terça-feira, 27 de setembro de 2011

Notícias do Império – Fernando del Paso

Editora: Record
ISBN: 978-85-0105-384-8
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 660
Sinopse: O livro Notícias do império relata a história de um louco amor e a louca história da fracassada tentativa de criar um império mexicano. A moratória da dívida com os bancos franceses e ingleses somada à cobiça pelas minas de prata da região de Sonora e o medo do aumento da influência dos Estados Unidos na região levaram o imperador francês Napoleão III a ocupar o México, derrubar o índio zapoteca Benito Juárez e instalar como imperador Fernando Maximiliano, irmão do arquiduque da Áustria, Francisco José.



“Mas estranho que o senhor considere os ingleses europeus. Em mais de um sentido, a Inglaterra não é a Europa. Digamos que podemos considerar os ingleses europeus quando nos convém e como bárbaros, vikings ou o que quiser quando for mais adequado para nossos interesses. Afinal, eles, e ninguém mais, são os culpados de que haja na América vinte milhões de ianques, os novos vândalos da história, que querem roubar todo o continente, a começar pelo nome, do qual já se apossaram.” 


“O chanceler austríaco Klemens Lothar Metternich, apelidado de Grande Inquisidor da Europa, e a quem, graças à sua insistência e bom gosto, se deve a invenção do bolo de chocolate vienense Sachertorte, afirmava que o café devia ser quente como o amor, doce como o pecado e negro como o inferno.” 


“E, sim, claro, os astecas também eram cruéis, não é verdade? Faziam sacrifícios humanos. Isso, claro, era errado. Mas o que não podemos permitir é que nós europeus continuemos a nos espantar com esses sacrifícios quando, na época em que soubemos deles, a Inquisição agia na Europa com todo o seu horror. Com uma diferença: a religião dos astecas era uma religião de deuses cruéis, portanto o sacrifício tinha uma lógica: macabra, sim, mas uma lógica. Nós, na Europa, torturávamos inocentes e queimávamos bruxas em nome de um Deus todo misericordioso.” 


“Acaba de ser publicado um regulamento para os bailes à fantasia no jornal oficial, no que agora é chamado de Diário do Império... É muito curioso: é proibido fantasiar-se de sacerdote, freira, bispo ou cardeal... Mais que curioso, diria eu, é redundante, pois proíbe fantasiar-se com fantasias... pois são isso as batinas e os hábitos: fantasias de teatro. Recordo-me agora do que um amigo meu dizia sobre os jesuítas, que são talvez os mais perigosos de todos: sob o manto negro de Inácio de Loyola esconde-se a espada de Iñigo López.”


“Mas acontece algo muito irônico: quanto mais distinto e culto é um mexicano, menos mexicano ele é, e também menos parece importar a ele o futuro de seu país. O que interessa a eles é viver como europeus e que seus filhos sejam educados como tais.” 


“Mas o que se pode esperar de um país onde todos os meses são descobertas e destruídas duas ou três máquinas para falsificar moeda e no qual essa arte era praticada desde o tempo dos astecas? Ou seja, aqui já se falsificava a moeda quando esta ainda não existia. Serei mais claro: naquela época o que fazia as vezes de moeda era o cacau – que agora descobri ser originário do México. Ou melhor, usava-se a semente de seu fruto, que é grande. Pois bem, você não vai acreditar, mas havia índios que faziam um buraco na semente, tiravam seu conteúdo, com o que é feito o chocolate, e depois enchiam o buraco com barro e disfarçavam o orifício.” 


“‘Veja bem, o México’, dizia-me outro dia um importante geógrafo, ‘tem a forma de uma cornucópia’. Limitei-me a assentir, com um leve levantar de sobrancelhas. Não quis dizer ao bom homem, primeiramente, que o país adquiriu essa forma depois que os americanos roubaram metade do mesmo; segundo, que a boca da cornucópia está para cima, ou seja, voltada para os Estados Unidos, como uma premonição, talvez, do destino futuro das riquezas deste país.”


