quinta-feira, 7 de julho de 2022

Histórias e toadas da minha infância, de Maria Lucília Oliveira Ferreira

Editora: Leitura Fina

ISBN: 978-85-92597-07-8

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 424

Análise em vídeoClique aqui

Link para compraClique aqui

Sinopse: É bastante normal que em seu processo de amadurecimento as crianças dialoguem com animais, com alguns de seus brinquedos e outros elementos que circundam sua vida. Mas é muito raro que uma criança faça o relato escrito deste período. Histórias e toadas da minha infância dá conta justamente desse fértil momento em que a autora, ainda sendo uma criança apenas semialfabetizada, tomava notas do jeito que conseguia — ora por meio de escritos soltos, ora por meio de poesias — sobre o mundo novo que se descortinava ante seus olhos. Muitos anos depois, Maria Lucília pôde transcrever esses papéis perdidos no tempo e revelar a nós, através de olhos infantis e puros, as agruras, peripécias e desventuras de seu crescimento ocorrido em um tempo histórico há muito ido. Além disso, o livro também nos mostra a história do surgimento do distrito de Nicolândia, em Minas Gerais, prestando a este lugar uma grande homenagem e um lindo reconhecimento.




“O fato é que o galo gosta mesmo é de brigar com os outros galos, e não de defender as galinhas.”

 

 

“Um dia, me deu vontade de conversar com os porcos no chiqueiro. Todos chamam eles de porcos, mas acho esta palavra muito feia. Por que chamam eles assim, se todos comem a sua carne? Então somos porcos também.”

 

 

“Tudo neste lugar tinha seus mistérios interessantes. Quase não havia costureiras. Minha mãe é que costurava para os moradores da região. Às vezes vinham pessoas de longe trazer costura, até vestido de noiva e paletó. Às vezes ela ficava até as madrugadas na máquina costurando para dar conta de tudo pronto. Em épocas de festa, ela se via doida, de tantas costuras que tinha que fazer. Nosso terreiro ficava rasteado de ferraduras de animal, de tanta gente que ia lá buscar costuras.

Eu era companheira dela. Só ia dormir na hora que ela fosse. Ela gostava muito de cantar enquanto costurava. Porém, sem maldades, um belo dia em que tinha costurado o dia todo, ela se levantou de repente e me disse:

- Estou indo ao cagadouro, tenho que ir depressa porque já estou soltando ventos.

Logo que ela saiu, o sr. Pedro chegou trazendo costuras e bateu palmas na porta. Eu fui receber ele e pedi que entrasse. Ele me perguntou:

- Menina, quedê sua mãe?

- Ela foi cagar lá no cagadouro, mas não vai demorar. Ela saiu daqui peidando forte. Eu acho que vai ser rápido.

Notei que o sr. Pedro ficou vermelho de vergonha, mas para mim era normal falar aquilo.

Nisso, minha mãe estava chegando e ouviu parte da conversa. Eles se olharam cheios de vergonha, mas eu nem podia imaginar o que estava me esperando. Quando o sr. Pedro saiu, ela me disse:

- Agora vou cortar sua língua com a tesoura! Me fez passar vergonha!

- Mãe, foi isso que a senhora falou quando saiu para o cagadouro.

- Que cagadouro, que nada! Vai levar uma surra de vara de goiaba. Isso é para nunca mais falar asneiras.

E me deu várias guaspadas com a vara.

Depois que tudo isso se passou, saí andando pelo pasto e fiquei imaginando o que tinha feito com minha mãe. E fiz esses versinhos para ela:

 

Oh, que vida dolorosa!

Viver sem maldades,

Apanhei pra aprender,

Conhecer toda a verdade,

Só agora compreendo,

Quantas vergonhas passou

Por causa da minha inocência,

Sei que você perdoou!

 

Com toda a tristeza de ter apanhado, tinha horas que eram de sorrir. E meus irmãos ficavam vigiando quem ia ao cagadouro, só para rir quando alguém estava com caganeira. Todos ficavam sabendo. E eles diziam:

- Você hoje está de caganeira!

Ninguém conhecia privada e nem sabia que existia papel para se limpar. Usavam sabugos de milho ou folhas de mato.

Assim era a vida na roça. Por motivo dessa falta de higiene, todas as pessoas eram portadoras de verminoses, principalmente as crianças, que eram todas barrigudas. Ninguém tinha noção do que era higiene para evitar os germes.

