uma concepção de ciência orientada apenas para a descoberta de regularidades e de correlações entre variáveis. Silva (2012, p. 71) conclui seu belíssimo artigo, base de nosso capítulo, afirmando que:

devemos evitar quer um unitarismo epistemológico que defende a existência de um modelo metodológico comum a todas as ciências, quer a tese de um abismo metodológico entre ciências humanas e ciências naturais. Tal como a análise do círculo hermenêutico aqui proposta procurou mostrar, os procedimentos hermenêuticos revelam afinidades importantes com a metodologia das ciências empíricas, não sendo, todavia, redutíveis a estas.”



“A questão de Karl Popper de certa forma se expressava na admiração de seus colegas pela capacidade de explicação que as teorias do materialismo histórico de Marx, a psicanálise de Freud e a psicologia individual de Alfred Adler apresentavam. Praticamente, elas explicavam tudo em seus campos de atuação! Parecia, a Popper, que elas produziam um efeito similar ao de uma revelação intelectual ou mesmo de uma conversão daqueles que se dedicavam a estudá-las. A esses, parecia que o mundo estava repleto de verificações ou confirmações das verdades contidas nessas teorias. A característica principal delas era o fluxo incessante e constante de confirmações, de observações que as verificavam. Por exemplo, os jornais as confirmavam pelas notícias presentes (e também ausentes) e evidenciavam o preconceito a determinadas classes oprimidas (teoria de Marx); as observações clínicas verificavam abundantemente as teorias de Freud; bem como de Adler, com sua teoria do sentimento de inferioridade, a qual era capaz de generalizar, para muitos casos, verificações em situações nas quais caberiam muito bem controvérsias (a um custo de uma certeza indutiva fundamentada em casos anteriores).
Depois de certa reflexão, admite Popper, qualquer caso poder ser uma confirmação, seja para a psicanálise, seja para a psicologia individual. Ele usa como exemplo o caso de um homem que tenta afogar uma criança jogando-a intencionalmente na água e de outro que arrisca a vida para salvá-la. À luz da psicanálise, o primeiro homem sofria de repressão (por algum componente do complexo de Édipo), e o segundo alcançara a sublimação. À luz da psicologia individual, ambos sofriam de um sentimento de inferioridade, pois o primeiro quis provar a si ser capaz de cometer um crime, e o segundo, ser capaz de salvar uma criança.
Não conseguia imaginar qualquer tipo de comportamento humano que ambas as teorias fossem incapazes de explicar. Era precisamente esse fato — elas sempre serviam e eram sempre confirmadas — que constituía o mais forte argumento a seu favor. Comecei a perceber aos poucos que essa força aparente era, na verdade, uma fraqueza. (Popper, 1980, p. 3)

Popper enfatiza que o mesmo não ocorria com a relatividade geral, e a confirmação observacional efetuada por Eddington desempenhou um papel fundamental para isso. Einstein. com sua teoria, havia chegado à conclusão de que a luz também era atraída por corpos celestes, como o Sol, devido a suas grandes massas, da mesma forma que os corpos materiais. Isso produziria um efeito especial na posição das estrelas para um observador na Terra, porque as luzes das estrelas, ao passarem próximas do Sol, sofreriam uma atração. Esta as desviaria de suas trajetórias originais devido à atração gravitacional, ocasionando uma posição aparente mais distante em relação ao Sol, para quem as observa da Terra, do que elas realmente se encontram. Só poderíamos identificar esse desvio durante um eclipse solar, pois, quando a luz intensa do Sol é ofuscada pela Lua, conseguimos ver as estrelas no céu mesmo durante o dia.

“O mais impressionante neste caso é o risco envolvido numa predição desse tipo. Se a observação mostrar que o efeito previsto definitivamente não ocorre, a teoria é simplesmente refutada; ele É INCOMPATÍVEL COM CERTOS RESULTADOS PASSÍVEIS DA OBSERVAÇÃO; de fato, resultados que todos esperariam antes de Einstein. Essa situação é bastante diferente da que descrevi anteriormente, pois tornou-se evidente que as teorias em questão eram incompatíveis com o comportamento humano extremamente divergente, de modo que era praticamente impossível descrever um tipo de comportamento que não servisse para verificá-las. (Popper, Conjecturas e refutações, 1980, p. 4, grifo do original).