“Mas um pouco antes Mejía deu mostras de que não perdera o bom humor: quando Maximiliano, no convento, escutou uma trombeta e perguntou a ele se aquele seria o sinal de partida para o patíbulo, “o negrinho” respondeu: “Não sei, Vossa Majestade, é a primeira vez que me executam”.” 


“Morto o cão, dizem, acaba a raiva.”

sábado, 10 de setembro de 2011

A misteriosa chama da rainha Loana – Umberto Eco

Editora: Record

ISBN: 978-85-0107-143-9

Tradução: Eliana Aguiar

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 456

Sinopse: Imagine acordar um dia e perceber que você perdeu a memória. Não sabe onde está, como se chama, quem é sua mulher (ou marido), se é casado ou não, quem são — se é que existem — seus filhos... É o que acontece com Yambo, o protagonista de A Misteriosa Chama Da Rainha Loana.

Yambo lembra-se de Waterloo, de como se dirige um automóvel e se escova os dentes, mas não lembra quem ele é. Permanece a memória semântica (sabe tudo que leu sobre Napoleão ou Julio César e consegue citar trechos inteiros da Divina Comédia) e automática, mas perdeu-se a memória afetiva, o que constitui seu ser e sua própria história.

Depois do coma que causou a amnésia, por recomendação médica, Yambo viaja para a casa de campo que fora de seu avô — um colecionador de tralhas, quinquilharias, jornais e revistas antigas —, nas montanhas do Piemonte, onde passou grande parte de sua infância e adolescência. E é lá que Yambo, na verdade Giambattista Bodoni, um comerciante de livros antigos já na meia-idade, mergulha em sua própria vida. Com a ajuda de músicas, odores, livros e quadrinhos, coisas que viu e tocou há sessenta anos, Yambo tenta retornar para o presente. De Flash Gordon e Dick Tracy ao primeiro amor, Umberto Eco resgata sua própria juventude, misturando-se, página a página, com seu protagonista.

Eco passou dois anos à procura de imagens e ícones que representassem a memória de Yambo (e a sua própria). A Misteriosa Chama Da Rainha Loana recompõe a história da Itália dos anos 1930 e 40. Eco traz à tona histórias de Julio Verne; discos de 78 rotações; figurinhas de álbuns famosos; gibis; as obras de Emilio Salgari; canções populares, por onde passam jovens frágeis e inesquecíveis (Signorinella pallida), outras, apaixonadas (C’eravamo tanti amati), ousadas, patriotas (Le ragazze di Trieste); além dos hinos fascistas, com suas promessas de perenes primavera e juventude (Primavera, Giovinezza), visando ao fortalecimento moral das fronteiras do Império Italiano. E mais, o rádio de galena, as ondas curtas e a BBC de Londres. Toda uma semiologia que leva aos tempos do Fascismo e às portas da Segunda Grande Guerra.

Montado o quebra-cabeça, A Misteriosa Chama Da Rainha Loana revela-se a autobiografia de uma geração. Um romance-fábula sensível que mostra que, muitas vezes, é preciso revisitar o passado para viver o presente. Um livro emocionante, cheio de calor e lembranças, de suspiros e saudades.



“(Eu havia perdido minha memória, estava com amnésia.) Disse que me sentia fraco e precisava dormir. Saíram, eu chorava. As lágrimas são salgadas. Donde, eu ainda tinha sentimentos. Sim, mas fresquinhos da hora. Aqueles de antes já não eram mais meus. Quem sabe, perguntava-me, se alguma vez fui religioso: certamente, de qualquer jeito, perdera a alma.”

 

 

“Recordar é um trabalho, não um luxo.”

 

 

“Eu lia muito?”

“Você é um leitor incansável. Com uma memória de elefante. Sabe um monte de poesias de cor.”

“Escrevia?”

“Nada seu. Sou um gênio estéril, costumava dizer, nesse mundo ou se lê ou se escreve, os escritores escrevem por desprezo pelos colegas, para ter, de vez em quando, alguma coisa de bom para ler.”

“Tenho tantos livros. Desculpe, temos.”

“Aqui são cinco mil. E tem sempre o idiota de plantão que entra e diz quantos livros o senhor tem, já leu todos?”

“E o que respondo?”

