domingo, 22 de agosto de 2021

SPQR – Uma História da Roma Antiga (Parte III), de Mary Beard

Editora: Crítica

ISBN: 978-85-4220-940-2

Tradução: Luis Reyes Gil

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 576

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Sinopse: Ver Parte I



Por volta da década de 60 a.C., a própria ordem política em Roma sofria rupturas a todo instante, superada por violência de rua, que se tornou parte da vida cotidiana. A “conspiração” de Catilina foi apenas um incidente entre muitos. Houve muitas ocasiões em que os tumultos evitaram a realização de eleições, ou em que uma distribuição massiva de propinas definiu a decisão do eleitorado ou dos júris dos tribunais, ou em que um assassinato foi a arma escolhida contra um adversário político. Públio Clódio Pulcro [Publius Clodius Pulcher], o irmão da “Lésbia” de Catulo, e o homem que arquitetou o exílio de Cícero em 58 a.C., foi mais tarde assassinado por um bando paramilitar de escravos de propriedade de um dos amigos de Cícero, em uma estúpida briga num subúrbio da cidade (a “Batalha de Bovila”, como foi majestosa e ironicamente nomeada). Nunca ficou claro a quem se deveria atribuir a responsabilidade por sua morte, mas foi-lhe oferecida uma cremação de improviso no Senado, que pegou fogo junto com o corpo. Um cônsul controvertido foi removido de maneira comparativamente menos drástica em 59 a.C.: recebeu uma mera saraivada de excrementos e passou o resto do seu ano de mandato entrincheirado em casa.

Num cenário desses, três homens — Pompeu, Júlio César e Marco Licínio Crasso — fizeram um acordo informal para lançar mão de sua influência combinada, seus contatos e seu dinheiro para ajustar o processo político aos seus próprios interesses. O “Bando dos Três”, ou “Monstro de Três Cabeças”, como definiu um satirista contemporâneo, pela primeira vez passou a tomada de decisões públicas para mãos privadas. Por meio de uma série de arranjos de bastidores, subornos e ameaças, os três asseguraram que os consulados e os comandos militares fossem parar onde eles escolhessem e que as decisões importantes seguissem sua orientação. Esse arranjo durou cerca de uma década, começando por volta de 60 a.C. (negociações em privado são difíceis de datar com precisão). Mas depois, procurando assegurar sua posição pessoal, Júlio César decidiu seguir o precedente de Sula e tomou Roma à força.

O essencial do que aconteceu em seguida é bastante claro, mesmo que os detalhes sejam de uma complexidade quase impenetrável. Saindo da Gália no início de 49 a.C., César fez a famosa travessia do rio Rubicão, que delimitava a fronteira com a Itália, e marchou em direção a Roma. Quarenta anos haviam feito uma grande diferença. Quando Sula direcionou seu exército para a cidade, apenas um de seus oficiais veteranos recusou-se a segui-lo. Já quando César fez o mesmo, apenas um ficou ao seu lado. Era um bom sinal do quanto os escrúpulos haviam sido erodidos num intervalo de tempo tão curto. A guerra civil que eclodiu em seguida, da qual César e Pompeu, aliados de outrora, eram agora comandantes rivais, espalhou-se pelo mundo mediterrâneo. Os conflitos internos de Roma não se restringiam mais à Itália. A batalha decisiva foi travada na Grécia central, e Pompeu acabou assassinado no litoral do Egito, decapitado por alguns egípcios que o traíram.

Essa é uma história poderosa de crise política e desintegração sangrenta, mesmo contada em sua forma mais esquemática. Alguns dos problemas subjacentes são óbvios. As instituições políticas de Roma, de escala relativamente limitada, haviam mudado pouco desde o século IV a.C. Mal conseguiam estar à altura de governar a península Itálica e eram ainda menos capazes de controlar e policiar um vasto Império. Como veremos, Roma confiava cada vez mais nos esforços e no talento de indivíduos cujo poder, lucros e rivalidades ameaçavam os próprios princípios sobre os quais a República se assentava. E não havia nenhum anteparo — nem mesmo uma força policial básica — para impedir que o conflito político descambasse para a violência política assassina em uma metrópole imensa, que abrigava 1 milhão de pessoas por volta do século I a.C., onde a fome, a exploração e as imensas disparidades de riqueza eram catalisadores adicionais de protestos, tumultos e crimes.

São também eventos que historiadores, tanto antigos quanto modernos, podem examinar em retrospecto, com todas as vantagens e desvantagens desse tipo de visão. Afinal, depois que já se sabe o desfecho, é fácil apresentar o período como uma série de passos irrevogáveis e brutais na direção de uma crise ou como uma lenta contagem regressiva, seja para o fim do Estado livre, seja para a volta a um governo de um só homem. Mas o último século da República foi mais do que um mero banho de sangue. Como sugerem o florescimento da poesia, das teorizações e da arte, foi também uma época em que os romanos viram-se às voltas com problemas que estavam minando seu processo político e no qual surgiram algumas de suas maiores invenções, como o princípio radical de que o Estado tinha alguma responsabilidade em assegurar que seus cidadãos tivessem o suficiente para comer. Pela primeira vez, tiveram que enfrentar a questão de como um Império deveria ser administrado e governado, em vez de ser simplesmente adquirido, e conceberam elaborados códigos práticos para o domínio romano. Em outras palavras, esse foi também um período extraordinário de análise e inovação política. Os senadores romanos não ficaram sentados ociosamente enquanto suas instituições políticas mergulhavam no caos, e tampouco simplesmente atiçaram as chamas da crise para proveito próprio a curto prazo (embora certamente houvesse um pouco disso). Muitos deles, a partir de diferentes extremos do espectro político, tentaram encontrar algum remédio eficaz. Não devemos permitir que a nossa visão retrospectiva, ou que o fracasso final deles ou a sucessão de guerras civis e assassinatos nos deixem cegos para os esforços empreendidos.”

 

 

Esse caso notório é apenas uma das muitas controvérsias e dilemas a respeito do governo romano no além-mar que emergiram no último século da República. Na década de 70 a.C., com vastos territórios sob influência romana, fruto de dois séculos de lutas, negociações, agressão e boa sorte, a natureza do poder romano e dos pressupostos dos romanos a respeito de suas relações com o mundo que agora dominavam estava mudando. Em termos amplos, o rudimentar Império de obediência havia se transformado, ao menos em parte, em um Império de anexação. Provincia havia passado a significar “província” no sentido de uma região definida sob controle direto de Roma, em vez de apenas “responsabilidade” ou “tarefa’’, e a palavra imperium era agora usada ocasionalmente no sentido de “Império”. Essas mudanças de terminologia apontam para novos conceitos de território e para uma nova estrutura de organização, o que levantava outras questões sobre o que significava governar no exterior. Como se esperava que um governador romano se portasse nas províncias? Como se poderia definir sua tarefa? Que voz as populações das províncias deveriam ter, particularmente ao buscar reparações de um governo malconduzido? E o que se poderia considerar como má condução de um governo? Esses problemas a respeito do governo provincial foram trazidos para o cerne do debate político doméstico. Uma evidência preciosa disso é o texto da lei sob a qual Verres foi processado. O texto não tem a fama da retórica vistosa de Cícero, mas nos leva aos bastidores, às tentativas romanas de criar uma estrutura legal, e arranjos práticos, para lidar com os direitos dos cidadãos das províncias.

Mais controversas até, e centrais para o eventual colapso do governo republicano, eram as questões sobre a quem confiar o comando, o controle e a administração do Império. Quem deveria governar as províncias, recolher impostos, comandar os exércitos romanos, ou servir neles? A tradicional classe governante, com seus princípios de poder partilhado e de curto prazo, seria capaz de lidar com os grandes problemas, administrativos e militares, que o Império agora enfrentava? Já no final do século II a.C., Caio Mário [Gaius Marius], um “homem novo”, atribuiu sem meias palavras a culpa por uma série de derrotas militares romanas à corrupção dos comandantes de Roma, sempre receptivos a uma propina bem colocada. Ele seguiu em frente e baseou a carreira política em sua capacidade de obter notáveis vitórias onde eles haviam falhado desastrosamente, sendo eleito cônsul nada menos do que sete vezes, cinco delas seguidas.

Esse era um padrão de repetidos exercícios do cargo que Sula mais tarde proibiu, em suas reformas do final da década de 80 a.C. Mas o problema subjacente não desapareceu. As exigências de defender, policiar e às vezes ampliar o Império incentivaram, ou obrigaram, os romanos a entregar enormes recursos financeiros e militares a comandantes individuais por anos a fio, de uma maneira que desafiava as estruturas tradicionais do Estado de modo mais fundamental ainda do que jamais havia ocorrido com as disputas domésticas entre optimates e populares. Em meados do século I a.C., montados em suas conquistas de além-mar, Pompeu, o Grande, e Júlio César haviam se tornado rivais em busca de poder autocrático: comandavam o que, na realidade, eram seus exércitos particulares; haviam desconsiderado princípios republicanos de modo ainda mais abrangente do que Sula ou Mário; e abriram a perspectiva do governo de um homem só, que o assassinato de César não conseguiu obstruir.

Em resumo, como a última parte deste capítulo revela, o Império criou os imperadores — e não o contrário.”