Popper nos apresenta, então, suas conclusões preliminares que começam a delinear sua teoria do falseacionismo (critério metodológico capaz de justificar, por um método não indutivo, e, principalmente, discriminar o que é o resultado da prática científica, ou seja, a própria ciência):
(1) E fácil obter confirmações ou verificações para quase toda teoria — desde que as procuremos.
(2) As confirmações só devem ser consideradas se resultarem de predições arriscadas; isto é, se não esclarecidos [sic] pela teoria em questão, esperarmos um acontecimento incompatível com a teoria e que a teria refutado.
(3) Toda teoria científica “boa” é uma proibição: ela proíbe certas coisas de acontecer. Quanto mais uma teoria proíbe, melhor ela é.
(4) A teoria que não for refutada por qualquer acontecimento concebível não é científica. A irrefutabilidade não é uma virtude, como frequentemente se pensa, mas um vício.
(5) Todo teste genuíno de uma teoria é uma tentativa de refutá-la. A possibilidade de testar uma teoria implica igual possibilidade de demonstrar que [a teoria] é falsa. Há, porém, diferentes graus na capacidade de se testar uma teoria: algumas são mais “testáveis”, mais expostas refutação do que outras; correm, por assim dizer, mais riscos.
(6) A evidência confirmadora não deve ser considerada SE NÃO RESULTAR DE UM TESTE GENUÍNO DA TEORIA; 0 teste pode se apresentar como uma tentativa séria porém malograda de refutar a teoria. (Refiro-me a casos como o da “evidência corroborativa”).
(7) Algumas teorias genuinamente “testáveis”, quando se revelam falsas, continuam a ser sustentadas por admiradores, que introduzem, por exemplo, alguma posição auxiliar AD HOC, ou reinterpretam a teoria AD HOC de tal maneira que ela escapa à refutação. Tal procedimento é sempre possível, mas salva a teoria da refutação apenas ao preço de destruir (ou pelo menos aviltar) seu padrão científico. (Popper, 1980, p. 4-5, grifo do original)”


“Popper (1980) afirma que sofre de uma reação de incredulidade por parte de quem acredita forte e amplamente que a ciência avança da observação à teoria (como se fosse algo que supostamente “ninguém” pudesse negar). Ele defende que é um absurdo a crença de que a ciência começa exclusivamente com observações. O próprio verbo observar exige um objeto e é, pois, um verbo relativo, porque precisa de uma tarefa definida, de um ponto de vista, de um interesse especial, de um problema. Para descrever o que se observa é preciso uma linguagem apropriada, o que implica similaridade e classificação, que por seu turno implicam interesses, pontos de vista e problemas.
Popper retoma uma imagem descrita por Katz, a qual se refere a um animal que divide o mundo entre coisas (objetos) comestíveis e não comestíveis, caminhos para fuga e esconderijos; conforme a necessidade e o interesse desse animal, os objetos mudam, pois podem ser classificados, assemelhados e diferenciados de diversos modos. Da mesma forma, diz Popper, podemos transpor aos cientistas uma mesma atitude. Enquanto são as necessidades, os interesses, as expectativas e as tarefas que devem ser cumpridos no momento que fornecem ao animal um ponto de vista, para os cientistas são as teorias aceitas, seus interesses teóricos, o problema a ser investigado, suas conjecturas e antecipações que formam seu quadro de referências (horizonte de expectativas) (Popper, 1980).”


6.2.6 Racionalidade na ciência e atitudes “na prática” científica
Popper retoma a discussão a respeito de seu problema central (da demarcação) enfatizando que a atitude dogmática está claramente relacionada à tendência que temos de verificar nossas leis e esquemas, numa busca de sempre aplicá-los e confirmá-los até afastar as refutações a eles. Por outro lado, a atitude crítica dispõe-se a modificá-los (testá-los e, se for possível, refutá-los). Isso sugere uma identificação da atitude crítica com a científica e a atitude dogmática com a pseudocientífica. Popper aproxima a atitude pseudocientífica a algo primitivo, anterior à atitude científica e, portanto, acaba por sugerir que ela seja uma atitude pré-científica, considerando que tal precedência apresenta um caráter lógico. Já a atitude crítica não se opõe diametralmente à atitude dogmática, mas se sobrepõe a ela, pois dirige-se contra crenças dogmáticas ao requerê-las como “matéria-prima”.