“Em geral: nenhum, de outra maneira por que os conservaria aqui? O senhor por acaso guarda latas de carne depois de esvaziá-las? Os cinquenta mil que li, doei a prisões e hospitais. E o idiota vacila.”

 

 

“Evidente, se não começar a pensar que é tudo uma comédia, você dá um tiro na cabeça.”

 

 

“Perguntei a Paola quais eram as minhas posições políticas: “Não gostaria de descobrir que sou, sei lá, nazista.”

“Você é aquilo que se chama de um democrático”, respondeu Paola, “mais por instinto do que por ideologia. Eu sempre disse que a política o entediava – e você, para polemizar, me chamava de La pasionaria. Era como se tivesse se refugiado nos livros antigos por medo do mundo, ou desprezo. Não, estou sendo injusta, não era desprezo, porque você se inflamava com os grandes problemas morais. Assinava pelos pacifistas e pela não-violência, se indignava com o racismo. Até se inscreveu em uma liga contra a vivissecção.”

“Animal, imagino.”

“Claro. A vivissecção humana se chama guerra.”

“E sempre... fui assim, mesmo antes de encontrar você?”

“Na infância e na adolescência você resvalava. É bem verdade que nunca consegui entendê-lo nessas coisas. Sempre foi um misto de piedade e cinismo. Se havia uma condenação à morte em algum lugar, assinava contra, mandava dinheiro para uma comunidade antidroga, mas se lhe diziam que dez mil crianças foram mortas, digamos, em uma guerra tribal na África, dava de ombros, como quem dissesse que o mundo não deu certo e não há nada que se possa fazer. Sempre foi um homem jovial, apreciava as belas mulheres, os bons vinhos, a boa música, mas me dava a impressão de que era como que uma crosta externa, um modo de se esconder. Quando se soltava, dizia que a história é um enigma sangrento e o mundo um erro.”

Nada poderá tirar-me da mente que este mundo é fruto de um deus tenebroso cuja sombra eu prolongo.”

“Quem disse isso?”

“Não sei mais.”

 

 

“Precisamos saber de que somos feitos nós, estirpe de Caim.”

 

 

“Telefonei para o médico, Gratarolo perguntou-me se fizera alguma coisa que não devia e tive que admitir que carregava caixas, bebia pelo menos uma garrafa por refeição, fumava vinte Gitanes por dia, além de infligir-me doces taquicardias. Repreendeu-me: estava em convalescença, se a pressão subisse às estrelas o acidente poderia se repetir e talvez eu não conseguisse escapar de fininho como da primeira vez. Prometi que iria me cuidar, ele aumentou a dose dos comprimidos e acrescentou outros para eliminar sal através da urina.

Pedi que Amália salgasse menos a comida, e ela disse que durante a guerra para conseguir um quilo de sal tinha que dar saltos mortais e ainda dois ou três coelhos em troca, logo o sal é uma graça de Deus que, quando falta, as coisas já não têm gosto de nada. Eu disse que o médico me proibira e ela rebateu que os doutores estudam tanto e depois ficam mais burros que os outros e que não se deve dar ouvido a eles – bastava olhar para ela, que nunca tinha visto um médico em sua vida e que aos setenta completos se desancava todo o santo dia em mil trabalhos, e não tinha nem ciática como os outros. Paciência, eliminaria o seu sal com minhas urinas.”

 

 

“Nada excita mais ao holocausto que o rancor de uma derrota.”

 

 

“Poesias tão ruins só podiam ser minhas. Acne juvenil. Acho que todos nós escrevemos poesia aos dezesseis anos, é uma fase de passagem entre adolescência e idade adulta. Não sei mais onde li que os poetas dividem-se em duas categorias, os bons poetas, que a certa altura destroem suas poesias ruins e vão vender armas na África, e os maus poetas, que as publicam e continuam a escrevê-las até a morte.”

 

 

“Quem morre jaz e quem vive lhe dá paz.”

