segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

A morte de Arthur: Rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda (Volume 2), de Thomas Malory

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-65-564-0015-0

Tradução: Maria Helena Rouanet

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 458

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Sinopse: Ver Parte I



“O gozo do amor é excessivamente breve e extremamente longo o sofrimento que ele provoca.”

 

 

“De nada valem as qualidades de um homem se não vierem acompanhadas de sabedoria.”

 

 

Quisera Deus que eu tivesse parte de suas características, e foi uma desventura eu estar enferma por ocasião desse torneio. Suponho que, em toda minha vida, nunca verei tal reunião de cavaleiros e damas como haveis visto.

Então, os dois cavaleiros contaram como Sir Palamedes foi o vencedor do primeiro dia com grande nobreza. No segundo dia, a vitória foi atribuída a Sir Tristão e, no terceiro, a Sir Lancelote. E, indagou ainda a rainha, quem se saiu melhor nos três dias de competição? Valha-me Deus!, disseram ambos. Sir Lancelote e Sir Tristão foram os que menos sofreram desonra, mas sabei que Sir Palamedes foi poderoso e se saiu muito bem, porém voltou-se contra a companhia com que havia começado e, com isso, perdeu boa parte de seu mérito, pois parece que é bastante invejoso. Então, jamais conquistará qualquer honra, observou a Rainha Guinevere, já que, se um invejoso adquire honra uma vez, se vê desonrado duas vezes. Por isso, todos os homens valorosos desgostam dos invejosos e não desejam demonstrar nenhuma boa vontade para com eles, ao passo que aquele que é cortês, amável e gentil só encontra boa vontade em toda parte.”

 

 

Foi-se embora a pé, adentrou uma floresta e, por volta da hora de prima, chegou a um morro onde havia um eremitério e um ermitão que ia celebrar uma missa. Então, Sir Lancelote se ajoelhou e implorou misericórdia a Nosso Senhor pelos seus maus atos. Terminada a missa, chamou o eremita e lhe rogou que, por caridade, ouvisse o relato de sua vida. De bom grado o farei, disse o bom homem. Sois da corte do Rei Arthur, senhor? Da companhia da Távola Redonda? Em verdade, sim. Meu nome é Sir Lancelote do Lago, de quem se fala muito bem, mas, agora, minha boa fortuna mudou, pois sou o homem mais desditoso do mundo. O ermitão o fitou longamente e se surpreendeu ao vê-lo assim, transtornado. Senhor, disse ele então, mais que ninguém, deveríeis dar graças a Deus, pois Ele vos fez ter mais honra mundana do que qualquer outro cavaleiro que hoje vive. Foi por vossa presunção, ao se pôr em Sua presença, no local onde se encontravam Sua carne e Seu sangue apesar de estar em pecado mortal, que não pudestes vê-Lo com olhos mundanos, pois Ele não quer aparecer onde estão tais pecadores, a menos que seja para lhes causar sofrimento e vergonha. Mais que qualquer outro cavaleiro, devíeis dar graças a Deus, já que Ele vos concedeu beleza, galhardia e uma grande força como a ninguém mais. Por isso, mais do que qualquer outro homem, estais obrigado a amá-Lo e a temê-Lo, uma vez que de nada vos servem vossa força e vossa valentia se Deus estiver contra vós.”

 

 

Cuidai para que vosso coração e vossa boca estejam sempre de acordo, disse o bom homem, e eu vos asseguro que tereis mais honra do que jamais tivestes na vida.”

 

 

Merlin também fez a Távola Redonda como representação da forma do mundo, pois ela representa este mundo de forma completa, já que todos, cristãos e pagãos, são por ela acolhidos e, quando são escolhidos para integrar a companhia da Távola Redonda, consideram-se mais felizes e com mais honra do que se houvessem ganhado metade da terra. Vistes que perderam seus pais e toda sua linhagem, e também esposas e filhos para fazerem parte de vossa companhia. Pudestes vê-lo por vós mesmo, uma vez que, desde que deixastes vossa mãe, não quis voltar a vê-la, por vos encontrardes entre os cavaleiros da Távola Redonda. Quando Merlin fez a Távola Redonda, disse que, por serem seus membros quem eram, através dela seria conhecida a verdade do Santo Graal. Perguntaram-lhe como poderiam saber quem se sairia melhor e levaria a cabo a demanda do Santo Graal. Ele respondeu então que havia três touros brancos que realizariam tal tarefa, dois dos quais seriam virgens, e o terceiro, casto. Disse ainda que um dos três sobrepujaria o próprio pai como o leão supera o leopardo em força e ousadia.