A ciência, então, não se origina numa coleção de observações ou na invenção de experimentos, e sim na discussão crítica dos mitos, das técnicas e das práticas “mágicas”. “A tradição científica se distingue da tradição pré-científica por apresentar dois estratos; como esta última, ela lega suas teorias, mas lega também, com elas, uma atitude crítica com relação a essas teorias” (Popper, 1980, p. 19). Assim, as teorias são acompanhadas de um desafio para que sejam discutidas e aperfeiçoadas, se possível. A atitude crítica é razoável e racional, por ser uma tradição de livre debate sobre as teorias para identificar os pontos fracos destas e para combatê-los. O método crítico foi desenvolvido pelos gregos (tradição helênica que remonta a Tales) e de início provocou a falsa esperança de que levaria os filósofos à solução de todos os problemas, de que abriria caminhos para o conhecimento verdadeiro, ajudando na prova e na justificação das teorias. Mas não passou de um resíduo de uma mentalidade dogmática. Fora do campo da lógica e da matemática, não existem provas. Exigir-se provas racionais para o conhecimento científico revela uma falha na distinção (que deveria ter sido mantida) entre a ampla região da racionalidade e o campo estreito da certeza racional (exigência que não pode ser atendida).
Contudo, o argumento lógico (raciocínio lógico-dedutivo) continua com uma função importante para a abordagem crítica, não pela prova ou pela inferência de observações, mas pela impossibilidade de se chegar às implicações de teorias pelo emprego exclusivo da dedução. A atitude crítica, como vimos, procura identificar os pontos fracos das teorias, os quais em geral são encontrados em suas consequências lógicas mais remotas, e é nesse momento que o raciocínio puramente lógico desempenha seu importante valor.
Popper (1980) considera que Hume tinha razão ao declarar que teorias não podiam ser validamente inferidas a partir do que conhecemos por verdadeiro (nem de observações). Nossa crença em teorias, para Hume, segundo Popper (1980), é irracional. Ele tinha razão, se entendermos por “crença” a “incapacidade de pôr em dúvida as leis naturais e a constância das regularidades que a natureza nos oferece” (Popper, 1980, p. 19). Mas, por outro lado, se “crença” for a nossa aceitação crítica das teorias científicas (como tentativa de aceitar teorias com a possibilidade de revê-las caso sejam refutadas), então Hume está errado. Não há, com efeito, nada de errado na aceitação irracional de uma teoria (sejam elas bem testadas ou não). Se forem bem testadas, então não existe um comportamento mais racional que esse.
Vamos admitir que aceitamos deliberadamente a tarefa de viver neste mundo desconhecido, ajustando-nos a ele tanto quanto possível, aproveitando as oportunidades que ele nos oferece; e que queremos explicá-lo, SE POSSÍVEL (não será preciso presumir esta possibilidade) e na medida de nossa possibilidade, com a ajuda de leis e de teorias explicativas. SE ESSA é nossa tarefa, o procedimento mais racional é o método das tentativas — da conjectura e da refutação. Precisamos propor teorias, ousadamente; tentar refutá-las; aceitá-las tentativamente, se fracassarmos. (Popper, 1980, p. 20, grifo do original)
Desse ponto de vista, todas as teorias e leis são, em essência, tentativas conjecturais e hipotéticas (mesmo se não for mais possível pô-las em dúvida). Antes de refutar qualquer teoria, não temos como saber como elas têm de ser modificadas. O método das tentativas não se identifica com o método crítico (científico), processo de conjecturas e refutações. O primeiro deles é empregado por todos, sem exceção (do mais inteligente dos seres ao micro-organismo mais diminuto). A diferença está na atitude crítica e construtiva assumida perante os erros, não nas tentativas.
“Erros que o cientista procura eliminar, consciente e cuidadosamente, na tentativa de refutar suas teorias com argumentos penetrantes — inclusive [com] o apelo aos testes experimentais mais severos que suas teorias e engenho lhe permitem preparar” (Popper, 1980, p. 20).
