quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Marxismo: história, política e método – Walmir Barbosa

Editora: livro distribuído
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 99

“Marx tem consciência da importância da imprensa como veículo com capacidade de informar com objetividade e de criticar com independência, uma necessidade inadiável em sociedades em que a censura, a corrupção, a hipocrisia, o cinismo convertem-se em instituição. Todavia, Marx condena a liberdade da imprensa como uma liberdade comercial, isto é, de converter a imprensa em uma “indústria” movida pela lógica do mercado, do lucro e do poder. Dessa forma não seria possível informar com objetividade e criticar com independência.”


“A contenção salarial; a intensificação do processo de exploração da força de trabalho; a eliminação de conquistas trabalhistas; a recriação de formas de exploração e dominação extra-econômica (escravidão, servidão, etc.); a geração de capital constante mais barato por meio de uma determinada tecnologia disponível; a migração de empresas para espaços socioeconômicos e territoriais com força de trabalho e recursos naturais mais baratos; o desenvolvimento de novos métodos de gestão da produção que alcançam maior racionalização da produção e intensidade do trabalho; a terceirização de fases da atividade produtiva barateando custos de serviços e produtos; a importação de bens de consumo para assalariados e meios de produção mais baratos; o desenvolvimento de indústrias complementares nas quais a composição orgânica de capital fosse relativamente baixa, entre outros processos, podem contribuir para a elevação da taxa de lucro, aumentando a taxa de exploração e/ou baixando a composição orgânica do capital. Tais processos são tão importantes para o capitalista individual como para o sistema como um todo.”


“Os referidos processos (entre outros) podem compor um processo mais amplo, qual seja, a reestruturação produtiva. Enquanto tal será, necessariamente, um mecanismo voltado para assegurar, de um lado, o avanço das forças produtivas, e, de outro, a re-subordinação do trabalho ao capital com novos métodos organizativos/administrativos que esvaziem o potencial de resistência dos trabalhadores. 
A reconstituição e/ou ampliação do exército industrial de reserva nos quadros da crise possui uma importância particular enquanto uma contra-tendência à tendência de queda da taxa média de lucro. A perda de estímulo para novos investimentos e a destruição de forças produtivas (falências, concordatas, desvalorização e/ou destruição dos excedentes, etc.) provocadas pela crise, proporciona um ambiente extremamente favorável para a diminuição dos salários e para a queda das condições de trabalho graças à super-oferta da força de trabalho. Tal processo diminui o custo do trabalho no âmbito dos custos da produção e é um importante fator de ampliação das taxas de extração de mais-valia.”


“No curso do processo da concentração de capital – no qual ocorre a reprodução ampliada do capital, ou seja, expansão que ultrapassa a pura e simples reiteração econômica – o impacto desencadeado pela nova taxa de retorno e os custos financeiros de muitas empresas será a falência e consequente incorporação daquelas despreparadas para a competição nos termos ditados pelas maiores e mais capitalizadas. Em consequência, diminui o número de empresas e intensifica o controle dos oligopólios e monopólios sobre o mercado.
Consumado o processo tem início novamente a fase de centralização de capitais, ou seja, de capital líquido na forma de lucros das empresas diretamente produtivas que ampliam suas receitas – oligopólios e monopólios – ou empresas financeiras que partilham dos lucros das empresas que recorrem a financiamentos – bancos, bolsas de valores, etc. A nova massa de capitais não diretamente aplicado, ou reserva de poupança, começa a ser recomposto preparando as condições para uma nova fase de concentração de capitais.
A crise, independentemente da sua extensão e natureza, cumpre sempre um importante papel na reprodução ampliada do capital, qual seja, o de destruir para construir em novas bases. A crise (incompatibilidade entre produção e consumo; interrupção do fluxo de compras e vendas ou de pagamentos; desproporcionalidade e desequilíbrio entre os departamentos econômicos em que se divide o capital social; queda da taxa média de lucro; sobre-acumulação; desvalorização do capital existente e contradições inerentes à dinâmica de concentração e centralização de capitais) será, portanto, fruto da contradição constitutiva do capital.
As crises não levam a um colapso econômico final capaz de destruir completamente e de uma só vez o sistema. Para Marx, o fim das crises somente pode advir do trabalhador, que tomando consciência de si mesmo e das relações sociais que o envolvem, edifica-se como o sujeito real e verdadeiro da produção (dominando o sujeito abstrato, representado pelo capital). O capitalismo, cuja essência é a (relação de) contradição inscrita na sua própria origem, desaparece com a eliminação da referida contradição; o que equivale reconhecer que a crise no capitalismo somente seria superada por meio da superação do próprio sistema.
A concepção de crise em Marx, conforme identificamos, não pode ser separada da dinâmica do capital e, nem tampouco, a superação definitiva da crise no capitalismo fora da superação do próprio capitalismo.”


“As experiências ‘pós-revolucionárias’ denominadas ‘socialismo real’ não lograram realizar a utopia socialista. O burocratismo, as relações autoritárias de poder, a corrida armamentista, o desequilíbrio do desenvolvimento do processo produtivo, o atraso técnico-científico comparado aos centros dominantes do capitalismo, são demonstrações inequívocas da deturpação e desvirtuamento das sociedades ‘pós-revolucionárias’.
É trivial – senão conservador – fixarmos apenas nas condições objetivas para explicar os ‘desvios’ e ‘insuficiências’ dos processos de construção do socialismo nas sociedades ‘pós-revolucionárias’. É necessário salientarmos a distância estabelecida entre essas experiências históricas e a utopia socialista, especialmente a violentação da Práxis da transformação social pela ação das vanguardas políticas. Em outras palavras, é menos importante compreender a superioridade tecno-científica dos centros imperialistas quando comparado com a identificação dos obstáculos que as estruturas de poder construídas nas experiências ‘pós-revolucionárias’ acarretam no sentido da incompetência, acomodamento, desilusão e desperdícios, tendo em vista a compreensão da crise das referidas experiências.
A transição do capitalismo para o socialismo somente poderá assegurar a superação da propriedade e do controle privado dos meios de produção se tal processo encontrar-se integrados coerentemente com o caráter social da produção e basear-se em uma hegemonia do mundo do trabalho.”


