quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Marxismo e alienação: contribuição para um estudo do conceito marxista de alienação (Parte III), de Leandro Konder

Editora: Expressão Popular

ISBN: 978-85-7743-120-5

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 256

Sinopse: Ver Parte I


“O pensamento racionalista dialético contemporâneo, ligado à tradição marxista, reconhece a negatividade imanente ao processo de desenvolvimento do conhecimento. E identifica no conhecimento um caráter necessariamente problemático (Cf. Vieira Pinto em Consciência e realidade nacional: “a substituição de problemas é o modo normal pelo qual a sociedade em expansão conquista graus superiores de existência”).

“A consciência religiosa, entretanto, é levada a transformar os problemas em mistérios. O problema – escreve Gabriel Marcel – é algo com que a gente se encontra e que nos barra o caminho; ele está inteiro diante de mim.” (Du refus à l’invocation). O problema pode vir a ser resolvido, o mistério não. O problema é histórico, o mistério é eterno. O problema concerne à vida terrena, o mistério é coisa do céu (ou do inferno).”

 

 

“Outro pensador religioso contemporâneo, de orientação existencialista, Karl Jaspers, também exprime com grande clareza a deficiência básica da consciência religiosa. Em La Filosofia desde el punto de vista de la existencia,61 Jaspers define a atitude religiosa da consciência nos seguintes termos: “inclinar-se ante o incompreensível, na confiança de que ele está acima e não abaixo do concebível”. A adesão a esta atitude representa, pois, uma renúncia ao esforço de compreender e, ainda por cima, uma apologia de tal renúncia.”

61 La Filosofia desde el punto de vista de la existencia, Karl JASPERS, éd. Pondo de Cultura Economica (Breviários).

 

 

“As verdades da ciência são universais, mas não são eternas, estáticas, fixas, ou metafisicamente absolutas. A universalidade delas não consiste no fato de que devam permanecer inalteradas para todo o sempre; consiste na sua incorporação irreversível ao movimento que realiza o avanço do conhecimento científico.

Se não nos preveníssemos quanto a este modo de ver errôneo, estaríamos analisando antidialeticamente o desenvolvimento do conhecimento científico: estaríamos separando, à maneira metafísica, uma verdade abstrata e um erro também abstrato, esquecendo a lição de Hegel segundo a qual “o erro é um momento necessário da verdade” (La phénomenologie de l ‘esprit).”

 

 

“Como é sabido existe uma distinção muito importante, no pensamento marxista, entre antagonismo e contradição: a contradição é o gênero do qual o antagonismo é somente uma espécie (Cf. Mao Tse-tung, Sobre a contradição).65 A contradição é a origem de todo movimento, é a mola profunda de toda transformação. Pensar em suprimir a contradição é sonhar com a supressão da mobilidade das coisas, é sonhar com a supressão da realidade. A contradição, da mesma forma que o movimento (no qual ela se manifesta), é uma condição da existência como tal, é um pressuposto do existir. Já o antagonismo, por ser apenas uma forma da contradição, pode perfeitamente ser suprimido. E o antagonismo, de resto, é uma forma grosseira, primitiva, da contradição. A contradição que ainda se reveste de uma forma antagônica é aquela que implica em uma solução que tende para a violência, que acarreta grande destruição.

Ao antagonismo que vem se manifestando ao longo da história na oposição das classes sociais umas às outras – antagonismo que revela não haver ainda a humanidade rompido as amarras que a prendem à pré-história – vem correspondendo um desenvolvimento cultural no qual as formas novas e mais avançadas da consciência se colocam necessariamente, com notável frequência, numa relação de antagonismo com as formas envelhecidas da consciência, isto é, com as formas que precisam ser substituídas.

É verdade que toda nova concepção do mundo, toda nova interpretação da vida, precisa ser sempre elaborada à base do material ideológico legado pelas concepções precedentes. E isso cria um encadeamento, uma lógica interna específica da história da filosofia, cujas leis não podem ser reduzidas às leis da história econômica, social e política, e nem podem ser assimiladas a estas.