E aqueles que o ouviam disseram: Já que virá tal cavaleiro, deves usar tuas artes para fazer uma cadeira na qual não se sente nenhum outro homem a não ser aquele que há de sobrepujar todos os demais cavaleiros. E Merlin respondeu que assim o faria. Por isso, fez a Cadeira Perigosa, na qual Sir Galahad (filho de Lancelote) se sentou para cear no último domingo de Pentecostes.”

 

 

“Um filho não deve carregar os pecados do pai, nem o pai os pecados do filho, pois cada qual tem que levar sua própria carga.”

 

 

Quando viram a quantidade de gente que tinham matado, consideraram-se grandes pecadores. Em verdade, observou Bors, creio que, se Deus os amasse, não teríamos conseguido matá-los assim. Esses homens tanto fizeram contra Nosso Senhor que Ele não quis permitir que continuassem a reinar. Não digais isso, retrucou Galahad, pois, se agiram contra Deus, a vingança não é nossa, mas Daquele que tem poder para tanto.”

 

 

Como diz o velho refrão, é dura a batalha em que parentes e amigos se enfrentam uns aos outros, pois aí não pode haver compaixão, apenas guerra mortal.”

 

 

“Senhora, não quero ser obrigado a amar, já que o amor deve nascer do coração e não por qualquer forma de imposição. Isso é verdade, observou o rei. E o amor de muitos cavaleiros é livre em si mesmo e nunca estará vinculado ao que quer que seja, pois ali onde o amor é amarrado ele próprio consegue se desatar.”

 

 

“Passaram-se, assim, a festa da Candelária e a Páscoa. Em seguida, chegou o mês de maio, quando todos os corações vigorosos começam a florescer e a frutificar, pois, assim como as plantas e as árvores frutificam e florescem em maio, assim também o coração vigoroso, que ama de alguma forma, desabrocha e floresce em atos amorosos. Esse alegre mês de maio, mais do que qualquer outro, traz alento para todos os amantes, levando-os a se esforçar em algum sentido e por diversas causas. Nessa ocasião, as plantas e as árvores renovam o homem e a mulher, e, do mesmo modo, os amantes voltam a se lembrar de antigas doçuras, de antigas delicadezas e de muitos atos afáveis esquecidos por displicência. Pois, assim como o desvanecimento do inverno apaga e desfigura o verde verão, assim também age o amor inconstante no homem e na mulher, porque, em muitas pessoas, a constância inexiste. Vemos, diariamente, como, por um pequeno sopro desse desvanecimento do inverno, logo apagamos e afastamos o verdadeiro amor, tão valioso, por pouca coisa ou por nada. Isso não é sabedoria nem constância, mas sim fraqueza de natureza e grande desonra para quem quer que tenha semelhante atitude. Portanto, assim como o mês de maio germina e floresce em muitos jardins, do mesmo modo também ele faz florescer o coração de cada homem de mérito neste mundo, primeiro para Deus, depois para a felicidade daqueles a quem prometeu sua fé, pois nunca houve homem nem mulher de mérito que não amasse alguém mais que a todos os outros; a honra em armas jamais pode ser menosprezada, mas, em primeiro lugar, vem a honra a Deus e, em segundo, vossa dama, e, a esse amor, chamo de amor virtuoso.