 

 

“O domínio romano era quase sempre não intervencionista pelos padrões dos regimes imperiais mais recentes: os habitantes locais mantinham seu próprio calendário, cunhagem de moedas, deuses, seus próprios sistemas jurídicos e governo civil. Mas onde e quando esse domínio se mostrou mais direto, parece ter caído em algum ponto do espectro entre exploração impiedosa, de um lado, e negligência, precariedade de recursos e ineficiência, de outro.”

 

 

Os romanos tendiam a usar o suborno como uma escusa prática toda vez que a guerra, as eleições ou os vereditos da corte não tinham o desfecho que esperavam. Corrupção direta desse tipo era provavelmente menos comum do que alegavam. E qualquer que fosse o esnobismo no cerne da classe governante, havia na prática mais espaço para talentos novos, ou talentos mais atuais, do que as raivosas afirmações de Salústio admitem. Listas sobreviventes de nomes, que por esse período são bastante precisas, sugerem que cerca de 20% dos cônsules do final do século II a.C. vinham de famílias cuja rede de relações não havia produzido nenhum cônsul nos cinquenta anos precedentes.

A carreira de Mário teve impacto enorme no restante da história republicana, de formas imprevistas. Primeiro, quando voltou à África para assumir o comando contra Jugurta, alistou em seu exército qualquer cidadão que estivesse disposto a ser voluntário. Até então, exceto em emergências, os soldados romanos haviam sido recrutados oficialmente apenas de famílias detentoras de propriedades. Com isso, os problemas de recrutamento tinham ficado evidentes havia algum tempo e podem ter estado por trás das preocupações de Tibério Graco a respeito dos pobres sem terra; pois, se não tivessem terra, não poderiam servir nas legiões.

Ao alistar todos que se apresentavam, Mário cortou caminho, mas no processo criou um Exército romano dependente, semiprofissional, que desestabilizou a política doméstica por oitenta anos mais ou menos. As legiões de estilo novo dependiam cada vez mais de seus comandantes, não só para obter uma parte do saque mas também um pacote de assentamento, de preferência em terras, ao final do serviço militar, que lhes daria algum meio de vida no futuro. Os efeitos disso foram sentidos de várias maneiras. Os conflitos na pequena cidade de Pompeia depois que Sula impingiu seus veteranos ali em 80 a.C. foram apenas um de muitos casos de conflitos locais, exploração e ressentimento. Criou-se um problema perene: decidir de onde viria a terra para esses soldados, e às custas de quem. Mas foi a relação estabelecida entre cada general e seus soldados que teve as consequências mais drásticas. Em essência, os soldados trocavam a absoluta lealdade a seus comandantes pela promessa de um pacote de aposentadoria — em uma permuta que na melhor das hipóteses passava ao largo dos interesses do Estado e na pior delas transformava as legiões em uma nova modalidade de milícia privada concentrada inteiramente nos interesses de seu general. Quando os soldados de Sula, e depois os de Júlio César, seguiram seu líder e invadiram Roma, foi em parte devido à relação entre legiões e comandantes forjada por Mário.”

 

 

Cícero pode muito bem ter estado presente no Senado nos Idos de Março de 44 a.C., quando César foi assassinado, como testemunha ocular de um homicídio conturbado e que quase teve sua execução comprometida. Um bando de cerca de vinte senadores se agrupou em torno de César a pretexto de entregar-lhe uma petição. Um senador do segundo escalão deu o sinal para o ataque ao se ajoelhar aos pés do ditador e puxar sua toga. Os assassinos não foram muito precisos na ação, ou talvez o pânico os tenha deixado desajeitados. Um dos primeiros golpes de adaga errou o alvo e deu a César a oportunidade de contra-atacar com a única arma que tinha em mãos — seu afiado estilete. Segundo o relato mais antigo que sobreviveu, de Nicolau de Damasco, um historiador grego da Síria escrevendo cinquenta anos depois, mas provavelmente a partir de descrições de testemunhas oculares, vários dos assassinos foram atingidos por “fogo amigo”: Caio Cássio Longino [Gaius Cassius Longinus] atacou César mas acabou ferindo Brutus; outro golpe errou o alvo e acertou a coxa de um companheiro.

Ao cair, César gritou em grego para Brutus, “Até tu, filho?”, o que era tanto uma ameaça (“Eu vou pegá-lo, garoto!”) como um pungente lamento pela deslealdade de um jovem amigo (“Até você, meu filho?”), ou até, como alguns contemporâneos desconfiados imaginaram, uma revelação final de que Brutus era, na verdade, filho natural de César, e que portanto não se tratava de parricídio. A famosa frase latina “Et tu, Brute?” [“Até tu, Brutus?”] é uma invenção de Shakespeare. Os senadores que assistiam à cena fugiram; se Cícero estava lá, presumivelmente não foi mais corajoso que os outros. Mas qualquer fuga rápida foi bloqueada por uma multidão que saía naquela hora do Teatro de Pompeia, ao lado, depois de uma apresentação de gladiadores. Quando essas pessoas souberam o que havia acontecido, também quiseram chegar à segurança de seus lares o mais depressa possível, apesar da tentativa de Brutus de garantir que não havia com o que se preocupar e que era uma boa notícia. A confusão ficou ainda maior quando Marco Emílio Lépido [Marcus Aemilius Lepidus], um dos aliados mais próximos de César, deixou o Fórum para reunir alguns soldados acampados à saída da cidade, e quase deu de cara com o grupo de assassinos que vinha da outra direção para anunciar o feito vitorioso, seguidos de perto por três escravos que carregavam o corpo de César em uma maca, rumo à casa dele. Era uma tarefa penosa, pois eram apenas três, e alguns relatos contam que os braços feridos do ditador pendiam de lado, balançando, numa cena horrível.

Naquela noite, Cícero encontrou Brutus e alguns de seus companheiros “Libertadores” no Capitólio, onde haviam ficado. Ele não participara do complô, mas alguns disseram que Brutus havia pronunciado o nome de Cícero ao enfiar a faca em César — e de qualquer modo, sendo um estadista veterano, ele provavelmente seria uma figura útil para se ter a bordo na sequência dos acontecimentos. O conselho de Cícero foi claro: eles deveriam convocar imediatamente o Senado para uma reunião no Capitólio. Mas eles hesitaram e deixaram a iniciativa para os seguidores de César, que logo exploraram o sentimento popular, que certamente não era favorável aos assassinos, apesar das fantasias posteriores de Cícero de que a maioria dos romanos comuns no final acreditou que o tirano deveria mesmo ser deposto. A maioria ainda preferia as reformas de César — o apoio aos pobres, os assentamentos de além-mar e as ocasionais ajudas em dinheiro — em vez das belas ideias de liberdade, que talvez não fossem mais do que um álibi para os interesses egoístas da elite e para a continuidade da exploração das classes baixas, como poderiam muito bem ter observado aqueles que estiveram sob o fio da navalha das arrecadações extorsivas de Brutus em Chipre.”

 

 

Muito da grande tradição de escrita moderna sobre os imperadores romanos tem sido estruturado em termos similares, em torno de personagens imperiais bons ou maus. As palavras de Edward Gibbon, em Declínio e queda do Império Romano, publicado em episódios a partir de 1776, têm tido imensa influência na visão das gerações de historiadores posteriores. Antes de abordar o tema principal de seu título, Gibbon faz uma breve reflexão sobre o período inicial do governo de um só homem, que vai de Tibério a Cômodo, e considera dignos de elogios os imperadores do século II d.C. Seu memorável aforismo, expresso com a típica assertividade do século XVIII, ainda é muito citado: “Se alguém fosse chamado a determinar o período da história do mundo no qual a condição da raça humana foi mais feliz e próspera, ele sem hesitar indicaria aquele que transcorreu desde a morte de Domiciano até a ascensão de Cômodo” — ou seja, o que muitos desde então têm chamado de período dos “bons imperadores”: Nerva, Trajano, Adriano, Antonino Pio, Marco Aurélio e Lúcio Vero.

Esses eram governantes, prossegue Gibbon, cujo caráter e autoridade “despertavam respeito involuntário” e que “se compraziam na imagem da liberdade”. A única coisa que devem ter lamentado, conclui ele, é saber que algum sucessor indigno (“algum jovem licencioso ou um tirano ciumento”) logo iria surgir para arruinar tudo, como quase todos os seus predecessores haviam feito no passado: “o sombrio e implacável Tibério, o colérico Calígula, o frágil Cláudio, o devasso e cruel Nero e o tímido e desumano Domiciano”.

É uma maneira professoral de resumir quase dois séculos de história romana. Gibbon viveu em uma época em que historiadores julgavam “sem hesitar” e estavam dispostos a acreditar que o mundo romano teria sido um lugar melhor para se viver do que o deles. É também uma maneira profundamente enganosa, por várias razões. Os diversos governantes não se encaixavam facilmente em qualquer imagem-padrão, estereotipada. O próprio Gibbon admite — em linhas que são hoje raramente citadas, porque estragam a esplêndida assertividade do aforismo — que um de seus favoritos, Adriano, podia também ser fútil, caprichoso e cruel — um excelente príncipe, tanto quanto um tirano ciumento. Gibbon deve ter tido conhecimento do episódio em que Adriano mandou matar seu arquiteto por discordar do projeto de um edifício; se verdadeiro, é um exemplo de abuso imperial digno de um Caio.