O que marca, porém, a presença dos antagonismos de classe na evolução cultural é o fato de que o encadeamento das concepções novas às que as antecederam se exprima, comumente, numa relação aguda e rudimentarmente conflitiva. Foi o antagonismo e não a contradição que fez queimar Giordano Bruno na fogueira pelas ideias científicas que Galileu, pouco depois, veio a ser obrigado a renegar.

A cada vez que se coloca a necessidade de substituir as relações de produção vigentes por outras relações que permitam maior desenvolvimento das forças sociais produtivas, as concepções novas, que exprimem a ação das classes mais diretamente empenhadas na substituição, colidem inevitavelmente com as concepções em que se manifesta o interesse das classes conservadoras. E, como as classes conservadoras procuram utilizar o poder que ainda detêm para defender os privilégios de que ainda desfrutam, o choque tende a assumir características de violência.

A ciência não tem permanecido à margem destes atritos. Por suas aplicações práticas, as ciências repercutem na tecnologia, fornecem armas que são utilizadas na luta política e, por isso, se desenvolvem sob o influxo de interesses políticos. Independentemente de terem ou não atuação política pessoal e sem deixarem de se dedicar rigorosamente à ciência, os cientistas estão sempre colaborando com uma determinada política e se opondo a outra, sancionando a ordem vigente ou ajudando efetivamente a transformá-la.

E não é só por suas aplicações práticas que as ciências engajam os cientistas na luta política e rompem a pseudoneutralidade que alguns querem exigir deles em face da vida social. No próprio plano teórico, pode-se ver que tal neutralidade é um mito.

O desenvolvimento do conhecimento científico não se tem feito por mero acúmulo de informações porque, mesmo os dados empíricos obtidos pela pesquisa espontânea, exigem, muitas vezes, um novo modo de encarar as informações obtidas anteriormente, bem como um novo modo de relacioná-las umas às outras. O enriquecimento do conhecimento científico exige assim, constantemente, uma reorganização do seu acervo.

Nestas condições, o desenvolvimento do conhecimento científico vem se realizando mediante sínteses. E tais sínteses concernem àquilo que se pode chamar de a filosofia particular de cada ciência.

65 Sobre la contradicción, Mao TSE-TUNG, ed. Lenguas Extranjeras, Pequín.

 

 

“As pesquisas no setor das ciências humanas pressupõem sempre, como ponto de partida, implícita ou explicitamente, uma determinada concepção do homem, um determinado modo de entender o que seja o homem, um determinado modo de considerar e julgar a humanidade, sua vida, seus problemas básicos, sua organização atual. As ciências humanas, por conseguinte, são essencialmente filosóficas (Cf. Goldmann, obra citada). Nelas, os juízos de realidade são, ao mesmo tempo, organicamente, juízos de valor.”

 

 

“No campo das ciências sociais as verdades são inevitavelmente prenhes de implicações políticas.”

 

 

““O homem – já escrevia Hegel – é aquilo que ele se faz por sua atividade” (Filosofia de la História).68 “O verdadeiro ser do homem é a sua operação” (La phénomenologie de l’esprit). “Ele se produz exatamente por esta atividade que é a dele. Ele não é imediato: não existe senão produzindo-se a si mesmo” (História de la Filosofia).69

Seguindo a lição de Hegel, um marxista contemporâneo como Gilbert Mury insiste: o homem “não pode ser considerado como um fato, como um dado ou como um produto; o homem é ação” (Morale chrétienne et morale marxiste).70

E, se Hegel, preso aos limites da consciência de classe de uma classe semiociosa, ainda concebia esta atividade pela qual o homem se define criando-se a cada momento como, fundamentalmente, atividade abstrata da consciência, para os marxistas, que exprimem a perspectiva de uma classe que vive da sua capacidade produtiva material, não pode haver dúvida de que a atividade autodefinidora e autoplasmadora do homem é a sua atividade concreta, global.