Hoje em dia, porém, os homens não podem amar por sete noites seguidas, pois devem alcançar todos os seus desejos. Tal amor não tem condições de durar, pois, mal se encontram juntos e ardentes, o calor esfria. É assim que o amor se apresenta nos dias de hoje: logo se inflama e logo esfria. Isso não é constância. Mas o amor de outrora era diferente: os homens e as mulheres podiam amar-se por sete anos sem que houvesse entre eles nenhum prazer voluptuoso. Esse era o amor verdadeiro e sincero, e sabei que o amor nos tempos do Rei Arthur era dessa mesma natureza. É por esta razão que comparo o amor de hoje ao verão e ao inverno, pois um deles é quente e o outro, frio, exatamente como acontece com o amor em nossos dias. Assim, pois, todos vós que amais deveis lembrar do mês de maio, como fez a Rainha Guinevere, que menciono apenas brevemente: enquanto viveu, foi amante verdadeira e, por isso, teve um bom fim.”

 

 

“Feliz é aquele que tem um amigo fiel.”

 

 

“Para mim, o despeito é injúria maior do que qualquer dano.”

 

 

“Ai, este é o maior defeito que nós, os ingleses, possuímos: nada nos satisfaz, nem mesmo por um curto espaço de tempo.”

As crônicas de Nárnia: A cadeira de prata, de C. S. Lewis

Editora: Martins Fontes

ISBN: 978-85-7827-069-8

Tradução: Paulo Mendes Campos

Opinião: ★★★

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Páginas: 112

Sinopse: Ver Parte I


 

“– Ei, Jill, o que há com você?

Jill só fez uma careta, a careta que a gente faz quando quer dizer alguma coisa, mas sente que vai acabar chorando se falar.”

 

 

“Chorar funciona mais ou menos enquanto dura.”

 

 

“Levantou-se e olhou em torno, atenta. Nenhum sinal do Leão, mas, com tantas árvores por ali, podia ser que ele estivesse por perto. A sede era intolerável e ela juntou coragem para localizar a água. Na ponta dos pés, escondendo-se de árvore em árvore, espreitando por todos os cantos, avançou. A floresta estava tão quieta que não era difícil descobrir de onde vinha o ruído. Numa clareira corria o riacho, brilhante como um espelho. Apesar da visão da água multiplicar sua sede, não correu logo para beber. Ficou paradinha, como se fosse de pedra, boquiaberta. Motivo: o Leão estava postado exatamente à beira do riacho, cabeça erguida, patas dianteiras esticadas. Não havia dúvida de que a vira, pois olhou dentro dos olhos dela por um instante e virou-se para o lado, como se a conhecesse há muito tempo e não precisasse dar-lhe muita atenção.

Ela pensou: “Se eu correr, ele me pega; se eu ficar, ele me come.”

De qualquer forma, mesmo que tivesse tentado, não teria saído do lugar. Não tirava os olhos de cima do Leão. Quanto tempo durou isso não saberia dizer. Pareciam horas. A sede era tão forte que chegou a pensar que pouco se importaria em ser comida pelo animal, desde que desse tempo de beber um bom gole.

– Se está com sede, beba.

Eram as primeiras palavras que ouvia desde que Eustáquio falara com ela à beira do abismo. Por um segundo procurou descobrir quem falara. A voz voltou:

– Se está com sede, venha e beba.

Lembrou-se naturalmente do que dissera Eustáquio sobre os animais falantes daquele outro mundo e percebeu que era a voz do Leão. Não se parecia com a voz humana: era mais profunda, mais selvagem, mais forte. Não ficou mais amedrontada do que antes, mas ficou amedrontada de um modo diferente.

– Não está com sede? – perguntou o Leão.

– Estou morrendo de sede.

– Então, beba.

– Será que eu posso... você podia... podia arredar um pouquinho para lá enquanto eu mato a sede?

A resposta do Leão não passou de um olhar e um rosnado baixo. Era (Jill se deu conta disso ao defrontar o corpanzil) como pedir a uma montanha que saísse do seu caminho.

O delicioso murmúrio do riacho era de enlouquecer.

– Você promete não fazer... nada comigo... se eu for?

– Não prometo nada – respondeu o Leão.

A sede era tão cruel que Jill deu um passo sem querer.

– Você come meninas? – perguntou ela.

– Já devorei meninos e meninas, homens e mulheres, reis e imperadores, cidades e reinos – respondeu o Leão, sem orgulho, sem remorso, sem raiva, com a maior naturalidade.