E alguns dos modernos admiradores do gentil filósofo imperador Marco Aurélio iriam admirá-lo menos se refletissem sobre a brutalidade de sua supressão dos germanos, orgulhosamente ilustrada nas cenas de batalha que sobem ao redor da sua coluna comemorativa, ainda em pé no centro de Roma; embora menos famosa, ela teve a clara intenção de competir com a de Trajano, e houve até o cuidado de fazê-la um pouco mais alta. Há que se considerar também todos os problemas de separar o que é fato do que é fantasia nas várias histórias sobre os malfeitos de Caio. Os diversos relatos antigos de transgressões imperiais nos dão vislumbres importantes das preocupações, suspeitas e preconceitos romanos. O grau de exatidão com que os escritores romanos imaginavam que seus maus imperadores revelavam sua maldade pode nos dizer muita coisa sobre as suposições culturais e a moralidade romanas em geral, desde o frisson particular que era associado — e ainda é — ao sexo em piscinas, à objeção, mais surpreendente, em relação à crueldade com as moscas (provavelmente um sinal de que não havia nada no mundo de Domiciano tão trivial que não pudesse se tornar um hobby para seu sadismo). Mas enquanto evidências da realidade do domínio imperial, tais relatos ainda são uma mistura de narrativa precisa, exagero e suposições, impossível de ser desvendada.”

 

 

Em termos mais gerais, a política da mudança de regime tinha uma grande influência na maneira pela qual cada imperador passava à história, já que as carreiras e os personagens imperiais eram reinventados para atender aos interesses daqueles que os apoiavam. A regra básica da história romana é que todo aquele que era assassinado acabava sendo, como Caio, demonizado. Aqueles que morriam em seu leito, sucedidos por um filho e herdeiro, natural ou adotivo, eram exaltados como personagens generosos e afáveis, dedicados ao sucesso de Roma, que por sua vez não os levava muito a sério.

Essas são as considerações que recentemente incentivaram algumas tentativas corajosas e revisionistas de reabilitar alguns dos mais notórios monstros imperiais. Vários historiadores modernos têm apresentado Nero, particularmente, mais como uma vítima da propaganda da dinastia Flaviana, que começa com Vespasiano, seu sucessor, do que como um piromaníaco assassino da própria mãe, a quem se atribui ter iniciado o grande incêndio de 64 d.C., não só para apreciar o espetáculo, mas também para limpar a área e poder construir seu novo palácio, a Casa Dourada [Domus Áurea]. Mesmo Tácito admite, apontam os reabilitadores, que Nero foi o patrocinador de medidas de ajudas efetivas para os desabrigados após o incêndio; e a propalada extravagância de sua nova residência, com todos os seus luxos (incluindo uma sala de jantar giratória), não impediu que o parcimonioso Vespasiano e seus filhos se apoderassem de parte dela como sua casa. Além disso, nos vinte anos após a morte de Nero, em 68 d.C., pelo menos três falsos Neros, com lira e tudo, apareceram nas regiões orientais do Império, reivindicando o poder e apresentando-se como o imperador em pessoa, ainda vivo, apesar de todas as notícias de seu suicídio. Foram todos rapidamente eliminados, mas o engodo sugere que, em algumas áreas do mundo romano, Nero era lembrado afetuosamente: ninguém buscaria alcançar o poder fingindo ser um imperador odiado por todos.

Esse ceticismo histórico é saudável. Mas ele nos desvia da questão principal: quaisquer que sejam as visões de Suetônio e outros escritores antigos, as qualidades e personalidades individuais de cada imperador não importavam muito para a maioria dos habitantes do Império, ou para a estrutura essencial da história romana e seus principais desdobramentos.

Isso provavelmente era importante para alguns membros da elite metropolitana, para os conselheiros do imperador, o Senado e o pessoal do palácio. O trato diário com o adolescente imperador Nero pode muito bem ter sido mais desafiador do que lidar com Cláudio ou com Vespasiano. E a ausência de Tibério, em seu retiro em Capri, ou de Adriano em uma de suas muitas viagens pelo mundo romano (ele foi um turista inveterado, passando mais tempo no exterior do que em casa) deve ter tido um impacto sobre a administração para aqueles diretamente envolvidos — incluindo a certa altura o próprio Suetônio, que trabalhou por um breve período no secretariado de Adriano.

Fora desse pequeno círculo, porém, e certamente fora da cidade de Roma, já que apenas nela os efeitos da generosidade de um imperador podiam ser espargidos sobre homens e mulheres nas ruas, dificilmente faria muita diferença quem estivesse no trono, ou quais fossem seus hábitos pessoais ou intrigas. E não há qualquer indício de que a personalidade do governante tenha afetado o modelo básico de governo no plano doméstico ou no exterior de alguma maneira significativa. Se Caio ou Nero ou Domiciano eram realmente tão irresponsáveis, sádicos e malucos como são pintados, isso fez pouca ou nenhuma diferença no funcionamento do Império Romano, ficando restrito ao âmbito do anedótico. Por baixo das histórias escandalosas e dos relatos de sodomia (que obscurecem tanto quanto vivificam), e para lá dos aforismos cuidadosamente construídos de Gibbon, havia uma estrutura de governo notavelmente estável e um conjunto de problemas e tensões também estável por todo o período. São eles que precisamos entender para que o domínio imperial faça sentido para nós, e não as idiossincrasias de cada governante. Afinal, nenhum cavalo chegou de fato a ser nomeado cônsul.”

 

 

“Os imperadores romanos e seus conselheiros nunca resolveram o problema da sucessão. Eles foram derrotados em parte pela biologia, em parte pelo prolongamento das incertezas e discordâncias a respeito de como a herança devia operar da melhor forma. A sucessão sempre se reduziu a uma combinação de sorte, improviso, conspiração, violência e negócios secretos. O momento em que o poder romano era transmitido era sempre aquele em que se mostrava mais vulnerável.”

 

 

O historiador Tácito faz comentários sagazes, e cínicos, sobre esse processo de romanização (dos territórios ocupados por Roma), como costuma ser chamado agora. Aparecem na curta biografia que escreveu do seu sogro, Cneu Júlio Agrícola [Gnaeus Julius Agricola], governador da Britânia de 77 a 85 d.C., um período excepcionalmente longo. A maior parte do relato de Tácito diz respeito às bem-sucedidas operações militares na província, à extensão do poder romano para o norte até a Caledônia (Escócia) e ao ciúme do imperador Domiciano, que recusou conceder a Agrícola as honras e glórias que merecia por seu sucesso. A biografia é ao mesmo tempo uma crítica à autocracia e um elogio do distinto parente de Tácito: a mensagem que sobressai é que o regime imperial não dava lugar à tradicional virtude e competência militar romanas. Ocasionalmente, porém, Tácito se volta para os aspectos civis do governo de Agrícola na província.

Alguns dos tópicos são bem rotineiros e não pareceriam fora de lugar nas cartas de Plínio, que era amigo de Tácito nos círculos literários de Roma no início do século II d.C. Agrícola é elogiado por manter seu ambiente doméstico sob rígido controle (“uma tarefa tão dura para muitos como a de governar a província”). Ele também coibiu abusos nas solicitações do Exército, e investiu dinheiro para melhorar as cidades da Britânia, com novos templos e edifícios públicos em estilo romano. É bem mais surpreendente descobrir que ele tinha uma política educacional local: procurou assegurar que os filhos da elite provincial fossem educados nas “artes liberais” (literalmente “as disciplinas intelectuais adequadas para ser livre”) e na língua latina. E logo, como Tácito coloca, os bretões já estavam vestindo togas e dando os primeiros passos no caminho da depravação, graças aos pórticos, às termas e aos banquetes. Ele resume isso em uma frase incisiva: “Eles, em sua ignorância, davam a isso o nome de ‘civilização’, mas na realidade era parte de sua escravização” (“Humanitas vocabatur, cum pars servitutis esset”). Esse aspecto vem tendo imensa influência, positiva ou negativa, nas tentativas modernas de se compreender como o Império Romano funcionava.”

 

 

“Qualquer que fosse a letra da lei, e as circunstâncias específicas de qualquer julgamento em particular, havia um conflito irreconciliável entre os valores romanos tradicionais e o cristianismo. A religião romana era politeísta e tratava os deuses estrangeiros mais ou menos como os povos estrangeiros: pela via da incorporação. Desde os remotos tempos da tomada de Veii, no início do século IV a.C., Roma havia regularmente acolhido o deus dos conquistados. Havia eventuais controvérsias e preocupações a respeito disso; os sacerdotes da deusa egípcia Ísis viram-se expulsos da cidade de Roma em mais de uma ocasião. Mas a regra básica era que à medida que o Império Romano se expandia, o mesmo se dava com seu panteão de divindades. O cristianismo era, em tese, um monoteísmo excludente, pois rejeitava os deuses que por séculos haviam garantido o sucesso de Roma. (...)

O mesmo valia, em certo sentido, para o judaísmo. Mas num grau notável e sob alguns aspectos inesperado, os judeus conseguiram operar dentro da cultura romana. Para os romanos, o cristianismo era muito pior. Primeiro, ele não tinha um lar ancestral. Os romanos, em sua geografia religiosa ordenada, esperavam que as divindades fossem de algum lugar: Ísis do Egito, Mitra da Pérsia, o deus judaico da Judeia. O deus cristão não tinha raízes, era exaltado como universal e procurava por adeptos. Momentos místicos de iluminação podiam atrair novos devotos para a religião, digamos, de Ísis. Mas o cristianismo era definido como um processo de conversão espiritual totalmente novo. Não só isso: alguns cristãos pregavam valores que ameaçavam derrubar alguns pressupostos greco-romanos fundamentais sobre a natureza do mundo e das pessoas que o habitavam: que a pobreza, por exemplo, era boa; ou que o corpo devia ser domado ou rejeitado em vez de nos preocuparmos em cuidar dele. Todos esses fatores ajudam a explicar as ansiedades, a confusão e a hostilidade de Plínio e de outros.