Mas meu pai sempre teve o capricho de todo ano comprar uma fôrma de remédio para todos nós de casa, que era chamado de lumbrigueiro pelo povo, mas seu nome era Tiro Seguro. Esse remédio realmente matava todos os vermes.

O que ficou gravado em minha mente mesmo foi a paciência que minha mãe tinha com a gente no dia de tomar o remédio. Ela não permitia que a gente desperdiçasse nem um pouquinho, pois meu pai buscava esses medicamentos na cidade de Resplendor, em Minas Gerais. Ela, por capricho, tinha seus macetes que davam certo. Nos preparava na véspera e dizia:

- Amanhã vocês vão tomar o lumbrigueiro.

Entre nós já ficávamos tristes, pois o danado do remédio tinha um cheiro terrível que nos deixava tontos depois de engolir. Minha mãe sempre dava um jeitinho: nos levava para dentro do quarto e trancava a porta com medo da gente fugir. Dizia:

- Quem vai tomar primeiro?

Todos ficavam calados. Ela dizia:

- Podem tomar, vou fazer uma canja de galinha para vocês!

No meio de tantos filhos, ela tinha que optar por alguma coisa. Então, começava a abrir os vidros. Eu disse:

- Mãe, eu quero ser a primeira!

Ela me deu uma chave para eu segurar na hora que estava tomando o remédio. Depois de engolir, ela me deu um ovo de galinha para eu segurar nas minhas mãos e assim evitar vômitos. Isto era usado em todas as casas da região. Era como uma simpatia. Mamãe também não deixava a gente ver mato verde antes de o remédio fazer efeito. Ela ficava vigiando o tempo todo, para ver quem dava vontade de ir ao cagadouro primeiro, para ver se o efeito era satisfatório. Aquele em quem demorava a fazer efeito, ela dava uma caneca de água morna doce para tomar e logo resolvia, era aquela correria para o cagadouro.

Um ria do outro quando ficava com lombriga agarrada sem sair e, no fim, a gente esquecia do que tinha passado e ia comer a tão esperada canja da galinha. Às vezes ficávamos sem poder comer porque o efeito não tinha sido bom. Quem estava comendo fazia figa para o que estava esperando. Era uma farra o dia de tomarmos esse remédio. Cinco dias depois, começávamos a tomar Biotônico Fontoura, como fortificante. E papai dizia:

- Vocês vão ficar todos corados. Vai acabar a amareleza.

Porém, nem sempre tudo era alegria. Para muitos, era dor. Muitas crianças morriam vomitando lombrigas e ainda saía pelo nariz quando estavam mortas dentro do caixão. Eu vi esta cena várias vezes e me tocava no coração. Pensei: “Bem fiz eu que tomei o remédio. Acho que estou livre destas coisas tristes”.

Isso nunca pude esquecer. Parecem coisas não verdadeiras, mas foram reais. Vendo a menina Maria das Graças morta, dentro do caixão, todos em volta dela, sua mãe retirando as lombrigas que saíam de seu corpinho, me deu um desespero tão grande que saí para o terreiro e comecei a pensar: “Por que será que a menina morreu e as lombrigas ainda ficaram vivas saindo pela boca e pelo nariz?”

Nisso, eu estava lá fora. Só vi quando uma senhora chamada Idalina saiu com um pano enrolado, cheio de lombrigas, que tinha retirado do caixão da menina, e disse:

- Vão ficando por aqui, deixem a Maria das Graças em paz.

Falou várias coisas que eu não entendi, mas dava para notar que era uma simpatia o que ela estava fazendo, para aliviar a família da menina. Aí que eu fiquei atormentada, tentando saber o que ela estava falando, e perguntei:

- Dona Idalina, o que a senhora está fazendo com este pano cheio de lombrigas e resmungando o tempo todo? A senhora está rezando?

- Isso é coisa séria. Se eu não fazer algo para conter estes bichos inquietos, vão começar a andar pela casa afora, pois já estão saindo aos punhados. Vou jogar elas dentro de um buraco e vou dizer três vezes: “Vão para a escuridão, fiquem dentro da terra, não voltem a sair de novo, tranque as que estão dentro da barriga dela”.

Depois que a vi falar aquelas coisas, fiquei interessada em escutar o que ela iria falar com os pais da menina. Só queria entender qual seria a reação deles. Ela disse:

- Podem ficar tranquilos. Já fechei a passagem deles com a simpatia. Só falta vocês terem fé.