“As investigações desembocam na conclusão “(...) de que tanto as relações jurídicas como as formas de Estado não podem ser compreendidas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito humano (...)”. Segundo Marx, elas “(...) se baseiam, pelo contrário, nas condições materiais de vida (...)”. Ainda segundo Marx, “(...) a anatomia da sociedade civil precisa ser procurada na economia política”.
A continuidade dos seus estudos permite a Marx concluir que “(...) na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais”.
As relações de produção seriam as relações concretas que os homens estabeleceriam em uma determinada sociedade, tendo em vista a produção e reprodução dos indivíduos, das classes sociais e da sociedade. As relações de produção se expressariam na forma de propriedade, na forma de produção e distribuição dos excedentes sociais e na forma de organização das relações de trabalho entre as classes sociais. As relações de produção condicionariam profundamente as relações sociais em geral.
As relações de produção encontrar-se-iam correlacionadas no seu desenvolvimento com as forças produtivas, que seriam os recursos tecnológicos, o conhecimento científico, as estruturas de produção rural e urbana, o nível de consciência social*, etc. Para Marx, não seria possível forças produtivas desenvolvidas, a exemplo do nível conquistado no capitalismo, coexistindo com relações de produção ‘atrasadas’ historicamente se comparadas a estas, a exemplo das relações de produção feudais. Portanto, relações de produção e forças produtivas determinar-se-iam no desenvolvimento da sociedade humana.
As relações de produção e as forças produtivas, em suas relações concretas e socialmente estabelecidas, formariam a estrutura (ou base) econômica da sociedade. Sobre a estrutura “(...) se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social”. Marx concebe uma interação e uma interdependência profunda entre a estrutura, responsável pela produção e reprodução da vida material, e a superestrutura, responsável pela produção e reprodução da vida política e espiritual. A relação dialética que Marx estabelece entre estrutura e superestrutura não exclui a ontologia. Neste ponto, Marx é categórico quando afirma que “(...) não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência”.
Dito de outra forma, Marx não reconhece nas leis, nas formas do Estado, nas expressões subjetivas dos indivíduos, segmentos e classes sociais uma autonomia e independência da estrutura, ou seja, das condições materiais de existência da sociedade. Para Marx, a compreensão das superestruturas exige, necessariamente, um movimento de investigação que parta da estrutura.”
*: O conceito de “consciência social” em Marx incorporaria as formas de expressão da subjetividade humana (expressões literárias e filosóficas, romances, doutrinas religiosas, criações artísticas, etc.), bem como o nível de consciência e conhecimento da relação homem/natureza e das relações sociais. Essas manifestações da consciência social seriam ideológicas e mais ou menos racionais, humanistas e críticas, segundo o grau de desenvolvimento da estrutura econômica, da experiência e de amadurecimento das classes sociais. Enfim, do estágio de desenvolvimento da sociedade humana.


“Marx formula o conceito “modo de produção” para retratar a totalidade social representada pela estrutura e pela superestrutura*. Marx integra, portanto, totalidade e estrutura para a compreensão, em grandes traços, dos longos períodos históricos de permanência ou conservação – entendidos como movimentos que não alterariam a essência de uma estrutura, mas que coexistiriam com a acumulação quantitativa de condições materiais e espirituais, que levariam a um ponto de ruptura num futuro indeterminado – ou breves períodos históricos de transformações bruscas ou revolucionárias – entendidos como movimentos que alterariam a essência de uma estrutura, ou seja, rupturas qualitativas das condições materiais e espirituais responsáveis pela edificação de uma nova totalidade e estrutura.
Marx indica que os grandes períodos históricos estariam estruturados a partir dos modos de produção comunal, asiático, antigo (escravo), feudal, e burguês. Modos de produção, social e historicamente determinados, mutáveis, portanto, contrariando o ideal burguês da naturalização das relações sociais, da sociedade burguesa e capitalista, etc.”
*: O conceito de “estrutura” pode receber diversos sentidos e dimensões na teoria e metodologia marxista. Pode significar estrutura (base) econômica; superestrutura (estrutura fruto da materialização de instituições e formas de consciência social); estrutura global e abstrata identificada com o conceito de “modo de produção”; estrutura global identificada com uma formação social (ou socioeconômica) específica e concreta. O fundamental é que o conceito de “estrutura” remete sempre para um conjunto complexo de elementos interdependentes e estáveis (o que não significa eterno) no tempo; a estrutura pode ser pensada em si própria ou em relação a outras estruturas.


Modo de Produção e Transformação Histórica
Marx identifica contradições e conflitos na estrutura econômica da sociedade. Para Marx, as forças produtivas tenderiam para o desenvolvimento, o que as faria colidir com as relações de produção, que qualificaria e conservaria o modo de produção.
Essa contradição, emergida da estrutura econômica, prolongar-se-ia para além das condições materiais da sociedade, penetrando na superestrutura e se expressando no âmbito jurídico, político e ideológico. Isto porque Marx entende a sociedade como uma totalidade, na qual a estrutura econômica exerce um profundo condicionamento sobre a superestrutura. A contradição surgida entre as forças produtivas e as relações de produção, responsáveis pelo prolongamento da contradição para o todo social, criaria um ambiente propício para transformações. Nas palavras de Marx:
(...) abre, assim, uma época de revolução social. Quando se estudam essas revoluções, é preciso distinguir sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições econômicas de produção e que podem ser apreciadas com a exatidão própria das ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo.
Assim, a contradição que nasceria no âmbito da estrutura econômica e que se prolongaria para a superestrutura, não poderia ser superada por ela mesma. A contradição acima referida apenas criaria o espaço e o ambiente propício para as transformações. A transformação dependeria da ação do sujeito social, de forma a dar um sentido e uma direção para a remoção dos obstáculos que as relações de produção (em um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas) representariam no sentido do posterior desenvolvimento das forças produtivas.
Para Marx, o termo sociedade expressaria um sujeito social genérico. Compreender a história a partir desse sujeito social como um todo indiferenciado seria idealismo. A sociedade se manifestaria, de fato, por meio de sujeitos sociais concretos, ou seja, das classes sociais antagonizadas pela propriedade privada e em conflitos explícitos – revoltas, revoluções, greves, etc. – e ocultos – inculcação de valores ideológicos, remanejamentos político-institucionais, etc.
As lutas de classes seriam conduzidas pelas classes dominantes e dominadas. Expressariam a Práxis, ou seja, ações sociais (políticas, culturais, etc.), intencionais ou não, sempre ideológicas, com o propósito de conservar ou revolucionar as relações de produção.
Marx supera, por meio da sua interpretação dialética do curso da história, o economicismo, que atribui ao fator econômico a responsabilidade pelas transformações, o evolucionismo, que reconhece uma dinâmica evolutivo-natural comandando o curso das mudanças, e o voluntarismo, que personifica as mudanças por meio da ação de determinados personagens e pequenos grupos, desprezando as estruturas econômicas e os embates de classes.


“Marx apreende a tese materialista de Feuerbach de que os homens criaram Deus e as religiões, e não o contrário. Distancia-se deste quando demonstra que tal inversão não é uma pura construção do pensamento, mas que se encontra no mundo real, que é um bálsamo criado pelos homens para compensar as contradições do mundo real.”


“Entre 1845 e 1857 Marx formula o conceito de “ideologia” para demonstrar que a precariedade do desenvolvimento material e as contradições emergidas na vida prática, levariam os homens a criar e a projetar formas ideológicas de consciência. Formas espirituais e discursivas que ocultariam ou disfarçariam a existência e o caráter dessas contradições. E que concorreriam, nesta medida, para assegurar a reprodução das relações sociais, de forma a servir aos interesses dominantes.”


“Podemos chegar a três definições de ideologia em Marx e Engels:
a) ideologia enquanto parte ou conjunto das superestruturas: as formas ideológicas enquanto a qualidade da consciência social possível dentro de uma determinada estrutura socioeconômica; uma determinada visão de conjunto de uma sociedade, época ou classe determinada por suas condições materiais de existência;
b) a ideologia enquanto ocultamento da realidade: ora como imposição das classes dominantes para criar, legitimar e justificar as relações sociais dominantes (a exemplo das Cruzadas, do levante da Vendéia, etc.), ora como forma de expressão de lutas de resistência dos dominados enquanto conhecimento imperfeito (a exemplo da revolta camponesa da Alemanha);
c) a ideologia enquanto um sistema de valores sociais impostos: seriam os valores sociais impostos, indiretamente, por meio das relações sociais de produção, e, diretamente, por meio dos instrumentos ideológicos públicos e privados.”


“O conceito “Estado” ocupa grande importância no pensamento de Marx e Engels. O Estado é concebido como uma instituição acima de todas as outras, com a função de assegurar e conservar a dominação e a exploração de classe. Para Engels, o Estado é um instrumento (...) da classe mais poderosa, economicamente dominante, que, por meio dele, torna-se igualmente a classe politicamente dominante, adquirindo com isso novos meios de dominar e explorar a classe oprimida.”


