segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Tenda dos milagres (Parte II), de Jorge Amado

Editora: Record

ISBN: 978-85-01-05376-3

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 338

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Sinopse: Ver Parte I



ONDE SE CONTA DE LIVROS, TESES E TEORIAS DE CATEDRÁTICOS E TROVADORES, DA RAINHA DE SABÁ, DA CONDESSA E DA IABA, E, EM MEIO A TANTO IPICILONE, SE PROPÕE UMA ADIVINHA E SE EXPRIME OUSADA OPINIÃO

CONTAM, AMOR, QUE, CERTA FEITA, ESTANDO UMA IABA DE PASSAGEM na Bahia, arreliou-se e ofendeu-se com a incontinência, o colossal deboche, a presepada imensa de mestre Pedro Archanjo, arrendatário de mulheres, macho de tantas fêmeas, pastor de dócil e fiel rebanho, mais parecendo um soba cercado de comborças, pois as puxavantes se conheciam e visitavam e juntas eram vistas cuidando dos meninos paridos de umas e de outras, todos dele, e davam-se o trato de comadre e mana, tudo em meio a gaitadas, a la vontê, em cavaqueira e patuscada, quando não reunidas no fogão a preparar quindins para o tirano.

De todas cuidava Pedro Archanjo, cada uma sua vez, e a todas satisfazia como se outro emprego não tivesse além daquele de cama e vadiagem, folguedos de meter e mandar vara, doce ofício. Um lorde, um paxá, um presunçoso tirado a zarro e a pé-de-mesa, numa vida de regalo. Bem de seu, tranquilo, a la godaça, de mulher nenhuma sofrendo as agonias, martírios, o medo de perdê-la ou de não tê-la, pois as desavergonhadas, as desbriosas viviam atrás dele em dengue e adulação; não cogitavam abandoná-lo, lhe fazer ciúmes ou lhe pôr os cornos — nem por brincadeira pensar nisso. Na maciota, Pedro Archanjo, o bom de bico e de xodó.

Tal situação parecendo intolerável à iaba, por humilhante para o femeaço inteiro, decidiu ela castigar severamente mestre Archanjo, dando-lhe lição amarga e dura que lhe ensinasse o mal do amor na súplica e na espera, no pedido e na recusa, no desprezo e no abandono, na traição e na vergonha, na dor de amar e não ser correspondido. Dor de amar assim jamais sofrera o femeeiro, sedutor espalhado em leito sem limites, colchão fofo de lã de barriguda ou catre de madeira, o areal ou o mato, na barra da manhã ou no cair da noite. Pois agora ia sofrer, aprender na própria carne — jurou a iaba ante o escândalo a nonchalança do beltrano: serás exposto ao mundo e à Bahia, de estrovenga murcha, de coração em chagas e a testa florescida em chifres, exposto ao debique e à troça, na lona, no alvéu e na brochura.

Para tanto a iaba virou a negra mais formosa até hoje vista em terras da África, de Cuba e do Brasil, narrada em história, caso, relato ou xeretice: um destempero de negra, um deslumbramento de azeviche. Perfume de rosas desabrochadas para não se sentir o cheiro de enxofre; sandálias fechadas para esconder os pés-de-cabra. Quanto ao rabo, em bunda se desenvolveu, escorreita e insubmissa, do resto do corpo independente, a requebrar por conta própria. Para dar-se pálida ideia da beleza da negra basta dizer que no percurso entre as profundas e a Tenda dos Milagres, ao seu passar, enlouqueceram seis mulatos, dois negros, doze brancos e uma procissão se dissolveu quando ela a atravessou. Viu-se o padre arrancar a batina e renegar a fé; e santo Onofre em seu andor voltou-se para ela e lhe sorriu.

Numas saias engomadas, a iaba ria contente: o pedante pagaria seu orgulho de pai-d’égua, de invicto garanhão em campo de mulheres. Para começo de conversa, rapidamente lhe deixaria pururuca a alabada estrovenga e, em seguida, murcha e morta, sem serventia para o bom, pelanca mole de Museu. Aqui jaz o mangalho de Pedro Archanjo, era famoso e uma iaba acabou com sua fama e valentia.

Da vitória no busílis a arrenegada tinha certeza e segurança: é público e notório que as iabas podem virar mulheres de invulgar beleza, de encanto irresistível, amantes ardentíssimas, sábias de carícias; é também de geral conhecimento que elas não conseguem desembocar no gozo — não o alcançam jamais, sempre insatisfeitas, a pedir mais, em furor crescente. Antes que atinjam e atravessem as portas do néctar e do paraíso, o vencido mangalho do parceiro se desmancha em reles muxiba. Jamais se soube de estrovenga capaz de romper esses muros de ânsia vã e danação e de conduzir sáfara e maldita iaba a tempo e a termo do hosanas e aleluias.

Mas o castigo não se restringiria à impotência, ao fiasco no doce e violento ofício, quiçá pior seria o coração roto e ferido. Porque a iaba pensava fazer dele gato e sapato, mísero suplicante, desinfeliz escravo, traído e desprezado. Entre as duas vergonhas, qual a mais horrenda, a mais mesquinha?

A falsa vinha satisfeita pela rua, com seu plano traçado: após lhe fazer provar mil vezes o gosto da quirica e do desmaio, quando o visse no visgo do xodó preso e vencido, se tocaria mundo além, indiferente, sem lhe dizer adeus. Para vê-lo — para que todos o vissem — de rastros a seus pés, pedinte; a língua lambendo a poeira do caminho, beijando-lhe as pisadas, todo ele um trapo vil, por fora um rebotalho, por dentro um corno manso a suplicar-lhe a graça de um olhar, de um riso, de um gesto, o dedo mínimo, o calcanhar, ah por caridade o bico do peito, uva negra e intumescida.

Arrastando-o no desprezo e no debique, a iaba mais baixo ainda o afundaria: na desonra — ao oferecer-se a outros em léria e em promessa, em sua cara se fretando com os vizinhos. Para que todos o vissem roendo beira de sino, tampa de pinico; para que o vissem fora de si, de punhal erguido, de navalha aberta: volta ou te mato, desgraçada; se deres a outro a flor agreste, morrerás em minhas mãos e morrerei também.

Assim, de rastros exposto na cidade, em pleno dia, à vista de todos, em pranto e súplica, chifrudo sem decoro, despido do último resquício de decência, de orgulho, verme na lama, na vergonha, na morte, na dor de amar. Vem! e traz todos os teus fretes, todos os teus machos, prega-me os chifres que quiseres, coberto de excremento e fel te desejo e te suplico, vem! e te aceito agradecido.

As iabas não gozam, já sabemos; mas também não amam e não sofrem porque, como está provado, às iabas falta coração — vazio o peito, oco e sem remédio. Por isso, por imune e por maldita, vinha ela rindo no caminho, a bunda mais atrás em remelexo, e os homens se matando só de vê-la. Pobre Archanjo.

Sucede, porém, amor, que Pedro Archanjo, esparramado na porta da Tenda dos Milagres, a esperou mal a noite se acendeu na estrela vespertina e a lua saiu de casa em Itaparica e veio debruçar-se sobre o mar, um mar de óleo, verde-escuro. Encomendara lua, estrelas, aquele mar silente e uma canção:

Obrigado minha senhora

Pela sua cortesia;

Tenho visto que é formosa

E cheia de bizarria.

Apoiava-se na estrovenga como se ela fosse seu bastão de obá, tanto crescera na impaciente espera; tão-só com seu olor de macho descabaçava virgens, léguas adiante, e as emprenhava.

Perguntarás, amor: que novidade é essa, como soube Archanjo dos malignos, dos esconsos propósitos da iaba — mate-me logo esta adivinha. É muito simples: por acaso não era Pedro Archanjo filho predileto de Exu, senhor dos caminhos e das encruzilhadas? Era também os olhos de Xangô — sua vista alcança longe e vê por dentro.

Foi Exu quem lhe avisou da prepotência e dos péssimos desígnios da perversa filha do Cão, de peito oco. Lhe avisou e lhe disse o que fazer: tome primeiro um banho de folhas, mas não de uma qualquer; vá a Ossain e lhe pergunte quais, só ele penetra no âmago das plantas. Depois prepare água de cheiro de pitanga, misture com sal, mel e pimenta e nela banhe o pai-do-mundo, juntamente com os quimbas, os dois mabaças — vai doer bastante, não se importe, seja homem, aguente; verá em breve os resultados: será a estrovenga principal do mundo pelo volume, em inchaço e longitude, pelo deleite, pela formosura e pela arreitação. Não haverá quirica de mulher ou de iaba capaz de abalar sua estrutura, quanto mais deixá-la vacilante e frouxa.

Para completar o encantamento lhe entregou um kelê, colar de sujeição para o pescoço, e um xaôrô para sujeitar o tornozelo. Quando ela dormir ponha-lhe o kelê e o xaôrô e estará presa pela cabeça e pelos pés, cativa para sempre. O resto Xangô vai lhe dizer.