Além disso, se consideramos o homem a partir de uma perspectiva historicista, não podemos encarar separadamente o ser individual e as relações que, através de roda a sua história e de toda a sua plasmação, este ser individual vem mantendo com os demais seres individuais e com o todo social que ele integra. As relações entre os indivíduos e as relações entre um indivíduo qualquer e o todo social em que ele se acha inserido não são exteriores ao ser individual e nem complementares a este. Elas não são posteriores ao indivíduo, porque o indivíduo depende delas até para começar a existir. Na realidade, elas integram a própria essência do ser individual.

Tornava-se necessário, por conseguinte: a) tomar os indivíduos como seres ativos, jamais como definitivamente dados e acabados, jamais como produtos (fazendo abstração da condição deles de produtores e, inclusive, de produtores de si mesmos); b) tomar os indivíduos no contexto onde eles tenham existência real, quer dizer, não os considerar isoladamente, e sim a partir das relações sociais em que eles se formaram, ganharam existência ativa, e no quadro das quais passaram a exercer a atividade deles. O que significa que se tornava necessário superar uma tradição materialista mecanicista (que concebia os homens como produtos do meio e concebia a consciência humana como mero registrador passivo de impressões vindas de fora dela), bem como uma tradição individualista, que não reconhecia existência real no ser individual senão quando lhe atribuía um modo de ser inteiramente independente das relações sociais.

O individualismo correspondia aos interesses políticos das classes conservadoras, porque impedia a formulação de uma pedagogia revolucionária eficaz. Presa às categorias e critérios do individualismo, a ação educativa dos revolucionários não alcançava as amplas massas do povo e visava apenas os indivíduos isoladamente considerados, acabando por lidar com abstrações hipostasiadas, com indivíduos irreais.

Do individualismo, decorria um programa pedagógico moralista, inócuo: em vez da transformação do sistema de relações sociais instituído antes deles, o que só se afigura possível mediante uma ação prática, política, procurava-se promover a transformação de indivíduos abstratamente considerados (indivíduos preexistentes às relações sociais, indivíduos cuja essência é concebida sem a mediação das relações sociais). Nestas condições, desprezavam-se os meios sociais e materiais para a transformação dos homens (a instauração de uma nova organização econômica, social e política) e vinha, naturalmente, o recurso único à ingenuidade da prédica, dos bons conselhos e dos bons exemplos.”

68 Leccíones sobre la Fílosofia de la Historia Universal, HEGEL, trad. J. Gaos, ed. Rev. de Occidente, Madrid.

69 Historia de la Filosofia, HEGEL, trad. Wenceslao Roces, éd. Fondo de Cultura Economica.

70 Morale chrétienne et morale marxiste, diversos autores, éd. La Palatine.

 

 

Hegel podia estar convencido de que não estava subordinando o movimento concreto da história da humanidade a uma ideia absoluta a-histórica porque entendia que a ideia absoluta não existia independentemente da história, isto é, não era anterior à história. Mas o simples fato de que ele precisasse recorrer à tal ideia absoluta como algo transcendente em relação à história mostra que ele renunciara ao ponto de vista de um rigoroso imanentismo e, por conseguinte, ao ponto de vista de um rigoroso historicismo.

Em face da realidade histórica do capitalismo, aliás, o ponto de vista do “historicismo absoluto” (para usar a expressão com que Gramsci caracterizou o marxismo) estava reservado ao movimento capaz de transcender histórica e praticamente tal realidade, isto é, ao movimento social capaz de promover a superação do capitalismo.

Sob o capitalismo, a humanidade desenvolvera extraordinariamente o seu domínio da realidade natural, mas sacrificara ainda mais profundamente do que em épocas precedentes o seu domínio da realidade social.

As instituições capitalistas dão ao fenômeno da alienação dimensões que ele não tivera antes: dão-lhe uma feição drástica. A industrialização capitalista leva a alienação inerente ao sistema da propriedade privada a toda parte, aos mais diversos níveis da atividade social humana. “É só nesta etapa – escreve Marx – que a propriedade privada pode consolidar o seu domínio sobre o homem e pode se tornar, na mais genérica das suas formas, uma potência na história mundial” (Manuscritos de 1844).