Ao mesmo tempo, o sucesso do cristianismo tinha raízes no Império Romano, em sua extensão territorial, na mobilidade que promovia, em suas cidades e em seu mix cultural. Da Bitínia de Plínio à Cartago de Perpetua, o cristianismo espalhou-se de suas origens de pequena escala na Judeia, principalmente graças aos canais de comunicação ao longo do mundo Mediterrâneo que o Império Romano havia franqueado, e devido ao movimento de pessoas, bens, livros e ideias que viajavam por esses canais. A ironia é que a única religião que os romanos tentaram erradicar foi aquela cujo sucesso seu Império tornou possível e que se desenvolveu inteiramente dentro do mundo romano.”

 

 

O decreto de cidadania foi apenas um dos aspectos de uma ampla gama de transformações, rupturas, crises e invasões que mudaram o mundo romano até torná-lo irreconhecível no século III d.C. O segundo milênio romano — que só acabou quando Constantinopla, a capital do Império Romano do Oriente, no século VI d.C., caiu nas mãos dos turcos otomanos em 1453 d.C. — assentava-se em princípios inteiramente novos, em uma outra ordem mundial e, pela maior parte do tempo, em uma religião diferente. O regime autocrático estabelecido pelo primeiro Augusto baseara-se em uma linguagem e em instituições políticas que remontavam, o quanto era possível determinar, ao primeiro milênio da história romana, e o que tenho chamado aqui de modelo augustiano de domínio imperial forneceu uma estrutura política relativamente estável por quase duzentos anos após a morte de Augusto, em 14 d.C. Mas embora o imperador Tibério, que sucedeu o primeiro Augusto, talvez se sentisse à vontade nas condições imperiais das quais Cômodo desfrutou no final do século II d.C., ele no entanto não teria compreendido o que significava ser imperador algumas décadas mais tarde. Roma em seu segundo milênio era efetivamente um novo Estado, sob um velho nome. E então, dependendo do ponto de vista que adotarmos, poderemos ver esse milênio como um longo e lento período de declínio; ou como uma série de mudanças culturais e políticas descontínuas, que acabaram transformando o mundo antigo no medieval; ou como uma era extraordinariamente dinâmica de arte, arquitetura e reflexão cultural.

Os historiadores agora falam com frequência da “crise” do século III d.C. O que indicam com isso é o processo por meio do qual, após o assassinato de Cômodo, em 192 d.C., o modelo augustiano desmoronou. O número de imperadores é um dos sinais óbvios disso. Nos quase 180 anos entre 14 e 192 d.C. — excetuando o único breve interlúdio da guerra civil após a morte de Nero, quando houve três malsucedidos requerentes ao trono — foram apenas catorze imperadores. Nos cem anos entre 193 e 293 d.C., houve mais de setenta (a lista é elástica, dependendo de quantos obscuros coimperadores, usurpadores ou “impostores” sejam incluídos). Porém, e direto ao ponto, quaisquer tentativas de manter as legiões fora do processo de fazer imperadores fracassaram totalmente. Quase todos os homens que reivindicaram o trono em meados do século III d.C. fizeram isso com o apoio de alguma unidade do Exército. Houve uma guerra civil mais ou menos continuada. E também flagrantes subversões das tradicionais reivindicações de poder. Septímio Severo, ao anunciar que ele e sua família haviam sido adotados como herdeiros por um imperador falecido mais de dez anos antes, levou ao extremo até os mais flexíveis padrões romanos de adoção.

Ao mesmo tempo, a cidade de Roma foi eclipsada como o centro de poder. Os imperadores não costumavam mais ficar ali, e sim a centenas de quilômetros, com seus exércitos. Não tinham mais tempo, incentivo ou dinheiro para seguir o modelo augustiano de deixar suas marcas na cidade em pedra e mármore, ou de agir como benfeitores populares. Depois das grandes termas que Caracala construiu na década de 210 d.C., praticamente não houve projetos imperiais importantes de construção na capital durante oitenta anos, até o imperador Deocleciano construir seu conjunto de banhos públicos, na década de 290 d.C. (grande parte disso ainda está do lado de fora da principal estação ferroviária de Roma). O fato de os imperadores se ausentarem de Roma também acelerou o declínio do Senado. Não havia lugar para civilitas entre imperadores e senadores, para delicadas consultas ou mesmo para passeatas e persistentes protestos de senadores idealistas e pouco realistas quando o homem no trono não estava à vista. Os imperadores cada vez mais governavam de longe, por decretos ou cartas, e sem consultas ao Senado. A condução ao trono de Macrino, que não era senador (e houve outros imperadores nessa condição), foi outra clara indicação de que o Senado podia ser contornado.

O que havia por trás dessas mudanças, e qual era a causa e o efeito, são questões ainda muito debatidas. Invasões por grupos de “bárbaros” mais eficientes e com frequência substancialmente “romanizados”, provenientes de fora do Império, desempenharam um papel. E também os efeitos de uma praga amplamente disseminada no final do século II d.C., que, mesmo segundo estimativas moderadas sobre sua taxa de mortalidade, devem ter minado seriamente os recursos humanos de Roma. E ainda o frágil equilíbrio do modelo augustiano, que falhou em definir regras claras para a sucessão e seus estranhos acordos entre imperador e Senado. Este, depois de ser desconsiderado, ruiu. Mas quaisquer que tenham sido as causas, a nova Roma que emergiu da “crise” do século III d.C. era notavelmente diferente de qualquer modelo que tenhamos visto do primeiro milênio.

A cidade de Roma perdeu irrevogavelmente seu lugar como capital do Império e caiu nas mãos de invasores em três ocasiões durante o século V d.C., pela primeira vez desde que foi saqueada pelos gauleses oitocentos anos antes. O mundo romano passou a ser controlado a partir de capitais regionais, como Ravena e Constantinopla — a moderna Istambul. As partes ocidental e oriental do Império eram governadas separadamente. E, após períodos de coordenada perseguição aos cristãos no final do século III d.C., o Império universal decidiu abraçar a religião universal (ou vice-versa). O imperador Constantino, fundador da cidade de Constantinopla no início do século IV d.C., foi o primeiro imperador romano a se converter formalmente ao cristianismo, batizado em seu leito de morte em 337 d.C. Constantino, em certo aspecto, seguiu o modelo augustiano de incorporar-se às suas construções, mas o que ele construiu foram igrejas.

Nem tudo mudou na nova Roma, e certamente não mudou de uma hora para outra. A população da cidade, cristã ou não, ainda aproveitava os espetáculos no Coliseu, provavelmente com caçadas a feras em vez de gladiadores, até já bem avançado o século V d.C., e os imperadores em Constantinopla patrocinavam entretenimentos no velho modelo da benemerência, com frequência na forma de corridas de bigas. Mas muitas das continuidades políticas eram superficiais, ou mesmo mal compreendidas. Como um aceno à tradição, Constantinopla ganhou uma casa senatorial, mas tratava-se de um edifício para uma instituição que se tornara um fóssil. Quando um comentarista reconhecidamente confuso tentou explicar o nome daquele edifício no século VIII d.C., achou que havia sido construído por um homem chamado “Senatus”.

103. O Arco de Constantino. Quase todas as esculturas visíveis na fachada vieram de monumentos anteriores. Inclusive os medalhões acima dos arcos laterais, que são adriânicos, e os painéis retangulares no nível do ático, que vêm de um monumento a Marco Aurélio. Os bárbaros, também no ático, são de Trajano.

Na cidade de Roma, a melhor indicação de que o mundo havia mudado é o arco erigido em 315 d.C. em homenagem à vitória do imperador Constantino sobre seus rivais internos. Ele ainda sobrevive, preservado graças à sua incorporação a uma fortaleza renascentista, entre o antigo Fórum romano e o grande anfiteatro do Coliseu. À primeira vista, parece bem tradicional, remetendo aos arcos erigidos em homenagem às muitas vitórias militares de Roma e copiados nos memoriais imperiais desde então, do Arco do Triunfo em Paris ao Arco de Wellington no Hyde Park Corner em Londres. É decorado com uma série de cenas que celebram a autoridade de Constantino em um idioma familiar aos dois primeiros séculos do poder autocrático romano. O imperador é mostrado combatendo inimigos bárbaros, discursando para seus soldados, anistiando prisioneiros, fazendo sacrifícios aos deuses tradicionais, sendo coroado pela Vitória e cumprimentando a multidão. Tudo isso poderia ter sido esculpido 150 anos antes.

Na realidade, boa parte havia sido. Excetuando alguns painéis modestos, todas essas esculturas foram tomadas de monumentos mais antigos que celebravam Trajano, Adriano e Marco Aurélio. Os rostos dos imperadores originais foram grosso modo refeitos para ficarem parecidos com Constantino, e as peças remontadas para exibição no novo arco. Foi um exercício de nostalgia caro e destrutivo. Para alguns observadores antigos, pode ter sido bem-sucedido no sentido de colocar o novo imperador dentro da ilustre tradição dos antigos. Porém, mais do que qualquer outra coisa, esse cuidadoso falseamento aponta para a histórica distância entre o primeiro milênio da Roma Antiga, que é o tema deste livro, e o segundo milênio de Roma, que é uma história que fica para outra vez, outro livro — e outro escritor.”