Xangô ordenou-lhe um ebó com doze galos brancos e doze galos pretos com doze conquéns pintadas e uma pomba branca, de imaculada alvura, de túmido peito e mavioso arrulho. Ao final do ebó, num sortilégio de mandinga, do coração da pomba em sangue e amor, Xangô fez uma conta que era branca e era vermelha, e a entregou a Archanjo, dizendo-lhe com sua voz de raio e de trovão: Ojuobá, escute e aprenda este despacho: quando a iaba já estiver sujeita pela cabeça e pelos pés, dormida e entregue, enfie essa conta em seu subilatório e aguarde sem medo o resultado: aconteça o que aconteça, não fuja, não arrede lugar, espere. Archanjo tocou a terra com a testa e disse: axé.

Depois foi tomar o banho de folhas, escolhidas uma a uma por Ossain. No mel e na água de pitanga, no sal e na pimenta malagueta preparou a arma e a viu crescer, descomunal bordão de caminhante. No bolso escondeu o kelê, o xaôrô e o coração da pomba, a conta vermelha e branca de Xangô. Na porta da Tenda, ele a esperou chegar.

Apenas surgiu na esquina e começaram, não houve fuleragem nem fricotes; mal a iaba apareceu e a estrovenga foi ao seu encontro e lhe subiu as saias engomadas, ali mesmo metendo, na exata medida do chibiu: fogo com fogo, mel com mel, sal com sal, pimenta com pimenta e malagueta. Contar essa batalha, essa guerra das duas competências, o assalto da égua e do cavalo, o miar da gata em desvario, o uivo do lobo, o ronco do javali selvagem, o soluço da donzela na hora de mulher, o arrulho do pombo, o marulho das ondas, contar, amor, quem poderia?

Rolaram pela ladeira, penetrados, foram parar no areal do porto e atravessaram a noite. A maré cresceu e os levou; no fundo do mar prosseguiram em louca cavalgada, na metida insana.

A iaba com tal resistência não contara; a cada desmaio de Archanjo, a excomungada pensava com esperança e raiva: agora o possante vai pururucar, esmolambado! Muito ao contrário, em vez de fenecer, crescia o ferro em brasa e em carícia.

Tampouco imaginara gostosura assim, chibata de mel, pimenta e sal, delícia das delícias, fenômeno de circo, maravilha. Ai, gemeu a iaba em desespero, se ao menos eu pudesse... Não podia.

Durou três dias e três noites o grão embate, o sumo pagode, sem intervalo: dez mil trepadas e uma só metida, e a iaba tanto entesou-se em seu furor sem termo que, de repente, deu-lhe um tangolomango e em gozo ela se abriu como se rompe o céu em chuva. Irrigado o deserto, rota a aridez, vencida a maldição, hosana e aleluia!

Adormeceu então, realizada fêmea, mas não mulher ainda, ah não!

No quarto de Archanjo, de sombras e odores misturados, dormia de bruços a iaba: um desatino, um despropósito de negra, um xispeteó. Quando seu hálito cantou, Archanjo lhe pôs o kelê no pescoço e o xaôrô no tornozelo e assim sujeita a teve. Depois, com delicadeza de baiano lhe enfiou no celeste fiofó o coração da ave, conta encantada de Xangô.

No mesmo instante ela soltou um brado e um pum, os dois medonhos, sinistros, pavorosos, o ar foi puro enxofre, mortal fumaça. Um clarão de raios sobre o mar, o surdo eco aos trovões, os ventos desatados e a tempestade de um extremo a outro do universo. Subiu aos céus imenso cogumelo e apagou o sol.

Mas logo tudo se acalmou em júbilo e bonança; o arco-íris se estendeu em cores: Oxumarê inaugurando a festa e a paz. Ao fedor de enxofre, sucedeu um cheiro de desabrochadas rosas e a iaba já não era iaba, era a negra Doroteia. Em seu peito crescera, por artes de Xangô, o mais terno coração, o mais submisso e amante. Negra Doroteia para sempre, com seu chibiu de fogo, sua atrevida bunda insubmissa, o coração de rola.

Resolvido o busílis, desfeita a incógnita, achada a solução dos ipicilones, acabou-se a história, amor, que mais contar? Doroteia fez santo, bravia filha de Yansan; raspou a cabeça num barco de iaôs e terminou dagã a dançar o padê de Exu no início das obrigações, Alguns xeretas, a par do acontecido, juram perceber distante aftim de enxofre quando Doroteia abre a dança no terreiro. Aquela inhaca do tempo em que, sendo iaba, quis quebrar a castanha de mestre Pedro Archanjo.

Difícil quebrar a castanha do mestiço. Outros o tentaram, nas bandas do Tabuão, onde fica a Tenda dos Milagres, e no Terreiro de Jesus, onde se eleva a Faculdade, mas nenhum o conseguiu. A não ser Rosa — se alguém ensinou a Archanjo a dor de amar e o venceu foi Rosa de Oxalá, e mais ninguém. Nem a iaba de azeviche e danação, tampouco catedrático de fraque e sapiência.”

 

 

DADOS FORNECIDOS À AGÊNCIA DOPING S.A.

PELO PROFESSOR CALAZANS.

Nome:

Pedro Archanjo.

Data e local de nascimento:

18 de dezembro de 1868, na Cidade do Salvador, Estado da Bahia.

Filiação:

Filho de Antônio Archanjo e de Noemia de Tal, mais conhecida por Noca de Logunedê. Do pai sabe-se apenas ter sido recruta na Guerra do Paraguai na qual morreu durante a travessia do Chaco, deixando a companheira grávida de Pedro, primeiro e único filho.

Estudos:

Tendo aprendido sozinho a ler, frequentou o Liceu de Artes e Ofícios onde adquiriu noções de diversas matérias e da arte tipográfica. Distinguiu-se em português e desde cedo foi dado à leitura. Já homem maduro aprofundou-se no estudo da antropologia, da etnologia e da sociologia. Para fazê-lo aprendeu francês, inglês e espanhol. Seus conhecimentos da vida e dos costumes do povo eram praticamente ilimitados.

Livros:

Publicou quatro livros — A vida popular na Bahia (1907); Influências Africanas nos Costumes da Bahia (1918); Apontamentos Sobre a Mestiçagem nas Famílias Baianas (1928); A Culinária Baiana: origens e preceitos (1930), livros hoje considerados fundamentais para o estudo do folclore, o conhecimento da vida brasileira nos fins do século passado e nos começos do atual, e sobretudo para a compreensão do problema de raças no Brasil.

Ardente defensor da miscigenação, da fusão de raças, Pedro Archanjo foi, na opinião do sábio norte-americano (Prêmio Nobel), James D. Levenson, um dos criadores da moderna etnologia. Sua obra completa acaba de ser reeditada, em dois volumes, pela Editora Martins, de São Paulo, na Coleção Mestres do Brasil, anotada e comentada pelo professor Artur Ramos, da Faculdade de Letras da Universidade do Brasil. Os três primeiros livros foram reunidos num tomo sob o título geral de Brasil, País Mestiço (título dado pelo professor Ramos), enquanto o livro sobre culinária constitui tomo à parte. Relegada ao esquecimento durante muitos anos, a obra de Pedro Archanjo tornou-se internacionalmente conhecida e admirada. Foi publicada em inglês, nos Estados Unidos, integrando a notável Enciclopédia sobre a vida dos povos subdesenvolvidos, editada sob os auspícios da Columbia University (Nova Iorque). Neste ano de 1968, nas comemorações de seu centenário de nascimento, muito se tem escrito sobre Pedro Archanjo. Destacam-se os trabalhos do professor Ramos e o prefácio à tradução americana de seus livros, de autoria de Levenson: Pedro Archanjo, um criador de ciência.

Outros dados:

Mulato, pobre, autodidata. Ainda rapazola engajou-se grumete em navio de carga. Viveu alguns anos no Rio de Janeiro. Ao voltar à Bahia, exerceu o oficio de tipógrafo e ensinou primeiras letras, antes de empregar-se na Faculdade de Medicina, emprego que veio a perder, após tê-lo exercido durante cerca de trinta anos, devido à repercussão de um de seus livros.

Músico amador, tocava violão e cavaquinho. Participou intensamente da vida popular. Tendo permanecido solteiro, atribuem-lhe muitos amores, inclusive bela escandinava, sueca ou finlandesa, não se sabe ao certo.

Data da morte:

Faleceu em 1943, aos setenta e cinco anos de idade. Grande massa popular acompanhou seu enterro, ao qual estiveram presentes o professor Azevedo e o poeta Hélio Simões.

No exemplo de sua vida, Pedro Archanjo mostra-nos como um homem nascido paupérrimo, órfão de pai, em ambiente pouco propício à cultura, exercendo misteres humildes, pôde superar todas as dificuldades e elevar-se aos cumes do saber, igualando-se e até sobrepondo-se às mais ilustres sumidades da época.