A perspectiva de alguém que permaneça inteiramente imergido na realidade histórica do capitalismo, a perspectiva de alguém que não possa fazer a crítica desta realidade senão a partir da apreensão empírica e limitada dela, isto é, a perspectiva de alguém não entrosado com o movimento histórico imanente que a supera na prática e que permite vê-la a partir de um ponto de vista que não é o dela mesma, será necessariamente uma perspectiva capaz de ensejar apenas formas a-históricas (e portanto ilusórias) de transcendência da realidade social capitalista.

A sociedade capitalista é a sociedade em que a alienação assume, claramente, as características da reificação descrita por Lukács em Histoire et conscience de classe, com o esmagamento das qualidades humanas e individuais do trabalhador por um mecanismo inumano, que transforma tudo em mercadoria.”

 

 

“Sob a distorção provocada pelo capitalismo nas suas consciências, o comerciante é levado a enxergar no próximo um mero freguês em potencial; o trabalhador – que precisa vender a sua força de trabalho para subsistir – é levado a enxergar no próximo apenas um possível comprador da sua mercadoria ou um possível concorrente na busca deste comprador.

O mercado dita as regras dentro das quais terão de se efetuar as compras e as vendas. E o mercado capitalista, baseado na competição, é avesso a uma planificação global eficiente: seu movimento é cego, não apresenta ligação geral apreensível com os desígnios dos indivíduos.

A mecânica das operações comerciais setoriais, dos investimentos capitalistas particulares, precisa ser racional aos olhos dos capitalistas, precisa ser inteligível e seus termos precisam estar dispostos de maneira a permitir que seus resultados sejam previstos e seguramente calculados. A totalidade da economia capitalista, porém, está sujeita a um sistema de leis qualitativamente diverso do sistema de leis que se verifica nas suas partes. E, deste modo, a totalidade da economia capitalista se torna ininteligível até para os seus beneficiários.

Em face da racionalização setorial do processo de trabalho, em face das leis parciais abstratas e do cálculo das operações de que se compõe o processo, as propriedades e particularidades propriamente humanas do trabalhador aparecem, cada vez mais, como simples fontes de erro. (Cf. Lukács, in Histoire et conscience de classe). O trabalhador é considerado, então, uma espécie de robô deficiente, imperfeito, um autômato dotado de faculdade de produzir, mas incapacitado para ajustar-se completamente às exigências do processo racional da produção, quer dizer, às exigências da técnica. Mas, na realidade, o sistema capitalista não foi instituído para os trabalhadores ou em função dos trabalhadores e, com base no interesse de classe que levou à sua instituição, ainda é fácil compreender que o seu funcionamento apareça ante a consciência dos trabalhadores como uma realidade regida por leis inteiramente estranhas à vontade dos homens, isto é, como um mundo inumano, um mundo de coisas.

O que nem sempre é fácil de se compreender é o por que da apresentação da economia capitalista, na sua totalidade, como um mundo de coisas regidas por leis independentes da vontade humana ante a própria consciência dos capitalistas. (...)

O mercado capitalista mundial, por conseguinte, exprime as conveniências genéricas de uma classe – a burguesia – mas esta classe não possui uma unidade orgânica, monolítica e coerente: é uma classe corroída internamente pelo próprio princípio de vida que ela representa. Vista como uma totalidade – escreve Marx – a sociedade capitalista, neste aspecto, pode ser comparada a uma sociedade anônima “na qual os acionistas sabem o que põem nela, porém não o que hão de retirar” (El capital, volume II). O mercado funciona, de fato, à revelia dos burgueses individualmente considerados, embora em proveito da classe a que eles pertencem. Por isso, os burgueses individualmente considerados são levados a encarar a realidade do mercado como uma realidade estranha, misteriosa.

Deste modo, o mundo do mercado aparece, ante os burgueses como ante os operários, ante os trabalhadores como ante os proprietários, na forma de um mundo regido por leis independentes da vontade dos homens, um mundo hostil, sujeito a crises imprevisíveis (os economistas burgueses só conseguem encontrar explicação para cada crise, via de regra, depois da eclosão dela) e, particularmente, na forma de um mundo absurdo, onde os procedimentos mais racionais se articulam e se fundem numa irredutivelmente espessa irracionalidade global.

