quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Marxismo e alienação: contribuição para um estudo do conceito marxista de alienação (Parte II), de Leandro Konder

Editora: Expressão Popular

ISBN: 978-85-7743-120-5

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 256

Sinopse: Ver Parte I

 

“Depois do neolítico, a evolução da técnica de produção já justificava economicamente a exploração do trabalho escravo. E começaram a ser plasmadas formas de organização social que não só admitiam, mas até baseavam o seu funcionamento no escravismo.

A existência de condições econômicas para que numa determinada sociedade esteja em vigor o sistema escravista, por outro lado, é um dos pressupostos necessários para que nela se adote, em geral, a propriedade privada do solo.

Numerosos elementos nos levam a crer que as primeiras formas de posse da terra assumiam as características de um controle coletivo, que os campos agrícolas e as pastagens eram bens comunais, pertencentes aos clãs ou às tribos. Não existiam, de resto, particulares suficientemente poderosos para que fosse possível a imposição dos seus interesses privados à coletividade, em detrimento dos interesses desta. Além disso, a força dos particulares não lhes permitia, então, proteger eficazmente a propriedade porventura obtida contra a comunidade como um todo. Para que a propriedade privada gozasse de poder material para protegê-la, era preciso que este poder material estivesse a seu serviço específico e não a serviço de toda a comunidade. Era preciso, em outras palavras, que entre outras coisas ele – proprietário particular da terra – fosse um senhor de escravos.

Em função das exigências dos detentores das novas formas de propriedade criadas pela revolução neolítica, e em função da necessidade de se criar uma nova organização para a produção social, foi preciso montar um sistema radicalmente diverso do sistema tribal; foi preciso alterar profundamente os costumes e tradições gentílicas e modificar a própria estrutura da família. A instituição elaborada para garantir a implantação do novo sistema – conforme se pode verificar em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Engels – foi o Estado.

É claro que nada disso se deu por acaso. Para que a produtividade do trabalho crescesse mais depressa, para que o desenvolvimento econômico se acelerasse, era preciso aperfeiçoar a capacidade de organizar e de planejar do homem. Enquanto o nível tecnológico do trabalho se manteve abaixo de rudimentar, todos os homens precisavam estar diretamente ligados à produção, precisavam estar inteiramente absorvidos na luta constante pela subsistência. Quando, porém, o trabalho, no seu desenvolvimento, começou a produzir excedente econômico apreciável, surgiram condições para que alguns homens se desligassem da produção. E tais condições tiveram um aspecto historicamente positivo: permitiram a alguns desses indivíduos que vieram a desfrutar deste ócio privilegiado que eles se especializassem no estudo; e permitiram que eles desenvolvessem o raciocínio abstrato, a lógica, o pensamento especulativo. Neste sentido, devemos aceitar como justa a observação de Aristóteles na Metafísica36 de que a reflexão filosófica só passa a existir depois que a vida material se acha assegurada.

Por outro lado, o aparecimento da propriedade privada isto é, o aparecimento de uma forma de riqueza suscetível de apropriação particular – constituía poderoso estímulo para os candidatos a proprietários e acicatava aqueles que já tinham conseguido se tornar proprietários no sentido de eles procurarem aumentar as suas riquezas. Ora, o aparecimento da propriedade privada não é outra coisa senão um aspecto da divisão do trabalho. “Divisão do trabalho e propriedade privada – escrevem Marx e Engels – são termos idênticos: um diz em relação à escravidão a mesma coisa que o outro diz em relação ao produto da escravidão” (A ideologia alemã).

Pode-se dizer, portanto, que foi a divisão do trabalho com a escravização de alguns homens pelos outros – que proporcionou, nas condições de sumo atraso em que se realizou, uma intensificação no ritmo de progresso da humanidade, exercendo efeito estimulante sobre o desenvolvimento econômico das sociedades primitivas.

Mas a divisão social do trabalho, o aparecimento da propriedade privada e a formação das classes sociais (três aspectos de um mesmo processo) não tiveram apenas um efeito positivo, impulsionando o desenvolvimento econômico e promovendo – através da evidente desumanidade – um surto de progresso na evolução do homem. Coube-lhes outra consequência, além de terrivelmente trágica, historicamente negativa: a dilaceração do homem, o fracionamento da humanidade, a ruptura da comunidade espontânea, a destruição da unidade humana primitiva.