 

TEXTO REDIGIDO PELOS ASES DA DOPING

PROMOÇÃO E PUBLICIDADE S.A. E FORNECIDO

ÀS PROFESSORAS DAS ESCOLAS PRIMÁRIAS DA

CIDADE DO SALVADOR.

O imortal escritor e etnólogo Pedro Archanjo, glória da Bahia e do Brasil, internacionalmente famoso, cujo centenário comemoramos este ano, sob o patrocínio do Jornal da Cidade e da Aguardente Crocodilo, nasceu em Salvador, a 18 de dezembro de 1868, órfão de um herói da Guerra do Paraguai. Atendendo ao apelo da Pátria, seu pai, Antônio Archanjo, despediu-se da esposa grávida e foi morrer nas lonjuras do Chaco, em luta desigual contra o solerte inimigo.

Herdeiro das gloriosas tradições paternas, lutou Pedro Archanjo desde cedo para elevar-se do meio limitado e medíocre em que nascera. Iniciou estudos de literatura e música, logo se notabilizando entre os colegas pela indisfarçável vocação para as letras. Rapidamente dominou várias línguas, entre as quais o inglês, o francês e o espanhol.

Durante a juventude, levado pelo desejo de aventura, viajou como embarcadiço, percorrendo o mundo. Em Estocolmo, conheceu a bela escandinava que foi o grande amor de sua vida.

De volta à Bahia, ingressou na Faculdade de Medicina e ali, durante cerca de trinta anos, encontra o ambiente propício aos estudos e trabalhos que projetaram seu nome de cientista e escritor.

Autor de vários livros, nos quais fez o levantamento do folclore e dos costumes baianos e a análise dos problemas raciais, traduzido em diversas línguas, tornou-se mundialmente famoso, sobretudo nos Estados Unidos onde suas obras foram adotadas na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, por indicação do célebre professor James D. Levenson, detentor do Prêmio Nobel, que se confessa discípulo de Pedro Archanjo.

Faleceu em Salvador, em 1943, aos setenta e cinco anos de idade, cercado do respeito geral e da admiração dos doutos. Autoridades, professores das Faculdades, escritores e poetas acompanharam seu enterro.

Orgulho da Bahia e do Brasil, cujo nome elevou no estrangeiro, Pedro Archanjo nos ensina, através seu exemplo, como um homem nascido na pobreza, em meio hostil à cultura, pode elevar-se aos pináculos do saber e ocupar posto de destaque na sociedade.

Quando festejamos o centenário desse magnífico paladino da ciência e das letras, todos os baianos se reúnem para reverenciar sua memória gloriosa, atendendo à convocação do Jornal da Cidade, que leva a cabo mais uma campanha memorável e patriótica.

A Aguardente Crocodilo não podia estar ausente dessa magna celebração, pois ela própria já é parte integrante do folclore baiano a cujo estudo o genial patrício dedicou sua existência. Dessa louvada Aguardente não nasceu a figura do Gaiato Crocodilo que faz as delícias da criançada nos anúncios das Rádios e da Televisão, verdadeira criação do moderno folclore, com seus versinhos e sua musiquinha?

O Gaiato Crocodilo organizou um grande concurso nas escolas primárias de Salvador: as queridas professoras vão contar, nas salas de aula, a história de Pedro Archanjo e cada criança, do primeiro ao quinto grau, escreverá sua impressão, concorrendo a uma das cinco bolsas de estudo para todo o curso secundário, a serem utilizadas pelos vencedores em qualquer dos ginásios particulares de nossa Capital, prêmios oferecidos pela Aguardente Crocodilo.

Junto com a meninada das Escolas Públicas de Salvador, o Gaiato Crocodilo grita: Viva o imortal Pedro Archanjo!

 

PRELEÇÃO DA PROFESSORA DIDA QUEIROZ

AOS ALUNOS DO TERCEIRO GRAU, TURMA DA

MANHÃ, NA ESCOLA PÚBLICA JORNALISTA

GIOVANNI GUIMARÃES SITUADA

NO RIO VERMELHO.

Pedro Archanjo é uma glória da Bahia, do Brasil e do Mundo. Nasceu há cem anos e por isso o Jornal da Cidade e a Aguardente Crocodilo estão festejando seu centenário, realizando concurso entre os estudantes e distribuindo valiosos prêmios, como sejam: viagens aos Estados Unidos e ao Rio de Janeiro, aparelhos de televisão e de rádio, livros e outros. Para os alunos das escolas primárias foram reservadas cinco bolsas de estudo para o curso secundário completo, em qualquer estabelecimento de ensino de nossa Capital. Com os preços de hora da morte que os colégios estão cobrando, trata-se de um prêmio e tanto.

O pai de Pedro Archanjo foi general na Guerra do Paraguai e morreu lutando contra o tirano Solano Lopez que atacou nossa Pátria. O pequenino Pedro ficou órfão e pobre mas não desanimou. Não podendo frequentar a escola, embarcou num navio cargueiro e conseguiu estudar línguas, tornando-se um poliglota que é a pessoa capaz de falar outras línguas além do português. Fez vestibular para a Faculdade de Medicina, onde, após colar grau, foi professor durante mais de trinta anos.

Escreveu muitos livros baseados no folclore, quer dizer livros contando histórias de bichos e de gente, mas não servem para menino ler. São livros sérios, muito importantes, estudados por sábios e professores.

Viajou muito, conhecendo a Europa e os Estados Unidos, eu penso que viajar deve ser a coisa melhor do mundo. Na Europa conheceu uma linda escandinava com quem casou e viveu feliz a vida inteira.

Nos Estados Unidos lecionou na Universidade de Columbia, em Nova Iorque que é a maior cidade do mundo, e dava as aulas em inglês. Entre seus alunos figurou o sábio norte-americano Levenson que, muito tendo aprendido com ele, recebeu depois o Prêmio Nobel, um prêmio muito do bacana, o sujeito que tira esse prêmio entra direto para a História.

Morreu velhinho, em 1943, e seu enterro foi uma consagração, tendo à frente o Governador, o Prefeito e os professores da Faculdade.

O exemplo de Pedro Archanjo nos ensina como um menino pobre, se tiver disposição e estudar de verdade, pode ingressar na alta sociedade, ensinar na Universidade, ganhar muito dinheiro, viajar à beça e vir a ser uma glória do Brasil. É só ter força de vontade e não fazer malcriação à professora.

Vocês agora vão escrever o que acharam de Pedro Archanjo, mas antes vamos gritar com o Gaiato Crocodilo que oferece as bolsas: Viva o imortal Pedro Archanjo!

 

 

REDAÇÃO DE RAÍ, DE NOVE ANOS DE IDADE,

ALUNO DO TERCEIRO GRAU DA CITADA ESCOLA

JORNALISTA GIOVANNI GUIMARÃES.

Pedro Archanjo era um órfão muito pobre que fugiu de marinheiro com uma gringa igual que meu tio Zuca e foi pros Estados Unidos porque lá tem dinheiro pra burro mas ele disse sou brasileiro e veio pra Bahia contar histórias de bichos e de gente e era tão sabido que não dava lição a menino só a médico e professor e quando morreu virou glória do Brasil e ganhou prêmio do jornal que era uma bolsa cheia de garrafas de cachaça. Viva Pedro Archanjo e o Gaiato Crocodilo!”

Tenda dos milagres (Parte I), de Jorge Amado

Editora: Record

ISBN: 978-85-01-05376-3

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 338

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Sinopse: Publicado em 1969, traduzido para dez idiomas e adaptado para o cinema e a TV, o livro Tenda dos Milagres é um grito contra o preconceito racial e religioso, um canto à miscigenação e ao sincretismo tão marcantes na obra do escritor Jorge Amado. É a história de Pedro Archanjo, um mulato de muitos amores – alguns contidos em nome da amizade –, que documentou a cultura popular e provou a ascendência negra da aristocracia baiana do início do século XX. A história de do herói pobre, boêmio e erudito, que assumiu o preço de colocar o dedo na ferida dos inimigos da mestiçagem.



As conferências (do prêmio Nobel James Levenson), seguidas de perguntas e debates inflamados, por vezes ácidos, deram lugar a violentas manifestações estudantis de apreço ao sábio e de repúdio à ditadura. De pé e durante longos minutos, por mais de uma vez, os estudantes ovacionaram em delírio. Certas frases suas caíram no gosto do público, correram o país de extremo a extremo: mais valem dez anos de intermináveis conferências internacionais do que um só dia de guerra e são mais baratos; as prisões e os policiais são idênticos e sórdidos em todos os regimes, sem exceção de nenhum; o mundo só será realmente civilizado quando as fardas forem objetos de museu.

Cercado por fotógrafos e vedetes, metido numa sunga minúscula, Levenson reservou as manhãs inteiras para a praia.

Sistemático, recusara convites de academias, institutos, grêmios, conselhos culturais, professores — tudo isso tinha de sobra em Nova Iorque e estava farto, mas aquele sol do Brasil quando voltaria a tê-lo? Nas praias jogou até futebol e foi fotografado atirando a gol, embora as mulheres fossem sem dúvida seu esporte predileto. Estabeleceu intimidade com ótimos exemplares nacionais, na praia e nas boates.