– Perdi a coragem – suspirou Jill.

– Então vai morrer de sede.

– Oh, que coisa mais horrível! – disse Jill dando um passo à frente. – Acho que vou ver se encontro outro riacho.

– Não há outro – disse o Leão.

Jamais passou pela cabeça de Jill duvidar do Leão; bastava olhar para a gravidade de sua expressão. De repente, tomou uma resolução. Foi a coisa mais difícil que fez na vida, mas caminhou até o riacho, ajoelhou-se e começou a apanhar água na concha da mão. A água mais fresca e pura que já havia bebido. E não era preciso beber muito para matar a sede. Antes de beber, havia imaginado sair em disparada logo depois de saciada. Percebia agora que seria a coisa mais perigosa. Ergueu-se de lábios ainda molhados.

– Venha cá – disse o Leão.

E ela foi. Estava agora quase entre as patas dianteiras do Leão, olhando-o diretamente nos olhos.

Mas não aguentou isso por muito tempo e desviou o olhar.”

 

 

“– Fique quieta. Daqui a pouco soprarei. Antes de tudo, lembre-se dos sinais! Repita-os ao amanhecer, antes de dormir e, caso acordar, durante a noite. Por mais estranhos que sejam os acontecimentos, de maneira alguma deixe de obedecer aos sinais. Em segundo lugar, aviso-a de que falei, aqui na montanha, com a maior clareza: não o farei sempre em Nárnia. O ar aqui na montanha é limpo, e aqui o seu espírito também é limpo; em Nárnia, o ar será mais pesado. Cuidado para que o ar pesado não confunda seu espírito. Os sinais que aprendeu aqui surgirão sob formas bem diferentes ao depará-los lá. É importantíssimo conhecê-los de cor e desconfiar das aparências. Lembre-se dos sinais, acredite nos sinais. Nada mais importa. Agora, Filha de Eva, adeus...”

 

 

“– Amigos – disse o príncipe –, quando um homem se lança numa aventura como esta, deve dar adeus à esperança e ao medo; do contrário, tanto a morte quanto a libertação podem não chegar a tempo de salvar-lhe a honra e a razão.”

 

 

“– Coragem, meus amigos – ouviu-se a voz do príncipe Rilian. – Vivos ou mortos, Aslam será nosso guia.

– Perfeitamente, Alteza – era a voz de – Brejeiro. E sempre se pode lembrar que há uma vantagem em morrer aqui: não se gasta dinheiro com enterro.

Jill mordeu a língua. (Quem não quer mostrar o medo que está sentindo, deve ficar em silêncio; é a voz que nos denuncia.)”

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A morte de Arthur: Rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda (Volume 1), de Thomas Malory

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-65-564-0015-0

Tradução: Maria Helena Rouanet

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 458

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Sinopse: “Aquele que retirar esta espada desta pedra e desta bigorna será o legítimo rei de toda a Inglaterra.” Em uma narrativa poeticamente construída, que atravessa o nascimento, a ascensão e a morte do lendário Rei Arthur, Sir Thomas Malory tece uma das histórias mais conhecidas da língua inglesa. Publicada pela primeira vez em 1485, esta lenda tem sido contada e recontada ao longo dos séculos, sendo o principal pilar da literatura arturiana e despertando muita curiosidade. Nesta edição belamente ilustrada pelo famoso artista inglês Aubrey Beardsley, ganham vida as batalhas épicas, os romances proibidos e a trama completa dos nobres cavaleiros da Távola Redonda. Composto por dois volumes e com prefácio de William Caxton, primeiro editor da obra, ainda no século XV, o box conta com a brilhante tradução de Maria Helena Rouanet.



“Pouco depois, chegaram doze cavaleiros já bem idosos que vinham, em nome do imperador de Roma, cobrar tributos por o reino de Arthur sob pena de serem destruídos, tanto o rei quanto as suas terras. Sois mensageiros, disse Arthur, e, por isso, tendes liberdade para dizer o que quiserdes. Se não fosse este o caso, morreríeis por tais palavras. Esta porém é minha resposta: não devo nem quero dever nenhum tributo ao imperador, a não ser que este seja pago em campo aberto, e será com uma lança afiada ou com uma espada. E juro, pela alma de meu pai, Uther Pendragon, que não tardarei a fazê-lo.”