 

 

“Então estou morto e o além é esse território monótono e tranquilo no qual por toda a eternidade reviverei minha vida passada, pior para mim se ela foi atroz (será o inferno), do contrário o paraíso. Ora! Imagine que você nasceu corcunda, cego e surdo-mudo ou que as pessoas que amava caíram a seu redor como moscas, pais, mulher, filho de cinco anos e que o além não fosse mais que a repetição, diferente, mas contínua, dos sofrimentos que viveu? O inferno não são les autres mas o rastro de morte que deixamos ao viver? Mas nem mesmo o mais maligno dos deuses poderia imaginar tal sorte para nós.”

 

 

“E, enfim, como se sabe, o inferno, se existe, é vazio.”

 

 

“Revejo uma cena rápida que deve ter acontecido alguns anos antes. Pergunto:

“Mamãe, o que é revolução?”

“É uma coisa em que os operários vão para o governo e cortam a cabeça de todos os funcionários como seu pai.”

 

 

“Perguntei por que frequentava o Oratório, já que todos diziam que era ateu. Respondeu que vinha porque era o único lugar em que podia ver gente. E além do mais não era ateu, era anarquista. Na época não sabia o que era anarquista e ele explicou que eram pessoas que desejavam a liberdade, sem patrões, sem rei, sem estado e sem padres. “Sem estado, sobretudo, não como os comunistas que, na Rússia, têm um estado que diz até quando podem ir ao banheiro”. (...)

Voltou depois a falar mal dos comunistas que mataram os anarquistas na Catalunha. Perguntei por que, sendo contra os comunistas, estava com os garibaldinos, que eram comunistas. Respondeu que, número um, nem todos os garibaldinos eram comunistas, e entre eles havia socialistas e até anarquistas, número dois, porque naquele momento o inimigo era o nazifascismo e em casos do gênero não se deve ligar muito para sutilezas. “Primeiro se vence junto, depois se acertam as contas.”

Em seguida acrescentou que ia ao Oratório porque era uma coisa boa. Os padres eram uma raça ruim, mas eram como os garibaldinos, entre eles também tinha gente boa. “Sobretudo nesses tempos em que não se sabe onde os meninos vão parar, até o ano passado ensinavam-lhes o livro e a espada. No Oratório pelo menos não deixam que se estraguem, são educados para serem honestos, embora eles insistam um pouco demais na história das punhetas (de ser pecado praticá-las), mas não importa, porque vocês continuam do mesmo jeito e no máximo se confessam depois. Portanto, venho ao Oratório e ajudo dom Cognasso a entreter os meninos. Quando chega a hora da missa, fico no fundo da igreja em silêncio, porque Jesus Cristo eu respeito, mas Deus não”.”

 

 

“Como li o verbete Hegel no Novíssimo Melzi (“Ins. Fil. Al. da escola panteísta”), perguntei quem era. “Hegel não era panteísta e seu Melzi é um ignorante. Panteísta, no máximo, era Giordano Bruno. Um panteísta diz que Deus está em toda parte, até no cocô da mosca que você vê bem ali. Bela satisfação, estar em toda parte é como não estar em parte alguma. Pois bem, para Hegel, não era Deus, mas o Estado que tinha de estar por toda parte, e portanto era um fascista.”

“Mas ele não viveu mais de cem anos atrás?”

“E o que importa? Joana D’Arc também, e era uma fascista de primeira ordem. Os fascistas sempre existiram. Desde os tempos... desde os tempos de Deus. Pegue Deus. Um fascista.”

“Mas você não é ateu, não diz que Deus não existe?”

“Quem disse isso? Don Cognasso, que não entende nada de porra nenhuma? Eu acredito que Deus existe, infelizmente. Só que é um fascista.”

“Mas por que Deus é fascista?”

“Ouça, você é jovem demais para que possamos discutir teologia. Vamos partir daquilo que sabe. Recite os dez mandamentos, já que no Oratório vocês são obrigados a sabê-los de cor.”