O homem primitivo tinha a visão de um todo uno porque indeterminado. E vivia em unidade orgânica com o seu grupo porque não tinha com os demais – e nem podia ter – qualquer contradição derivada de um interesse de classe. A revolução neolítica marcou a conquista da capacidade de diferenciar pelo pensamento humano. Tendo aparecido, como conquista do trabalho humano, uma supranatureza – segundo a qual os homens não eram mais criaturas que pertencessem à natureza da mesma maneira absoluta em que a ela pertencem os animais – a consciência humana passava a poder observar a natureza de fora. Como, pelo seu trabalho, o homem começava a sujeitar a natureza, transformando as coisas naturais em objeto da sua ação, a consciência humana era levada a assumir a postura ativa do homem, vivendo-a como sujeito. A capacidade de diferenciação, conquistada pela inteligência do homem, resultou do estabelecimento, pela primeira vez na história do reino animal, de uma relação prática entre um sujeito e um objeto. E era natural que a primeira diferença importante estabelecida pela consciência começasse a ser, desde logo, a diferença entre o subjetivo e o objetivo. Uma diferenciação muitíssimo mal definida, ainda, sem dúvida; mas uma diferenciação que marcava o início de uma nova fase na evolução da consciência humana.

A conquista da capacidade de diferenciar pelo pensamento humano representou um golpe mortal na forma de consciência largamente em vigência no período anterior, porque acabou com a unidade indiferenciada que era constituída pelo mundo mental do primitivo. A unidade indiferenciada da concepção mítica sofreu um processo de destruição simultâneo ao processo de destruição da comunidade espontânea anterior à divisão social do trabalho.

“Dividido o trabalho – escreve Engels – divide-se o homem” (Anti-Dühring).37 A divisão do trabalho que se sabe ter existido antes da revolução neolítica (a chamada divisão natural do trabalho), que era a divisão por sexo e por idade, não era fonte de problemas especiais para a comunidade humana. A divisão por idade, além de espontânea, era provisória: todos os homens adultos já foram crianças e, se não morrerem, tornar-se-ão necessariamente velhos. De modo que as formas de divisão do trabalho baseadas nas diferenças de idade jamais poderiam comportar em escala apreciável qualquer congelamento ou fixação artificial. A divisão do trabalho baseada na diferença de sexos, por sua vez, não acarretava qualquer opressão ou exploração da mulher, de vez que o trabalho doméstico não era degradado como hoje: era um trabalho socialmente produtivo e preenchia os requisitos de função pública tanto quanto a caça de que os homens estavam incumbidos.

Com a divisão social do trabalho é que a situação muda. A divisão da sociedade em classes repercute em cada indivíduo. Já não é mais razoável esperar que cada indivíduo veja realmente no próximo um seu semelhante, isto é, um indivíduo potencialmente igual a ele, porque, com a diferenciação das condições sociais e a pertinência a diferentes classes, a semelhança entre os indivíduos sofre um esvaziamento de sentido. Como é que um aristocrata proprietário de escravos, desfrutando o ócio que lhe proporciona a exploração do trabalho alheio, poderia ver com clareza e concretamente no escravo que lhe está subjugado um seu igual?

A separação entre o trabalho intelectual e o trabalho manual cava um abismo entre a teoria e a prática, provocando o exílio da teoria para fora da prática e instaurando formas de atividade das quais a teoria tinha necessariamente de estar banida. De dois aspectos de uma mesma realidade – a práxis humana – a teoria e a prática passam a ser duas realidades independentes, capazes de se estranhar reciprocamente.

“A divisão do trabalho só se converte em verdadeira divisão a partir do momento em que se separam trabalho físico e trabalho intelectual. A partir deste instante, já a consciência pode imaginar-se realmente algo mais e algo diverso de consciência da prática existente; pode imaginar que representa realmente algo sem estar representando algo real. A partir deste instante, ela se acha em condições de se emancipar do mundo e de se entregar à criação de teoria pura” (Marx e Engels, A ideologia alemã).

A consciência divorciada da prática marca, no homem, a alienação.