Vendo aquilo tudo, fiquei desanimada e fui falar com minha mãe tudo o que tinha visto. Ela me falou:

- Viu como é triste ser portadora desse verme? Essa não é a primeira que morre deste jeito.

Eu fiquei assustada por vários tempos e não conseguia comer macarrão. Fiquei com nojo por muito tempo.

Logo que tudo se passou, fui para casa e fiz esses versinhos no capricho para as danadas das lombrigas:

 

Lombrigas, bicho danado

Que parece com cipó

Incha a barriga da gente

Remexe e faz um nó

Sobe e desce enrolando

Fazendo um caracó.

 

Mas com toda a malvadeza

Que você faz com a gente

Tem remédio que te mata

e salva a vida da gente.

 

Quem tem você na barriga

Vive sempre inseguro

Anda tonto e com fraqueza

Sem sangue e barrigudo

Mas você não esperava

O tiro do Tiro Seguro.

 

Bendito seja louvado

Nesta hora tão sagrada

Vendo a menina morta

E seus pais desesperados

Vendo lombrigas saindo

Rolando para todo lado

Com a barriga cheia

De ovinhos pelotados

Pra semear a terra

Eu juro que é pecado.

 

Quem toma Tiro Seguro

Não tem medo de lombrigas

Dorme sempre sossegado

Não sente dor de barriga

Com Biotônico Fontoura

Prolonga mais a vida.

 

 

“Papai gostava de contar o que tinha visto quando novo, para nos colocar a par do que ele também participou sem saber. Contou que quando chegou um circo num vilarejo, ninguém sabia o que era. Os donos fizeram amizades com os moradores da região, convidando a todos para que fossem participar da festa de abertura. No dia seguinte, o povo se reuniu e foi. Os donos do circo passaram um filme de faroeste. Quando o povo viu os artistas do filme atirando, saíram todos correndo de medo. Alguém que estava lá pediu para que olhassem, para ver se os tiros não o tinham acertado, porque todos imaginavam que eram tiros de verdade. Chegaram a rasgar o pano do circo com canivete para sair correndo. Quem estava armado, deu até tiros na tela do cinema. O dono do circo saiu e disse:

- Calma, gente, isto é filme, não é nada do que vocês estão pensando. Olhem o prejuízo que me deram!

E explicou tudo como era e eles acabaram pedindo desculpas, mas muitos já tinham ido embora de tanto medo.

Eu fiz estes versinhos para o dono do circo:

 

Gente, não faça isso

Não é tiro de verdade

Vejam só o que fizeram

Isto foi uma maldade

Rasgaram o pano do circo

Vejam só que crueldade.

 

 

“Havia coisas que me faziam matutar por várias horas. Além de prestar atenção nas histórias que ouvia, prestava atenção também nos rapazes quando estavam interessados em namorar. Quando eles gostavam de uma moça, sempre iam a sua casa montados em um cavalo. Chegando no terreiro, faziam o cavalo repicar sua marcha para a moça ver que ele era um bom cavaleiro. Ela ficava olhando da janela. Um dia, eu ouvi quando um rapaz pediu a mão de minha irmã Jacira em casamento. Prestei bem atenção no que meu pai respondeu a ele. Chamou ela e perguntou:

- Você gosta dele, minha filha?

- Gosto sim, papai. — E o pretendente respondeu:

- Também gosto dela. Quero me casar em breve. Já tenho casa para morar e vários capados gordos. O paiol está cheio de mantimentos. O senhor pode ficar tranquilo que meus pais têm boa aceitação pelo nosso casamento.

Trocaram várias ideias, só que namoravam de longe. Mas o namoro não deu certo e eles não casaram. No dia em que ela resolveu terminar o noivado, mandou um recado a ele fazendo um convite para que fosse em nossa casa à noite. Ele, pensando que era uma festa, foi bem trajado. Chegando lá, meu pai veio até a sala e disse:

- Minha filha não quer mais se casar com você.

Ela só veio até a sala para devolver uma caixa de pó de arroz de nome Cashmere Bouquet que havia ganhado dele de presente. Ele saiu tristonho e foi para casa. Chegando lá, seus pais perguntaram se a festa tinha sido boa e ele respondeu:

- Levei um baita fora!

Jacira já estava com novo amor no coração. Era uma nova família que havia comprado um terreno perto donde a gente morava e tinha muitos rapazes bonitos de olhos verdes, que eram de família italiana. Ela se apaixonou por um deles.