Assim, a atitude crítica, nas palavras de Popper (1980), é a tentativa consciente de submeter nossas teorias e conjecturas à “luta pela sobrevivência”, em que as mais aptas triunfam. Ela possibilita desde a sobrevivência de uma teoria até a eliminação de uma hipótese inadequada. “Adotamos assim a teoria mais apta a nosso alcance, eliminando as que são menos aptas. [...] Na minha opinião, este procedimento nada tem de irracional, nem precisa de maior justificação racional” (Popper, 1980, p. 20).”


“Para Bachelard, temos uma filosofia das ciências que não mostra em que condições (ao mesmo tempo subjetivas e objetivas) princípios gerais conduzem a resultados particulares e vice-versa.
Se pudéssemos então traduzir filosoficamente o duplo movimento que atualmente anima o pensamento científico, aperceber-nos-íamos de que a alternância do A PRIORI e do A POSTERIORI é obrigatória, que o empirismo e o racionalismo estão ligados, no pensamento científico, por um estranho laço, tão forte como o que une o prazer à dor. (Bachelard, A filosofia do não, 1978, p. 4, grifo do original)
Um deles se sobrepõe ao outro:
o empirismo precisa ser compreendido; o racionalismo precisa ser aplicado. Um empirismo sem leis claras, sem leis coordenadas, sem leis dedutivas não pode ser pensado nem ensinado; um racionalismo sem provas palpáveis, sem aplicação à realidade imediata não pode convencer plenamente. O valor de uma lei empírica prova-se fazendo dela a base de um raciocínio. Legitima-se um raciocínio fazendo dele a base de uma experiência. (Bachelard, 1978, p. 4-5)
A ciência necessita dos dois polos (provas/experiência, regras/leis, evidências/fatos) de um desenvolvimento dialético, porque cada noção se complementa e nisso se esclarecem segundo dois pontos de vista filosóficos distintos. Bachelard não está reduzindo a filosofia da ciência a um dualismo:
Pelo contrário, a polaridade epistemológica é para nós a prova de que cada uma das doutrinas filosóficas que esquematizamos pelos nomes de empirismo e racionalismo é o complemento efetivo da outra. Uma acaba a outra. Pensar cientificamente é colocar-se no campo epistemológico intermediário entre teoria e prática, entre matemática e experiência. Conhecer cientificamente uma lei natural, [sic] é conhecê-la simultaneamente como fenômeno e como número. (Bachelard, 1978, p. 5)
O filósofo afirma que uma dessas duas direções metafísicas deve ser supervalorizada: justamente a que vai do racionalismo à experiência. O esforço de Bachelard é de interpretar no sentido do racionalismo e da supremacia da física-matemática, e é por meio desse movimento epistemológico que ele tenta caracterizar a filosofia da ciência contemporânea. Esse racionalismo aplicado (prospector ou matemático), tal como Bachelard o caracteriza,
que retoma os ensinamentos fornecidos pela realidade para os traduzir em programa de realização, goza aliás, segundo pensamos, de um privilégio recente. Para este racionalismo prospector, muito diferente por isso do racionalismo tradicional, a aplicação não é uma mutilação; a ação científica guiada pelo racionalismo matemático não é uma transigência aos princípios. (Bachelard, 1978, p. 5)


“Lembra Cupani (2004, Scientiae Studia, p. 494) que a técnica, “capacidade humana de modificar deliberadamente materiais, objetos e eventos”, produzindo elementos novos não existentes na natureza, “define o ser humano como homo faber” (Cupani, 2004, p. 494, grifo do original). O fazer, ou melhor ainda, o saber fazer, difere-se de outras capacidades humanas como contemplar, agir, experimentar sentimentos e expressar-se em linguagem articulada, em especial a enunciativa. Segundo nosso autor, “Esse caráter da técnica deve ser levado em consideração ao entender a tecnologia como modo de vida, sobretudo na medida em que esse modo de vida afeta outros modos em que podem prevalecer aquelas outras capacidades humanas antes mencionadas” (Cupani, 2004, p. 494).”