SPQR – Uma História da Roma Antiga (Parte II), de Mary Beard

Editora: Crítica

ISBN: 978-85-4220-940-2

Tradução: Luis Reyes Gil

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 576

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Sinopse: Ver Parte I




Conquista e consequências

Os “53 anos” de Políbio cobriam o final do século III a.C. e o início do II a.C., mas foi cerca de sessenta anos antes que os romanos enfrentaram pela primeira vez um inimigo de ultramar. Tratava-se de Pirro [Pyrrhus], governador de um reino no norte da Grécia, que em 280 a.C. navegou até a Itália para dar apoio à cidade de Taranto contra os romanos. Seu chiste autodepreciativo — que suas vitórias contra Roma haviam lhe custado tantos homens que ele não teria como arcar com outra vitória — está por trás da famosa expressão moderna “vitória de Pirro”, indicando um tipo de vitória com um preço tão alto que equivale a uma derrota. A expressão é até generosa com o lado romano da história, pois Pirro era um oponente à altura. Supõe-se que Aníbal o teria avaliado como o maior líder militar depois de Alexandre, o Grande, e — segundo várias anedotas afetuosas — era uma espécie de showman encantador. Foi o primeiro a realizar a façanha de trazer elefantes para a Itália, e dizem que em certa ocasião tentou, sem sucesso, desconcertar um romano visitante ao fazer sair de trás de uma cortina uma de suas feras escondida. É também o primeiro personagem da história de Roma a quem podemos atribuir um rosto de maneira plausível.

Da invasão de Pirro até 146 a.C. — quando os exércitos romanos destruíram não só Cartago, no final do que ficou conhecido como Terceira Guerra Púnica (do latim punicus, ou “cartaginês”), mas também, quase simultaneamente, a rica cidade grega de Corinto —, houve uma guerra mais ou menos continuada, envolvendo Roma e seus inimigos, na península Itálica e além-mar. Um estudioso antigo apontou o ano “em que Caio Atílio [Gaius Atilius] e Tito Mânlio [Titus Manlius] foram cônsules” (235 a.C.) como o único momento desse período em que não houve hostilidades.

Os conflitos mais celebrados, e mais devastadores, foram as duas primeiras Guerras Púnicas, contra Cartago. A primeira durou mais de vinte anos (de 264 a 241 a.C.), a maior parte dela travada na Sicília e nos mares em volta, exceto a desastrosa incursão romana no território cartaginês, no norte da África. O conflito terminou com a Sicília sob controle romano — e após uns poucos anos a Sardenha e a Córsega também, embora o epitáfio do filho de Barbato exagere um pouco suas realizações afirmando que ele “capturou” a ilha. Num achado recente extraordinário, alguns dos detritos da última batalha naval entre romanos e cartagineses foram dragados do fundo do Mediterrâneo. Próximo ao litoral da Sicília, onde as duas frotas supostamente se enfrentaram, arqueólogos que exploravam a área desde 2004 recuperaram vários esporões de bronze de navios afundados (a maioria romanos, mas também um de navio cartaginês), pelo menos oito elmos de bronze, um deles carregando um vestígio de algum escrito púnico, provavelmente riscado por seu dono afogado, e ânforas de cerâmica que possivelmente carregavam os suprimentos dos navios (ver lâmina 8).

A Segunda Guerra Púnica se deu em uma escala geográfica muito diferente. Travada entre 218 a.C. e 201 a.C., é hoje mais lembrada pelo heroico fracasso de Aníbal, que cruzou os Alpes com seus elefantes (mais um golpe de propaganda do que um recurso militar efetivo) e infligiu pesadas baixas aos romanos na Itália, em especial no confronto mais famoso, a Batalha de Canas [Cannae], no sul, em 216 a.C. Somente depois de mais de uma década de confrontos, o governo de Aníbal em Cartago — cada vez mais inquieto em relação ao desfecho da aventura e agora tendo que enfrentar o exército invasor de Cipião Africano — chamou-o de volta para casa. Mas não se tratou de um mero confronto entre a Itália e o norte da África. Havia começado com uma batalha entre romanos e cartagineses na Espanha, o que fez os romanos lutarem ali pela maior parte do século II a.C. E a possibilidade de Aníbal receber apoio da Macedônia levou os romanos a uma série de guerras no norte da Grécia, que terminaram com a derrota do rei macedônio Perseu em 168 a.C. por Emílio Paulo [Aemilius Paullus], pai natural de Cipião Emiliano, e logo depois com o controle de toda a região que chamamos de Grécia continental.

Além disso, os romanos estavam também envolvidos em grandes conflitos com os gauleses no extremo norte da Itália na década de 220 a.C. E fizeram também intervenções periódicas cruzando o Adriático, em parte para lidar com aqueles que chamavam de piratas (um termo genérico para “inimigos em navios”), que eram apoiados pelas tribos e reinos do litoral oposto — pelo menos era o que se dizia. E em 190 a.C., sob o comando de Cipião Asiático, impuseram derrota decisiva a Antíoco, “o Grande”, da Síria. Este não só estava ocupado em seguir o modelo de Alexandre, o Grande, e estender sua base de poder, mas também havia abrigado Aníbal, agora no exílio de Cartago, que segundo se dizia oferecia ao rei aulas sobre como enfrentar os romanos.

As campanhas militares eram um aspecto definidor da vida romana, e os escritores organizaram a história desse período, como acabei de fazer também, em torno da sucessão de guerras, dando-lhes títulos caligráficos, muitos deles mantidos até hoje. Quando Salústio chamou seu ensaio sobre o complô de Catilina de Guerra contra Catilina, ou Bellum Catilinae, estava refletindo, e talvez sutilmente parodiando, a tradição romana de encarar a guerra como o princípio estruturante da história. Era uma tradição bem antiga. Há um trecho sobrevivente do poema épico de Ênio sobre a história de Roma que se refere explicitamente à “Segunda Guerra Púnica”, na qual ele lutou como aliado romano; foi escrito antes de a terceira ter acontecido.

Em termos práticos, os romanos direcionavam enormes recursos para a guerra e, mesmo como vencedores, pagaram um preço imenso em vidas humanas. Ao longo desse período, algo em torno de 10% a 25% da população adulta masculina havia servido em legiões todos os anos, uma proporção maior do que em qualquer outro Estado pré-industrial e, na estimativa mais alta, comparável à taxa de convocação da Primeira Guerra Mundial. Em Canas, combateram duas vezes mais legiões do que em Sentino oitenta anos antes — o que é uma boa indicação do crescente porte desses conflitos e da logística cada vez mais complexa. Um exército do porte daquele que os romanos e seus aliados posicionaram em Canas exigiria, por exemplo, cerca de cem toneladas só de trigo, por dia. As tratativas com comunidades locais que isso implicava, a organização de centenas de animais, que por sua vez avolumavam as exigências ao consumirem necessariamente parte do que carregavam, e as redes de coleta e distribuição, tudo isso teria sido inconcebível no início daquele século.

É mais difícil estipular uma cifra para as baixas: não havia uma contagem sistemática das mortes num campo de batalha naquela época; e todos os números dos textos antigos têm que ser tratados com reservas, vitimados por exageros, equívocos e, ao longo dos anos, por alguns terríveis erros de cópia por parte de monges medievais. Mesmo assim, o total das cifras de baixas romanas que Lívio fornece para todas as batalhas que ele registra nos primeiros trinta anos do século II a.C. — ou seja, sem incluir as grandes perdas enfrentadas contra Aníbal — chega a pouco mais de 55 mil mortes. É uma cifra extremamente baixa. Havia provavelmente uma tendência patriótica de reduzir o número das perdas romanas; não fica claro se os aliados eram somados aos cidadãos romanos nessa conta; algumas batalhas e escaramuças podem não ter sido incluídas na lista de Lívio; e muitos morreram subsequentemente devido a ferimentos (na maioria das circunstâncias, as armas antigas eram muito melhores para ferir do que para matar; a morte sobrevinha mais tarde, por infecção). Mas isso dá uma indicação do custo humano dessa atividade bélica somente no lado romano. O preço pago pelos derrotados é ainda mais difícil de estimar, mas presume-se que tenha sido bem mais alto.

É necessário, no entanto, ver além dessa carnificina, por mais terrível que tenha sido, para examinar melhor a realidade e a organização do combate e investigar a política doméstica que sustentou a expansão romana, assim como as ambições romanas e a geopolítica mais ampla do antigo Mediterrâneo que podem tê-la incentivado. Políbio é o guia mais importante, mas há outras evidências contemporâneas eloquentes — com frequência, documentos inscritos em pedra — que tornam possível rastrear algumas interações entre os romanos e o mundo exterior. Ainda sobrevivem relatos que captam em primeira mão as experiências desconcertantes vividas em Roma por enviados das pequenas cidades gregas; e também podemos ler os textos de detalhados tratados entre os romanos e Estados estrangeiros. O fragmento mais antigo, de 212 a.C., é parte de um tratado entre Roma e um grupo de cidades gregas, e estabelece regras precisas sobre como qualquer saque de guerra deverá ser dividido: basicamente, cidades e casas aos gregos, bens móveis aos romanos.