“Marx reconhece no Estado bonapartista francês uma máquina de Estado engenhosa, de amplas bases, com um “exército” de funcionários e soldados de 1 milhão de homens. Uma máquina com determinados interesses e objetivos próprios, que conforma “(...) um corpo parasitário terrível que cerca o corpo da sociedade francesa como um casulo e sufoca todos os seus poros”.”


“Marx define Práxis como encontro entre razão e história, isto é, o lugar da construção da humanidade como obra de uma vontade expressa racionalmente. Construção suscitada por um pensamento historicamente determinado, acolhido pela grande maioria por responder às necessidades manifestadas em um contexto (natural e social) marcado pela intervenção do homem e que se transforma por isso em instrumento de ação. Nesta definição, o conceito de “Práxis” se aproxima do conceito “teoria”, sendo a primeira uma prática racional-transformadora e a segunda um pensamento historicizado e realístico.
Marx também define Práxis como luta de classes, isto é, um instrumento motor da história da humanidade. A concepção de Práxis como ação do gênero humano indiferenciado socialmente e transformador das condições naturais e sociais ao longo da história da humanidade, conjuga-se também com a concepção de Práxis como oriunda da humanidade como sujeito histórico diferenciado por meio das classes sociais em suas relações conflitantes, na qual ocorre uma ação de supressão por parte de uma delas das formas de organização social que a outra instaura. Esses conflitos entre as classes se exprimem na tensão constante que existe entre as forças produtivas, tendentes ao desenvolvimento e as relações de produção, tendentes a conservação.”


“Lukács faz o uso de três temas na definição da Práxis: o pensamento socialmente determinado; a realidade em sua dinâmica; e, o sujeito em sua ação. A Práxis seria o ato revolucionário que realiza o sujeito (o proletariado) como conhecedor e agente ao mesmo tempo e que, simultaneamente, fundamenta a identidade do pensamento e da história.”


“Para Korsch modo, a teoria é Práxis, isto é, luta social de classes. Se, por um lado, ela é um aspecto da consciência social da situação vigente, até o ponto de se identificar com a consciência de classe, por outro, é apenas uma teoria, não uma teoria positiva, mas crítica, que resolve as representações estáticas em processos dinâmicos e em conflitos sociais. “Os elementos nela envolvidos, conquanto aparentemente neutros, assumem uma específica conotação de classe; o Estado é o Estado burguês; o direito é o direito burguês”.
Para Korsch a teoria marxista seria Práxis, não só por estar intimamente relacionada com os conflitos sociais, dos quais é expressão, mas também por elaborar os meios de uma forma alternativa de sociedade.”


“Para Marx e Engels o Estado possui uma origem calcada na desigualdade e no conflito de classe; constitui-se como uma instituição acima de todas as outras, com a função de assegurar e conservar a dominação e a exploração de classe; e assumir certa margem de independência em relação às classes, especialmente em conjunturas de intenso conflito social.”


“Para Marx, seria por meio da sociedade civil – o conjunto das relações econômicas e interesses privados –, fundadora do Estado, que se poderia compreender o surgimento do Estado, o seu caráter de classe, a natureza de suas leis, as representações sobre as quais ele se apoiaria, e assim por diante. E mais, o Estado, “criatura” da sociedade civil, constituir-se-ia num instrumento voltado para a garantia das próprias bases sobre as quais se apoiaria a sociedade civil. O Estado burguês, por exemplo, protegeria as relações capitalistas de produção, de forma a assegurar a reprodução ampliada do capital, a acumulação privada do produto social, a redistribuição do fundo público em benefício do grande capital, a exploração da renda fundiária, etc. Portanto, o Estado seria, ao mesmo tempo, parte integrante das relações capitalistas de produção e instrumento de defesa das mesmas.
O “jovem Marx” contesta a dominação do Estado (burocracia) sobre a sociedade civil e defendia a supressão do Estado moderno. Para o Marx de 1843-44, a extinção do Estado (burocracia e mecanismos de representação política) seria a pré-condição da verdadeira democracia, de maneira que cada homem poderia ser burocrata e representante de si mesmo.”


“Uma leitura mais atenta demonstra que o Estado encontra-se articulado em uma certa lógica, que está organizado no sentido de medidas, de critérios, de atuações cujo sentido é a reposição expansiva das relações capitalistas de produção e a dinamização das forças produtivas. Ao término do Segundo Império (1870) a França transforma-se na segunda nação industrial da Europa.
Esta problemática inseria outra: Quem é a classe dominante e como ela exercia o poder? Marx demonstra que a classe dominante não existe enquanto uma classe homogênea. A unidade desta classe em torno da defesa da propriedade e do status quo não se prolonga nas opções e projetos políticos concretos.
     A diversidade de segmentos, na forma de frações de classe e correntes políticas, para Marx, emergia da forma concreta como os referidos segmentos inseriam na estrutura de reprodução material da sociedade. Marx, enfim, encontra o elemento explicativo das lutas de classes no âmbito da classe dominante, de forma a identificar a coincidência entre projeto político e interesses sociais concretos.
Marx demonstra, ainda, que o exercício da dominação burguesa ocorria em um contexto de uma aliança de classes, de forma que no Estado, no governo e na sociedade, o domínio burguês incluía setores da pequena propriedade, intelectuais, setores médios, latifundiários. A hegemonia pressupõe um conjunto de alianças e/ou cooptação social. Em segundo lugar, a dominação não ocorria diretamente. O domínio, a exemplo da forma do regime bonapartista, poderia ocorrer por meio de outras esferas de poder (judiciário e legislativo) e de esferas da burocracia de Estado, ou da sociedade civil. Apenas episodicamente a burguesia exercia diretamente o poder. Em terceiro lugar, a dominação dependia direta ou indiretamente das forças armadas. A ‘espada’ não é uma característica apenas dos Estados precedentes, mas de todo Estado. O Estado burguês aprimora em termos organizacionais, estratégicos, doutrinários e bélicos o aparato repressivo do Estado.”


“Engels demonstra que a sociedade é anterior à família. Que o desenvolvimento da sociedade engendra o surgimento da família e que esta, por sua vez, é redefinida no tempo. A sociedade originária, a tribo, sob propriedade comunal, não conhece as formas de propriedade pública e privada, a desigualdade social, a opressão sobre a mulher, etc.
Com a domesticação dos animais e das plantas, com a consequente geração de excedentes, forma-se a propriedade e começa o início da desigualdade social e de gênero. Forma-se uma ordem patriarcal. Forma-se a família enquanto unidade que inclui a propriedade e os homens – escravos e livres. O pater familias tem poder de vida e morte sobre todos.
Para Engels o desenvolvimento econômico e social desencadearia transformações nesta família que o próprio desenvolvimento na sua fase anterior havia criado. Esta família entraria em crise e seria dissolvida, dando lugar a classes sociais definidas em torno da propriedade privada que progressivamente se absolutiza em poucas mãos. De um lado, escravos e proprietários e, de outro lado, proprietários de terra e os que não possuíam terra alguma.
Começaria a surgir, a partir de um determinado desenvolvimento das forças produtivas, uma instituição, que tendia a dominar e manter coesa a sociedade. O Estado, historicamente formado, seria esta instituição. E como tal, nasceria no contexto do surgimento das classes sociais em luta. Seria um instrumento nas mãos dos proprietários de terras e escravos tendo em vista institucionalizar sua dominação. Esta ocorreria por meio do aparato policial-militar, da estrutura jurídica e do sistema político.
Engels demonstra que o Estado nasce da sociedade cujo desenvolvimento das forças produtivas engendra as classes, que o Estado é um instrumento em favor das classes dominantes, que o Estado é uma estrutura de poder que procedia da sociedade, mas que era apresentado como estando acima dela e que esta estrutura de poder ficava ‘estranho’ à própria sociedade, sendo apresentado como poder separado dela e como seu próprio criador. Engels demonstra, ainda, que o Estado, expressão da dominação de uma classe, busca um equilíbrio político-jurídico – contraditório, provisório, transitório – entre as classes em conflito, tendo em vista assegurar condições mais adequadas para o desenvolvimento das forças produtivas e para a conservação das relações de produção.”