Recém-divorciado, os colunistas sociais se desmandaram em lhe atribuir casos e noivas. Desvairada macaca, noticiarista de escândalos, previu a ruína de um lar grã-fino; enganou-se: o marido honradíssimo, fez-se íntimo do sábio garanhão. Ontem, na pérgola do Copa, num biquíni de Cannes, Katy Siqueira Prado contemplava com ternura seu marido Baby e o grande James D., inseparáveis, refutara o gabaritado Zul. Certa revista de ampla circulação exibiu na capa do número daquela semana a nudez atlética do Nobel ao lado da promocional nudez de Nádia Sílvia, atriz de grande talento a ser revelado quando lhe derem no cinema ou no palco. a oportunidade que até agora inexplicavelmente lhe têm negado — e Nádia, ouvida pela reportagem, riu muito, nada confessou, tampouco negou paixão e compromisso. Levenson é a sexta celebridade mundial a perder a cabeça por Nádia Sílvia, a irresistível, noticiou um jornal, a sério, e deu a relação dos cinco anteriores: John Kennedy, Richard Burton, Aga Khan, um banqueiro suíço e um lorde inglês. Sem falar na condessa italiana, nobre, milionária e machona.

O genial Levenson ontem mais uma vez na pista do Le Bateau, in love com a glamorosa Helena von Kloster, lia-se na Crônica da Noite, de Gisa; aprendeu o samba e não aceita outro ritmo, revelava Robert Sabad em dezoito jornais e outras tantas estações de TV, dando ciência aos povos da frase de Branquinha do Val Burnier, a hostess magnífica, mesa e cama incomparáveis: Se James não fosse o Prêmio Nobel que é, poderia ganhar a vida como dançarino profissional. Jornais e revistas se esbaldaram, não lhes faltou o sábio.

Nada, porém, tão sensacional quanto a declaração sobre Pedro Archanjo, bomba a explodir no aeroporto, na hora do embarque para a Bahia. Em verdade, no primeiro contato com a imprensa, ao chegar de Nova Iorque, Levenson fizera breve referência ao baiano, citara-lhe o nome: Estou na pátria de Archanjo, sinto-me feliz. Os repórteres, no entanto, não consignaram a frase, ou por não entendê-la, ou por não lhe atribuir maior significação. Ao partir para a Bahia, porém, foi diferente, pois o desconcertante Prêmio Nobel declarou ter reservado dois dias de sua curta permanência no Brasil para ir a Salvador, conhecer a cidade e o povo que foram objeto dos estudos do fascinante Pedro Archanjo, em cujos livros a ciência é poesia, autor que elevara tão alto a cultura brasileira. Foi um deus-nos-acuda.

Quem é esse tal de Pedro Archanjo, do qual nunca se ouviu falar? — interrogavam-se os jornalistas, boquiabertos. Um deles, na esperança de uma deixa, quis saber de que maneira Levenson tomara conhecimento desse autor brasileiro. Lendo seus livros — respondeu o sábio —, seus livros imperecíveis.

A pergunta fora de Ápio Correia, um sabidório, editor do caderno de ciência, arte e literatura de um matutino, sabidíssimo e temerário picareta.

Levou seu blefe adiante: disse não ter notícias de tradução de livros de Archanjo para o inglês.

Não lera tais livros em inglês e, sim, em português, informou o terrível americano, acrescentando tê-lo podido fazer, apesar de possuir conhecimentos mínimos de nossa língua, devido ao seu domínio do espanhol e sobretudo do latim. Não foi difícil, completou, esclarecendo ter descoberto os livros de Archanjo na biblioteca da Columbia, em pesquisa recente sobre a vida dos povos tropicais. Tinha a intenção de fazer traduzir e publicar nos Estados Unidos a obra de vosso grande compatriota.

Tenho de agir rapidamente, pensou Ápio Correia, retirando-se em busca de um táxi que o levasse à Biblioteca Nacional.

Foi um corre-corre até os jornalistas descobrirem e localizarem o professor Ramos, eminente por vários títulos e agora por conhecer a obra do tal Archanjo, cujo valor mais de uma vez afirmara e exaltara em artigos nas revistas especializadas, infelizmente de quase nenhuma circulação e menor leitura.

Durante anos — contou ele — andei de editor em editor, numa via-crúcis, oferecendo os livros de Archanjo para que os reeditassem. Escrevi prefácios, notas de pé- de-página, explicações: nenhuma editora se interessou. Fui ao professor Viana, diretor da Faculdade de Filosofia, para ver se, com sua interferência, a Universidade colaboraria na publicação. Respondeu-me que eu estava perdendo tempo com as baboseiras de um negro bêbado. Bêbado e subversivo. Talvez agora se deem conta da grandeza da obra de Archanjo, já que Levenson lhe empresta a devida importância. Aliás, diga-se de passagem, ser a obra de Levenson igualmente mal conhecida no Brasil e esses que tanto o elogiam e adulam não leram sequer seus livros fundamentais, não percebem a essência de seu pensamento, são uns charlatães.

Um tanto amarga, como se nota, a entrevista do professor Ramos, mas, convenhamos: sobravam-lhe razões para sentir-se melancólico — tantos anos lutando por um lugar ao sol para o pobre Archanjo, sem nada conseguir, ouvindo recusas de editores, estultícias e ameaças de Viana Dedo-duro, enquanto, com uma única entrevista, um estrangeiro pusera em movimento toda a imprensa e a matilha dos intelectuais a farejar os livros, a fuçar a memória do ignorado baiano intelectuais de todas as tendências e correntes, sem distinção de ideologia, os festivos e os soturnos, pois Pedro Archanjo entrara em moda e quem não conhecesse e não citasse suas obras não poderia considerar-se atualizado e para a frente.”

 

 

“Uma vez por semana, às quartas-feiras, invariável, com sol ou chuva, Archanjo vinha buscá-lo em sua tenda de imagens, primeiro para as cervejotas geladíssimas no bar de Osmário, depois para o amalá no candomblé da Casa Branca. A conversa mansa, entremeada de casos, uma conversa antiga:

— Despeje o saco, meu bom, conte as peripécias.

— Não sei de nada, mestre Archanjo, de novidade nenhuma.

— Ora, se sabe... Meu bom, a toda hora acontecem coisas, coisas lindas, umas de rir, outras de chorar. Vá; desamarre a língua, camarado, que boca foi feita para falar.

Que maneira, que léria, que poder possuía ele para abrir a boca, o coração dos demais? Nem as mães de santo mais ciosas e estritas, tia Maci, dona Menininha, Mãe Senhora, do Opô Afonjá, as respeitáveis matronas, nem elas guardavam segredos para o velho, tudo lhe revelando de mão beijada — aliás os orixás assim tinham ordenado, para Ojuobá não há porta fechada.

Ojuobá, os olhos de Xangô, agora ali estirado morto junto ao passeio.

Se acabaram as cervejas, mestre Archanjo, três ou quatro garrafas; numa quarta-feira pagava o velho, na outra a despesa era do santeiro — se bem nos últimos tempos o velho andasse liso e teso, sem níquel. Valia a pena ver-se sua satisfação na semana em que obtinha uns trocados, uns escassos caraminguás — batendo com força na mesa para advertir o garçom:

— Traga a conta, meu bom...

— Deixe comigo, mestre Archanjo, guarde seu dinheirinho...

— Em que lhe ofendi para você me desconsiderar, camarado? Quando eu não tenho dinheiro, você paga, não me aflijo, que não é por minha culpa e querer. Mas se hoje estou rico, por que você há de pagar? Não me tire meu dever nem meu direito, não diminua o velho Archanjo, me deixe inteiro, meu bom.

Ria um riso de dentes brancos, conservara perfeitos todos os seus dentes, chupava roletes de cana, mastigava jabá.

— Não é dinheiro roubado, ganhei com meu suor.

Servindo de moço de recados em casa de putas, seu trabalho derradeiro, quem o visse tão alegre e satisfeito, não imaginaria nunca as limitações, os apertos, a infinita pobreza de seus últimos anos. Ainda na última quarta-feira não cabia em si de contente: na pensão de Ester conhecera um moço estudante, sócio de uma gráfica, disposto a imprimir seu livro — lera os anteriores e dissera em alto e bom som que Archanjo era um retado, desmascarara toda aquela corja de charlatães da Faculdade.

No bonde, no começo da noite de estrelas e viração do mar, no caminho do Rio Vermelho de Baixo onde se ergue na colina a Casa Branca do Engenho Velho, mestre Archanjo contara do novo livro, os olhinhos brilhando, trêfegos e maliciosos. Quanta coisa recolhera, anotara nas cadernetas, para aquela obra, um embornal de abregueces, a sabedoria do povo:

— Só o que juntei em casa de mulher-dama, meu bom, você nem se imagina. Fique sabendo, camarado, não há melhor lugar para um filósofo morar do que casa de rapariga.