“Para Feenberg, nos lembra Cupani (2004, p. 508), a tecnologia é um fenômeno típico da modernidade e constitui sua “estrutura material” (Cupani, 2004, p. 508). Contudo, não se trata de um instrumento neutro porque, devido a uma vinculação com o capitalismo, está imbuída de valores antidemocráticos e manifestos numa cultura empresarial que visa ao controle, à eficiência e aos recursos. As classes dominantes inscrevem seus valores e seus interesses nas decisões que os originam e os mantêm no próprio esboço de máquinas e de procedimentos. A conquista da natureza começa com o domínio social, indissociável do controle do homem pelo homem, traduzível em outros fenômenos, também típicos de nossa época, como a degradação do meio ambiente, do trabalho e da educação. A tecnologia não pode ser modificada, por exemplo, por reformas morais, porque é uma manifestação de racionalidade política. É preciso uma modificação cultural proveniente de avanços democráticos. A posição de Feenberg é “não determinista”, cujas teses são:
1. O desenvolvimento tecnológico está sobredeterminado tanto por critérios técnicos quanto sociais de progresso, podendo, por conseguinte, bifurcar-se em qualquer uma de diversas direções, conforme a hegemonia que prevalecer.
2. Enquanto as instituições se adaptam ao desenvolvimento tecnológico, o processo de adaptação é recíproco, e a tecnologia muda em resposta às condições em que se encontra tanto quanto ela as influencia. (Eeenberg, citado por Cupani, 2004, p. 508)
Reconhecer a diferença básica entre quem manda e quem obedece nesta civilização tecnológica, na qual o poder tecnológico é a sua maior forma de poder, acaba por constituir um elemento crucial para se apreender uma mudança da tecnologia. Ora, exerce-se poder pela administração e pelo controle estratégico das atividades pessoais e sociais. Cupani (2004) salienta o conceito feenbergniano de autonomia operacional de administradores (capitalistas e tecnocratas), qual seja, “liberdade para tomar decisões independentes sem considerar os interesses dos agentes subordinados nem da comunidade, ignorando também as consequências ambientais” (Cupani, 2004, p. 509). O metaobjetivo da autonomia operacional de administradores é a sua preservação indefinida, garantida por sua racionalidade, intrínseca à tecnologia, amparada pelo caráter aparentemente absoluto da justificação pela eficiência (Cupani, 2004).
A eficiência, valor característico dessa dimensão humana, parece centralizar as decisões tecnológicas. Mas não basta para determinar o desenvolvimento da tecnologia, porque ela pode ser definida conforme interesses sociais. “Os objetivos técnicos são também objetivos sociais”, sendo que o desenvolvimento tecnológico “é um cenário de luta social” (Feenberg, citado por Cupani, 2004, p. 509). Como se o desenvolvimento tecnológico fosse semelhante à linguagem, em que a “gramática condiciona o significado, mas não decide o propósito” (Cupani, 2004, p. 510). Assim, afirma Feenberg (citado por Cupani, 2004), existe um código social da tecnologia que associa eficiência e propósito.
A mais importante medida da eficiência é, sob o código do capitalismo, o lucro, adquirido pela venda de mercadorias. Ele subjuga quaisquer outras considerações e ignora preocupações outras (por exemplo, qualidade de vida, educação etc.), pois as reduz a meras “externalidades”. Por seu turno, eficiência pode ser concebida por outro código social, “que respondesse a exigências da vida humana hoje não realizadas e que aparecem em forma de reinvindicações econômicas e morais” (Cupani, 2004, p. 510), Procedimentos e artefatos eficientes precisam fazer abstração apenas ao que se refere a lucro, poder e “padrão de vida” (Cupani, 2004).
Cupani evidencia a opinião de Feenberg de que o capitalismo, bem como o socialismo burocrático, incentiva realizações tecnológicas que reforçam estruturas sociais hierarquizadas e centralizadas; de modo geral, ele controla desde o início todos os setores da vida humana (trabalho, educação, saúde, comunicação etc.).
Existe, em resumo, uma “mediação técnica generalizada”, ao serviço de interesses privilegiados, que reduz em todas as partes, em nome da eficiência, as possibilidades humanas, impondo em todo lugar, como medidas óbvias, a disciplina, a vigilância, a padronização. Reciprocamente, a mediação de determinados interesses sociais faz com que as realizações tecnológicas sejam atualmente ABSTRATAS e DESCONTEXTUALIZADAS. Trata-se de objetos e procedimentos que não parecem pertencer a nenhum mundo cultural em especial, e de sujeitos que se compreendem a si mesmos pela sua função e se acreditam livres de responsabilidade quanto às consequências das suas atividades. São esses, argumenta Feenberg, “momentos” típicos da REIFICAÇÃO social que a tecnologia representa. (Cupani, 2004, p. 510, grifo do original)
Contudo, a percepção dessas limitações e deformações pode estimular movimentos políticos transformadores. Tal esperança de Feenberg, segundo Cupani (2004), está fundamentada na impossibilidade da hegemonia do “código técnico” de impedir iniciativas contrárias (margem de manobra).