 

 

“Arthur e Pellinore ficaram lutando assim por muito tempo, fazendo algumas pausas para descansar e retomando o combate. Um e outro investiam contra o adversário como dois carneiros e, assim, caíam no chão. Por fim, atacaram-se com tanta força que suas armas se chocaram, mas a espada do cavaleiro fez a do Rei Arthur em pedaços, o que o deixou consternado. Então, o cavaleiro lhe disse: Estais à minha mercê. Posso decidir se quero vos perdoar ou vos matar. E, a menos que vos rendais e vos deis por vencido, morrereis. Quanto à morte, replicou Arthur, ela será bem-vinda quando chegar, mas quanto a dar-me por vencido, prefiro morrer a admitir semelhante afronta.”

 

 

Os dois partiram e foram ao encontro de um eremita que era um homem santo e um excelente médico. O eremita curou o rei de todas as suas feridas e lhe deu bons bálsamos. Arthur permaneceu ali por três dias e, quando todos seus ferimentos estavam curados e ele já podia andar e cavalgar, retomaram viagem. Enquanto cavalgavam, o rei disse: Não tenho mais espada. Pouco importa, retrucou Merlin. Perto daqui há uma espada que, se tudo der certo, será vossa. Prosseguiram cavalgando até chegaram às margens de um lago extenso e de águas límpidas. No meio desse lago, Arthur avistou um braço vestido de brocado branco que segurava uma bela espada na mão. Veja, disse Merlin, ali está a espada a que me referi. Nesse momento, viram uma donzela que andava sobre as águas. Quem é essa donzela?, perguntou Arthur. É a Dama do Lago, respondeu Merlin. Dentro dele, há um grande rochedo e, sobre ele, um palácio formoso e ricamente adornado como não existe nenhum outro na Terra. Esta donzela logo estará aqui à vossa frente. Deveis lhe falar gentilmente para que ela queira vos dar essa espada. Pouco depois, a moça se aproximou, saudou Arthur, que respondeu ao seu cumprimento. Donzela, indagou o rei, que espada é aquela empunhada pelo braço saindo da água? Quisera que fosse minha, pois não tenho espada. Senhor Rei Arthur, replicou a donzela, aquela espada é minha e, se vos dignais me conceder um dom quando eu vos pedir, ela será vossa. Por minha fé, disse Arthur, eu vos concederei o que me pedirdes. Pois bem, prosseguiu a Dama do Lago, entrai naquela barca, remai até onde está o braço e tomai a espada juntamente com sua bainha. Eu vos pedirei o que desejo quando chegar a hora.”

 

 

Devias conceder o perdão àqueles que te pedem, pois um cavaleiro sem misericórdia é desprovido de honra.”

 

 

“O rei Arthur convocou todos os seus cavaleiros, dando terras aos que não as possuíam em quantidade e recomendando-lhes que jamais cometessem qualquer crime ou ultraje; que evitassem sempre a traição; que não fossem cruéis em hipótese alguma; que concedessem sua misericórdia a quem a pedisse, sob pena de perder a honra e o senhorio do Rei Arthur para todo o sempre. Recomendou-lhes também que sempre socorressem damas, donzelas e senhoras; que nenhum homem travasse combate algum envolvendo querelas injustas, por nenhuma lei, nem por bens mundanos. Todos os cavaleiros da Távola Redonda, tanto os mais velhos quanto os mais jovens, prestaram tal juramento e, a cada ano, voltaram a renová-lo na grande festa de Pentecostes.”