“Para Lênin, autor da obra O Estado e a Revolução, mesmo na república democrática parlamentar burguesa em que os direitos civis, liberdade de organização partidária e a estrutura política mais avançassem, seria apenas uma aparência democrática, visto que a dominação social da minoria sobre a maioria estaria presente. Portanto, uma grande democracia e liberdade burguesa não seria nada mais do que um escamoteamento, de forma que a própria lei mais democrática da república democrática burguesa, seria um instrumento da arbitrariedade desenfreada de classe. (...)
Lênin contrapôs democracia burguesa à democracia proletária – ou ditadura do proletariado. Esta democracia (ou ditadura) asseguraria o máximo de liberdade – de reunião, de organização social, de imprensa, etc. Asseguraria, ainda, o início da quebra do Estado burguês e do Estado em geral.”


“Tal como em Marx, o Estado é concebido por Gramsci como “organismo próprio de grupo, destinado a criar condições favoráveis à expansão máxima desse grupo”. Conserva, portanto, uma base classista. No entanto, a expansão máxima desse grupo ocorre em conexão com os interesses do grupo subordinado e a
(...) vida estatal é concebida como uma contínua superação de equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados; equilíbrio em que os interesses do grupo dominante prevalecem até determinado ponto, excluindo o interesse econômico corporativo estreito.
De tal afirmação podemos tirar algumas informações básicas: a) O Estado, apesar de representar uma classe ou grupo, necessita para manter o ‘equilíbrio’, superar os interesses estreitos do grupo fundamental que o compõe e abarcar os interesses dos grupos subordinados. Daí a quebra de uma das ortodoxias marxistas que vê no Estado um mero defensor dos interesses de uma única classe; b) Apesar da superação dos interesses econômico-corporativos estreitos do grupo fundamental, o Estado continua a visar a expansão desse grupo, a questão é que para essa expansão ocorra de forma máxima, tais interesses devem ser superados; c) A superação dos equilíbrios instáveis se dá no âmbito da lei, ou seja, a nível superestrutural.
A esta fase em que determinada classe consegue superar os interesses econômico-corporativos, abarcar os interesses de outros grupos e se constituir em “Estado”, propriamente dito, Gramsci atribui ao momento principal das relações-de-força, ou seja, ao momento das relações de forças políticas. Para que esse momento realmente se concretize, o grupo fundamental deve criar uma “hegemonia” com relação aos grupos subordinados.”


“Em Gramsci o “conceito de ideologia está relacionado a uma concepção de um mundo implicitamente manifesta na arte, no direito, na atividade econômica e em todas as manifestações da vida individual e coletiva. Mais do que um sistema de ideais, ela também está relacionada com a capacidade de inspirar atitudes concretas e proporcionar orientação para a ação. A ideologia está socialmente generalizada, pois o homem não pode agir sem regras de conduta, sem orientações. Portanto, a ideologia torna-se o “terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc. É portanto na ideologia e pela ideologia que uma classe pode exercer a hegemonia sobre as outras, isto é, pode assegurar a adesão e o consentimento das grandes massas”. (...)
Se o desenvolvimento da ideologia e sua homogeneização dentro da sociedade são as principais provas da hegemonia de um grupo dirigente, seu enfraquecimento e a utilização da força, são os sinais de debilitação da hegemonia e da passagem da ditadura.
Quando a classe fundamental conquista a hegemonia, ela consegue o consenso e o controle da sociedade civil: consegue construir um bloco histórico homogêneo. O desenvolvimento do controle ideológico gera então o enfraquecimento da sociedade política e da coerção. A sociedade civil passa a ter, digamos, predominância sobre a sociedade política. Em uma situação em que a hegemonia não está totalmente desenvolvida, em que o grupo social principal domina, mas não dirige a sociedade, temos uma situação de ditadura, onde a coerção será amplamente utilizada para a manutenção do aparelho de Estado.
A situação de hegemonia e ditadura não estão totalmente separadas, a não ser em casos históricos específicos. A classe dirigente mesmo quando hegemônica, não dirige toda a sociedade, mas somente as classes auxiliares e aliadas. A hegemonia jamais é total, e um mesmo grupo pode ser ao mesmo tempo dirigente e dominante. Daí a presença e utilização do aparato repressivo por parte do Estado, quando a situação o exige.”


“Na perspectiva dos construtores do Estado há muito que comemorar nesses 500 anos de história do Brasil: a propriedade da terra latifundiária e excludente; uma cidadania mínima e censitária; uma dependência endêmica em relação ao capital financeiro internacional. Na perspectiva dos ‘de baixo’, só uma lembrança lastimosa dos projetos populares de nação e de sociedade abortados.”


“Do período da revolução política (1888-1891 – na forma da Abolição da Escravatura de 1888; da Proclamação da República de 1889; e da Assembleia Constituinte de 1891) a 1930, articula-se o regime liberal oligárquico, hegemonizado por uma burguesia financeira e comercial agroexportadora e compradora, e pela burguesia financeira e comercial inglesa – compartilhada, agora, pela burguesia financeira e comercial norte-americana. O compromisso desse Estado é assegurar a expansão da economia agroexportadora em geral e da economia cafeeira em particular, de forma a proteger/expandir os interesses nela envolvidos.
Esse compromisso é assegurado sob intensa coerção, de forma a combinar as esferas pública e privada. No plano político, são exemplos desse compromisso a restrição e manipulação do sufrágio com a exclusão dos analfabetos, mulheres e militares, a votação aberta sob coação; o fisiologismo, o clientelismo, o ‘é dando que se recebe’, as perseguições políticas, a fraude, etc., como método herdado do Império e ampliado com a República; a diplomação dos eleitos como pré-condição para a ocupação da função parlamentar; o impedimento de organização partidária do mundo do trabalho, entre outras formas. No plano social, a intensa repressão aos movimentos sociais camponeses, aos operários e a segmentos das camadas médias, a exemplo, respectivamente, de Canudos, dos sindicatos anarquistas e do tenentismo, também atestam esse compromisso.
O compromisso na defesa dos interesses dominantes se prolonga, ainda, para esferas microestruturais. São exemplos dessa realidade a reposição de expressões ideológico-culturais patriarcal-cristãs herdadas do passado colonial e imperial, a exclusão das mulheres do mercado de trabalho e da participação política e o preconceito racial.”


