Editora: Expressão Popular
ISBN: 978-85-7743-120-5
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 256
Sinopse: Ver Parte
I
“O pensamento
racionalista dialético contemporâneo, ligado à tradição marxista, reconhece a
negatividade imanente ao processo de desenvolvimento do conhecimento. E
identifica no conhecimento um caráter necessariamente problemático (Cf. Vieira
Pinto em Consciência e realidade nacional: “a substituição de problemas é
o modo normal pelo qual a sociedade em expansão conquista graus superiores de
existência”).
“A consciência
religiosa, entretanto, é levada a transformar os problemas em mistérios. O
problema – escreve Gabriel Marcel – é algo com que a gente se encontra e que
nos barra o caminho; ele está inteiro diante de mim.” (Du refus à l’invocation).
O problema pode vir a ser resolvido, o mistério não. O problema é histórico,
o mistério é eterno. O problema concerne à vida terrena, o mistério é coisa do
céu (ou do inferno).”
“Outro pensador
religioso contemporâneo, de orientação existencialista, Karl Jaspers, também
exprime com grande clareza a deficiência básica da consciência religiosa. Em La
Filosofia desde el punto de vista de la existencia,61 Jaspers
define a atitude religiosa da consciência nos seguintes termos: “inclinar-se
ante o incompreensível, na confiança de que ele está acima e não abaixo do
concebível”. A adesão a esta atitude representa, pois, uma renúncia ao esforço
de compreender e, ainda por cima, uma apologia de tal renúncia.”
61 La Filosofia
desde el punto de vista de la existencia, Karl JASPERS, éd. Pondo de Cultura Economica (Breviários).
“As verdades
da ciência são universais, mas não são eternas, estáticas, fixas, ou
metafisicamente absolutas. A universalidade delas não consiste no fato de que
devam permanecer inalteradas para todo o sempre; consiste na sua incorporação
irreversível ao movimento que realiza o avanço do conhecimento científico.
Se não nos
preveníssemos quanto a este modo de ver errôneo, estaríamos analisando
antidialeticamente o desenvolvimento do conhecimento científico: estaríamos
separando, à maneira metafísica, uma verdade abstrata e um erro também
abstrato, esquecendo a lição de Hegel segundo a qual “o erro é um momento
necessário da verdade” (La
phénomenologie de l ‘esprit).”
“Como é sabido
existe uma distinção muito importante, no pensamento marxista, entre antagonismo
e contradição: a contradição é o gênero do qual o antagonismo é somente uma
espécie (Cf. Mao Tse-tung, Sobre a contradição).65 A
contradição é a origem de todo movimento, é a mola profunda de toda
transformação. Pensar em suprimir a contradição é sonhar com a supressão da
mobilidade das coisas, é sonhar com a supressão da realidade. A contradição, da
mesma forma que o movimento (no qual ela se manifesta), é uma condição da
existência como tal, é um pressuposto do existir. Já o antagonismo, por ser apenas
uma forma da contradição, pode perfeitamente ser suprimido. E o antagonismo, de
resto, é uma forma grosseira, primitiva, da contradição. A contradição que ainda
se reveste de uma forma antagônica é aquela que implica em uma solução que
tende para a violência, que acarreta grande destruição.
Ao antagonismo que
vem se manifestando ao longo da história na oposição das classes sociais umas
às outras – antagonismo que revela não haver ainda a humanidade rompido as
amarras que a prendem à pré-história – vem correspondendo um desenvolvimento cultural
no qual as formas novas e mais avançadas da consciência se colocam
necessariamente, com notável frequência, numa relação de antagonismo com as
formas envelhecidas da consciência, isto é, com as formas que precisam ser
substituídas.
É verdade que toda
nova concepção do mundo, toda nova interpretação da vida, precisa ser sempre
elaborada à base do material ideológico legado pelas concepções precedentes. E
isso cria um encadeamento, uma lógica interna específica da história da filosofia,
cujas leis não podem ser reduzidas às leis da história econômica, social
e política, e nem podem ser assimiladas a estas.