E eu recitava. “Pois bem”, dizia, “agora preste atenção. Entre esses dez mandamentos tem quatro, atenção, não mais que quatro, que aconselham boas coisas – se bem que até eles, hum, depois veremos. Não matar, não roubar, não dar falso testemunho e não desejar a mulher do próximo. Este último é um mandamento para homens que sabem o que quer dizer honra, de um lado não transformar os amigos em cornos e, do outro, tentar manter de pé a família, e isso até pode ser bom, embora a anarquia queira eliminar a família, não se pode fazer tudo de uma vez só. Quanto aos outros três, certo, mas também é o mínimo que o bom senso aconselha. Mesmo que depois seja preciso dar um desconto, mentira todo mundo diz, talvez até com um objetivo bom, mas matar não, não se pode, nunca.”

“Nem quando o rei manda você para a guerra?”

“Aí está o ponto. Os padres dizem que se for mandado para a guerra pelo rei, você pode, aliás, deve matar. De qualquer forma a responsabilidade é do rei. Assim, justifica-se a guerra, que é uma besta imunda, sobretudo se quem o mandou para lá foi Crapone. Note-se que os mandamentos não dizem que se pode matar na guerra. Dizem não matar e ponto final. Mas depois...”

“Depois?”

“Vamos ver os outros mandamentos. Eu sou o senhor teu Deus. Isso não é um mandamento, senão seriam onze. É o prólogo. Mas é um prólogo vivaldino.” (...)

“E sempre fez assim: tem que acreditar na bíblia porque é inspirada por Deus, mas quem falou que a bíblia é inspirada por Deus? A própria bíblia. Entendeu a manha? Mas vamos adiante. O primeiro mandamento diz que não terás outro Deus fora ele. Assim, esse senhor o proíbe de pensar, sei lá, em Alá, em Buda ou talvez em Vênus – que, a bem da verdade, ter como deusa um pedaço de mulher daqueles não era nada mau. Mas quer dizer que também não se pode acreditar, sei lá, na filosofia, na ciência, porque podem botar na sua cabeça que o homem descende do macaco. Só ele, e basta. Agora preste atenção, todos os outros mandamentos são fascistas, feitos para obrigar a aceitar a sociedade do jeito que é. Guardar domingos e festas... O que acha?”

“Bem, na verdade manda ir à missa aos domingos, o que há de mau?”

“Isso é o que diz dom Cognasso, que, como todos os padres, não sabe nem onde fica a bíblia da casa. Acorde! Numa tribo primitiva como aquela que Moisés andava levando para passear, isso significava observar os rituais e os rituais servem para engambelar o povo, dos sacrifícios humanos aos comícios de Crapone na praça Venezia! E depois: Honrar pai e mãe. Calado, não me diga que é justo obedecer aos pais, isso está bom para as crianças que precisam ser guiadas. Honrar pai e mãe quer dizer respeitar as ideias dos mais velhos, não se opor à tradição, não pretender mudar o modo de vida da tribo. Entendeu? Não cortar a cabeça do rei, como ao contrário, Deus manda – quer dizer, desculpe, como se deve fazer se tivermos a cabeça, a nossa, no lugar, sobretudo com um rei como o anão de Savóia que traiu seu exército e mandou seus oficiais para a morte. E então se entende que até não roubar não é aquele mandamento inocente que parece, pois ordena que não se toque na propriedade privada, que é de quem enriqueceu roubando gente como você. Mas quem dera fosse só isso. Ainda faltam três mandamentos. O que significa não cometer atos impuros? Os vários dom Cognasso querem que acredite que serve apenas para impedir que você sacuda a coisa que tem no meio das pernas, mas incomodar as tábuas da lei por causa de umas punhetas me parece um desperdício. O que devo fazer eu, que sou um fracassado, aquela boa mulher da minha mãe não me fez bonito, e ainda por cima manco e que uma mulher, uma mulher de verdade nunca toquei? Querem me tirar até esse desafogo? (...)