“Nos anos 90, ocorrem rupturas em relação às políticas iniciadas nos anos 30 e redefinidas em alguns aspectos na segunda metade dos anos 50, como o papel do Estado enquanto agente produtivo e regulador e a proteção da indústria e mercado interno. Tem início uma política macroeconômica no sentido de, por um lado, eliminar a articulação instável do tripé da industrialização brasileira iniciada no final dos anos 50 e, por outro, assegurar uma profunda desnacionalização da economia brasileira. Esse duplo objetivo é alcançado por meio da privatização do setor público, sob liderança do capital financeiro internacional e participação subalterna de grandes capitais privados locais, e da aquisição de grandes monopólios privados locais por corporações internacionais de atuação globalizada.
Configura-se uma processualidade, cuja direção tem sido a eliminação de uma burguesia local com interesses contraditórios com o capital financeiro internacional e, ao mesmo tempo, a transferência dos espaços econômicos fundamentais dentro do país em favor desse capital. Política conduzida do ‘alto’ do Estado e dirigida pela tecnocracia, agora renovada por meio de quadros formados nas instituições universitárias norte-americanas e de trânsfugas da esquerda brasileira.
De 1930 a 1990, tanto os regimes articulados sob a forma democrático-burguesa quanto a forma autoritária, não restringem e/ou não podem restringir os regimes políticos às recomendações clássicas do liberalismo político e econômico. Direitos são assegurados em lei por meio de lutas sociais como os direitos previdenciários, o contrato indeterminado de trabalho, entre outros.
Nos anos 90, em uma conjuntura desfavorável às lutas sociais, presenciamos uma mudança também nesse plano. Esse processo decorre da progressiva identificação e nivelamento dos regimes políticos democrático-burgueses ao propugnado pela teoria liberal, ou seja, remover leis e instituições, fruto de lutas e pressões sociais, que objetivamente representam obstáculos à hegemonia política burguesa e ao livre mercado. Efetivamente essa realidade tem redundado na precarização do mundo do trabalho – na forma do avanço do desemprego estrutural, do subemprego, da eliminação de direitos trabalhistas, etc. – no aprofundamento das desigualdades sociais – na forma do distanciamento econômico entre as classes sociais, exclusão e marginalização de amplos setores sociais, etc. – e no esvaziamento das funções do Estado – na forma do sucateamento de serviços sociais básicos como saúde e educação, restrição de programas sociais, redução/restrição do sistema previdenciário, etc.
Já em relação ao padrão sociocultural calcado em aspectos como o individualismo e o consumismo, típicos do ‘American way of life’, é incorporado um irresistível processo de coisificação e banalização do mundo e a cultura do descartável. A esse quadro se agrega, em certa medida como desdobramento dele mesmo, a crise de instituições que secularmente concorrem para a modelagem da sociedade brasileira, como a família, a igreja e a escola.
Uma perspectiva materialista vulgar, individualista e presentista de tempo e sociedade, amplamente desenvolvida nos anos 90, tem concorrido para restringir o envolvimento de membros do mundo do trabalho, da juventude e da intelectualidade com projetos sociais coletivos orientados na direção da construção de uma sociedade justa e democrática.”


“A luta indígena, ao longo de grande parte do período colonial, resistindo à conquista portuguesa e/ou a classe senhorial e escravista, representa a luta pela defesa da liberdade do grupo tribal. Representa, também, a luta pela defesa da vida tribal contra o Estado, ou seja, a defesa de uma sociedade organizada sem o Estado e contra o Estado – ou a qualquer outra forma de poder que se sobrepusesse aos membros da comunidade.
A resistência negra, na forma dos quilombos, e a insurreição pernambucana de 1817, por sua vez, representam exemplos de lutas de classes e grupos sociais, resistindo à sociedade e Estado escravista moderno.”


“A manutenção do caráter geral assumido pela sociedade e Estado burguês no Brasil, caracterizado pela dependência e subalternidade de um capitalismo periférico, também pressupôs a derrota das classes e grupos sociais dominados. Essas derrotas, contudo, não são o resultado de uma ação unicamente coercitiva, como no passado colonial e imperial.
A relação estabelecida entre Estado e sociedade, após a revolução política de 1889- 1891, é mais complexa. Esse Estado, ao fundar-se sobre princípios universalistas, edifica-se, formalmente, como uma instituição de representação geral e que poderia ser composta por qualquer cidadão, independentemente da sua condição social ou concepção de mundo. O Estado não se apresenta como aparelho de coerção diretamente identificado com a classe dominante e com estrito papel repressivo.
O Estado universalista proporciona, formalmente, condições para uma dominação sobre bases predominantemente consensuais, ou seja, coerção revestida de hegemonia. Por meio de aparelhos públicos e privados de hegemonia como, respectivamente, a escola e os meios de comunicação de massa, a concepção de mundo e valores burgueses, transfigurados de universais e naturais, seriam estendidos sobre toda a sociedade e moldariam a subjetividade dos grupos sociais subalternos.”


A Necessária Desconstrução dos Mitos
A colonização brasileira, efetivamente, começa pelo menos um século antes da colonização dos Estados Unidos e do Canadá, o que demonstra que não somos um povo jovem. Possuímos uma das histórias nacionais mais violentas e opressoras do mundo moderno, o que desautoriza o pretenso caráter de povo tolerante e cordial. O autoritarismo presente nas nossas relações sociais está inscrito no nosso cotidiano, o que evidencia quão distante nos encontramos de ser uma sociedade verdadeiramente democrática.
Responsabilizar unicamente a colonização portuguesa ou a herança colonial pela tragédia revivida no nosso cotidiano, ou seja, enquanto uma herança da espoliação externa é, no mínimo, um mito e uma grande falta para com a verdade histórica. A condição de uma sociedade formada para o ‘outro’ é posta e reposta ao longo de 500 anos, sendo o Estado um instrumento estratégico nessa direção. Essa condição social ocorre de forma mais ou menos contraditória, por meio da convergência de interesses entre a classe dominante local e os interesses internacionais. A história brasileira não nos deixa dúvidas: essa comunhão de interesses operou e opera em detrimento das maiorias sociais.
A (re)criação dos referidos mitos (e de outros tantos) presta-se a escamotear o fato de que não compomos uma nação. Formamos uma sociedade enquanto um amálgama de classes e grupos sociais profundamente diferenciados, no âmbito do qual o mundo do trabalho encontra-se submetido a diversos níveis e formas de exploração econômica, de dominação política e de opressão ideológica.
A construção da nação, entendendo por tal uma sociedade integrada, democrática e participativa, constitui-se em uma possibilidade histórica. A sua efetivação está na direta proporção da mobilização da maioria dos membros do mundo do trabalho, em aliança com outros setores sociais, tendo em vista romper com a condição de povo formado para o ‘outro’, conformando-se enquanto um povo formado para ‘si’ – conquistando participação democrática e consciente das possibilidades históricas que se abrirão, tendo em vista a construção de um projeto de sociedade alternativa à sociedade atual – e para ‘todos’ – sendo parte da construção de um novo projeto civilizatório para a humanidade.
A construção da nação para ‘si’ e para ‘todos’ certamente não poderá aguardar um grande projeto alternativo de sociedade e/ou o grande dia para a sua efetivação. Nem poderá tão somente conceber o Estado e o governo como alvos. A construção da nação, nos termos aqui propostos, passa pelas escolhas que realizamos em nosso cotidiano. Essas escolhas poderão repor/ampliar as estruturas (sociais, econômicas, políticas e culturais) herdadas do nosso processo histórico ou construir estruturas a partir de outras bases.