— Você é mesmo um filósofo, mestre Archanjo, o maior que já vi, não tem igual para saber levar a vida com filosofia.

Iam ao candomblé para o amalá de Xangô, obrigação das quartas-feiras.

Tia Maci dava de-comer ao santo, no peji, ao som do adjá e do canto das feitas. Depois, em torno à grande mesa na sala, serviam o caruru, o abará, o acarajé, por vezes um guisado de cágado. Mestre Archanjo era bom de garfo, de garfo e copo. A conversa prolongava-se noite adentro, animada e cordial no calor da amizade; ouvir Archanjo era privilégio dos pobres.

Se acabou o livro, o amalá e a cachaça, a viagem de bonde e de imprevistos; o velho conhecia cada recanto do caminho, casas e árvores eram-lhe familiares, de uma familiaridade secular, pois sabia de agora e de antes, de quem era e de quem fora, o filho e o pai, o pai do pai e o pai do avô e com quem se misturaram. Sabia do negro vindo escravo da África, do português degredado da Corte, do cristão-novo fugido da Inquisição. Agora todo o saber se terminou, e o riso e a graça, fecharam-se os olhos dos olhos de Xangô, Ojuobá só serve para o cemitério. O santeiro desfaz-se em lágrimas, solitário e vazio.

Assim como não fica bêbado, o Major não consegue chorar, a não ser — e com que facilidade! — em júri ou em comemoração se necessário emocionar os ouvintes, ganhá-los para sua causa. Mas a dor verdadeira, essa o come por dentro, nas entranhas, não se exibe no rosto.

Mané Lima proclamou o nome e a morte do velho para o mundo inteiro, postado no meio da Ladeira do Pelourinho, lugar próprio e certo, mas na hora baça da antemanhã apenas uns ratos enormes e um cachorro magro escutaram-lhe o grito.

O Major desprende-se da visão fatal, sai rua a fora em direção à casa de Ester, o peso da notícia verga-lhe os ombros. Lá emborcará o trago forte e necessário.”

 

 

“Não chores, meu filho; não chores que a vida é luta renhida: viver é lutar.” (Gonçalves Dias)

 

 

“Ali, na Tenda dos Milagres, tudo pode acontecer e acontece.”

 

 

“(...) Definição do viver de Rosa, de seus particulares, só Majé Bassan a tem, os porquês e a consequência, tudo bem guardado nos desmedidos seios. Seios de mãe-de-santo devem ser assim, enormes, para neles caber a aflição dos filhos e filhas e de estranhos e estrangeiros. São arcas de desesperos e rancores, de esperanças e sonhos; são cofres de amor e ódio.”

 

 

Não me restando alternativa, retornei ao Jornal da Cidade, disposto a aceitar a proposta indigna, porém única, e vender por dez réis de mel coado o melhor de meu material. Com o arrojo dos desesperados, bati à porta do doutor Zezinho e o grande patrão me escutou bondosamente. Quando, porém, lhe exibi minhas notas, por pouco não fatura uma crise histérica. Isto é exatamente o que não quero: essa falta de respeito com um grande homem, com um espírito superior. Esse achincalhe, esse apequenamento da figura de Archanjo. Não admito! Se lhe compramos essas laudas de tagarelices e maledicências é exatamente para pô-las fora, para que não sejam usadas e não maculem a imagem de Pedro Archanjo. Meu caro Fausto, pense nas crianças das escolas.

Pensei nas crianças das escolas, vendi por ninharia meu silêncio. Doutor Zezinho, ainda nervoso, completou: Polígamo, que infâmia! Não era sequer casado! Meu caro poeta, aprenda esta lição: um grande homem tem de possuir integridade moral e se, por acaso, transigiu e prevaricou, cabe-nos repô-lo em sua perfeição. Os grandes homens são patrimônios da Pátria, exemplos para as novas gerações: devemos mantê-los no altar do gênio e da virtude.

Com o vale e a lição, agradeci e retirei-me, fui em busca de Ana Mercedes e de uísque, consolos caros.”

 

 

Se o Brasil concorreu com alguma coisa válida para o enriquecimento da cultura universal, foi com a miscigenação — ela marca nossa presença no acervo do humanismo, é a nossa contribuição maior para a humanidade.

 

 

“Quando iniciara o livro, a imagem pernóstica de determinados professores e o eco das teorias racistas estavam presentes a seu espírito e influíam nas frases e palavras, condicionando-as e limitando-lhes a força e a liberdade. À proporção, porém, que páginas e capítulos foram nascendo, Pedro Archanjo esqueceu professores e teorias, não mais interessado em desmenti-los numa polêmica de afirmações para a qual não tinha sequer preparo, e sim em narrar o viver baiano, as misérias e as maravilhas desse quotidiano de pobreza e confiança; em mostrar a decisão do perseguido e castigado povo da Bahia, de a tudo superar e sobreviver, conservando e ampliando os bens da dança, do canto, do metal, do ferro, da madeira, bens da cultura e da liberdade recebidos em herança nas senzalas e quilombos.”

 

 

O problema racial, camaradas, é consequência do problema de classes — explicava Ildásio, citando autores, calmo, sem exaltar-se. No Brasil, camaradas, negros e mulatos são discriminados em sua condição de proletários: branco pobre é negro sujo, mulato rico é branco puro.”

 

 

“— No julgamento dos homens, prefiro superestimar, pois quem subestima em geral mede os demais por sua própria medida.”

 

 

“— Você, mestre Pedro, é um devasso, um libertino. Nada sabe do amor, só sabe de mulheres — a ex-Princesa do Recôncavo, a ex-Rainha do Cancã suspira: — Igual a mim, sei de homens, saberei do amor?”

 

 

“— Quando se quer aplicar as teorias a ferro e fogo, elas nos queimam a mão.”

 

 

“O doutor Fraga Neto diz que não há branco nem negro, há rico e pobre tão-somente. O que é que você quer, compadre? Que o moleque estude e continue aqui na pobreza do Tabuão? Foi para isso que ele estudou? Doutor Tadeu Canhoto, genro do coronel, herdeiro de terras e de gado, bolsa na França, viagem na Europa, não há branco nem negro, no Corredor da Vitória o dinheiro embranquece, aqui miséria negra.

Cada um com sua sina, meu bom. Os moleques dessa rua, camarado, vão se dividir, cada um o seu destino. Alguns calçarão sapatos, usarão gravata, doutores de Faculdade. Outros prosseguirão aqui, com a bigorna e o malho. A divisão de branco e negro, meu bom, se acaba na mistura, em nossa mão já se acabou, compadre. A divisão agora é outra e quem vier atrás feche as cancelas.”

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil (Parte II), de Sérgio Buarque de Holanda

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-1667-6

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 600

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Sinopse: Ver Parte I



“NÃO SÓ O DESLUMBRAMENTO de um Colombo divisava as suas Índias e as pintava, ora segundo os modelos edênicos provindos largamente de esquemas literários, ora segundo os próprios termos que tinham servido aos poetas gregos e romanos para exaltar a idade feliz, posta no começo dos tempos, quando um solo generoso, sob constante primavera, dava de si espontaneamente os mais saborosos frutos, onde os homens, isentos da desordenada cobiça (pois tudo tinham sem esforço e de sobejo), não conheciam “ferros, nem aço, nem armas”, nem eram aptos para eles — são feitas, aliás, as próprias palavras de que se servirá o genovês ao tratar dos gentios das ilhas descobertas1 —, mas até os de mais profundo e repousado saber se inclinavam a encarar os mundos novos sob a aparência dos modelos antigos.

O historiador sueco Sverder Arnoldsson, bem familiarizado com a historiografia hispano-americana do período colonial, pôde dizer, sem exagero, em estudo recente, que, além de Colombo, numerosos cronistas da conquista se valeram usualmente, ao descreverem as Índias, e em particular os indígenas do Novo Mundo, das próprias palavras de Ovídio sobre a Idade de Ouro, copiadas, citadas e inúmeras vezes lidas durante mil e quinhentos anos2. Bem ilustrativas desse fato são as expressões de um humanista da altura de Pedro Mártir de Anghiera, que em várias ocasiões se mostra cauteloso ou cético no acolher informações dos viajantes quando se refere aos primitivos moradores da Espanola e de Cuba.