O rapaz que foi deixado por ela mandou seu irmão se vingar dando uma facada no peito deste rapaz que ela gostava. Isto aconteceu no momento em que os dois estavam vindo da igreja num dia de domingo. Mas a facada não foi fatal. Eu presenciei e passei a entender o quanto valia um fora quando uma moça era amada pelo noivo.

Papai chamou a família do rapaz que tinha levado a facada, foi aquele corre-corre para acudir ele. No outro dia ele já estava melhor. As três famílias foram conversar sobre o acontecimento e disseram:

- Estamos muito tristes com o que aconteceu, pois somos moradores novos aqui e nunca passamos por uma decepção dessas, só por causa de um noivado que não deu certo. Ora, veja!

Mas seu Neca, pai do rapaz que deu a facada, disse:

- Nós vamos continuar amigos. A moça é bonita. Não sou culpado de meu filho não ser privilegiado. Quero arcar com todas as despesas que vocês gastaram no tratamento dele.

Essas coisas eram novidades no lugar. Virou notícia ruim. Minha irmã ficou muito tempo sem sair de casa, pois minha mãe era muito severa com estas coisas e nem mesmo sabia que ela havia deixado o noivo por causa de outro rapaz. Disse:

- Está vendo só a vergonha que nos fez passar? Agora vai ficar igual a Santa Rita, namorando pelo buraco.

Eu nem sabia que Santa Rita tinha namorado pelo buraco.

Mas Jacira se pôs a chorar. Eu disse a ela:

- Conte comigo, não chore, sua boba! Pode fazer seus recados que eu passo a ele quando passar por aqui. Faço que vou abrir a porteira e falo com ele.

Minha mãe desconfiou e passou a me vigiar também. A coisa foi ficando difícil. Esse namoro não deu certo, durou pouco e Jacira quase morreu de paixão.

Quando uma moça era deixada pelo rapaz, falava-se que tinha levado um fora e a conversa se espalhava pela região. Era muito difícil isto acontecer.

Havia muitas moças bonitas no lugar e vários rapazes disputavam elas. Mas seus pais prendiam as meninas no quarto, pois não queriam que elas namorassem. Eram tão bonitas que nem há como explicar.”

 

 

“Sempre mamãe mandava eu buscar jiló para gente comer, e uma de minhas amigas ia comigo à horta buscar. Uma delas, a Helena, uma moça de uma beleza divina, tentou desabafar comigo. Pegou uma flor de malmequer e pediu que eu segurasse outra, foi retirando as pétalas e dizia:

- Bem-me-quer, malmequer.

Só para testar quem gostava mais dela.

Reclamou comigo que não tinha prazeres na vida. Que, com tantos rapazes que gostavam dela, não podia nem olhar. Eu ainda era criança, mas entendia tudo e ela falou:

- Quando você crescer, vai sentir tudo isto também.

- Por que está me dizendo tudo isso?

- Sou uma moça triste. Não fale nada pra ninguém.

Suas lágrimas caíam no chão e disse:

- Tenho vontade de ser igual às outras moças e não posso.

Pediu para eu ajudar ela a cantar uma modinha que fez quando estava presa no quarto. Mas eu disse:

- Como, se não sei?

- Me acompanhe que vai aprender.

Eu perguntei o nome da modinha e ela disse que era para eu nunca esquecer. Parecia uma despedida.

 

Pássaro que não pode voar

 

Quem me dera se eu pudesse

Ser aquele passarinho

Voava de galho em galho

E não vivia sozinha

Tenho pena daqueles

Que vivem dentro da gaiolinha

 

À noite, vivo sonhando

Com minha liberdade

Só assim seria feliz

Para matar minha saudade.

 

Oh, papai, eu te respeito

Mas você não compreende

Que é de meu direito

Namorar não é pecado

Não me prenda desse jeito.

 

Depois de ter cantado com ela, tive uma forte emoção. Fui para casa com a sacola de jiló, mas não consegui comer dele, só ficava pensando nela. O pior era não poder contar nada, pois eu sabia guardar segredos.

Infelizmente, já não aguentando mais o sofrimento, ela tomou veneno de formiga e morreu. Todos ficaram tristes. Teve rapaz que até vestiu luto.

Tantas coisas que vi na minha infância deixaram uma marca de muitos sofrimentos. No dia do enterro dela, fiquei olhando de longe, cantei o que ela me ensinou e pensei: “Será que, se eu tivesse contado para alguém, teria evitado essa morte? Mas Deus sabe o que ela me pediu”.