Somente por meio da mediação de uma Práxis verdadeiramente democrática, libertária e ética, desenvolvida no âmbito das relações de gênero, de etnia, de entidades e movimento sociais, etc., é que poderemos transformar a realidade nacional e mundial. Boas escolhas e práticas é um bom começo...

sábado, 16 de novembro de 2013

A Noite Triste – Frances Sherwood

Editora: Zahar
ISBN: 978-85-378-0104-8
Tradução: Roberto Franco Valente
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 432
Sinopse: Um romance de aventura e amor, que combina personagens históricos e ficcionais. O cenário é composto pelas paisagens astecas do século XVI e os acontecimentos desembocam no episódio conhecido como “la noche triste”. A história começa em 1519, quando os espanhóis aportaram no território do que hoje é o México e encontraram uma das sociedades mais sofisticadas e complexas da América então recém-descoberta: o império asteca.
Os dois personagens principais, a princesa Malintzin e o cruel conquistador Hernán Cortés, vivem uma relação atribulada em meio a batalhas e a marcha de tropas até a chegada a Tenochtitlán, a capital do Império do Sol. A autora nos envolve no drama de alguns dos episódios mais sangrentos do processo de colonização do México.



“Entretanto, para se fazer justiça a Cortés ante todos os adiamentos e ao seu lento florescer, quantos homens não se redimem apenas com um passo, uma ação, uma decisão? O homem tem as suas fragilidades, do contrário seria Deus. A fraqueza dele era com relação às mulheres. Mas que homem não é fraco quando se trata de mulheres? E a questão das mulheres nativas, que ele descobrira depois de muitos encontros secretos e de uma ou outra gravidez não desejada, era esta: elas se submetiam em silêncio. Não eram como as filhas das famílias espanholas, de fortuna medíocre e dotes ridículos, mandadas para as ilhas para encontrarem sustento em meio a uma população de homens rústicos e solteiros. Aquelas señoritas já começando a fenecer e com o olhar desesperado faziam o jogo da virgindade, apresentando-se em absolutamente todas as atividades sociais da colônia, tais como a chegada de peças de cetim ou de um piano vindo da Espanha, um casamento, um jantar cujo cardápio era carne de javali ou tartaruga marinha. Elas iam para os bailes desfilando feito cavalos importados, agitando os pés bem calçados, exibindo um pedacinho do tornozelo, perambulando, brandindo seus adornos, rebolando as cadeiras sob as camadas de tafetá na esperança de serem notadas. Os homens, na esperança de uma legítima descendência cristã, e na falta de algo melhor, realmente as notavam.
Por outro lado, as mulheres nativas não eram delicadas nem tinham um ar afetado. Na verdade, não faziam questão de serem cortejadas, tampouco contavam com a proteção intrometida de alguma mãe ambiciosa. Verdade seja dita: as índias eram sábias, dotadas de um conhecimento capaz de provocar um verdadeiro redemoinho, como a Lua no mar, na zona erógena de um homem plenamente maduro, de 33 anos.”


“Na Espanha Isla tivera muitas oportunidades para aliviar os velhinhos muito ricos e trôpegos do fardo que era o dinheiro deles, vender terras onde não havia água ou que só existiam na sua imaginação, comerciar cavalos que mancavam, oferecer porcos cheio de vermes, dentes de anciãos, cabeleiras femininas cortadas de mulheres desesperadamente doentes. Isla havia estimulado transações com navios negreiros portugueses cheios de escravos mortos ou moribundos, partidas de caneca que eram apenas carvalho perfumado e de pão que não passava de um grude feito com rebotalho. Ele não queria prejudicar ninguém. Eram apenas os negócios.”


“– Os deuses se reuniram – começou Malintzin, adotando a voz de alguém mais velho, enquanto a noite crescia ao redor delas – e se perguntaram uns aos outros: “Quem viverá na Terra?” Quetzalcoatl, antes de ser o deus do vento e do milho, da poesia e da lembrança, disse: “Eu sei.” E decidiu ir para a terra dos mortos e anunciar a Mictlantecuhtli, o deus do mundo inferior, que tinha vindo para buscar os velhos ossos dos deuses mortos para fazer as pessoas. Mas Mictlantecuhtli lhe disse: “Você pode levar os ossos se soprar a minha corneta e andar em círculo quatro vezes.” Mas a corneta não era oca e não tinha furos, portanto não era possível soprá-la. Era uma trapaça, Cuy, uma brincadeira cruel. Entretanto, Quetzalcoatl tinha seus recursos. Convocou os vermes para que fizessem os buracos e as abelhas para que voassem por dentro da concha, fazendo com que ela soasse. Mictlantecuhtli ficou muito zangado ao ver que Quetzalcoatl conseguira e mandou seus demônios fazerem um grande buraco no chão para que Quetzalcoatl caísse dentro dele. Quetzalcoatl de fato caiu, mas pôde voltar à superfície e fugiu levando os ossos. Depois reuniu-os e os colocou numa tigela de jade. Então ele feriu o tepolli dele, isto é, o pênis, derramando o sangue na tigela. Foi assim que as crianças do sexo masculino foram feitas, e depois as do sexo feminino. As pessoas nasceram, Cuy, e o mundo teve início. E aqui estamos nós. As pessoas.”


“O frei Francisco, depois de permanecer algum tempo em seu monastério na Espanha, mandou-se de repente para a América a fim de converter os pagãos em Cuba. Algumas vezes, seguir as ordens religiosas era o mesmo que dar a vida a César, ou seja, aos cardeais, bispos, sacerdotes, governadores e reis.”


“Foi tudo muito simples. Montezuma, imperador dos mexicas*, cuja capital, situada no ponto central do país, era uma maravilha do mundo; o homem que governava mais de 400 cidades e que era o grande sacerdote de milhares de templos-pirâmides; o homem que ditava a religião do Estado e que possuía imensas extensões de terra acima e abaixo da costa, no coração do continente, terras ricas em substâncias necessárias à vida, como o milho, o tomate, a batata-doce, o tabaco, abóboras de todas as variedades, plantas medicinais capazes de curar a dor e proporcionar visões sagradas, flores tão extraordinárias que traziam lágrimas aos olhos, terras repletas de ouro e pedras preciosas; um homem que dirigia uma vasta e treinada burocracia, além de uma bem adestrada força de trabalho que cumpria todas as ordens dele, cultivando as plantações, construindo as obras de arquitetura e modelando os mais lindos objetos; esse homem, comandante de um Exército de centenas de milhares de homens que supervisionava a tortuosa execução de milhares de seres humanos, esse homem tão rico se curvou humildemente diante do destino, quase beijando os pés do seu astuto conquistador, Hernán Cortés, o filho único de um fidalgo de Medellín, em Extremadura, Espanha. O caçador de fortuna cubano, Cortés, o primeiro de todos os amantes latinos, o galanteador com um jeito especial para lidar com as pessoas, que sabia identificar sua grande chance logo ao vê-la e que não tinha medo de absolutamente nada debaixo do sol.”
*Mexicas: sinônimo de “astecas”. Esta palavra é a origem do nome do respectivo país.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Ecos da Marselhesa: dois séculos reveem a Revolução Francesa – Eric J. Hobsbawm

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-7164-594-3
Tradução: Maria Celia Paoli
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 160
Sinopse: Em quatro ensaios brilhantes, o historiador inglês Eric J. Hobsbawm enfrenta as tentativas de revisão historiográfica da Revolução Francesa que tiveram grande repercussão por ocasião do recente bicentenário da tomada da Bastilha.
Em Ecos da Marselhesa, Hobsbawm se propõe não só defender como explicar a interpretação de inspiração marxista que hoje é alvo da crítica revisionista. Para tanto, ele situa a Revolução Francesa na história dos séculos XIX e XX, examinando o processo de sua recepção nestes duzentos anos e o significado de sua herança.
As conexões teóricas e políticas da Revolução Francesa com a Revolução Russa também são exploradas: 1917 aparece como a realização dos ideais de 1789 e isso tem impacto na historiografia contemporânea. Ecos da Marselhesa conclui analisando como a crise do socialismo real e do paradigma comunista no fim do século XX acabou por atingir a tradição marxista de interpretação da Revolução Francesa.