Enquanto não supera a percepção empírica deste mundo, o homem é levado a vivê-lo com temor.”

 

 

“O conteúdo de classe marca toda a produção ideológica burguesa como tal. Se uma determinada formulação ideológica pode ser considerada burguesa será sempre porque, independentemente dos desígnios subjetivos do seu autor ou autores, ela contribui para defender os privilégios de classe da burguesia.”

 

 

“A justificação pelos ideólogos burgueses do estatuto de propriedade de que a burguesia é a grande beneficiária não se reveste necessariamente das características do cinismo. O estudo da forma de uma determinada elaboração ideológica pode nos proporcionar, inclusive, em cada caso concreto, elementos para julgar acerca da sinceridade e da honradez do ideólogo. Marx, por exemplo, examinando as ideias de Ricardo e de Malthus, exprime o seu respeito pela honestidade científica de Ricardo (honestidade que não excluía a parcialidade do conteúdo ideológico das concepções ricardeanas) e exprime o seu desprezo pela mentalidade tacanha de Malthus. E, nesta ocasião, com o pensamento voltado para o imediatismo político de Malthus, Marx declara: “Considero ‘infame’ o homem que procura acomodar a ciência a um ponto de vista exterior a ela e tomado de empréstimo a interesses que lhe são estranhos” (Teorias sobre a mais-valia).90

Ao comparar Ricardo com Malthus, Marx identificava em ambos um horizonte limitado, uma perspectiva parcial de classe. Mas admitia que Ricardo fosse um cientista, um homem de ciência ao passo que Malthus não passava do advogado de uma causa antipopular que, por conveniências de serviço, se apresentava sob o disfarce de cientista.

São variadas as formas e variados os caminhos pelos quais uma ideia se liga a uma determinada concepção do mundo e se compromete objetivamente com o conteúdo político desta concepção do mundo. O compromisso pode ser direto, a intenção política deformadora pode ser clara e consciente. Mas o sentido ideológico de uma formulação, as suas consequências políticas e o seu conteúdo de classe podem passar despercebidos aos olhos do pensador que, neste caso, estará sendo vítima de uma ilusão, estará sendo traído por preconceitos sutis de cuja influência não se apercebera.

É justo que se diga que, do ponto de vista histórico e social, as posições teóricas reacionárias implicam em responsabilidades práticas, objetivas, que não dependem das intenções pessoais com que foram formuladas. “Cada pensador – escreve Lukács – é responsável, perante a história, pelo conteúdo objetivo da sua filosofia, independentemente dos desígnios subjetivos que a animem”. E acrescenta: “Não há ideologia inocente” (El asalto a la razón).91

Num movimento revolucionário, por exemplo, o traidor e o dissidente sincero que se dispõe a conspirar contra a direção do movimento assumem a mesma periculosidade prática aos olhos desta direção. E por isso se compreende que, no calor da luta, a direção tenda sempre a promover uma equiparação entre os traidores e os dissidentes, confundindo uns com os outros. Semelhante tendência, contudo, apresenta visíveis desvantagens, até mesmo do ponto de vista político, porque a ocorrência de uma grande traição exprime determinados problemas de outra espécie que não os de uma grande dissidência (Cf. o caso da dissidência de Trotsky). Para que uma direção revolucionária possa tomar as medidas cabíveis em um e outro caso, precisará estudá-lo a partir da constatação de que se trata de uma dissidência ou de que se trata de uma traição.

A distinção estabelecida por Marx entre o espírito científico de Ricardo e a picaretagem de Malthus poderia parecer, senão supérflua, pelo menos secundária, já que ambos encarnavam pontos de vista diversos dos do proletariado moderno. A honradez intelectual e a sinceridade de propósitos pertencem ao plano dos desígnios subjetivos, certamente, mas os desígnios subjetivos também possuem uma existência objetiva e também se manifestam na obra.

A falta de caráter de um ideólogo não vale como desvalorização apriorística da sua obra, da obra em que se consubstancia a sua ideologia: mas é um elemento dotado de certa expressividade histórica. E o fato de que uma causa só encontre para defendê-la teóricos ineptos, indivíduos desqualificados, inábeis e imediatistas, aventureiros sem lastro cultural e moedeiros falsos, é indicativo de que esta causa perdeu a sua capacidade de sensibilizar gente melhor.