Também houve consequências importantes para a própria Roma do seu sucesso militar ultramarino. A revolução literária foi apenas parte disso. Em meados do século II a.C., os lucros da atividade bélica haviam tornado o povo romano de longe o mais rico entre todos em seu mundo conhecido. Milhares e milhares de cativos viraram mão de obra escrava que trabalhava nos campos romanos, em suas minas e fábricas, explorando recursos em uma escala muito mais intensiva do que já ocorrera antes e alimentando a produção romana e o crescimento de sua economia. Lingotes de ouro e prata eram transportados em carrinhos de mão, trazidos (ou roubados) das ricas cidades e reinos do Oriente, despejados no bem guardado porão do templo de Saturno no Fórum, que funcionava como o “tesouro” do Estado. E as sobras eram suficientes para encher os bolsos dos soldados, de um general ao mais reles recruta.

Os romanos tinham muito o que celebrar. Parte da riqueza foi para deleites urbanos, das novas instalações do porto e amplos armazéns no Tibre a novos templos que se enfileiravam pelas ruas, agradecendo o auxílio dos deuses em assegurar as vitórias que haviam gerado toda aquela riqueza. E é fácil imaginar o prazer generalizado quando em 167 a.C. Roma se tornou um Estado livre de impostos: o tesouro estava tão abarrotado — graças, particularmente, aos espólios da recente vitória sobre a Macedônia — que a taxação direta dos cidadãos romanos foi suspensa, exceto em emergências, embora eles continuassem sujeitos a uma série de outras cobranças, como tributos alfandegários ou uma taxa especial sobre a libertação de escravos.

Essas mudanças, porém, também foram desestabilizadoras. O problema não se restringia a alguns moralistas romanos mal-humorados, preocupados com os perigosos efeitos de toda aquela riqueza e “luxo” (nas palavras deles). A expansão do poder romano suscitou grandes debates e paradoxos sobre o lugar de Roma no mundo, a respeito do que podia ser considerado “romano” quando uma área enorme do Mediterrâneo estava sob controle de Roma e onde se poderia colocar agora o limite entre barbárie e civilização, e de que lado dessa divisão estaria Roma. Quando, por exemplo, no final do século III a.C. as autoridades romanas deram as boas-vindas à deusa Grande Mãe dos planaltos da atual Turquia e solenemente instalaram-na num templo no Palatino, com tudo o que tinha direito, incluindo seu séquito de sacerdotes de longos cabelos, autocastrados e autoflagelantes — o quanto isso tinha de romano?”

 

 

“Políbio dissecou a organização interna de Roma — que, insistia, era o sustentáculo de seu sucesso externo — de uma posição privilegiada, que combinava um par de décadas de experiências em primeira mão com toda a sofisticação da teoria política grega na qual havia sido treinado em casa. Sua obra é, com efeito, uma das mais antigas tentativas que sobreviveram de uma antropologia política comparativa.

Não surpreende, portanto, que o seu relato seja uma maravilhosa combinação de aguda observação, assombro e desesperadas tentativas ocasionais de teorizar a política romana em seus próprios termos. Ele investigou com atenção o ambiente à sua volta e seus novos amigos romanos. Identificou, por exemplo, a importância da religião, ou do “temor dos deuses”, no controle do comportamento romano, e ficou impressionado com a sistemática eficiência da organização romana; daí a sua importante — mas hoje frequentemente desconsiderada — discussão sobre os arranjos militares, com suas regras autodidáticas sobre como dispor um acampamento do Exército, onde deveria ser colocada a tenda do cônsul, como planejar um comboio de bagagem para os legionários, e o cruel sistema de disciplina. Era também perspicaz o suficiente para enxergar, sob a superfície dos vários costumes romanos e de seus passatempos favoritos, seu sentido social subjacente. Todas aquelas histórias sobre a coragem, o heroísmo e o autossacrifício romanos que ele deve ter ouvido — contadas e recontadas em volta de fogueiras de acampamentos militares ou em mesas de jantar — não eram simples entretenimento, concluiu. Tinham a função de incentivar os jovens a imitarem os feitos nobres de seus ancestrais; eram um aspecto do espírito de emulação, ambição e competição que ele viu percorrer a elite da sociedade romana.

Outro aspecto disso — e um que se abre para um estudo de caso mais extenso, apesar de um pouco mórbido — podia ser encontrado nos funerais de “homens ilustres”. Novamente, Políbio deve ter participado de um número suficiente para poder extrair seu sentido mais profundo. O corpo, explica ele, era carregado até o Fórum e colocado sobre a rostra, normalmente apoiado de algum modo para ficar na posição vertical, visível para uma grande plateia. Na procissão que se seguia, os membros da família usavam máscaras feitas à semelhança dos ancestrais do falecido e vestiam roupas adequadas aos cargos que cada um deles tivesse ocupado (togas com bainha roxa, e assim por diante), como se estivessem todos presentes, “vivos e respirando”. O discurso no funeral, pronunciado por um membro da família, começava com o relato das realizações do cadáver exposto na rostra, mas depois prosseguia com as carreiras de todos os outros personagens, que nessa hora estavam sentados em cadeiras de marfim, ou pelo menos revestidas de marfim, enfileiradas perto do cadáver. “O mais importante resultado disso”, conclui Políbio, “é que a geração mais jovem se inspira a suportar todo o sofrimento em nome do bem comum, na esperança de alcançar a glória que pertence aos valentes.”

Essa talvez seja uma visão muito cor-de-rosa do lado competitivo da cultura romana. A competição desenfreada acabou sendo mais detrutiva do que construtiva para a República. Mesmo antes, vale supor que para cada jovem romano inspirado a ficar à altura das realizações de seus ancestrais, havia outro oprimido pelo peso da tradição e pelas expectativas alimentadas a seu respeito — como Políbio poderia ter compreendido se tivesse escolhido refletir sobre todas as histórias da cultura romana que falavam de filhos que mataram seus pais. Mas essa é uma visão muito bem condensada em outro epitáfio no túmulo dos Cipiões, que é tentador achar que Políbio possa ter visto: “Tive descendentes. Procurei igualar os feitos de meu pai. Obtive elogios de meus ancestrais, que portanto ficaram felizes por eu ter nascido deles. Minha carreira enobreceu a linhagem da minha família”.

No cerne da discussão de Políbio, porém, residia uma questão maior. Como seria possível caracterizar o sistema político romano como um todo? Como funcionava? Nunca houve uma constituição romana escrita, mas Políbio viu em Roma um exemplo perfeito, na prática, de um velho ideal filosófico grego: a “constituição mista”, que combinava os melhores aspectos de monarquia, aristocracia e democracia. Os cônsules — que tinham total controle militar, podiam convocar assembleias populares e dar ordens a todas as demais autoridades (exceto aos tribunos plebeus) — representavam o elemento monárquico. O Senado — que naquela época tinha a seu encargo as finanças de Roma, a responsabilidade por delegações para e de outras cidades e supervisionava de fato a lei e a segurança por todo o território romano e de seus aliados — representava o elemento aristocrático. O povo representava o elemento democrático. Não era “democracia” ou “o povo” no sentido moderno: não havia algo como sufrágio universal no mundo antigo — mulheres e escravos nunca tiveram direitos políticos formais em lugar algum. Políbio referia-se ao grupo de cidadãos homens como um todo. Como na Atenas clássica, eles — e só eles — elegiam as autoridades do Estado, aprovavam ou rejeitavam leis, tomavam decisões finais sobre ir à guerra e agiam como corte judicial no caso de grandes transgressões.

O segredo, sugeria Políbio, estava em uma delicada relação de pesos e contrapesos entre cônsules, o Senado e o povo, de modo que nem monarquia, nem aristocracia, nem Senado nunca prevaleciam inteiramente. Os cônsules, por exemplo, poderiam ter tido comando total, monárquico, em campanha, mas tinham que ter sido eleitos pelo povo em primeiro lugar, e dependiam do Senado para verbas — e era o Senado que decidia atribuir ou não ao general vitorioso um triunfo no final da campanha. Exigia-se também um voto do povo para ratificar qualquer tratado que pudesse ser feito. E assim por diante. Eram, segundo Políbio, tais pesos e contrapesos no sistema político que produziam a estabilidade interna sobre a qual o sucesso exterior de Roma se assentava.

Essa é uma análise muito perspicaz, sensível às pequenas diferenças e sutis nuances que distinguem um sistema político de outro. Sem dúvida, em certos aspectos Políbio tenta forçar a vida política que ele testemunhou em Roma a se acomodar ao modelo analítico grego, que não se encaixa inteiramente. Impor à sua discussão termos como “democracia”, por exemplo, é profundamente enganoso. “Democracia” (demokratia) era algo com raízes políticas e linguísticas no mundo grego. Nunca foi uma palavra de ordem em Roma, mesmo em seu restrito sentido antigo ou mesmo para os políticos populares romanos mais radicais. Na maior parte dos escritos conservadores que sobreviveram, a palavra significa algo próximo de “governo da massa”. Faz pouco sentido perguntar o quanto os políticos da Roma republicana eram “democráticos”: os romanos lutavam por liberdade, não por democracia. No entanto, sob outro aspecto, ao forçar seus leitores a atentarem para o povo em sua apreciação da política romana e olharem além do poder das autoridades eleitas e do Senado aristocrático, Políbio abriu um importante debate que é válido ainda hoje. O quanto a voz popular tinha influência na política da Roma republicana? Quem controlava Roma? Como nós deveríamos caracterizar o sistema político romano?