36 La métaphysique, ARISTÓTELES, trad. J. Tricot, éd. Vrin, Paris.

37 Anti-Dühring, ENGELS, ed. Pueblos Unidos, Montevideo.

 

 

“Por força da cisão entre indivíduo e espécie, os indivíduos tendem a ter deles mesmos uma visão mutilada, uma vez que não se veem como indivíduos integrados normalmente numa espécie. Torna-se difícil compreender claramente a unidade do gênero humano, pois esta unidade se acha duramente atingida, na prática, pela divisão do trabalho e pela propriedade privada. Passam a faltar-lhes condições que propiciem uma clara percepção daquilo que eles possuem de comum uns com os outros; e as diferenciações individuais passam a ser observadas independentemente da história concreta e das condições materiais de vida dos homens.

 

 

A ideologia é uma forma de pensamento estruturalmente comprometida com a alienação. Daí o juízo depreciativo que os marxistas emitem, em geral, sobre as formas ideológicas de pensamento; parece-lhes, como pareceu a Engels, que o pensamento ideológico é um tipo de pensamento vinculado a um desenvolvimento unilateral do conhecimento humano. Como escreveu Engels numa carta a Mehring: “A ideologia é um processo que o pretenso pensador cumpre de acordo com a consciência, mas uma consciência falsa. As forças motrizes que a conduzem permanecem-lhe desconhecidas. Por isso, ele imagina forças motrizes falsas ou aparentes”.

Por outro lado, o pensamento de tipo ideológico representa inestimável avanço em relação à concepção mítica de que se serviam os homens no período anterior. Para que os homens tivessem chegado a poder pensar em termos de pensamento ideológico – isto é, em termos de pensamento racional discursivo – eles tiveram de romper as cadeias que os prendiam a uma condição bem próxima da animalidade; tiveram de adquirir, pelo desenvolvimento do trabalho e do conhecimento, a situação já especificamente humana de relativa independência em face da natureza.

A concepção mítica dos homens primitivos só comportava possibilidades de um desenvolvimento muito limitado do conhecimento humano. As exigências de desenvolvimento do conhecimento humano – correspondentes às exigências de desenvolvimento do trabalho humano – demandavam um rompimento com a percepção estreitamente empírica. Demandavam justamente a elaboração do pensamento abstrato racional (que, nas circunstâncias históricas da sua elaboração, não poderia ser senão ideológico).

Solicitada a assumir a realidade no pensamento, a consciência humana precisava, por uma operação de abstração, distanciar-se do real. Nas condições de alienação criadas pela divisão do trabalho, este distanciamento, esta abstração, tiveram como consequência o aparecimento de categorias desvirtuadas, que não traduziam com fidelidade os fenômenos a que se referiam.

Surgem, então, aspectos nos quais a consciência ideológica reflete de maneira necessariamente unilateral, mutilada, a práxis do homem. Os conceitos de corpo e alma, de matéria e espírito passam a ser capazes de representar realidades contraditórias, desligadas entre si. Os dois momentos de uma mesma realidade – a experiência humana – tornam-se duas realidades autônomas: a realidade objetiva e a realidade subjetiva.

A partir de então, toda vez que é levado a encarar uma contradição que se manifesta na esfera da experiência humana, o pensamento ideológico tenderá sempre, naturalmente, para colocar todo o real ou do lado do sujeito ou do lado do objeto; isto é, toda vez que é levado a analisar uma contradição entre o sujeito e o objeto da experiência humana, o pensamento ideológico será constrangido a optar por um dos aspectos do real, incorrendo em inevitável unilateralidade.

Daí a controvérsia que se renova através de toda a evolução do pensamento ideológico, ao longo das transformações sofridas pelas sociedades divididas em classes, entre materialistas e idealistas. Ambas as posições exprimem, em última análise, uma mesma impotência para resolver o problema que afloram; constituem, mesmo, como que os dois polos opostos e complementares desta impotência.

E por que se verifica tal impotência? Por que o pensamento ideológico é levado a optar por uma adesão unilateral ou ao polo subjetivo ou ao polo objetivo?

Porque o pensamento ideológico é o produto típico de indivíduos que se ressentem das condições em que vivem, dentro de um mundo dividido, dentro de sociedades que sentem os efeitos da divisão em classes. É o produto típico de uma unidade de um todo desintegrado.