Na época de Malthus, a aristocracia que este representava e cujo interesse retrógrado não comportava uma atitude otimista em face do desenvolvimento das forças sociais produtivas não tinha condições que lhe permitissem convencer espíritos autenticamente científicos da universalidade das suas verdades. E Ricardo, cuja perspectiva pessoal se identificava com a da burguesia industrial progressista, não precisava desrespeitar o conhecimento mais avançado da sua época e nem renunciar à cientificidade do seu pensamento para sustentar a excelência de um sistema que visava “a produção pela produção”, quer dizer, um sistema que visava a ilimitada expansão das forças produtivas.”

90 In Pages choísies pour une éthique socialiste, MARX, trad. organização e prefácio de Maximilien Rubel, éd. Marcel Rivière, Paris.

91 El asalto a la razón, Georg LUKÁCS, trad. Wenceslao Roces, éd. Fondo de Cultura Economica.

 

 

“À consciência não estruturada dialeticamente é inútil exigir que funcione como uma totalidade orgânica. Na sua perspectiva, as partes não se articulam em função de um todo pensado. À dissociação entre as operações sintéticas e analíticas – dissociação que se opera nas condições alienadoras da vida prática – corresponde uma forma de consciência em que a análise e a síntese se apresentam inevitavelmente dissociadas.

“A natureza da alienação – escreve Marx nos Manuscritos de 1844subentende que cada esfera aplica uma norma diversa e contraditória em relação à outra: a Moral não aplica a mesma norma que a Economia Política etc., porque cada uma delas é uma alienação particular do homem e cada uma está concentrada em uma área específica da atividade alienada e se acha, por sua vez, alienada da outra”.

O sacrifício da categoria da totalidade, a dificuldade na totalização – a impossibilidade em que se acha de encarar os fenômenos relacionando-os essencialmente uns com os outros em função do todo do processo histórico – vem criando para a burguesia entraves gravíssimos, vem limitando o desenvolvimento por esta classe das ciências sociais de que ela necessita para controlar o processo de produção capitalista em seu proveito. E é através do aparecimento destes entraves que se manifesta mais concretamente a ação da alienação neste campo particular (e particularmente importante) da produção ideológica burguesa, que é o campo das ciências humanas e sociais.”

 

 

“Ora, se é verdade que a história da arte é irredutível à história geral da humanidade, se é verdade que a história da arte é mais do que uma simples sombra da história geral da humanidade, mais do que o reflexo num espelho do movimento da história da humanidade, não é menos verdade que a história da arte só pode ser compreendida a partir daquela totalidade em que ela está inserida e que é, precisamente, a história geral da humanidade. A história da arte é parte ativa da história global dos homens, ajuda a compô-la criadoramente, mas, afinal, não passa de um aspecto vivo desta.

Quer ao imaginarem que se estão dedicando a um jogo gratuito e sem compromisso, quer ao imaginarem que estão desempenhando uma missão sagrada, por acreditarem (como Plotino, por exemplo) que no belo está presente o divino, os artistas produzem obras cuja repercussão depende menos dos desígnios subjetivos daqueles que as criaram do que das condições objetivas da criação e do consumo.

As interpretações de tipo psicologista revelam-se incapazes de explicar satisfatoriamente a repercussão e o uso social das obras de arte, por negligenciarem a priori as raízes sócio-históricas da própria inspiração individual do artista. O artista se forma e plasma a sua sensibilidade, desenvolvendo qualidades de intérprete e artesão, num intercâmbio ativo com o meio e a sociedade onde vive: tanto na aparelhagem conceitual de que se serve como na estrutura afetiva dos seus sentimentos mais íntimos, encontramos a marca das experiências vividas em uma comunicação inter-humana condicionada pelas instituições vigentes.