 

 

Sir Accolon começou então a proferir palavras traiçoeiras, dizendo: Estais vencido, cavaleiro, e não podeis resistir por muito tempo. Também estais desarmado e haveis perdido muito sangue. Como não me agrada a perspectiva de matá-lo, rendei-vos a mim como fazem os covardes. Não, retrucou Sir Arthur, jamais farei isso, porque prometi levar tal batalha ao extremo, e, por minha fé, é o que farei enquanto viver. Prefiro morrer com honra a viver com vergonha e, se me fosse dado morrer cem vezes, preferiria que assim fosse a ter que me render a vós, pois, embora não tenha mais arma, ainda tenho honra, e se me matardes desarmado vossa será a vergonha. Pouco me importo com a vergonha, retrucou Accolon, e, por isso, preparai-vos, pois já sois um homem morto. Tendo dito isso, desfechou tamanho golpe que Arthur quase caiu, e seu adversário insistiu para que ele lhe pedisse clemência. Sir Arthur, porém, lançou-se sobre Accolon com seu escudo e lhe deu um golpe tão forte na mão com o pomo da espada que o cavaleiro acabou recuando três passos.

Quando a Donzela do Lago viu Arthur, como seu corpo prosseguia cheio de bravura e sabendo da traição que havia sido tramada para matá-lo, lastimou profundamente que um cavaleiro de tanto mérito e um homem de tanta coragem fosse ser destruído. O golpe que Sir Accolon desfechou em seguida foi tão forte que, por um feitiço lançado pela donzela, a espada Excalibur lhe caiu das mãos. De um salto, Arthur apoderou-se da arma e, assim que a segurou, soube que era sua espada, Excalibur. Disse, então: Estiveste separada de mim por muito tempo e muito dano me causaste. Nesse instante, viu a bainha pendendo da cinta de seu adversário e pulou subitamente sobre ele, arrancou-a dali e a atirou o mais longe que pôde. Ah, cavaleiro, exclamou Arthur, hoje me fizestes muito mal com esta espada. Agora, chegou a hora de vossa morte, pois vos prometo que, antes de nos separarmos, recebereis, por esta arma, a mesma paga que me destes porque me infligistes muita dor e me fizestes perder muito sangue. Nesse momento, lançou-se sobre seu adversário com toda a força, atirando-o no chão. Arrancou-lhe o elmo e lhe aplicou tamanho golpe na cabeça que ele começou a sangrar pelos ouvidos, pelo nariz e pela boca. Agora vou vos matar, disse Arthur. Podeis perfeitamente fazê-lo, retrucou Accolon, se assim o desejardes, já que sois o melhor cavaleiro que jamais enfrentei e vejo que Deus está convosco. Mas prometi travar esta batalha a qualquer preço e não me acovardar enquanto vivesse; portanto, de minha boca nunca sairão palavras de rendição, e que Deus use minha vida segundo seus desígnios. De repente, Arthur teve a impressão de já ter visto aquele cavaleiro. Antes que vos mate, perguntou, dizei-me de que país sois e de que corte? Senhor cavaleiro, respondeu Sir Accolon, sou da corte do Rei Arthur e me chamo Accolon de Gaula. Arthur sentiu-se então mais desalentado do que antes, pois se lembrou de sua irmã, a Fada Morgana, e do encantamento da embarcação. Ah, senhor cavaleiro, disse ele, rogo-vos que me digais quem vos deu esta espada e por meio de quem a conseguistes.