A consciência ideológica é a forma de consciência característica do indivíduo que não se vê em função da história do seu comércio ativo com os outros indivíduos e com a natureza. É a forma de consciência característica do indivíduo que não apreende inteiramente a sua experiência, porque não a apreende como experiência social.

Não apreendendo a sua experiência como experiência social concreta, o portador da consciência de tipo ideológico tende a encará-la a partir de uma perspectiva falsa: ou ele a vê como uma experiência na qual o sujeito desenvolve uma atividade efetivamente criadora (mas aparece como abstração hipostasiada, como espírito ou como pensamento puro) ou ele a vê como uma experiência na qual o sujeito figura em atitude puramente receptiva, limitando-se a registrar impressões vindas de fora, vindas do mundo do objeto. Em nenhum momento, o portador da consciência de tipo ideológico se situa no interior da experiência a fim de compreendê-la, pois em nenhum momento consegue sistematizar a sua compreensão da experiência como experiência social, em nenhum momento consegue realizar nela, experiência, a consciência da unidade indivíduo-espécie.

É claro que a situação deste indivíduo desgarrado da espécie é tudo menos cômoda: na medida em que se vê levado a pensar em si mesmo ele procura recompor a unidade perdida, a unidade instintiva e animal que o afastamento da natureza destruiu.

Dada a impossibilidade prática de forjar uma nova unidade concreta, nas condições de insuficiente domínio da natureza, o homem recorre a uma unificação simbólica, no plano da transcendência religiosa. Henri Lefebvre descreve, em linhas gerais, como veio se desenvolvendo este esforço através da história: “A unidade do homem com a comunidade era procurada nos ritos religiosos ou nos imperativos morais. A unidade do homem com o universo era julgada alcançada em certos momentos de êxtase, nos quais a consciência saía fora de si mesma, e que só podiam ser atingidos com intensidade através de uma longa ascese. Estes transportes não proporcionavam, todavia, a verdadeira solução. Passado o momento da conversão, ou da comunhão, ou do êxtase, o ser humano reencontrava o seu mal com uma aflição ainda mais profunda e mais desesperada: era o ser fora do humano.” (Le materialisme dialectique).

Por outro lado, cumpre-nos acrescentar à observação de Lefebvre que nem só de êxtases ou de transportes vive a religião. A solução religiosa para a questão da reunificação do homem não se limita aos sentimentos exacerbados daqueles momentos em que a consciência sai de si mesma; ela tem implicado sempre, através da história, em um trabalho de justificação teórica e legitimação pela argumentação das verdades intuídas pelos crentes.

Neste ponto, aliás, a religião se diferencia do pensamento mágico e das formas de apreensão do real características do homem do paleolítico, pois as concepções religiosas já são dotadas de certa organicidade conceitual e pressupõem um avanço em relação à consciência pré-ideológica, precisamente na medida em que a religião já se define como uma ideologia.

O desenvolvimento da produtividade do trabalho humano e o aprofundamento da dominação da natureza pelo homem implicavam não só no aparecimento de realidades mais complexas na própria atividade humana como, também, no desvendamento de graus de maior complexidade na realidade natural, sobre a qual se exercia a atividade humana. A fim de incorporar os novos dados e estabelecer entre eles as conexões exigidas pelas novas condições, o misticismo se via cada vez mais obrigado a não se limitar a uma mera sucessão de arrebatamentos.”

 

 

“Resumindo as considerações dos dois capítulos precedentes, podemos estabelecer, de maneira esquemática, o seguinte: à vigência de uma concepção mítica de difícil reconstituição (correspondente à economia puramente coletora e predatória do período paleolítico), veio a suceder-se uma nova forma de consciência já especificamente humana, representando uma atitude ativa do homem em face da natureza e correspondente à revolução neolítica e ao estabelecimento de uma economia produtora.

Como a conquista de maior independência do homem em face da natureza não se pôde fazer senão através da divisão do trabalho, ao desenvolvimento do conhecimento humano correspondeu, em contrapartida, uma cisão entre o homem e ele mesmo, uma separação entre o ser individual e o ser genérico, uma dilaceração no interior do humano. O pensamento humano, que começava a se libertar das formas toscamente empíricas de apreensão do real e empreendia a conquista do raciocínio abstrato, passou desde logo a se ressentir desta dilaceração, dando lugar a um rompimento entre a teoria e a prática.