As pesquisas psicanalíticas trouxeram importante contribuição para a análise das condições particulares (relativas à psicologia individual) do desfrute da obra de arte. Mas a psicanálise, em geral, se manteve presa à sua origem como ciência natural. Procurando enquadrar problemas de natureza sócio-histórica em formulações limitadas à psicologia individual, a psicanálise acabou por lidar com categorias fantasmagóricas, tais como o superego da sociedade (Freud), o inconsciente coletivo (Jung) e até neuroses raciais (A. Kardiner), projetando imprópria e absurdamente dados colhidos na observação da psicologia do indivíduo isolado (e, frequentemente, dados em si mesmos mal interpretados) no plano da história feita pelos homens coletivamente (Cf. The philosophy of art history, Arnold Hauser).

O enfoque psicologista não leva a equívoco por procurar fixar a psicologia do artista naquilo que ela tem de pessoal e único, e sim por lidar com uma abstração hipostasiada: a psicologia de um indivíduo cuja história é, na sua essência, independente da história concreta dos demais homens.

Na criação artística, manifestam-se intima e indestrutivelmente mesclados elementos de raízes psicológicas e elementos de raízes sociais, mesmo porque não existe uma psicologia individual em que não estejam presentes fatores sociais e não existe um status social ao qual não corresponda um estado de espírito, um determinado quadro psicológico próprio. Impossível, portanto, cogitar seriamente de uma abordagem do fenômeno artístico que ignorasse qualquer das duas espécies de elementos. Impossível pensar numa tradução de problemas sociais em termos estritamente psicológicos; impossível aceitar um equivalente sociológico para os problemas de psicologia da criação ou para os valores estéticos considerados em si mesmos.

Uma observação do fenômeno da criação artística em suas diversas manifestações ao longo da história da arte pode nos levar à comprovação de que as obras de arte (quer quando feitas na suposição de que resultavam de um mero jogo gratuito, quer quando feitas na convicção de terem uma serventia religiosa) só adquiriram real significação cultural quando conseguiram proporcionar à humanidade um aprofundamento do seu conhecimento de si mesma e do mundo sobre o qual ela age.

Como a realidade humana não é um dado bruto ou um produto acabado e sim um movimento – um movimento que inclui necessariamente tensões, tendências e projetos – ela não se esgota no passado e no presente, ela envolve pontes edificadas na direção do futuro. A arte, como autoconhecimento da humanidade, não poderia, por conseguinte, se limitar ao inventário do que já existe de fato: cabe-lhe iluminar o que está por existir, isto é, cabe-lhe iluminar os sonhos do homem e ajudar a concretizar tais sonhos.

Por isso, a arte nos aparece como uma atividade ao mesmo tempo autorreveladora e autoplasmadora do homem. O trabalho de criação artística dá ao homem uma visão de si mesmo, tanto dos seus problemas quanto das suas potencialidades. A arte educa a sensibilidade do homem, desenvolve-lhe as riquezas especificamente humanas dos seus órgãos dos sentidos. (...)

Na literatura, os elementos sensíveis se apresentam mais permeados de elementos intelectuais e conceituais, mas o fenômeno é o mesmo: cada grande escritor, cada grande livro acrescenta alguma coisa ao autoconhecimento do homem e permite à humanidade avançar um pouco mais no sentido da humanização do mundo. (...)

O conhecimento científico, ainda segundo Lukács, se realiza através de uma observação de coisas e fenômenos singulares e da formulação de leis e princípios universais: lida, portanto, com o singular e o universal. Sua categoria básica tem de ser a da universalidade. Já a categoria central do conhecimento artístico, para o filósofo húngaro, tem de ser a categoria da particularidade, isto é, a representação simbólica do singular e do universal organicamente unidos e sintetizados.

No conhecimento científico, a categoria da universalidade reduz ao mínimo o caráter sensível, dá-lhe função subordinada em face do pensamento discursivo, conceitual. Já a categoria da particularidade (que não exclui absolutamente a universalidade) resguarda, com eficiência, o caráter sensível do conhecimento artístico. O universal na arte aparece diretamente vinculado à concreticidade singular daquilo que o artista representa. Daí o absurdo da atitude que pretende obter uma tradução conceitual que seja o perfeito equivalente daquilo que, segundo uma fórmula corrente, o artista quis dizer.

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