Durante muito tempo, eu não podia ver a flor de malmequer que me lembrava dela. Cheguei a ouvir várias vezes a voz dela trazida pelo vento durante a noite, mas nunca tive coragem de falar com ninguém.

Às vezes, estes fatos aconteciam com os rapazes também, pois, quando eram proibidos de namorar quem eles gostavam, acabavam se matando.”

 

 

“Não se ouvia falar em roubos. Às vezes apareciam alguns ladrões de cavalos que vinham de longe e roubavam eles do pasto. No outro dia, só se ouviam os comentários. A polícia era chamada. Quando descobriam os ladrões, era chamada a “captura”. Como não havia transporte, eles saíam em grupos de até dez soldados e iam até o local do crime armados de carabinas, traziam o preso amarrado numa corda, com as mãos atadas. Eram amarrados na garupa dos animais e saíam trotando, os presos tinham que acompanhar de acordo com o galope dos animais. Chegavam até a arrancar o couro da sola do pé, porque não tinham como escolher onde pisar. Quando passavam perto de nossa casa, eu ficava olhando e tinha muita pena. Papai nos chamou e avisou:

- Olhem, meus filhos, vocês viram como é triste entrar nas mãos da justiça? Se é culpa sua, assuma! Mesmo se a cangalha for pesada. Não jogue nas costas de ninguém. Mesmo que ela te faça pisadura nas costas. Nunca assumam a culpa dos outros. Mantenham suas mãos inocentes. A última coisa que devem perder é a vergonha.”

 

 

“Papai dizia que o Diabo dava cem e pedia duzentos de troco. Nunca se quitava a dívida com ele. Ele voltava e pegava tudo que deu em dobro. Já o que era dado por Deus, era eterno.”

 

 

Poema da roda d’água

 

Um dia passei perto da velha máquina

Senti um aperto no coração

Ela parecia querer falar comigo

Algo que estava passando

A máquina amava a roda, a roda amava a máquina

Eram iguais a noivos apaixonados no dia que estavam se casando

Me parecia entender o que ela estava falando

Ouvi um forte gemido de dor,

De um tumor que estava sangrando

Só me faltava acariciá-la

Para não deixá-la chorando.

Sentei perto dela e disse: Adeus, roda d’água

Que tanto rodou, bailou, com a água que passou.

Só você sabe os gemidos que escutou,

Os cantos dos peixes, que nos cubos ficou.

Suas orelhas de pau, tantos segredos guardou!

Não é cega, viu tudo que passou

A inocência das crianças que por aqui brincaram

Tantas voltas você dava, mas ninguém se machucou!

Quando seu dono chegava, você estava suada

Com força rodava e não reclamava

Nunca pedia nada, só trabalhava.

Ouvia tudo calada

Mas era você, que ao entardecer

Que as luzes da vila fazia acender.

O sino da igreja tocava, o povo rezava, você ajudava.

A natureza viva e o milagre operava.

Você foi feita pelas mãos do homem curioso,

Que cuidava de você

Mas um dia fiquei te olhando e ouvi você chorar

Cheguei bem pertinho e me pus a perguntar:

Conte tudo para mim, deixe a sua mensagem

É tão forte, faz tanta gente sorrir

Todos te consagram na hora de dormir

Não fique triste! É a rainha da noite!

Com esta brisa do céu que vem te cobrir

É feita da natureza, igual não pode existir!

Mas ela me respondeu: Tenho que me prevenir

Está chegando outra força de luz, não vou mais existir!

Mesmo cansada, daqui não quero sair.

Obrigada, menina doce, é um anjo idolatrado

Sei que você me ama, eu também amo você!

Quem ler esta história, sei que vai entender

Eu sou a testemunha de tudo que você escrever

Mesmo sendo criança, Deus te deu o saber

Vou viver ao relento até o cupim comer

Pertenço ao pó da terra de onde brotei.

Antes de vir para cá, minhas sementes deixei

Se todas brotaram, posso jurar que não sei

O fogo queimou tudo, pouco de mim resta

Nem o meu nome eu sei

Só respondo pelo apelido que ganhei:

Roda d’água

Mas juro que honrei.

Muitos se sentiram honrados com o lucro que dei

Tanto café e arroz, rodando, pilei

Mesmo com eixo quebrado, não desanimei

A terra guardará meus segredos,

De tudo que ouvi e passei

Se precisarem de mim

Não rejeitarei.