Os trechos que Arnoldsson em parte reproduz do original das Décadas do Orbe Novo, e que vão a seguir, de acordo com a versão de Temístocle Celotti, não só aludem expressamente à Idade de Ouro como chegam a ser, por vezes, um decalque literal do texto célebre das Metamorfoses. Assim é que, dos naturais da Espanola, o humanista de Anghiera, depois de observar que tinham muitos reis, cada qual mais poderoso do que o outro, “como se diz que o lendário Eneias encontrou o Lácio dividido entre Latino, Mesêncio, Turno e Tarconte”, reinando sobre minúsculos territórios, logo ajunta: “Sou de parecer, entretanto, que os nossos ilhéus da Espanola hão de ser mais afortunados do que aqueles, desde que aprendam a religião; pois que nus, sem pesos ou medidas, sem a mortífera pecúnia, vivendo na idade de ouro, sem leis, sem caluniosos juízes, sem livros, contentam-se com o estado da natureza, nada preocupados com o porvir”3. Isso está dito no segundo livro da primeira Década, que Pedro Mártir redigiu, com o subsequente, por instâncias do Cardeal Ascânio Sforza, durante o biênio de 1493-1494, quando as notícias ainda frescas do descobrimento e as esperanças a que davam lugar ainda permitiam essa visão imaculada.

Mas no próprio livro terceiro, que só se lançará em 1500, época em que já são bem notórias as malícias e tiranias dos canibais antilhanos, reafirma-se, com ênfase ainda maior, esse quadro sedutor da aurea aetas (era de ouro). Tratando ali dos habitantes de Cuba, escreve ele que “era de todos a terra, assim como o sol e a água, que o meu e o teu, germes de todos os males, não existiam para aquela gente [...]. Vivem na idade de ouro, não circundam as herdades de fossos, muros ou sebes. Moram em hortas abertas, sem leis, sem livros, sem juízes, e seguem naturalmente o bem. E têm por odioso aquele que se compraz em praticar o mal, seja contra quem for”4. E na Década III, redigida só em 1516, segundo testemunho do autor, reitera-se, no livro VIII, a mesma imagem, a propósito daqueles homens habituados a sustentar-se de frutos nascidos sem plantio: “Homines vivere aiunt [...] sylvestribus fruetibus contentos [...] ut legitur de aurea aetate” (“As pessoas dizem que vivem [...] contentes com frutas silvestres [...] enquanto lemos sobre a idade de ouro”).

Os cronistas castelhanos não duvidarão, por sua vez, em seguir tão ilustre exemplo, servindo-se das palavras textuais do poeta de Sulmona, e não só com relação a tribos primitivas, mas também a populações mais distanciadas das condições dos antigos moradores das Antilhas5. Em suas Antiguidades de la Nueva Espana, de fins do século XVI, ainda escreve, por exemplo, Francisco Hernandez que “todo lo producia espontaneamente la tierra” equivale preciso do “per se dabat omnia tellus” ovidiano. E em princípios do século imediato ainda pode rastrear-se o influxo de concepções antigas, bebidas provavelmente nas Metamorfoses, mesmo em escritos como os do índio semiculto Dom Filipe Haumán Poma de Ayala, onde subdivide toda a História humana em quatro idades distintas, a saber: a do ouro, a da prata, a do cobre e a do ferro, cada qual menos “civilizada” e também menos feliz e engenhosa do que a anterior.

Essas lembranças clássicas costumam ser postas principalmente em estreita relação com a teoria da excelência do estado natural, que já é um traço da aurea aetas dos antigos, ou com as opiniões eclesiásticas e, em verdade, cristãs, sobre o statu innocentiae, compendiadas na Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, que um e outras, por intermédio talvez de Montaigne e, em menor grau, de Las Casas, hão de frutificar, com o tempo, no postulado, rico em consequências, da bondade natural do homem.

O problema já tem sido objeto de muitas e sábias dissertações, e mal cabe retomá-lo aqui, senão de passagem. Contudo é fora de dúvida que, abrangido num painel maior, que compreenda os demais aspectos, por onde facilmente se irmana com os motivos edênicos, de ação direta sobre a própria atividade colonial do europeu no Novo Mundo, irá ganhar sentido mais amplo e mais rico essa exaltação da vida primitiva.

De uma parte, a polêmica dirigida contra a miséria do tempo presente, amparada no louvor e nostalgia de um passado venturoso e idílico, iria aparentemente favorecê-la. Essa polêmica sabe-se que é de todos os tempos, mas quando se torna singularmente viva é nos tempos medievais, dando causa até a fórmulas estereotípicas como a do ubi sunt (onde eles estão), de que a balada mais célebre de François Villon é exemplo ilustre, mas não único.

Por outro lado, a ideia da corrupção deste nosso mundo e da natureza, em consequência do Pecado e da Queda, acha-se implantada em todo o sentimento e pensamento cristãos, e deita claramente suas raízes nas Sagradas Escrituras. Não custaria distingui-la já no Gênesis, quando alude à maldição divina lançada sobre a própria terra, que passaria agora a dar cardos e abrolhos. E ainda, para também recorrer ao Novo Testamento, naquele passo da Epístola aos Romanos (8:22), onde está dito que toda a criação, e não somente a espécie humana, “geme e padece até hoje” por culpa do primeiro homem.

Mas esse pessimismo fundamental já não seria o ponto de partida necessário para a glorificação de outros mundos, das terras incógnitas, porventura ainda virgens e indenes dessa decadência geral, como se neles não tivesse ocorrido o Pecado e nem ficassem, deste, as marcas fatídicas? A Idade Média se achava tão afeita, com certeza, à noção de que o mundo presente é simples lugar de passagem que a esperança de nele se encontrar algum porto seguro se tornara, ao cabo, irrelevante. A ruindade ou deterioração da Natureza, a miséria da terra, resgatava-se num divino plano de salvação que, por sua vez, não deixaria de valorizar, de algum modo, os próprios males e as misérias do presente. Mesmo a obsessão da materialidade do Paraíso Terrestre, abundante em todos aqueles bens de que carece a natureza corrompida e mortal, é um modo de denunciar, com a vivacidade do contraste, esse fundo senso da transitoriedade das coisas terrenas.

Ora, sucede que o Paraíso Terrestre é, pela sua própria essência, inatingível aos homens, ou, na melhor hipótese, só pode, talvez, ser alcançado à custa de ingentes e sobre-humanos esforços. De fato, só com o declinar do mundo medieval é que a ideia da corrupção e degenerescência da Natureza poderá afetar mais vivamente aqueles para quem a salvação eterna se torna, cada vez mais, um ideal longínquo e póstumo. Ao mesmo tempo irá esbater-se pouco a pouco, embora teoricamente ainda válida, a crença de que o Céu, um Céu sempre mais distante, cuida de interferir a todo momento nos negócios profanos.

Já agora, porém, o mundo não há de ser um vale de lágrimas, apenas dulcificado pela certeza da redenção ultraterrena. Não é num futuro póstumo, ou fora do mundo, mas na própria vida de todos os dias que a condição humana há de encontrar sua razão de ser. O Humanismo, que impregnará largamente o pensamento e a atividade renascentistas, acha-se alicerçado, e desde o início, numa confiança ilimitada no homem e nas suas possibilidades criadoras quase infrenes. Em seu tratado sobre a dignidade humana, Giovanni Pico della Mirandola parte do pressuposto de que o homem, esse “grande milagre”, segundo o dito de Hermes Trismegisto, que domina o discurso, é o mais feliz, sem comparação, dos entes animados, merecedor, por isso, de todas as admirações. E ainda de que sua condição na ordem universal é invejável, não só para os brutos, mas até para os astros e os espíritos do além-mundo6.

Mas, para que aquelas possibilidades e capacidades sejam verdadeiramente eficazes, fazendo-se por sua vez realidades, é mister supor um mundo e uma natureza dóceis às ambições dos homens e solidários com elas. Natureza essa ativa e infinitamente criadora, concebida à imagem do homem novo, bem diferente da outra, inerte ou mortalmente ferida por uma calamidade de proporções cósmicas. De sorte que esse exasperado otimismo, fundado na doutrina da excelência e dignidade da condição humana, também há de admitir, necessariamente, a excelência, a dignidade, a virilidade da própria natureza.”

1 Carta ao Tesoureiro Rafael Sanches, in D. Martin Fernandez de NAVARRETE, Colección de los Viajes y Descubrimientos, I, pág. 312.