A consciência elaborada nestas circunstâncias, dotada de aparelhagem conceitual que a tornava estruturalmente muito mais complexa, mais evoluída e dotada de maior organicidade do que qualquer das formas de consciência possíveis dentro das condições de existência do homem primitivo, apresentava-se, contudo, desde o início, como viciada pela divisão do trabalho e pela alienação daí resultante.

Num período ainda situado nos primórdios da história escrita da humanidade e mesmo nos períodos imediatamente subsequentes, até o aparecimento da filosofia grega, a forma exclusiva da consciência ideológica (ainda impregnada de elementos da concepção mítica) foi imposta pelo rigoroso monopólio da religião. No século 5 antes da nossa era, entretanto, em uma sociedade extraordinariamente desenvolvida e florescente, a consciência ideológica passou a se revestir, em certos casos, de uma forma filosófica, que, ao lado das tradicionais explicações religiosas, apresentava interpretações leigas do mundo.

A religião não renunciou de boa vontade aos seus privilégios de exclusividade e patrocinou medidas práticas de repressão contra os filósofos; mas acabou tendo que se conformar e, para sobreviver, não teve outro jeito senão tornar-se também filosofante e passar a falar a linguagem dos novos tempos, dando conta das questões específicas destes novos tempos.

A rigor, não foi difícil à religião sobreviver, porque dentro das condições sociais típicas do escravismo, do feudalismo e do capitalismo, nas épocas posteriores, ela continuava a corresponder a uma necessidade socialmente sentida. Neste sentido, talvez se possa dizer que a consciência religiosa é a forma por excelência do pensamento alienado. Ou, para dizê-lo nos termos de Marx: “A religião é, na realidade, a consciência e sentimentos próprios do homem que ou ainda não se encontrou ou então já se perdeu”. “A religião é apenas o sol ilusório em torno do qual se move o homem enquanto não se move em torno de si mesmo” (Contribuição à crítica da Filosofia do Direito de Hegel).44

Enquanto a humanidade afinal reunificada não puder se reapoderar do seu próprio projeto, enquanto não for superada a alienação do homem em relação ao seu trabalho e ao fruto do seu trabalho, enquanto não se desenvolver a real dominação pelo homem tanto da realidade material quanto da realidade social, a consciência religiosa manifestará a extraordinária capacidade de resistência histórica que vem manifestando ao longo de todos estes séculos. “Em geral, o reflexo religioso do mundo real só poderá desaparecer quando as condições de trabalho e vida prática mostrarem cotidianamente aos homens relações mais transparentes e racionais não apenas dos homens entre eles, mas também dos homens com a natureza. A vida social, cuja base está formada pela produção material e pelas relações em que esta implica, não será libertada da nuvem mística que a encobre senão no dia em que nela, vida social, venha a se manifestar a obra de homens livremente associados, atuando conscientemente e como senhores do seu próprio movimento social” (Marx, O capital).

Adotada esta perspectiva na análise da religião, deixa de ter sentido uma atitude antirreligiosa. Se a religião manifesta um estado de coisas dentro do qual ela é necessária, a única maneira de suprimi-la é agir tendo em vista a modificação de tal estado de coisas, de que decorre a necessidade da religião. O exercício de qualquer violência contra a consciência dos crentes não resultaria apenas inócuo: exprimiria também elevado teor de religiosidade na intolerância dos antirreligiosos.

De resto, um espírito verdadeiramente científico não pode deixar de se preocupar com a eficácia que fez com que a consciência religiosa atravessasse tão longo período da história da humanidade, demonstrando tamanha vitalidade. Explicações como a de Barbusse, de que somente agora estamos superando o período da “patologia teológica” na história humana, refletem pouca sensibilidade para a validez histórica de que se revestiram as formulações religiosas em numerosas ocasiões nas quais elas contribuíram decisivamente para o avanço do conhecimento humano.

Não há, no fenômeno religioso encarado em si mesmo, nada de anormal ou de patológico. Se, nos casos de alguns indivíduos, as manifestações de sentimento religioso refletem desequilíbrio psíquico e até morbidez, isso não ocorre por serem eles crentes e sim por serem crentes doentes.