O que marca, porém,
a presença dos antagonismos de classe na evolução cultural é o fato de que o
encadeamento das concepções novas às que as antecederam se exprima, comumente,
numa relação aguda e rudimentarmente conflitiva. Foi o antagonismo e não
a contradição que fez queimar Giordano
Bruno na fogueira pelas ideias científicas que Galileu,
pouco depois, veio a ser obrigado a renegar.
A cada vez que se
coloca a necessidade de substituir as relações de produção vigentes por outras
relações que permitam maior desenvolvimento das forças sociais produtivas, as
concepções novas, que exprimem a ação das classes mais diretamente empenhadas na
substituição, colidem inevitavelmente com as concepções em que se manifesta o
interesse das classes conservadoras. E, como as classes conservadoras procuram
utilizar o poder que ainda detêm para defender os privilégios de que ainda desfrutam,
o choque tende a assumir características de violência.
A ciência não tem
permanecido à margem destes atritos. Por suas aplicações práticas, as ciências
repercutem na tecnologia, fornecem armas que são utilizadas na luta política e,
por isso, se desenvolvem sob o influxo de interesses políticos.
Independentemente de terem ou não atuação política pessoal e sem deixarem de se
dedicar rigorosamente à ciência, os cientistas estão sempre colaborando com uma
determinada política e se opondo a outra, sancionando a ordem vigente ou
ajudando efetivamente a transformá-la.
E não é só por suas
aplicações práticas que as ciências engajam os cientistas na luta política e
rompem a pseudoneutralidade que alguns querem exigir deles em face da vida
social. No próprio plano teórico, pode-se ver que tal neutralidade é um
mito.
O desenvolvimento
do conhecimento científico não se tem feito por mero acúmulo de informações
porque, mesmo os dados empíricos obtidos pela pesquisa espontânea, exigem,
muitas vezes, um novo modo de encarar as informações obtidas anteriormente, bem
como um novo modo de relacioná-las umas às outras. O enriquecimento do
conhecimento científico exige assim, constantemente, uma reorganização do seu
acervo.
Nestas condições, o
desenvolvimento do conhecimento científico vem se realizando mediante sínteses.
E tais sínteses concernem àquilo que se pode chamar de a filosofia
particular de cada ciência.”
65 Sobre la
contradicción, Mao TSE-TUNG, ed. Lenguas Extranjeras, Pequín.
“As pesquisas no
setor das ciências humanas pressupõem sempre, como ponto de partida, implícita
ou explicitamente, uma determinada concepção do homem, um determinado modo de entender
o que seja o homem, um determinado modo de considerar e julgar a
humanidade, sua vida, seus problemas básicos, sua organização atual. As
ciências humanas, por conseguinte, são essencialmente filosóficas (Cf.
Goldmann, obra citada). Nelas, os juízos de realidade são, ao mesmo tempo, organicamente,
juízos de valor.”
“No campo das ciências
sociais as verdades são inevitavelmente prenhes de implicações políticas.”
““O homem – já
escrevia Hegel – é aquilo que ele se faz por sua atividade” (Filosofia de la
História).68 “O verdadeiro ser do homem é a sua operação”
(La
phénomenologie de l’esprit). “Ele se produz exatamente por esta
atividade que é a dele. Ele não é imediato: não existe senão produzindo-se a si
mesmo” (História de la Filosofia).69
Seguindo a lição de
Hegel, um marxista contemporâneo como Gilbert Mury insiste: o homem “não pode
ser considerado como um fato, como um dado ou como um produto; o homem é ação” (Morale
chrétienne et morale marxiste).70
E, se Hegel, preso
aos limites da consciência de classe de uma classe semiociosa, ainda concebia
esta atividade pela qual o homem se define criando-se a cada momento
como, fundamentalmente, atividade abstrata da consciência, para os marxistas, que
exprimem a perspectiva de uma classe que vive da sua capacidade produtiva
material, não pode haver dúvida de que a atividade autodefinidora e
autoplasmadora do homem é a sua atividade concreta, global.
Além disso, se
consideramos o homem a partir de uma perspectiva historicista, não podemos
encarar separadamente o ser individual e as relações que, através de roda a sua
história e de toda a sua plasmação, este ser individual vem mantendo com os
demais seres individuais e com o todo social que ele integra. As relações entre
os indivíduos e as relações entre um indivíduo qualquer e o todo social em que
ele se acha inserido não são exteriores ao ser individual e nem complementares
a este. Elas não são posteriores ao indivíduo, porque o indivíduo
depende delas até para começar a existir. Na realidade, elas integram a própria
essência do ser individual.