Seria fácil demais traçar um quadro dos processos políticos republicanos como sendo completamente dominados pela minoria rica. O resultado do Conflito das Ordens não foi a revolução popular, mas a criação de uma nova classe governante, compreendendo plebeus ricos e patrícios. A primeira qualificação para a maioria dos cargos políticos era a riqueza em uma escala substancial. Ninguém podia concorrer nas eleições sem ser aprovado num teste financeiro que excluía a maior parte dos cidadãos; a quantia exata necessária para se qualificar não é conhecida, mas as implicações são de que se situava em um nível bastante elevado da hierarquia do censo, a chamada categoria da cavalaria ou equestre. Quando as pessoas se juntaram para votar, o sistema de votação foi arranjado em favor dos ricos. Já vimos como isso funcionava na Assembleia das Centúrias, que elegia altos oficiais: se as centúrias ricas se unissem, podiam determinar o resultado sem que as centúrias pobres tivessem chance de votar. A outra assembleia importante baseada nas divisões “tribais” geográficas era mais equitativa em tese — mas, conforme o tempo foi passando, deixou de ser assim na prática. Das 35 divisões geográficas finalmente definidas em 241 a.C. (até esse momento, o número de tribos foi aumentando conforme a cidadania era estendida por toda a Itália), apenas quatro cobriam a própria cidade. As 31 restantes abrangiam o então distante território rural de Roma. Como os votos só podiam ser dados pessoalmente na cidade, a influência daqueles que tinham condições de tempo e transporte para fazer a viagem era esmagadora; os votos da população urbana residente tinham impacto apenas sobre essa pequena minoria de tribos urbanas. Além disso, a rigor, as assembleias eram simplesmente para votar mediante uma lista de candidatos ou de uma proposta apresentada por uma auto-ridade importante. Não havia uma ampla discussão; de baixo não vinham propostas ou mesmo emendas; no caso de quase todas as propostas de legislação das quais temos notícia, o povo votava a favor daquilo que lhe era apresentado. Isso não era poder popular como o entendemos hoje.

No entanto, havia outro aspecto. Além das prerrogativas formais do povo que Políbio enfatiza, há claros indícios de uma cultura política mais ampla na qual a voz popular era um elemento-chave. Os votos dos pobres importavam e eram ansiosamente caçados. Os ricos usualmente não eram muito unidos, e as eleições eram concorridas. Aqueles que detinham ou procuravam obter cargos políticos davam muita importância a persuadir o povo a votar neles ou nas leis que propunham, e dedicavam enorme atenção a aprimorar as técnicas de retórica que lhes permitiriam atingir esse objetivo. Se ignorassem ou humilhassem os pobres corriam riscos. Um dos aspectos diferenciais da cena política republicana eram as reuniões semiformais (ou contiones), com frequência realizadas pouco antes das assembleias de votação, nas quais autoridades rivais tentavam convencer as pessoas sobre seu ponto de vista (Cícero fez seu segundo e quarto discursos contra Catilina, por exemplo, em contiones). Não sabemos ao certo o quanto costumavam ser frequentes ou atrair comparecimento. Mas há várias indicações de que envolviam fervor político, entusiasmo vociferante e muito barulho. Certa ocasião, no século I a.C., conta-se que a gritaria era tão estrondosa que um corvo, que desafortunadamente passara por ali, caiu estatelado no chão, atordoado.

Há também todo tipo de anedota sobre a importância e a intensidade da caça de votos, e sobre como o voto do povo podia ser conquistado ou perdido. Políbio conta uma história curiosa sobre o rei sírio Antíoco IV (Epifânio, “famoso” ou mesmo “deus manifestado”), filho de Antíoco, o Grande, que havia sido “esmagado” por Cipião Asiático. Quando jovem ele viveu mais de uma década como refém de Roma antes de ser trocado por um parente mais jovem, aquele a quem Políbio mais tarde deu conselhos sobre seu plano de fuga. Ao voltar para o Oriente, levou consigo vários hábitos romanos que havia adquirido em sua estadia. A maioria consistia em adotar uma atitude mais popular: falar com qualquer pessoa que encontrasse, dar presentes a pessoas comuns e percorrer lojas de artesãos. Mas o que causava mais impacto era que vestia toga e circulava pelo mercado como se fosse candidato a alguma eleição, apertando as mãos das pessoas e pedindo seu voto. Isso deixou perplexas as pessoas em sua vistosa capital, Antioquia, que não estavam acostumadas a esse comportamento da parte de um monarca, e o apelidaram então de Epimânio (“insano”, um trocadilho com seu nome). Mas fica claro que uma lição que Antíoco aprendera em Roma era que o povo e seus votos importavam.

Igualmente reveladora é uma anedota sobre outro membro da família Cipião no século II a.C., Públio Cornélio Cipião Násica [Publius Cornelius Scipio Nasica]. Ele estava um dia caçando votos em uma campanha para ser eleito ao cargo de edil e ocupava-se em apertar a mão dos eleitores (procedimento-padrão, tanto naquela época quanto hoje). Ao se deparar com alguém cujas mãos estavam calejadas pelo trabalho no campo, o jovem aristocrata brincou: “Meu Deus, você por acaso anda com as mãos?”. Alguém ouviu, e as pessoas comuns concluíram que ele estava zombando de sua pobreza e de seu trabalho. O desfecho, desnecessário dizer, foi que ele perdeu a eleição. Então que tipo de sistema político era esse? O equilíbrio entre os diferentes interesses certamente não era tão equitativo como Políbio faz parecer. Os pobres nunca poderiam chegar ao topo da política romana; pessoas comuns jamais detinham a iniciativa política; e era axiomático que quanto mais rico fosse o cidadão, maior peso político poderia ter. Mas essa forma de desequilíbrio é familiar em muitas das chamadas democracias modernas: em Roma também os ricos e privilegiados concorriam a cargos e poder político que só podiam ser garantidos por eleições populares e pelo favor das pessoas comuns, que nunca teriam os meios financeiros para concorrer elas mesmas. Como o jovem Cipião Násica descobriu às próprias custas, o sucesso dos ricos era uma dádiva concedida pelos pobres. Os ricos tiveram que aprender a lição de que dependiam do povo como um todo.”

 

 

De modo bem similar à extensão do controle romano na Itália, essa expansão ultramarina nos séculos III e II a.C. era mais complexa do que o mito familiar das legiões romanas marchando, conquistando e tomando territórios estrangeiros. Primeiro, os romanos não eram os únicos agentes no processo. Eles não invadiram um mundo de povos amantes da paz, que viviam apenas cuidando da sua vida até que aqueles bandidos vorazes chegaram. Por mais que possamos ser cínicos, com razão, diante das afirmações dos romanos de que estavam indo para a guerra apenas atendendo pedidos de auxílio de seus amigos e aliados (esse tem sido o pretexto para algumas das guerras mais agressivas da história), parte da pressão para que Roma interviesse realmente veio de fora.

O mundo do Mediterrâneo oriental, da Grécia à atual Turquia e além dela, foi o contexto da maior parte da atividade militar de Roma nesse período. Era um mundo de conflitos políticos, alianças instáveis e violência contínua e brutal entre os Estados, similar à da Itália em seus primórdios, mas em maior escala. Esse era o legado das conquistas do tipo “arrebentar e levar” de Alexandre, o Grande, que morreu em 323 a.C., antes que precisasse encarar o que fazer com aqueles que havia derrotado. Seus sucessores formaram dinastias rivais, que se envolveram em séries mais ou menos ininterruptas de guerras e disputas, entre eles e com Estados menores e coalizões em suas vizinhanças. Pirro foi um desses soberanos. Antíoco Epifânio foi outro: após sua detenção em Roma e tentativas de política populista em casa, conseguiu em seu reinado de dez anos, entre 175 a.C. e 164 a.C., invadir o Egito (duas vezes), o Chipre, a Judeia (o que provocou também a revolta dos Macabeus), a Pártia e a Armênia.

Quanto mais Roma era percebida como poderosa, mais esses bandos guerreiros encaravam os romanos como aliados úteis em suas disputas locais de poder e cortejavam sua influência. Representantes do Oriente vinham diversas vezes a Roma na expectativa de obter apoio moral ou intervenção militar. Esse é um tema recorrente nos relatos históricos do período: há notícias de muitos enviados, por exemplo, durante os preparativos para a campanha de Emílio Paulo contra Perseu, tentando convencer os romanos a fazer algo a respeito das ambições da Macedônia. Mas a cena mais clara de como essa “corte” funcionava na prática vem de Teos, uma cidade no litoral ocidental da moderna Turquia. Há uma inscrição de meados do século II a.C. que registra as tentativas feitas para atrair os romanos a uma disputa menor, sobre a qual nada mais se sabe, a respeito de alguns direitos territoriais, entre a cidade de Abdera, no norte da Grécia, e um rei local, Kotys.

O texto é uma “carta de agradecimento” entalhada em pedra, dirigida à cidade de Teos pelo povo de Abdera. Pois, ao que parece, os habitantes de Teos haviam concordado em enviar dois homens até Roma, quase como lobistas no sentido moderno do termo, para conquistar o apoio de Roma à causa de Abdera contra o rei. Os abderitas descrevem de modo preciso como essa dupla agiu, detalhando suas visitas regulares às casas de membros-chave do Senado. Os delegados, ao que parece, trabalharam tanto que “ficaram esgotados física e mentalmente, e encontraram gente importante de Roma e conseguiram convencê-los fazendo-lhes obséquios diariamente”; e quando algumas das pessoas que visitavam pareciam favoráveis a Kotys (pois este também mandara enviados a Roma), “eles conquistaram sua amizade expondo-lhes os fatos e fazendo visitas diárias aos seus átrios”, isto é, aos saguões centrais de suas casas romanas.