Então Sir Accolon se deu conta do ocorrido e disse: Maldita seja essa espada, pois por ela encontrei a morte. É bem possível, replicou o Rei Arthur. Bem, senhor, principiou o vencido, vou confessar tudo: esta espada esteve sob minha guarda a maior parte dos últimos doze meses, e a Fada Morgana, esposa do Rei Uriens, a fez chegar ontem às minhas mãos através de um anão, com o intuito de que eu matasse o Rei Arthur, seu irmão, o homem que ela mais odeia no mundo porque tem mais honra e bravura do que qualquer outro do mesmo sangue. Ela também me ama muito, como amante, e este amor é recíproco. Assim, se pudesse provocar a morte de Arthur com suas artes, logo trataria de matar seu esposo, o Rei Uriens, e faria de mim o rei desta terra e ela seria minha rainha. Isto agora não vai ser possível, acrescentou Accolon, pois bem sei que vou morrer. Pois eu sentiria muito por vós se vos tivesses tornado rei desta terra, disse Sir Arthur. Teria sido uma grande lástima se houvesses destruído vosso senhor. Tendes razão, replicou o cavaleiro, mas, agora que vos disse a verdade, rogo-vos que me digais de onde sois e de que corte. Ah, Accolon, exclamou o Rei Arthur, pois ficai sabendo que sou o Rei Arthur e que me causastes grande mal. Ao ouvir isso, Accolon disse em voz alta: Gentil e doce senhor, tende compaixão de mim, pois não vos havia reconhecido. Ah, Sir Accolon, disse o monarca, tereis minha clemência, porque bem vejo, por vossas palavras, que não me haveis reconhecido. Mas percebo, por essas mesmas palavras, que estavas de acordo com minha morte e, por isto, sois um traidor. Sei, porém, que sois menos culpado do que minha irmã, a Fada Morgana, já que ela, com suas falsas artes, fez com que concordásseis com ela e consentisses em seus falsos prazeres. No entanto, se eu viver, hei de me vingar dela, de tal forma que toda a Cristandade falará a esse respeito. Deus sabe que eu a honrei e venerei mais que a todos de minha linhagem; que confiei mais nela do que em minha própria esposa e em todos os meus outros parentes.

O Rei Arthur chamou então os cavaleiros que guardavam a liça e lhes disse: Vinde, senhores, pois aqui estão dois cavaleiros que lutaram com grandes padecimentos para ambos. Cada um de nós poderia ter matado o outro, mas, se um de nós houvesse reconhecido o outro, não teria havido batalha alguma, nem se teria desferido golpe algum. Por seu turno, Accolon falou em altos brados, dirigindo-se a todos os cavaleiros e outros homens ali reunidos. Ah, senhores, disse, este nobre cavaleiro contra quem lutei, coisa que muito lamento, é o homem dotado de mais bravura, empenho e mérito que existe no mundo, pois trata-se do próprio Rei Arthur, senhor natural de todos nós. E por desventura e infortúnio, enfrentei em combate o rei e senhor a quem devo fidelidade.”

 

 

“Uma vez que se caiu em desgraça, não há recuperação possível.”

 

 

Então, o rei cavalgou até o local onde o Imperador Lucius jazia morto. Junto dele, encontrou também os corpos do Sultão da Síria, do Rei do Egito e da Etiópia, que eram dois nobres monarcas, e ainda dezessete outros reis de diversas regiões, além de sessenta senadores de Roma, todos nobres. Aqueles cadáveres receberam bálsamos e resinas aromáticas e foram cobertos com sessenta camadas de véus e encerrados em baús de chumbo para evitar a decomposição e o mau cheiro. Sobre esses corpos, depositaram-se ainda seus escudos, suas armas e seus pavilhões para que todos soubessem de que país cada um deles se originava. Mais adiante, encontraram três senadores que ainda estavam vivos, e o rei lhes disse: Para salvar suas vidas, desejo que leveis os corpos desses mortos até Roma e os apresenteis aos Potentados de minha parte, mostrando-lhes minhas credenciais e dizendo-lhes ainda que em breve estarei pessoalmente em Roma. Suponho que os romanos tenham entendido que não devem me cobrar qualquer tributo. E ordeno que, ao chegar à sede do império, digais aos Potentados, a todo o Conselho e ao Senado que lhes envio esses corpos como o tributo que eles pretenderam cobrar de mim. Caso isso não os satisfaça, posso pagar um pouco mais quando for até lá, pois não lhes devo nem vou pagar qualquer outro tributo.”

 

 

“Voltemos agora a Sir Lancelote, que cavalgava com a donzela por uma linda estrada. Senhor, disse a jovem, perto deste caminho costuma ficar um cavaleiro que causa sofrimento às damas e senhoras. Ele as rouba ou se deita com elas, para não dizer coisa pior. Como?, exclamou Lancelote. Um cavaleiro ladrão e violador de mulheres? Pois ele comete grande afronta à ordem da cavalaria e quebra o juramento que fez. É lamentável que continue vivo. Eu vos peço, gentil donzela, que seguis cavalgando à minha frente, sozinha, e eu a seguirei às ocultas. Se ele vier vos causar algum transtorno, correrei em vosso auxílio e ensinarei esse homem a se portar como um cavaleiro.