Tornava-se
necessário, por conseguinte: a) tomar os indivíduos como seres ativos,
jamais como definitivamente dados e acabados, jamais como produtos (fazendo
abstração da condição deles de produtores e, inclusive, de produtores de si
mesmos); b) tomar os indivíduos no contexto onde eles tenham existência real,
quer dizer, não os considerar isoladamente, e sim a partir das relações sociais
em que eles se formaram, ganharam existência ativa, e no quadro das quais
passaram a exercer a atividade deles. O que significa que se tornava necessário
superar uma tradição materialista mecanicista (que concebia os homens
como produtos do meio e concebia a consciência humana como mero registrador passivo
de impressões vindas de fora dela), bem como uma tradição individualista, que
não reconhecia existência real no ser individual senão quando lhe atribuía um
modo de ser inteiramente independente das relações sociais.
O individualismo
correspondia aos interesses políticos das classes conservadoras, porque impedia
a formulação de uma pedagogia revolucionária eficaz. Presa às categorias e
critérios do individualismo, a ação educativa dos revolucionários não alcançava
as amplas massas do povo e visava apenas os indivíduos isoladamente considerados,
acabando por lidar com abstrações hipostasiadas, com indivíduos irreais.
Do individualismo,
decorria um programa pedagógico moralista, inócuo: em vez da transformação do
sistema de relações sociais instituído antes deles, o que só se afigura
possível mediante uma ação prática, política, procurava-se promover a
transformação de indivíduos abstratamente considerados (indivíduos preexistentes
às relações sociais, indivíduos cuja essência é concebida sem a mediação
das relações sociais). Nestas condições, desprezavam-se os meios sociais
e materiais para a transformação dos homens (a instauração de uma nova organização
econômica, social e política) e vinha, naturalmente, o recurso único à
ingenuidade da prédica, dos bons conselhos e dos bons exemplos.”
68 Leccíones
sobre la Fílosofia de la Historia Universal, HEGEL, trad. J.
Gaos, ed. Rev. de Occidente, Madrid.
69 Historia de
la Filosofia, HEGEL, trad. Wenceslao Roces, éd. Fondo de Cultura
Economica.
70 Morale
chrétienne et morale marxiste, diversos autores, éd. La Palatine.
“Hegel
podia estar convencido de que não estava subordinando o movimento concreto da
história da humanidade a uma ideia absoluta a-histórica porque entendia que a
ideia absoluta não existia independentemente da história, isto é, não era
anterior à história. Mas o simples fato de que ele precisasse recorrer à tal
ideia absoluta como algo transcendente em relação à história mostra que
ele renunciara ao ponto de vista de um rigoroso imanentismo e, por
conseguinte, ao ponto de vista de um rigoroso historicismo.
Em face da
realidade histórica do capitalismo, aliás, o ponto de vista do “historicismo
absoluto” (para usar a expressão com que Gramsci caracterizou o marxismo)
estava reservado ao movimento capaz de transcender histórica e praticamente tal
realidade, isto é, ao movimento social capaz de promover a superação do capitalismo.
Sob o capitalismo,
a humanidade desenvolvera extraordinariamente o seu domínio da realidade
natural, mas sacrificara ainda mais profundamente do que em épocas precedentes
o seu domínio da realidade social.
As instituições capitalistas dão ao fenômeno da alienação
dimensões que ele não tivera antes: dão-lhe uma feição drástica. A
industrialização capitalista leva a alienação inerente ao sistema da
propriedade privada a toda parte, aos mais diversos níveis da atividade social
humana. “É só nesta etapa – escreve Marx – que a propriedade privada pode
consolidar o seu domínio sobre o homem e pode se tornar, na mais genérica das
suas formas, uma potência na história mundial” (Manuscritos
de 1844).
A perspectiva de
alguém que permaneça inteiramente imergido na realidade histórica do
capitalismo, a perspectiva de alguém que não possa fazer a crítica desta
realidade senão a partir da apreensão empírica e limitada dela, isto é, a perspectiva
de alguém não entrosado com o movimento histórico imanente que a supera na prática
e que permite vê-la a partir de um ponto de vista que não é o dela mesma, será
necessariamente uma perspectiva capaz de ensejar apenas formas a-históricas (e
portanto ilusórias) de transcendência da realidade social capitalista.