2 Sverder ARNOLDSSON, Los Momentos Históricos de América, pág. 10.

3 P. MARTIRE D’ANGHIERA. Mondo Nuovo (De Orbe Novo), pág. 120.

4 P. MARTIRE D’ANGHIERA, Mondo Nuovo, pág. 154

5 S. ARNOLDSSON, Los Momentos Históricos de América, pág. 11. Reproduz o autor a passagem de uma versão castelhana das Metamorfoses impressa em Évora, 1574, que poderia oferecer um modelo a muitos desses escritores. Diz esta o seguinte: “En aquel tiempo reynaua en la tierra verdad y justicia: los hõbres andauã seguros por todas partes, y biuiã en paz, y sossiego, sin saber que era necessáio Rey, ni alcaide, alguazil, ni escriuano, verdugo, ni pregonero: porque todos biuian en mucha hermãdad tratando verdad y justicia. En este tiepo los hombres no sabiã que ra torre ni castillo, lãça, ni espada, ames, ni otras cosas desta qualidad: porq biuiã sin aver defensores. La tierra que no era rõpida ni labrada, porq au no sabiã q era açada, teja arado: ni otro algu instrumeto de hierro y sin fatiga humana todas las cosas necessárias a la vida y sustentaciõ de los hõbres, las quaies cõ saluaticas sustãcias delos cerezos, mançanas, çarças, zoras y espinas: de cuya produciõ, y de vellotas, q del enzina arbor dedicada a Júpiter cayã, se otetauã”

(Naquela época reinava na terra verdade e justiça: os homens andavam seguros por todos os lados, em boa paz, e sossego, sem saber que era necessário Rei, nem alcaide, alguazil, nem escrivão, carrasco nem pregoeiro: todos viviam em muita irmandade lidando com a verdade e a justiça. Neste tempo os homens não sabiam o que era torre ou castelo, espada ou arnês, ou outras coisas desta qualidade: porque viviam sem ter defensores. A terra que não foi quebrada ou arada, porque você não sabia que estava arada, arado de telha: nem qualquer outro algum instrumento de ferro e sem fadiga humana todas as coisas necessárias à vida e ao sustento do lúpulo, o quais com substâncias selváticas das cerejeiras, macieiras, sarças, espinhos e espinhos: de cuja produção, e das pelotas, que do caramanchão enzina dedicado a Júpiter cayã, e otetauã). Na presente transcrição acham-se por extenso algumas das muitas palavras abreviadas no texto original reproduzido por Arnoldsson.

6 G. PICO DELLA MIRANDOLA, De Homine Dignitate. Heptaplus. De Ente et Uno, pág. 102: “[...] cur felicissimum proindeque dignum omni admiratione animal sit homo, et quae sit demum illa conditio quam in universi serie sortitus sit, non bruti modo, sed astris, sed ultramondani mentibus invidiosam”. (Sobre a Dignidade do Homem. Heptaplus Sobre Ser e Um, p. 102: “[...] por que o homem é o animal mais feliz e, portanto, digno de toda admiração, e qual a condição que lhe foi atribuída na série do universo, não à maneira de um bruto, mas do estrelas, mas invejáveis para as mentes do outro mundo”).

 

 

“A constante reiteração da ideia de uma Natureza em declínio ou francamente corrupta pelo contágio do Pecado Original pode sugerir, mesmo em obras de pura imaginação, que esse pensamento seria largamente partilhado, e tanto pelos autores como pelos leitores de tais obras. Os comentários esotéricos ao Gênese, cuja cronologia permitira esperar-se o próximo ou iminente fim do mundo, segundo notou um historiador, referindo-se de modo expresso à Inglaterra e a épocas mais tardias — mas suas observações, neste particular, também se aplicam, e talvez com maior nitidez, ao que ocorre na Itália, com o amanhecer dos tempos modernos —, tendiam a dar uma base aritmética à teoria da decadência do homem e da natureza.

A visão clássica da História, que admitia essa decadência progressiva, fazendo preceder a Idade do Ouro à da Prata, do Bronze e do Ferro, que sucessivamente e nessa ordem se substituem uma à outra, entrosava-se sem dificuldade, como ainda acentua o mesmo escritor, na doutrina cristã da Queda e fornecia mesmo uma ampla estrutura para a teoria de um mundo que se deteriora cada vez mais e em todas as suas partes. Ao lado disso, as Ideias ou Formas de Platão acham por onde inserir-se nas doutrinas relativas à catástrofe cósmica, pois, confrontado com as normas ideais existentes em algum lugar, deste ou daquele modo, o nosso mundo, em constante declínio, será uma espécie de cópia esmaecida e degradada. A concepção do mal como privatio, de acordo com Santo Agostinho, que se funda, de fato, em Aristóteles, e ainda as noções aristotélicas sobre a oposição entre elementos “contrários” (Metafísica, lib. 5, cap. 22), são eminentemente adaptáveis às mesmas doutrinas. Pois o que significa a depravação do mundo senão a privação da “virtude” que nele infundira o Senhor, em sua glória primeira e virginal? E que hipótese se revelaria mais serviçal, em suma, tendo-se em conta as mudanças do mundo e suas incessantes vicissitudes, do que uma teoria que postula a instabilidade daqueles elementos?7

Não é por acaso se justamente entre italianos, mais familiarizados, então, do que outros povos, com especulações de tal porte, tenda a desprender-se, aqui e ali, de um pessimismo adverso à tranquilidade de ânimo que propugnam os humanistas, a esperança e procura de alguma solução terrena Nem falta quem, como um Maquiavel, chegue a aceitar, sem ilusões, o mundo como é, imaginando mesmo uma ordem civil edificada sobre esse material imprestável que são os homens, de sorte que a velha ruindade venha a sujeitar-se a novas leis que a neutralizem, num verdadeiro equilíbrio de egoísmos, e que do próprio mal possa brotar o bem, com o soldar-se dos indivíduos corruptos no Estado forte. Ou quem, como Guicciardini, refute o valor dos “exemplos” grandiosos dos romanos, em que ainda se apraz seu compatriota, para abraçar um critério mais acomodatício, em que a própria depravação dos homens, ao menos segundo o retrato malevolente, mas em parte justificável, que de suas ideias nos deixou De Sanctis, parece codificar-se e erigir-se em regra de vida8.

A maior parte, no entanto, ainda prefere a essa cumplicidade desencantada com a “verdade efetiva da coisa”, a que alude Maquiavel9, isto é, com o fato reconhecido da decadência e corrupção do mundo, um ideal mais puro e imaginário, prefere, em outras palavras, palavras tiradas do próprio Príncipe, ao “como se vive” o “como se deveria viver”, ao ser um dever ser. E é bem compreensível, nestas circunstâncias, se numerosos marinheiros e exploradores que se movem, quase por necessidade de ofício, conforme os juízos dos astrólogos, tendam a fazer baixar o seu “dever ser”, os seus paraísos, daqueles mundos irreais para a realidade ainda nublada que lhes oferecem as terras incógnitas e remotas.

O espetáculo, ou a simples notícia de algum continente mal sabido e que, tal como a cera, se achasse apto a receber qualquer impressão e assumir qualquer forma, suporta assim, entre muitos deles, as idealizações mais inflamadas. Idealizações estas de que seria como um “negativo” fotográfico este nosso mundo entorpecido e incolor, e em que parecia ganhar atualidade histórica a possibilidade de remissão. Se isso é especialmente verdadeiro no caso de um Colombo, que por sinal julgava próximo o fim do mundo, precisando mesmo que se daria no ano de 1656, nem antes nem depois10, não o deixa de ser nos de outros navegantes que o antecederam ou sucederam, como Cadamosto, Vespúcio, os dois Gabotos, até Verrazzano.”

7 Ronald W. HEPBURN, “George Hakewill: The Virility of Nature”, Journal of the History of Ideas, XVI (abril de 1955), pág. 136.

8 Francesco DE SANCTIS, Storia della Letteratura Italiana, II, pág. 109. O famoso e discutido retrato das ideias de Guicciardini por De Sanctis encontra-se em “L’uomo del Guicciardini”, De Sanctis, Scritti Critici, págs. 254-274. Para uma tentativa de revisão desse retrato, que se baseia principalmente nos Ricordi do florentino, cf. Vinorio DE CAFRARIS, Francesco Guicciardini: Dalla Potitica alia Storia, Bari, 1850.

9 Niccolò MACHIAVELLI, Il Príncipe, XV (Tutte le Opere, I, pág. 48): “[...] sendo Fintento mio scrivere cosa utile a chi la intende, mi è parso più conveniente andare drieto alia verità effetuale della cosa, che alia imaginazione di essa. E molti si sono imaginate republiche e principati che non si sono mai visti né conosciuti essere in vero. Perchè egli è tanto discosto da come se vive a come si doverrebbe vivere, che colui che lascia quello che si fa per quello che si doverrebbe fare, impara puitosto la ruina che la perseverazione sua: perchè uno uomo che voglia fare in tute le parte professione di buono, conviene ruini infra tanti che non sono buoni. Onde necessário a un príncipe, volendosi mantenere, imparare a potere essere non buono, e usarlo o non l'usare secondo la necessita.” (“Mas, sendo minha intenção escrever algo de útil para quem por tal se interesse, pareceu-me mais conveniente ir em busca da verdade extraída dos fatos e não à imaginação destes, pois muitos conceberam repúblicas e principados jamais vistos ou conhecidos como tendo realmente existido. Em verdade, há tanta diferença de como se vive e como se deveria viver, que aquele que abandone o que se faz por aquilo que deveria fazer, aprenderá antes o caminho de sua ruína do que o de sua preservação, eis que um homem que queira em todas as suas palavras fazer profissão de bondade, perder-se-á em meio a tantos não são bons. Donde é necessário, a um príncipe que queira se manter, aprender a poder e usar ou não da bondade, segundo a necessidade.”)