“A burguesia, uma nova nação, cujas maneiras e moral são constituídas pela igualdade civil e pelo trabalho independente, surgiu agora entre nobres e servos e, portanto, destruiu para sempre a dualidade social original do feudalismo anterior. Seu instinto para a inovação, sua atividade, o capital que acumulou formam uma força que reage de mil modos contra o poder daqueles que possuíam a terra.” (Augustin Thierry)


“Qualquer que fosse a natureza da classe média ou burguesia do século XIX, ela era formada pela combinação de vários grupos situados entre a nobreza e o campesinato, e que antes não julgavam que tivessem, necessariamente, muito em comum entre si, como uma classe única, consciente de si e tratada pelos outros como tal; esse era o caso sobretudo daqueles cuja posição estava baseada na educação. A história do século XIX é incompreensível para qualquer um que suponha que apenas empresários eram realmente burgueses.”


“Em alguns momentos entre o século XV e a metade do século XX, as histórias de quase todos os Estados “desenvolvidos” – com algumas raras exceções, como a Suécia – e de todos os grandes poderes do mundo moderno registraram uma ou mais descontinuidades repentinas, cataclismas ou rupturas históricas, classificadas como revolução ou moldadas na revolução. É um abuso atribuir tal fato, simplesmente, a uma combinação de coincidências, embora seja um tanto quanto ilegítimo e evidentemente errado inferir, do registro histórico, que é inevitável que a mudança venha por rupturas descontínuas em todos os casos.”


“As “classes disponíveis” do Terceiro Estado, que assim se tomaram naturalmente modeladores da nova França, estavam no meio em outro sentido. Elas se encontravam política e socialmente opostas tanto à aristocracia acima quanto ao povo abaixo. O drama da Revolução Francesa para aqueles que podemos chamar, em retrospecto, de liberais moderados – a palavra em si mesma, como sua análise da Revolução, somente apareceu na França depois da queda de Napoleão – foi que o apoio do povo era essencial contra a aristocracia, o antigo regime e a contrarrevolução, enquanto esse povo e os estratos médios tinham interesses seriamente conflitantes. Tal como foi posto, um século depois, por A. V. Dicey, ele próprio o menos radical dos liberais: “A confiança no apoio da multidão parisiense significava conivência com o ultraje e com crimes que tornavam impossível estabelecer instituições livres na França. A repressão à multidão parisiense significava reação e, muito provavelmente, a restauração do despotismo”. Em outras palavras, sem a multidão não haveria a nova ordem; com ela, viria o risco da revolução social, o que pareceu tornar-se realidade por um breve período em 1793-1794. Os construtores do novo regime precisavam de proteção contra os velhos e os novos perigos. Não surpreende que aprendessem a se reconhecer, no curso dos acontecimentos e também retrospectivamente, como uma classe média, e a reconhecer a Revolução como uma luta de classes tanto contra a aristocracia quanto contra os pobres.” 


“O medo de revolução é mais comum do que as perspectivas reais dela.”


“A burguesia havia ganhado uma liberdade genuína através da revolução, mas a liberdade do povo era apenas nominal. Portanto, o povo precisava fazer sua revolução francesa. Observadores mais lúcidos e radicais iam adiante e viam uma luta de classes entre a classe dominante dos novos burgueses e o proletariado que ela explorava como o principal conteúdo da história capitalista – assim como aquela da burguesia contra o feudalismo nos tempos antigos.”


“Uma vez mais, lembremo-nos do protótipo histórico derivado da Revolução Francesa. Ele consistia de seis fases: o rebentar da Revolução, ou seja, a perda de controle pela monarquia, do curso dos acontecimentos na primavera e no verão de 1789; o período da Assembleia Constituinte, que terminou com a Constituição Liberal de 1791; a quebra da nova fórmula em 1791-1792, devida a tensões internas e externas, que levaram à segunda revolução em 10 de agosto de 1792 e à instituição da República em 1792-1793, quando a direita e a esquerda revolucionárias – a Gironda e a Montanha – lutavam por ela na nova Convenção Nacional, e o regime lutava contra a revolta interna e a intervenção estrangeira. Isso culminou no golpe que conferiu poder à esquerda, em junho de 1793, o qual introduziu a nova fase: a República Jacobina, a fase mais radical da Revolução Francesa, aliás, associada ao terror (como o indica seu nome popular), uma sucessão de expurgos internos e uma extraordinariamente bem-sucedida mobilização para a guerra total da população. Quando isso salvou a França, o regime radical terminou no Nove Termidor. Para nossos objetivos, o período que vai de julho de 1794 até o golpe de Napoleão pode ser visto como uma fase única, a quinta, que tentou retroceder para um regime mais viável e moderado. Essa tentativa malogrou, e no Dezoito Brumário de 1799 o regime autoritário e armado de Bonaparte assumiu o poder.”


“Além do Termidor e de Bonaparte, dos jacobinos e do Terror, a Revolução Francesa sugeria mais comparações com a Revolução Russa. Uma das primeiras coisas observadas sobre ela foi que parecia não tanto um conjunto de decisões planejadas e ações controladas por seres humanos, mas um fenômeno natural que não se submetia ao controle humano, escapando de seu âmbito. Em nosso século, acostumamo-nos a outros fenômenos que têm essa característica: as duas guerras mundiais, por exemplo. O que realmente acontece em tais casos, como eles se desenvolvem, qual é seu resultado, tudo isso não tem, praticamente, nada que ver com as intenções daqueles que tomaram as decisões iniciais. Esses acontecimentos têm sua própria dinâmica, sua própria lógica imprevisível. Na década de 1790, os contrarrevolucionários foram provavelmente os primeiros a chamar a atenção para essa incontrolabilidade do processo revolucionário, uma vez que isto lhes fornecia os argumentos contra aqueles que apoiavam a Revolução. No entanto, os próprios revolucionários também fizeram a mesma observação, comparando a Revolução a um cataclisma natural. “A lava da revolução corre majestaticamente, nada poupando”, escreveu o jacobino alemão Georg Forster em Paris, em outubro de 1793. A revolução, dizia, “quebrou todos os diques, venceu as barreiras erigidas por muitos dos melhores intelectuais, aqui e em outros lugares [...] cujos sistemas prescreviam seus limites”. A revolução era simplesmente “a Revolução, um fenômeno natural raro demais para conhecermos suas leis peculiares”. É claro que a metáfora de um fenômeno natural percorria ambos os caminhos. Se sugeria uma catástrofe aos conservadores, era uma catástrofe inevitável e que não se podia deter. Conforme os conservadores inteligentes logo entenderam, era algo que não podia ser simplesmente suprimido, mas sim canalizado e domesticado.”