A sociedade
capitalista é a sociedade em que a alienação assume, claramente, as
características da reificação descrita por Lukács em Histoire
et conscience de classe, com o esmagamento das qualidades humanas e
individuais do trabalhador por um mecanismo inumano, que transforma tudo em
mercadoria.”
“Sob a distorção
provocada pelo capitalismo nas suas consciências, o comerciante é levado a
enxergar no próximo um mero freguês em potencial; o trabalhador – que precisa
vender a sua força de trabalho para subsistir – é levado a enxergar no próximo apenas
um possível comprador da sua mercadoria ou um possível concorrente na busca
deste comprador.
O mercado dita as
regras dentro das quais terão de se efetuar as compras e as vendas. E o mercado
capitalista, baseado na competição, é avesso a uma planificação global
eficiente: seu movimento é cego, não apresenta ligação geral apreensível
com os desígnios dos indivíduos.
A mecânica das
operações comerciais setoriais, dos investimentos capitalistas particulares,
precisa ser racional aos olhos dos capitalistas, precisa ser inteligível e seus
termos precisam estar dispostos de maneira a permitir que seus resultados sejam
previstos e seguramente calculados. A totalidade da economia capitalista, porém,
está sujeita a um sistema de leis qualitativamente diverso do sistema de leis
que se verifica nas suas partes. E, deste modo, a totalidade da economia
capitalista se torna ininteligível até para os seus beneficiários.
Em face da
racionalização setorial do processo de trabalho, em face das leis parciais
abstratas e do cálculo das operações de que se compõe o processo, as propriedades
e particularidades propriamente humanas do trabalhador aparecem, cada vez mais,
como simples fontes de erro. (Cf. Lukács, in Histoire
et conscience de classe). O trabalhador é considerado, então,
uma espécie de robô deficiente, imperfeito, um autômato dotado de faculdade de
produzir, mas incapacitado para ajustar-se completamente às exigências do
processo racional da produção, quer dizer, às exigências da técnica. Mas, na
realidade, o sistema capitalista não foi instituído para os trabalhadores ou em
função dos trabalhadores e, com base no interesse de classe que levou à sua
instituição, ainda é fácil compreender que o seu funcionamento apareça ante a consciência
dos trabalhadores como uma realidade regida por leis inteiramente estranhas à
vontade dos homens, isto é, como um mundo inumano, um mundo de coisas.
O que nem sempre é
fácil de se compreender é o por que da apresentação da economia capitalista, na
sua totalidade, como um mundo de coisas regidas por leis independentes
da vontade humana ante a própria consciência dos capitalistas. (...)
O mercado
capitalista mundial, por conseguinte, exprime as conveniências genéricas de uma
classe – a burguesia – mas esta classe não possui uma unidade orgânica,
monolítica e coerente: é uma classe corroída internamente pelo próprio
princípio de vida que ela representa. Vista como uma totalidade – escreve Marx
– a sociedade capitalista, neste aspecto, pode ser comparada a uma sociedade
anônima “na qual os acionistas sabem o que põem nela, porém não o que hão de
retirar” (El capital, volume II). O mercado funciona, de fato, à revelia
dos burgueses individualmente considerados, embora em proveito da classe a que
eles pertencem. Por isso, os burgueses individualmente considerados são levados
a encarar a realidade do mercado como uma realidade estranha, misteriosa.
Deste modo, o mundo
do mercado aparece, ante os burgueses como ante os operários, ante os
trabalhadores como ante os proprietários, na forma de um mundo regido por leis
independentes da vontade dos homens, um mundo hostil, sujeito a crises imprevisíveis
(os economistas burgueses só conseguem encontrar explicação para cada crise,
via de regra, depois da eclosão dela) e, particularmente, na forma de um mundo
absurdo, onde os procedimentos mais racionais se articulam e se fundem numa irredutivelmente
espessa irracionalidade global.
Enquanto não supera
a percepção empírica deste mundo, o homem é levado a vivê-lo com temor.”