No entanto, ocorre a possibilidade de haver táticas contestadoras, devido à falta de controle absoluto da evolução tecnológica, e seus resultados tampouco podem ser previstos; ou
os resultados das táticas dos dominados são reabsorvidos pela lógica dominante. Outras vezes, no entanto, as modificações podem se estabelecer. A contestação do rumo autoritário da tecnologia não seria possível, no entanto, se a tecnologia não fosse AMBIVALENTE, podendo ser instrumentalizada em função de diferentes projetos políticos. Como argumenta Feenherg, “a tecnologia é em grande medida um produto cultural e, assim, toda ordem tecnológica é um ponto de partida potencial para desenvolvimentos divergentes, conforme o ambiente cultural que lhe dá forma”. Mais ainda, para ele, é possível perceber na tecnologia uma “dupla instrumentalização” que sugere a possibilidade de que ela venha a ter um diferente rumo. A tecnologia constitui basicamente uma atitude ou ORIENTAÇÃO com relação à realidade (“instrumentalização primária”). No entanto, ela é também um modo de ação ou realização no mundo social. (Cupani, 2004, p. 511, grifo do original)
“A “essência da tecnologia reside na união (dialética) entre ambos níveis de instrumentalização” (Feenberg, citado por Cupani, 2004, p. 511).
Feenberg, conforme apresenta Cupani (2004), resgata da “tradição humanista” os critérios de progresso em direção da realização humana que a mudança social sugerida precisa, pois ele entende que, à medida que aumenta a capacidade das pessoas em assumir responsabilidade política, permite-se a liberdade de pensamento, respeita-se a individualidade, estimula-se a criatividade e a sociedade progride.
Conforme Cupani (2004), a seguinte pergunta se faz necessária: Para que tipo de sociedade estaria orientada essa transformação? Uma vez que Feenberg reconhece o fracasso histórico dos sistemas comunistas (em termos econômicos e democráticos) e a desconfiança de economistas em relação à economia de mercado, ele propõe “uma nova ação do socialismo como meta de uma transformação cultural” (Cupani, 2004, p.512, grifo do original), e retoma de forma crítica as ideias de Marx e da Escola de Frankfurt. Sua proposta é interpretar o socialismo como uma transição gradual para um outro tipo de civilização, em que determinadas potencialidades humanas hoje negadas sejam desenvolvidas. Assim, o socialismo se tornaria “uma sociedade que privilegia bens específicos que não são de mercado e emprega uma regulação e uma propriedade públicas substancialmente mais extensas que as existentes nas sociedades capitalistas para obtê-los” (Feenberg, citado por Cupani, 2004, p. 512). Esse socialismo não estaria “em imediata oposição” ao capitalismo, mas poderia representar uma evolução “a partir dos atuais estados de bem-estar social” (Cupani, 2004, p. 512).
A transição para o socialismo pode ser identificada pela presença de fenômenos que, tomados separadamente, parecem economicamente irracionais ou administrativamente não efetivos desde o ponto de vista da racionalidade tecnológica capitalista, mas que juntos iniciam um processo de mudança civilizatória. (Feenberg, citado por Cupani, 2004, p. 512)
Feenberg, como mostra Cupani, sugere alguns exemplos de medidas que serviriam de índice de avanço social para além do capitalismo atual. As medidas que poderiam colocar em movimento tal processo seriam, por exemplo:
a extensão da propriedade pública, a democratização da administração, a ampliação do tempo de vida dedicado à aprendizagem para além das necessidades imediatas da economia, e a transformação das técnicas e do treinamento profissional para incluir um leque cada vez maior de necessidades humanas no código técnico. (Cupani, 2004, p. 513)
Esse é um processo que, alerta Feenberg, não é simples, talvez sequer provável. Mas se trata de um horizonte possível para um socialismo em circunstâncias favoráveis, fruto de uma heurística que visa romper a ilusão de necessidade com a qual o mundo está recoberto (Cupani, 2004).”