“A Revolução Francesa deu aos povos a noção de que a história pode ser mudada por sua ação. Deu-lhes também, a propósito, o que até hoje permanece como a mais poderosa divisa jamais formulada para a política da democracia e das pessoas comuns que ela inaugurou: “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. (...) A Revolução francesa demonstrou o poder das pessoas comuns de uma maneira que nenhum dos governos subsequentes jamais se permitiu esquecer – quando menos, na forma de exércitos destreinados, improvisados, recrutados, derrotando a coalizão das melhores e mais experimentadas tropas dos antigos regimes.
De fato, o paradoxo do revisionismo é que procura diminuir a significação histórica e a capacidade de transformação de uma revolução cujo impacto extraordinário e duradouro é absolutamente óbvio, a tal ponto que só pode ser negligenciado por uma combinação de provincianismo intelectual e visão estreita; ou então pela miopia monográfica que é a doença ocupacional dos pesquisadores especializados nos arquivos históricos.
O poder do povo, que não é a mesma coisa que a versão domesticada que se expressa em eleições periódicas pelo sufrágio universal, é visto raramente e mais raramente ainda exercido. Contudo, quando é visto, como em muitos continentes e ocasiões no próprio ano do bicentenário da Revolução francesa – quando transformou os países da Europa oriental –, é um espetáculo irresistível e impressionante. Nenhuma revolução anterior a 1789 foi tão decisiva, evidente e imediatamente eficaz. Foi o que transformou a Revolução francesa em uma revolução.
(...) Foi isso que fez com que homens e mulheres pensassem na Revolução francesa como “a mais terrível e crucial sucessão de acontecimentos em toda a história”. Foi isso que fez Thomas Carlyle escrever: “A mim parece-me que, se houvesse a História correta (essa coisa impossível que chamo de História) da Revolução francesa, ela seria o grande poema de nosso tempo, como se os homens que pudessem escrever a sua verdade valessem tanto quanto todos os outros escritores e poetas”. E é isso que faz com que seja sem sentido para o historiador pinçar e escolher as partes desse grande levante que merecem louvor e as que devem ser rejeitadas. A revolução que se tornou “o verdadeiro ponto de partida da história do século XIX” não é este ou aquele episódio ocorrido entre 1789 e 1815, mas o seu todo.
Felizmente, a Revolução Francesa ainda está viva. Pois Liberdade, Igualdade e Fraternidade e os valores da razão e do Iluminismo – os valores que construíram a civilização moderna desde os tempos da Revolução Americana – são mais necessários do que nunca, na medida em que o irracionalismo, a religião fundamentalista, o obscurantismo e a barbárie estão, mais uma vez, avançando sobre nós. É, portanto, uma boa coisa que, no ano de seu bicentenário, tenhamos a ocasião de pensar novamente sobre os acontecimentos históricos extraordinários que há dois séculos transformaram o mundo. Para melhor.”

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O País do Carnaval – Jorge Amado

Editora: Record
ISBN: 85-01-05497-6
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 194
Sinopse: Primeiro romance de Jorge Amado, O país do Carnaval faz um retrato crítico e investigativo da imagem festiva e contraditória do Brasil, a partir do olhar do personagem Paulo Rigger, um brasileiro que não se identifica com o país.
Filho de um rico produtor de cacau, Rigger volta ao Brasil depois de sete anos estudando direito em Paris. Num retorno marcado pela inquietação existencial, ele se une a um grupo de intelectuais de Salvador, com o qual passa a discutir questões sobre amor, política, religião e filosofia. Dúvidas sobre os rumos do país ocupam o grupo.
O protagonista mantém uma relação de estranhamento com o Brasil do Carnaval, acredita que a festa popular mantém o povo alienado. Os exageros e a informalidade brasileira são motivo de espanto, apesar de a proximidade com o povo durante as festas nas ruas fazer com que ele se sinta verdadeiramente brasileiro. Aturdido pelas contradições, Rigger decide voltar para a Europa.
Mestiçagem e racismo, cultura popular e atuação política são alguns dos temas de Jorge Amado que aparecem aqui em estado embrionário. Brutalidade e celebração revelam-se, neste romance de juventude, linhas de força cruciais de uma literatura que se empenhou em caracterizar e decifrar o enigma brasileiro.

“As gerações se sucedem vertiginosamente. E vêm árdegas, querendo realizar alguma coisa, manter acesa a lâmpada do espírito. Mas em pouco tempo o entusiasmo não está mais. Nenhum de nós dura tempo o suficiente para se realizar. E não deixamos nem sequer um traço da nossa passagem.”


“Só o entendimento do desespero constrói.”


“E o mundo o que é para nós senão a nossa visão dele?”


“O país em que nascemos pesa sobre nós. É bastante olhar o Brasil de hoje, no seu aspecto político por exemplo, para termos uma ideia do drama que se está passando aos nossos olhos. O caos de todos os lados. E perdidas no caos algumas ameaças terríveis. O mais é apenas inexistência e sono. A mocidade não tem um sentido, não tem uma direção, não tem uma causa. A única aspiração da nossa mocidade é a velhice. Poucos apenas nela trabalham pela nossa libertação. Poucos apenas são os que resistem procurando pensar e criar, onde naturalmente não existe nem pensamento nem criação. Você, meu amigo, é um desses marcados para essa desgraça, para essa dilaceração contínua e cuja recompensa é saber que tudo que está diante de nós não apodrece porque alguns poucos abrem as janelas do espírito de quando em vez, e são sacrificados por esse gesto.”

Prefácio – Augusto Frederico Schmid

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“Este livro narra a vida de homens céticos que, entretanto, procuram uma finalidade. Tentaram alcançá-la. Uns no amor, outros na religião. O fracasso das tentativas não é prova da sua inutilidade.”


“Porque, procurando bem, até homens inteligentes se encontram no Brasil.”


“No Brasil a questão de religião é uma questão de medo.”


“A serenidade é uma falsificação da felicidade.”


“– Se vocês fossem iguais a todos os outros, achariam a Felicidade em qualquer parte. Na religião, no amor, no trabalho, em qualquer coisa. Mas, como vocês são superiores, não a encontrarão nunca. A Felicidade pertence somente aos burros e aos cretinos. Felizmente, nós somos infelizes.”


“– Toda prostituta tem uma tragédia, Jerónimo. Quer ver?
E Pedro Ticiano chamou a mulher que passava.
– Minha filha, conte aqui para nós, para mim e para este amigo que é o “último romântico”, como você veio para esta vida, esta vida terrível que as mulheres casadas chamam de fácil...
Ela não se fez de rogada. E começou a contar, os olhos baixos amassando com os dedos a ponta do casaco, quase envergonhada. Bonitinha, aquela mulher! Dois grandes olhos espantados e uma boca pequena onde brincava um sorriso fácil de oferecimento. Nada de aristocrático. O tipo da camponesa bonita.
Tudo igual à das outras... Vivia lá em Nazaré com os pais. Cosia. Ganhava até dinheiro. Um dia, um homem rico e elegante que fora passear na cidade prometera-lhe casamento, casa bonita, automóveis. Naquele tempo ela ainda acreditava nos homens. Depois, deixara-a perdida, odiada pela família. Viera então para a Bahia. E aí estava a sua história. Igual à das outras...
– Vivendo a tragédia das prostitutas que nasceram para mães de família. Em todo caso, minha filha, você escapou de ter sofrido uma tragédia muito maior, a de ter morrido virgem...”


“– Só o estômago não tem nada a ver com as nossas tragédias. Continua a exigir comida da mesma maneira.”


“Quem não tem fome não conhece a infelicidade.”


“Dizem que foi Deus quem criou os homens. Eu acho que foram os homens que criaram Deus. De qualquer modo, homens criados por Deus ou Deus criado pelos homens, uma e outra obra são indignas de uma pessoa inteligente.”


“A experiência é feita das desilusões.”


“Toda vitória na vida é um fracasso na arte.”