“O conteúdo de
classe marca toda a produção ideológica burguesa como tal. Se uma determinada
formulação ideológica pode ser considerada burguesa será sempre porque, independentemente
dos desígnios subjetivos do seu autor ou autores, ela contribui para defender os
privilégios de classe da burguesia.”
“A justificação
pelos ideólogos burgueses do estatuto de propriedade de que a burguesia é a
grande beneficiária não se reveste necessariamente das características
do cinismo. O estudo da forma de uma determinada elaboração ideológica pode nos
proporcionar, inclusive, em cada caso concreto, elementos para julgar acerca da
sinceridade e da honradez do ideólogo. Marx, por exemplo, examinando as ideias
de Ricardo e de Malthus, exprime o seu respeito pela honestidade científica de
Ricardo (honestidade que não excluía a parcialidade do conteúdo
ideológico das concepções ricardeanas) e exprime o seu desprezo pela
mentalidade tacanha de Malthus. E, nesta ocasião, com o pensamento voltado para
o imediatismo político de Malthus, Marx declara: “Considero ‘infame’ o homem
que procura acomodar a ciência a um ponto de vista exterior a ela e
tomado de empréstimo a interesses que lhe são estranhos” (Teorias sobre a
mais-valia).90
Ao comparar Ricardo
com Malthus, Marx identificava em ambos um horizonte limitado, uma perspectiva
parcial de classe. Mas admitia que Ricardo fosse um cientista, um homem de ciência
ao passo que Malthus não passava do advogado de uma causa antipopular que, por
conveniências de serviço, se apresentava sob o disfarce de cientista.
São variadas as
formas e variados os caminhos pelos quais uma ideia se liga a uma determinada
concepção do mundo e se compromete objetivamente com o conteúdo político desta
concepção do mundo. O compromisso pode ser direto, a intenção política
deformadora pode ser clara e consciente. Mas o sentido ideológico de uma
formulação, as suas consequências políticas e o seu conteúdo de classe podem
passar despercebidos aos olhos do pensador que, neste caso, estará sendo vítima
de uma ilusão, estará sendo traído por preconceitos sutis de cuja influência
não se apercebera.
É justo que se diga
que, do ponto de vista histórico e social, as posições teóricas reacionárias
implicam em responsabilidades práticas, objetivas, que não dependem das
intenções pessoais com que foram formuladas. “Cada pensador – escreve Lukács –
é responsável, perante a história, pelo conteúdo objetivo da sua filosofia,
independentemente dos desígnios subjetivos que a animem”. E acrescenta: “Não há
ideologia inocente” (El asalto a la razón).91
Num movimento
revolucionário, por exemplo, o traidor e o dissidente sincero que se dispõe a
conspirar contra a direção do movimento assumem a mesma periculosidade prática
aos olhos desta direção. E por isso se compreende que, no calor da luta, a
direção tenda sempre a promover uma equiparação entre os traidores e os
dissidentes, confundindo uns com os outros. Semelhante tendência,
contudo, apresenta visíveis desvantagens, até mesmo do ponto de vista político,
porque a ocorrência de uma grande traição exprime determinados problemas de
outra espécie que não os de uma grande dissidência (Cf. o caso da dissidência de
Trotsky). Para que uma direção revolucionária possa tomar as medidas cabíveis
em um e outro caso, precisará estudá-lo a partir da constatação de que se trata
de uma dissidência ou de que se trata de uma traição.
A distinção
estabelecida por Marx entre o espírito científico de Ricardo e a picaretagem de
Malthus poderia parecer, senão supérflua, pelo menos secundária, já que ambos
encarnavam pontos de vista diversos dos do proletariado moderno. A honradez
intelectual e a sinceridade de propósitos pertencem ao plano dos desígnios subjetivos,
certamente, mas os desígnios subjetivos também possuem uma existência objetiva
e também se manifestam na obra.
A falta de caráter
de um ideólogo não vale como desvalorização apriorística da sua obra, da obra
em que se consubstancia a sua ideologia: mas é um elemento dotado de certa
expressividade histórica. E o fato de que uma causa só encontre para defendê-la
teóricos ineptos, indivíduos desqualificados, inábeis e imediatistas, aventureiros
sem lastro cultural e moedeiros falsos, é indicativo de que esta causa
perdeu a sua capacidade de sensibilizar gente melhor.