Deus podia dizer, sei lá, pode trepar, mas só para fazer neném, sobretudo porque naquela época tinha muito pouca gente no mundo. Mas os dez mandamentos não dizem isso: de um lado, não se pode desejar a mulher do próximo e do outro não se deve cometer atos impuros. Resumindo, quando é que se trepa? Ora, é preciso fazer uma lei que sirva para todo mundo, os romanos, que não eram Deus, quando fizeram leis foi coisa que serve até hoje, e Deus baixa um decálogo que não diz as coisas mais importantes? Você vai dizer: sim, mas a proibição dos atos impuros proíbe trepar fora do casamento. Está certo de que era isso mesmo? O que eram atos impuros para os hebreus? Eles tinham regras severíssimas, por exemplo, não podiam comer carne de porco e nem boi abatido de certa maneira e, ouvi dizer, nem mesmo sardinhas ainda novinhas. Então os atos impuros são todas as coisas que o poder proibiu. Quais? Todas as que o poder definiu como atos impuros. É só inventar, o Crapone considera impuro falar mal do fascismo e eles mandam você para o exílio. É impuro ser solteiro e toca pagar uma taxa sobre o celibato. É impuro desfraldar uma bandeira vermelha. Etc. etc. etc. E agora chegamos ao último mandamento, não desejar as coisas dos outros. Mas você nunca perguntou o porquê desse mandamento, quando já tinha não roubar? Se você deseja ter uma bicicleta como a de seu amigo é pecado? Não, se não roubá-la. Dom Cognasso diz que esse mandamento proíbe a inveja, que com certeza é coisa ruim. Mas tem uma inveja ruim, aquela que, quando um amigo tem uma bicicleta e você não, lhe dá um desejo de que ele quebre o pescoço numa ladeira, e tem a inveja boa, aquela que faz você desejar, você também, uma bicicleta e, para poder comprar uma, mesmo usada, começa a trabalhar que nem um doido, e a inveja boa é o que faz girar o mundo. E depois tem uma outra inveja, que é a inveja da justiça, que leva a não aceitar que alguém tenha tudo, enquanto tem gente que morre de fome. E se você sente essa bela inveja, que é a inveja socialista, começa a trabalhar para realizar um mundo em que a riqueza seja mais bem distribuída. Mas é justamente isso que o mandamento proíbe: não desejar mais do que tem, respeitar a ordem da propriedade. Nesse mundo tem quem tenha dois campos de trigo só porque herdou e tem quem é obrigado a roçá-lo por um bocado de pão, e quem roça não pode desejar o campo do patrão senão o estado desmorona e estamos em plena revolução. Portanto, meu caro rapaz, não mate e não roube os pobres como você, mas deseje sim as coisas que os outros tiraram de você. Esse é o sol do futuro e é por isso que os companheiros estão lá em cima na montanha, para dar um fim no Crapone, que chegou ao poder financiado pelos proprietários de terras, e pelos pequeno-burgueses de Hitler que queria conquistar o mundo para ajudar aquele Krupp, que constrói cada Berta desse tamanho, a vender mais canhões. Mas você, o que vai entender dessas coisas, você que foi criado aprendendo a repetir de cor juro obedecer às ordens do Duce?”

“Não, estou entendendo, mas nem tudo.”

“Espero.”

Naquela noite sonhei com o Duce.”

 

 

“Está vendo, meu rapaz, o mundo é dominado pelo mal. Aliás, Mal com maiúscula. E não falo só do mal de quem mata um semelhante para roubar dois tostões ou do mal das SS que enforcam nossos companheiros. Estou falando do Mal em si, que faz meus pulmões apodrecerem, uma colheita estragar, uma tempestade de granizo que pode levar à miséria o proprietário de uma pequena vinha que é tudo que ele tem. Nunca se perguntou por que existe o Mal no mundo, e antes de mais nada a morte, por que as pessoas gostam tanto de viver, mas um belo dia, ricos ou pobres, a morte vem levá-las, às vezes ainda crianças? Já ouviu falar da morte do universo? Eu que leio sei: o universo, quero dizer inteiro, as estrelas, o sol, a via láctea, é como uma lanterna elétrica que vai funcionando, funcionando, mas vai descarregando também e um dia se esgota. Fim do universo. O Mal do males é que o próprio universo está condenado à morte. Desde o nascimento, por assim dizer. Mas será mesmo um belo mundo, esse em que o Mal existe? Não seria melhor um mundo sem Mal?”

“É, sim”, filosofava eu.