10 No Libro de las Profecias, organizado pelo descobridor, lê-se, de fato, em apostila de 1501, conforme a reprodução de Navarrete, o seguinte: “De la creación del mundo ó de Adan, fasta el avenimiento de nuestro Senor Jesucrito son cinco mil é trecientos y cuarenta é três anos, y trecientos y diez é ocho dias, por la cuenta del Rey Don Alonso, la cual se tiene por la mas cierta, p. de a. e.a.e.e.t. et h. u sobre el verbo X, con los cuales poniendo mil y quingentos y uno imperfeito, son por todos seis mil ochocientos curante é cinco imperfectos. Segundo esta cuenta no falta sao ciento é cincuenta y cinco anos para complimiento de siete mil, en los quaies digo arriba por las autoridades dichas que habrá de fenecer el mundo.” (“Desde a criação do mundo ou de Adão, até o advento de nosso Senhor Jesus Cristo, há cinco mil trezentos e quarenta e três anos e trezentos e dezoito dias, segundo o relato do rei Don Alonso, que é considerado o mais verdadeiro, p. de a. e.a.e.e.t. et h. sobre o Verbo, com o qual colocando mil quinhentos e um imperfeitos, há para todos seis mil e oitocentos perfeitos e cinco imperfeitos. Segundo esta conta não faltam cento e cinquenta e cinco anos para completar sete mil, nos quais afirmo acima pelas referidas autoridades que o mundo vai acabar.”) D.M.F. de NAVARRETE, Colleccón de los Viajes y Descubrimientos, II, pág. 308. Há engano parcial nas iniciais contidas no primeiro parágrafo. Deveria estar p. de a.e.a.c.c.t. et h.n. correspondentes a Pierre D'Ailly, [Tructatis ehtcidarius astronomiee concordie cum theologia et [cum] histórica narratione. O “Rey Don Alonso” é Afonso X de Castela, o das Tablas alfonsinas].

 

 

“Seja como for, o quadro que a Nóbrega inspirou o primeiro contato com o Novo Mundo parece corresponder à sedução que exerciam, em toda parte, ainda em sua época, os velhos motivos edênicos. Mas é mister notar que também corresponde a uma tendência geral, entre seus conterrâneos, ao menos no século XVI, e no Brasil, para reduzi-los constantemente às dimensões do verossímil. Em outras palavras, não se pode afirmar que participassem então os portugueses, menos do que outros povos, daquela sedução universal. O provável, no entanto, é que os motivos edênicos facilmente se refrangiam entre eles, privando-se da primeira intensidade para chegarem ao que se pode chamar sua atenuação plausível. Não é talvez sem interesse o exame dessa circunstância e de tudo quanto dela resultou para o desenvolvimento da exploração e colonização do Brasil.”

 

 

“QUE A SUPOSTA longevidade dos índios fosse efeito dos bons céus, bons ares, boas águas de que desfrutavam eles, é o que a todos resulta patente: nisto, em verdade, não se parecem distinguir das opiniões mais correntes as dos cronistas lusitanos. Sem aquelas qualidades, como explicar, segundo as ideias do tempo, o fato de não grassarem aqui, antes da conquista, várias enfermidades já notórias ao europeu, as únicas, por isso mesmo, de que tinham estes uma experiência ancestral? Era coisa por demais sabida que a ausência de tais enfermidades revelava não se achar o ar corrupto nestes lugares pela ação dos miasmas gerados da umidade e podridão. E ainda que esse ar corrupto se relacionava, de acordo com os juízos dos astrólogos, a ajuntamentos de certos corpos celestiais responsáveis pelas influências malignas.

Se bem que a Astrologia, na parte em que presume terem aqueles corpos algum poder sobre as coisas deste mundo, já houvesse encontrado sérias contraditas, e entre estas, sem falar no debate aberto por Giovanni Pico della Mirandola, a do frade português Antônio de Beja, que, em opúsculo impresso em 1527, defende, dentro da tradição escolástica, a incompatibilidade da influição astral com o livre-arbítrio e a concepção cristã da Providência Divina1, a verdade é que ela resistiu longamente à pressão dos métodos experimentais e racionais. Mesmo entre aqueles que a combatiam em nome de tais métodos, já se sabe que muitos se deixaram enfeitiçar pelo exercício das estrelas.”

1 Desse opúsculo existe edição recente publicada pelo Senhor Joaquim de Carvalho: Frei Antônio de Beja, Contra os Juízos dos Astrólogos, Coimbra, 1943.

 

 

“Ainda mais: desde 1537 a própria Santa Sé havia proibido, sob pena de excomunhão, que se tolhesse a liberdade dos índios, inclusive a liberdade de se manterem fora do grêmio da Igreja. E nada prova melhor o pleno assentimento de Sua Santidade o Papa Paulo III à campanha dos que, em Casta e na Índias de Castela, se batiam por essa liberdade, do que seu ato nomeando em 1543 Frei Bartolomeu de Las Casas Bispo de Chiapa.

Pode imaginar-se que aquelas ordens e cominações fossem rigorosamente respeitadas? Não havia de faltar quem comentasse ironicamente o zelo que assim demonstrava o Santo Padre da causa dos naturais de terras tão remotas e bárbaras, quando lhe faltavam forças, ah na Itália, na própria Roma, para impedir que prosseguisse sob o seu Pontificado, e continuaria ainda depois dele, o vergonhoso tráfico e cativeiro de infiéis33. Sabe-se, por outro lado, que nas possessões ultramarinas sempre valera o “obedezea-se, pero no se cumpla”, e isso era tão verdadeiro das colônias lusitanas quanto o era, notoriamente, das castelhanas.

Os portugueses, e em particular a Coroa portuguesa, tinham outras razões mais poderosas para que não os perturbassem muito os tais decretos. Eles não feriam, de fato, os interesses da mesma Coroa, associados de longa data ao tráfico de negros africanos. O próprio Vitória não tivera dúvidas em poupar esses interesses quando, em carta a Frei Bernardino de Vique, pretendera que ao rei de Portugal assistiam razões para permitir semelhante negócio.

Assim, por exemplo, no caso em que se originasse de guerras entre as tribos, o cativeiro era perfeitamente lícito, e nem o traficante tinha a obrigação de inquirir se se tratara de guerra justa. O que não aprovava decididamente era a captura de negros com enganos, mas também não acreditava fosse, esse, um uso generalizado, porque, a sê-lo, diz, estaria comprometida a consciência do soberano português34.

Las Casas, é certo, tendo aconselhado primeiramente a introdução de negros nas Índias, caiu depois em si, vendo a injustiça com que os tomavam os portugueses. Porque, diz, “la misma razon es dellos que de los indios”35. Contudo, a Historia de las Índias, onde figura essa retratação, apesar de ter circulado logo em manuscritos, só encontraria seu primeiro impressor três séculos após a morte de Las Casas. De qualquer modo, sua denúncia do tráfico e escravidão dos negros não encontrou a larga ressonância que tivera a campanha pela liberdade dos índios.”

33 Ludwig von PASTOR, Geschichte der Püpste, V, pág. 721.

34 Cf. Sílvio ZAVALA, Filosofia de la Conquista, pág. 104.

35 Fray Bartolomé de LAS CASAS, Historia de las Índias, III, pág. 177. O afã abolicionista, segundo nota Zavala, manifesta-se pela mesma época entre numerosos tratadistas espanhóis, e não só os da Ordem dos Predicadores. É significativo o que o Arcebispo do México, Frei Alonso de Montúfar, este aliãs dominicano, como Vitória e Las Casas, escreveu ao Rei de Castela a 30 de junho de 1560: “no sabemos”, dizia a carta, “que causa haya para que los negros sean cautivos mas que los índios, pues ellos, segun dicen, de buena voluntad reciben d evangelio y no hacen guerra a los cristianos”, S. ZAVALA, Filosofia de la Conquista, pág. 105 e segs.

 

 

“É POSSÍVEL, desta excursão já demorada à volta dos mitos geográficos difundidos na era dos grandes descobrimentos marítimos, tirarem-se conclusões válidas para um relance sobre a formação brasileira, especialmente durante o período colonial? Tentou-se mostrar, ao longo destas páginas, como os descobridores, povoadores, aventureiros, o que muitas vezes vêm buscar, e não raro acabam encontrando nas ilhas e terra firme do Mar Oceano, é uma espécie de cenário ideal, feito de suas experiências, mitologias ou nostalgias ancestrais.

Os portugueses quinhentistas não formam certamente exceção a essa regra. Pode-se, porém, dizer, tendo como base sobretudo os depoimentos de seus cronistas e historiadores, quase os nossos únicos guias disponíveis para esta viagem, que é comparativamente reduzida, entre eles, no contato dos novos mundos, a sedução de tais motivos. Não os inquieta vivamente, ao menos no Brasil, a insopitável esperança de impossíveis, que tão frequentemente acompanha, entre outros povos, as empresas de descobrimento e conquista para além das raias do mundo conhecido. São razões menos especulativas, em geral, ou fantásticas, do que propriamente pragmáticas, o que incessantemente inspira aqueles cronistas, ainda quando, em face do espetáculo novo, chegam a diluir-se em êxtases enamorados.”