Na época de
Malthus, a aristocracia que este representava e cujo interesse retrógrado não
comportava uma atitude otimista em face do desenvolvimento das forças sociais
produtivas não tinha condições que lhe permitissem convencer espíritos
autenticamente científicos da universalidade das suas verdades. E
Ricardo, cuja perspectiva pessoal se identificava com a da burguesia industrial
progressista, não precisava desrespeitar o conhecimento mais avançado da sua
época e nem renunciar à cientificidade do seu pensamento para sustentar a
excelência de um sistema que visava “a produção pela produção”, quer dizer, um
sistema que visava a ilimitada expansão das forças produtivas.”
90 In Pages
choísies pour une éthique socialiste, MARX, trad. organização e prefácio
de Maximilien Rubel, éd. Marcel Rivière, Paris.
91 El asalto a
la razón, Georg LUKÁCS, trad. Wenceslao Roces, éd. Fondo de Cultura Economica.
“À consciência não
estruturada dialeticamente é inútil exigir que funcione como uma totalidade
orgânica. Na sua perspectiva, as partes não se articulam em função de um todo
pensado. À dissociação entre as operações sintéticas e analíticas – dissociação
que se opera nas condições alienadoras da vida prática – corresponde uma
forma de consciência em que a análise e a síntese se apresentam inevitavelmente
dissociadas.
“A natureza da alienação
– escreve Marx nos Manuscritos
de 1844 – subentende que cada esfera aplica uma norma diversa e contraditória
em relação à outra: a Moral não aplica a mesma norma que a Economia Política
etc., porque cada uma delas é uma alienação particular do homem e cada
uma está concentrada em uma área específica da atividade alienada e se acha,
por sua vez, alienada da outra”.
O sacrifício da
categoria da totalidade, a dificuldade na totalização – a impossibilidade
em que se acha de encarar os fenômenos relacionando-os essencialmente uns
com os outros em função do todo do processo histórico – vem criando para a
burguesia entraves gravíssimos, vem limitando o desenvolvimento por esta classe
das ciências sociais de que ela necessita para controlar o processo de produção
capitalista em seu proveito. E é através do aparecimento destes entraves que se
manifesta mais concretamente a ação da alienação neste campo particular
(e particularmente importante) da produção ideológica burguesa, que é o campo
das ciências humanas e sociais.”
“Ora, se é verdade
que a história da arte é irredutível à história geral da humanidade, se
é verdade que a história da arte é mais do que uma simples sombra da história
geral da humanidade, mais do que o reflexo num espelho do movimento da
história da humanidade, não é menos verdade que a história da arte só pode ser compreendida
a partir daquela totalidade em que ela está inserida e que é,
precisamente, a história geral da humanidade. A história da arte é parte ativa
da história global dos homens, ajuda a compô-la criadoramente, mas, afinal, não
passa de um aspecto vivo desta.
Quer ao imaginarem
que se estão dedicando a um jogo gratuito e sem compromisso, quer ao imaginarem
que estão desempenhando uma missão sagrada, por acreditarem (como Plotino, por exemplo)
que no belo está presente o divino, os artistas produzem obras cuja repercussão
depende menos dos desígnios subjetivos daqueles que as criaram do que das
condições objetivas da criação e do consumo.
As interpretações
de tipo psicologista revelam-se incapazes de explicar satisfatoriamente
a repercussão e o uso social das obras de arte, por negligenciarem a priori as
raízes sócio-históricas da própria inspiração individual do artista. O
artista se forma e plasma a sua sensibilidade, desenvolvendo qualidades de
intérprete e artesão, num intercâmbio ativo com o meio e a sociedade onde vive:
tanto na aparelhagem conceitual de que se serve como na estrutura afetiva dos seus
sentimentos mais íntimos, encontramos a marca das experiências vividas em uma
comunicação inter-humana condicionada pelas instituições vigentes.
As pesquisas
psicanalíticas trouxeram importante contribuição para a análise das condições
particulares (relativas à psicologia individual) do desfrute da obra de arte.