“Certo, pode-se dizer que o mundo nasceu por engano, o mundo é uma doença do universo que já não andava tão bem sozinho e um belo dia lhe nasce um furúnculo que é o sistema solar, e nós com ele. Mas as estrelas, a via láctea e o sol não sabem que devem morrer, logo, não se incomodam. No entanto, da doença do universo nascemos nós, que para a nossa desgraça somos uns espertos e acabamos descobrindo que é preciso morrer. E assim, não somos apenas vítimas do Mal, mas temos que saber disso. Que alegria!”

“Mas quem diz que o mundo não foi feito por ninguém são os ateus e você diz que não é ateu...”

“Não sou porque não sou capaz de acreditar que todas essas coisas que vemos a nosso redor e o modo como crescem as árvores e os frutos, e o sistema solar, e o nosso cérebro nasceram por acaso. São bem-feitos demais. Logo, deve ter existido uma mente criadora. Deus.”

“E então?”

“Então como acertar Deus com o Mal?”

“Assim, como assim, não sei, deixe-me pensar...”

“É claro, deixe-me pensar, diz ele, como se durante séculos e séculos as mentes mais sagazes não tivessem pensado nisso...”

“E a que conclusão chegaram?”

“A um figo podre. O Mal, disseram, foi introduzido no mundo pelos anjos caídos. Mas como? Deus vê e prevê tudo e não sabia que anjos caídos se rebelam? Por que os criou se sabia que se rebelariam? Como alguém que fizesse pneus de modo que arrebentassem depois de dois quilômetros. Seria um idiota. Mas não, ele criou os anjos e depois ficou satisfeitíssimo, olha que esperto que sou, sei até fazer anjos... Depois esperou que se rebelassem (e sabe-se lá quanto se deleitou esperando que dessem esse passo em falso) e jogou-os no inferno. Mas então é uma hiena. Ouros filósofos pensaram diferente: o Mal não existe fora de Deus, ele o tem dentro de si, como uma doença, e passa a eternidade tentando se libertar. Pobrezinho, talvez seja assim. Mas eu, como sei que sou tísico, nunca vou colocar crianças no mundo para não criar mais desgraçados, porque a tísica passa de pai para filho. E um Deus que sabe que tem essa doença lá dele e se mete a fazer um mundo que, por melhor que seja, será sempre dominado pelo Mal? É pura ruindade. E mais, um de nós pode fazer um filho sem querer, porque se empolgou certa noite e esqueceu de usar camisinha, mas Deus, ele fez o mundo porque queria mesmo.”

“E se foi uma coisa que nos escapou, como nos escapa o xixi?”

“Você pensa que está dizendo uma coisa engraçada, mas é justamente o que pensaram outros grandes cérebros. A Deus, o mundo lhe escapuliu como nos escapa o xixi. O mundo é um efeito de sua incontinência, como alguém com a próstata inchada.”

“O que é próstata?”

“Não importa, faz de conta que dei um outro exemplo. Mas olhe, acreditar que o mundo tenha lhe escapulido, que Deus realmente não tenha conseguido se segurar e que tudo isso seja feito do Mal que ele carrega consigo, essa é a única maneira de desculpar Deus. Estamos na merda até o pescoço, mas ele também não está melhor que nós. Mas então caem como peras maduras todas as lindas coisas que contam no Oratório, sobre Deus que é o Bem e que é o ser perfeitíssimo criador do céu e da terra. Foi o criador do céu e da terra justo porque é imperfeitíssimo. E assim construiu estrelas como uma lanterna que não se pode carregar.”

“Desculpe, mas Deus pode ter construído um mundo no qual nós estamos destinados a morrer, mas o fez para nos colocar à prova e permitir que ganhássemos o paraíso e, portanto, a felicidade eterna.”

“Ou gozássemos do inferno.”

“Os que cedem às tentações do diabo.”

“Você fala como um teólogo, só que todos eles falam de má-fé. Dizem como você que o Mal existe, mas Deus nos deu o mais belo presente do mundo que é o livre-arbítrio. Podemos livremente fazer o que Deus ordena ou o que o Diabo sugere, e se depois vamos para o inferno é porque não fomos criados como escravos, mas como homens livres, só que usamos mal a nossa liberdade e isso foi uma decisão nossa.”