O silêncio de nosso texto sobre o resultado dessas abordagens sugere que as coisas não foram bem para o lado dos abderitas. Mas esse instantâneo de representantes rivais, não só abrindo caminho no Senado, mas pressionando senadores individualmente todos os dias em favor de sua tese, dá uma ideia de como o auxílio de Roma podia ser requisitado de maneira ativa e persistente. E as centenas, literalmente, de estátuas de indivíduos romanos — como “salvadores e benfeitores” — colocadas nas cidades do mundo grego mostram como essa intervenção, caso viesse a ocorrer e fosse bem-sucedida, era comemorada. Não temos como identificar cada um dos aspectos da duplicidade por trás de tais palavras: sem dúvida havia não só medo e lisonja envolvidos, mas também gratidão sincera. Mas trata-se de um lembrete útil de que a simples expressão “conquista romana” pode encobrir uma ampla gama de pontos de vista, motivações e aspirações de cada um dos lados.

Além disso, os romanos não tentavam sistematicamente anexar território ultramarino ou impor mecanismos padronizados de controle. O que explica em parte por que o processo de expansão foi tão rápido: eles não estavam implantando nenhuma infraestrutura de governo. Certamente, extraíam recompensas materiais daqueles que derrotavam, mas de maneiras diferentes, ad hoc. Eles impuseram grandes indenizações em dinheiro a alguns Estados, um total de mais de seiscentas toneladas de lingotes de prata só na primeira metade do século II a.C. Em outras partes, assumiram os regimes regulares de taxação já estabelecidos por governantes anteriores. Algumas vezes conceberam novas maneiras de extorquir ricas receitas. As minas de prata da Espanha, por exemplo, antes parte do domínio de Aníbal, logo passaram a produzir tanto minério que a poluição ambiental de seu processamento ainda pode ser detectada em amostras datáveis extraídas das profundas camadas de gelo da Groenlândia. E Políbio, que visitou a Espanha em meados do século II a.C., escreveu a respeito de 40 mil mineiros, a maior parte escravos, trabalhando em apenas uma região do território de mineração (talvez não seja literal: “40 mil” era uma expressão comum para se referir a “um número muito grande”, como o nosso “milhares”). As formas de controle político dos romanos eram igualmente variadas, indo de tratados de “amizade” que asseguravam a não interferência à tomada de reféns como garantia de bom comportamento, ou à presença mais ou menos permanente de soldados ou autoridades romanas. O que aconteceu depois que Emílio Paulo derrotou o rei Perseu é apenas um exemplo da aparência de tal pacote de arranjos. A Macedônia foi dividida em quatro Estados autogovernados independentes; eles pagavam impostos a Roma, pela metade do valor que Perseu cobrava; e, neste caso, as minas macedônias foram fechadas, para evitar que seus recursos fossem usados para construir uma nova base de poder na região.

Era de fato um Império coercitivo no sentido de que os romanos levavam embora os ganhos e tentavam assegurar que poderiam impor sua vontade quando quisessem, com a ameaça da força sempre no ar. Não era um Império de anexação no sentido que romanos posteriores iriam entendê-lo. Não havia nenhuma estrutura legal detalhada de controle, nem regras ou regulamentações. Nesse período, até mesmo a palavra latina imperium, que por volta do final do século I a.C. podia significar “Império” como uma área inteira sob governo romano direto, tinha um sentido mais próximo de “poder de expedir ordens que são obedecidas”. E provincia, que se tornou o termo-padrão para uma subdivisão bem definida do Império sob o controle de um governador, não era um termo geográfico, e sim uma responsabilidade atribuída a uma autoridade romana. Podia ser, e com frequência era, uma atribuição de atividade militar ou administrativa em um lugar determinado. A partir do final do século III a.C., a Sicília e a Sardenha passaram a ser designadas como provinciae, e a partir do início do século II a.C., duas provinciae militares na Espanha tornaram-se um padrão, embora suas fronteiras fossem fluidas. Mas podia muito bem ser uma responsabilidade em relação a algo, digamos, o tesouro romano — e, por volta da passagem para o século II a.C., Plauto em suas comédias usa o termo provincia como uma brincadeira para se referir aos deveres dos escravos. Nessa época, nenhum romano era enviado para ser o “governador de uma província”, como ocorreria mais tarde.

O que estava em jogo para os romanos era se poderiam vencer em batalha e depois se — por meio de persuasão, ameaça ou força — poderiam impor sua vontade onde, quando e conforme decidissem. O estilo desse imperium é claramente resumido na história do último encontro entre Antíoco Epifânio e os romanos. O rei estava invadindo o Egito pela segunda vez, e os egípcios tinham pedido ajuda aos romanos. Um enviado romano, Caio Popílio Lenas [Gaius Popilius Laenas], foi despachado e encontrou Antíoco fora de Alexandria. Em razão de sua longa familiaridade com os romanos, o rei sem dúvida esperava um encontro bastante cortês. Em vez disso, Lenas passou-lhe um decreto do Senado que o instruía a retirar-se do Egito imediatamente. Quando Antíoco pediu tempo para consultar seus conselheiros, Lenas pegou um pedaço de pau e desenhou um círculo no chão empoeirado em volta do rei. Só poderia colocar o pé para fora daquele círculo depois de ter dado sua resposta. Perplexo, Antíoco mansamente concordou com a exigência do Senado. Esse era um Império de obediência.”

 

 

Os novos horizontes do Império também ajudaram a criar — ou pelo menos a definir com contornos e sentidos ideológicos mais nítidos — a imagem do “romano antiquado”. Esse personagem prático, sensato, audacioso, sem floreios, desempenha seu papel até hoje em nosso estereótipo da cultura romana. É provável que tenha sido em grande parte uma criação também desse período.

Alguns dos oradores mais eloquentes dos séculos III e II a.C. ficaram famosos por atacar a influência corruptora da cultura estrangeira em geral, e da grega em particular, sobre a moral e o comportamento romano tradicional. Seus alvos iam da literatura e filosofia ao hábito de se exercitar nu, à comida sofisticada e à depilação. Na linha de frente dessas críticas estava Marco Pórcio Catão [Marcus Porcius Cato] (“Catão, o Velho”), um contemporâneo e rival de Cipião Africano, que Catão criticou, entre outras coisas, por se divertir com ginástica grega e teatros na Sicília. Dizem ainda que Catão teria chamado Sócrates de “tagarela inveterado”, que recomendava uma dieta medicinal romana à base de legumes e verduras verdes, pato e pombo (em contraposição às prescrições dos médicos gregos, que segundo ele podiam muito bem matá-lo), e que advertia que o poder romano podia ser derrubado por causa da paixão pela literatura grega. Segundo Políbio, Catão uma vez observou que um dos sinais da deterioração da República era que os garotos bonitos agora custavam mais caro que os campos, e que jarras de peixe em conserva valiam mais do que agricultores. Não estava sozinho nessas opiniões. Em meados do século II a.C., outra destacada figura encontrou apoio ao defender que um teatro em estilo grego em construção em Roma deveria ser demolido, já que era melhor e mais favorável à formação do caráter dos romanos que eles assistissem às peças em pé, como tradicionalmente vinham fazendo, e não sentados à moda decadente do Oriente. Em resumo, segundo tais argumentos, o que se fazia passar por “sofisticação” grega nada mais era do que uma insidiosa “flacidez” (ou mollitia, no jargão romano), que fatalmente minaria a força do caráter romano.

Seria isso uma simples reação conservadora contra as ideias modernas que chegavam a Roma de fora, um surto de “guerras culturais” entre tradicionalistas e modernizadores? Em parte talvez fosse. Mas era também algo mais complexo, e mais interessante do que isso. Apesar de todas as suas queixas, Catão ensinara grego ao filho, e seus escritos que sobreviveram — notavelmente, um ensaio técnico sobre cultivo e gestão agrícola, além de citações de seus discursos e de sua história da Itália — mostram que era bem familiarizado com os recursos gregos de retórica que dizia deplorar. E algumas de suas afirmações sobre a “tradição romana” eram mais próximas de uma mera fantasia criativa. Não há qualquer razão para supor, por exemplo, que os veneráveis romanos idosos assistissem espetáculos teatrais em pé.

A verdade é que a versão de Catão dos valores romanos antigos e sensatos era também uma invenção do seu tempo, e não só uma defesa de tradições romanas ancestrais. Identidade cultural é sempre uma noção enganosa, e não temos ideia de como os primeiros romanos encaravam seu próprio caráter, nem como se distinguiam de seus vizinhos. Mas o sentido, diferenciado, bem demarcado, da dura austeridade romana — que romanos posteriores projetaram em seus pais fundadores e que foi preservado como uma visão poderosa de romanidade no mundo moderno — era resultado de um forte choque cultural, nesse período de expansão exterior, a respeito do que significava ser romano nesse novo e vasto mundo imperial. Colocado de outro modo, a “greguice” e a “romanidade” eram não só inseparavelmente ligadas mas também diametralmente opostas.”