Mas a psicanálise, em geral, se manteve presa à sua origem como ciência
natural. Procurando enquadrar problemas de natureza sócio-histórica em
formulações limitadas à psicologia individual, a psicanálise acabou por lidar com
categorias fantasmagóricas, tais como o superego da sociedade (Freud), o
inconsciente coletivo (Jung) e até neuroses raciais (A. Kardiner),
projetando imprópria e absurdamente dados colhidos na observação da psicologia
do indivíduo isolado (e, frequentemente, dados em si mesmos mal interpretados)
no plano da história feita pelos homens coletivamente (Cf. The
philosophy of art history, Arnold Hauser).
O enfoque
psicologista não leva a equívoco por procurar fixar a psicologia do artista
naquilo que ela tem de pessoal e único, e sim por lidar com uma
abstração hipostasiada: a psicologia de um indivíduo cuja história é, na sua
essência, independente da história concreta dos demais homens.
Na criação
artística, manifestam-se intima e indestrutivelmente mesclados elementos de
raízes psicológicas e elementos de raízes sociais, mesmo porque não existe uma
psicologia individual em que não estejam presentes fatores sociais e não existe
um status social ao qual não corresponda um estado de espírito, um determinado
quadro psicológico próprio. Impossível, portanto, cogitar seriamente de uma
abordagem do fenômeno artístico que ignorasse qualquer das duas espécies de
elementos. Impossível pensar numa tradução de problemas sociais em
termos estritamente psicológicos; impossível aceitar um equivalente
sociológico para os problemas de psicologia da criação ou para os valores
estéticos considerados em si mesmos.
Uma observação do
fenômeno da criação artística em suas diversas manifestações ao longo da
história da arte pode nos levar à comprovação de que as obras de arte (quer
quando feitas na suposição de que resultavam de um mero jogo gratuito, quer
quando feitas na convicção de terem uma serventia religiosa) só adquiriram real
significação cultural quando conseguiram proporcionar à humanidade um
aprofundamento do seu conhecimento de si mesma e do mundo sobre o qual ela age.
Como a realidade
humana não é um dado bruto ou um produto acabado e sim um movimento – um
movimento que inclui necessariamente tensões, tendências e projetos – ela
não se esgota no passado e no presente, ela envolve pontes edificadas na
direção do futuro. A arte, como autoconhecimento da humanidade, não poderia,
por conseguinte, se limitar ao inventário do que já existe de fato: cabe-lhe
iluminar o que está por existir, isto é, cabe-lhe iluminar os sonhos do homem e
ajudar a concretizar tais sonhos.
Por isso, a arte
nos aparece como uma atividade ao mesmo tempo autorreveladora e
autoplasmadora do homem. O trabalho de criação artística dá ao homem uma
visão de si mesmo, tanto dos seus problemas quanto das suas potencialidades. A arte
educa a sensibilidade do homem, desenvolve-lhe as riquezas especificamente humanas
dos seus órgãos dos sentidos. (...)
Na literatura, os
elementos sensíveis se apresentam mais permeados de elementos intelectuais e
conceituais, mas o fenômeno é o mesmo: cada grande escritor, cada grande livro
acrescenta alguma coisa ao autoconhecimento do homem e permite à humanidade avançar
um pouco mais no sentido da humanização do mundo. (...)
O conhecimento
científico, ainda segundo Lukács, se realiza através de uma observação de
coisas e fenômenos singulares e da formulação de leis e princípios universais:
lida, portanto, com o singular e o universal. Sua categoria básica tem de ser a
da universalidade. Já a categoria central do conhecimento artístico,
para o filósofo húngaro, tem de ser a categoria da particularidade, isto
é, a representação simbólica do singular e do universal organicamente unidos
e sintetizados.
No conhecimento
científico, a categoria da universalidade reduz ao mínimo o caráter sensível,
dá-lhe função subordinada em face do pensamento discursivo, conceitual. Já a
categoria da particularidade (que não exclui absolutamente a universalidade) resguarda,
com eficiência, o caráter sensível do conhecimento artístico. O
universal na arte aparece diretamente vinculado à concreticidade singular
daquilo que o artista representa. Daí o absurdo da atitude que pretende obter
uma tradução conceitual que seja o perfeito equivalente daquilo que,
segundo uma fórmula corrente, o artista quis dizer.”
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