Assim, pois, a donzela seguiu seu caminho a passo lento. Poucos minutos depois, saiu do bosque o referido cavaleiro, acompanhado de seu pajem. Arrebatou a donzela de sua montaria, e ela começou a gritar. Surgiu então Lancelote, cavalgando o mais depressa possível, até chegar perto do cavaleiro, dizendo: Ah! Falso cavaleiro e traidor da cavalaria? Quem vos ensinou a importunar damas e senhoras? Diante da atitude daquele homem que o censurava, o tal cavaleiro nem respondeu. Limitou-se a sacar da espada e arremeter contra o recém-chegado. Este atirou no chão sua lança e, empunhando a espada, desferiu tamanho golpe no alto do elmo de seu adversário que lhe abriu a cabeça e o pescoço até a altura dos ombros. Agora tendes a recompensa que há tanto merecíeis! É bem verdade, replicou a donzela, pois, assim como Sir Turquine ficava à espreita para destruir cavaleiros, este aí fazia a mesma coisa para destruir e afligir senhoras, damas e donzelas. Chamava-se Sir Peris de Forest Savage. E agora, donzela, perguntou Sir Lancelote, há algum outro serviço que eu possa vos prestar? Não, senhor, respondeu a moça. Por ora, não. Desejo apenas que Jesus Todo-Poderoso vos proteja por onde quer que cavalgueis, pois sois o cavaleiro mais cortês e mais gentil com todas as damas e donzelas que jamais vi no mundo. Há, porém, uma coisa que parece vos faltar, senhor. Sois um cavaleiro sem esposa e não quereis amar nenhuma dama ou donzela, pois nunca ouvi dizer que tivésseis amado ninguém, mais ou menos intensamente, o que é uma grande lástima. Mas dizem também que amais a Rainha Guinevere, que ordenou, por encantamento, que nunca amásseis nenhuma outra mulher a não ser ela, além disso determinou que dama ou donzela alguma desfrutará de vós e que, por este motivo, muitas delas, nestas terras, de alto ou baixo estado, muito se lamentam.

Gentil donzela, disse Sir Lancelote, não posso impedir que as pessoas digam de mim o que quiserem, mas creio que eu não tenha a intenção de me tornar um homem casado, pois, nesse caso, teria que me deitar com minha esposa e deixar as armas e os torneios, as batalhas e as aventuras. Quanto a ter prazer com amantes, é algo que recuso antes de mais nada por temor a Deus, pois os cavaleiros aventureiros que são adúlteros ou que se deixam levar pela luxúria não são felizes nem afortunados nas guerras: ou são vencidos por um cavaleiro mais modesto que eles, ou, para sua infelicidade e maldição, matam cavaleiros que são melhores do que eles. Assim, aquele que tem amantes é desditoso e tudo a sua volta é desdita.”

 

 

“Amar quem não nos ama é uma grande tolice.”

 

 

“Vede, disse ele, aqui se pode comprovar que não existe cavaleiro tão bom que não possa levar uma queda, nem tão alerta que não possa ser apanhado de surpresa uma vez que seja, nem que cavalgue tão bem que não possa ser derrubado.”

 

 

“Como diz o livro francês, chegaram ao castelo de Sir Darras quarenta cavaleiros de sua própria linhagem decididos a matar Sir Tristão e seus dois companheiros. O velho cavaleiro, porém, não lhes deu seu consentimento e manteve os três encarcerados, dando-lhes de comer e de beber. Nesse local, Sir Tristão suportou grandes padecimentos, já que a enfermidade se havia apoderado dele e este é o maior sofrimento que um prisioneiro pode enfrentar, pois, enquanto estiver são de corpo, consegue suportar a prisão com a graça de Deus e a esperança de ser libertado. Mas, quando a enfermidade se apossa do corpo de um prisioneiro, ele pode dizer que foi despojado de todas as riquezas do mundo e tem portanto motivos para gemer e chorar. Foi exatamente o que aconteceu com Sir Tristão, tomado de tamanha angústia que esteve a ponto de tirar a própria vida.”