“Isso.”

“Isso? Mas quem lhe disse que a liberdade é um presente? Ou melhor, tome cuidado para não confundir as coisas. Nossos companheiros na montanha estão lutando pela liberdade, mas é a liberdade contra outros homens que queriam nos transformar em um monte de maquinetas. A liberdade é uma coisa bela entre o homem e homem, você não tem o direito de me fazer agir e pensar o que quiser. E os nossos companheiros eram livres para decidir se deviam ir para as montanhas ou esconder-se em algum lugar. Mas a liberdade que Deus nos deu, que liberdade é essa? É a liberdade de ir para o paraíso ou para o inferno, sem alternativas. Você nasce e já é obrigado a jogar essa partida de bisca, e se perder, vai sofrer por toda a eternidade. E se eu não quisesse jogar? Crapone que, entre tanta coisa ruim, algo de bom deve ter feito, proibiu os jogos de azar, pois há lugares em que as pessoas são tentadas e acabam se arruinando. E não vale dizer que o homem é livre para ir ou não. Melhor não induzir as pessoas à tentação. Mas isso é um presente? É como se eu o jogasse daquele penhasco e lhe dissesse para ficar tranquilo porque você tem a liberdade de agarrar um arbusto qualquer e subir de volta ou de deixar-se cair até o fundo, até se reduzir àquela carne moída que eles comem em Alba. Você poderia dizer: mas por que me empurrou se eu estava tão bem aqui? E eu respondo: para que você pudesse provar se era mesmo bom. Grande brincadeira. Você não queria provar que era bom, contentava-se em não cair.”

“Agora estou confuso. Qual é a sua ideia, então?”

“É simples, só que ninguém pensou nisto antes. Deus é mau. Por que os padres dizem que Deus é bom? Porque ele nos criou. Mas essa é justamente a prova de que é mau. Deus é o Mal. Talvez, visto que é eterno, não fosse mau há milhares de anos. Ficou mau como aquelas crianças que no verão se entediam e começam a arrancar asinha de mosca, para passar o tempo. Preste atenção, se você pensa que Deus é mau, todo problema do Mau fica claríssimo.”

“Todos mau, então, até Jesus?”

“Ah, não! Jesus é a única prova de que pelo menos nós, homens, sabemos ser bons. Para dizer tudo, não estou seguro de que Jesus fosse filho de Deus, como uma matéria boa assim pode nascer de um pai cuja maldade é tanta coisa que não sei explicar. Também não estou seguro de que Jesus realmente existiu. Talvez nós o tenhamos inventado, mas é justamente esse o milagre, que tenhamos tido uma ideia tão bonita. Ou talvez tenha existido, era o melhor de todos e dizia ser filho de Deus por bom coração, para nos convencer de que Deus era bom. Mas se você lê bem o evangelho, percebe que ele também se deu conta no final de que Deus era mau: assustou-se no monte das Oliveiras e pediu que afastasse dele aquele cálice, e necas, Deus não lhe dá ouvidos; grita na cruz, pai, por que me abandonaste, e necas, Deus estava virado para o outro lado. Mas Jesus nos ensinou o que um homem pode fazer para reparar a maldade divina. Se Deus é ruim, podemos ao menos tentar ser bons, perdoar-nos uns aos outros, não nos ferir mutuamente, cuidar dos doentes e não nos vingarmos das ofensas. Ajudar-nos entre nós já que aquele lá não nos ajuda. Entendeu como era grande a ideia de Jesus? E quem sabe como Deus ficou irritado. Jesus é o único verdadeiro inimigo de Deus, nada de Diabo. Jesus é o único amigo que nós, pobres cristos, temos.”

“Você não seria um herege como aqueles que foram queimados...”

“Eu sou o único que entendeu a verdade, só que para não ser queimado não posso andar espalhando por aí e só contei a você. Jura que não vai dizer nada a ninguém.”

“Juro”, e cruzei os dedos sobre os lábios. “Cruzin, cruzan...”

 

 

“Comenta Hugo: “A mulher nua é a mulher armada.”

 

 

“O sonho é ilógico e sonhando você não reclama que o seja.”