Convém lembrar que, para determinadas estruturas sociais, a consciência geral normal tem sido mesmo a consciência religiosa. A tendência para ver na religião “apenas uma neurose da humanidade” (como escreve Freud em Moisés e o monoteísmo)45 incapacita o observador para uma justa compreensão das linhas de força apresentadas pelo pensamento religioso dentro de determinadas condições históricas concretas.

“A história das ciências – escreve Michel Verret – não nos autoriza, de modo algum, a opor mecanicamente o desenvolvimento do conhecimento científico às formas de cultura míticas e religiosas que o precederam”. E conclui: “A oposição entre os dois termos e a passagem de um ao outro pressupõem, com efeito, a unidade dialética entre ambos” (Les marxistes et la religion).46

Um exame da estrutura da consciência religiosa nos remete, inevitavelmente, às condições históricas concretas em que ela se gera. Essas condições nos mostram o homem já diferenciado dos outros animais, desenvolvendo um trabalho especificamente humano sobre a natureza, libertando-se paulatinamente das formas de percepção primitivas.

Vemos o homem já empenhado na conquista de uma vida propriamente humana, vemo-lo não mais como joguete dos instintos e forças naturais, mas dotado de reflexão, isto é, dotado de capacidade de apreender o real na consciência para plasmá-lo segundo os seus desígnios conscientes. Mas vemos, igualmente, a fragilidade com que se apresenta a conquista, o nível deficientíssimo de dominação sobre a natureza, o aparecimento de uma forma institucionalizada de antagonismo nas relações inter-humanas, a divisão da sociedade em classes, a cisão entre o indivíduo e a espécie.

Vemos, em suma, a conquista de uma existência efetivamente humana como a conquista de condições de existência extremamente problemáticas e a aquisição de uma compreensão problemática destas condições.

A vida conquistada era de tal modo precária, a morte do indivíduo anulava-a com tamanha rapidez e de maneira tão fulminante que a consciência individual não encontrava meio de legitimá-la e justificar o esforço, o sofrimento em que implicava a conquista. E não havia – é claro – como pensar em uma forma qualquer de legitimação das penas individuais através da sobrevivência do indivíduo na espécie, já que a espécie – desintegrada – não passaria de uma abstração pouco eloquente aos olhos do indivíduo, enquanto suas penas eram para ele realidades inequivocamente concretas.

Nas sociedades primitivas, anteriores à cisão entre o indivíduo e a espécie, não seria assim. Lévy-Bruhl observou: “Enquanto o indivíduo não concebe a sua existência como passível de ser desligada da do grupo, ele não concebe também a cessação da sua existência pessoal. Quando deixa de viver no grupo, está apenas mudando de residência” (Carnets).47 Nestas sociedades, os ritos funerários estabelecem comunicação direta com os morros e pressupõem a presença (invisível mas efetiva) destes entre os vivos.

Na sociedade dividida em classes, entretanto, os indivíduos se ressentem de um isolamento fundamental. Os sentimentos de espontânea solidariedade inter-humana já não encontram campo para se realizarem livremente. A vida social gira em torno da propriedade e os indivíduos são incitados a se escravizarem uns aos outros, transformando-se o próximo de alter ego que era em meu escravo potencial.

A dissolução da sociedade comunal primitiva não acarreta, certamente, a destruição pura e simples dos elementos de religiosidade já existentes na mentalidade primitiva. A arqueologia moderna não deixa margem para dúvidas quanto à existência destes elementos. Do médio paleolítico, segundo informa Gordon Childe, nos chegaram inequívocos vestígios de ritos fúnebres (O que aconteceu na história). E Charles Hainchelin chega até a dividir tais elementos em duas categorias genéricas: elemento ativo – a magia – e elemento passivo – o animismo – constituindo ambos, um como complemento do outro, uma espécie de “núcleo inicial da religião” (As origens da religião).48

Todavia, se os elementos de religiosidade das formas de consciência pré-ideológica não desaparecem com o advento da nova fase (nas orações, nos amuletos etc., encontramos sobrevivência da magia), a verdade é que estes elementos subsistem superados, isto é, conservados, mas dentro de uma superação. O novo sistema de ideias organicamente articuladas; elaborado com a finalidade de formular uma explicação racional do mundo, enquadrava os elementos de religiosidade herdados do período precedente transformando-os qualitativamente, estipulando-lhes funções diferentes das que tinham na mentalidade primitiva.

O primitivo não experimentava a necessidade de explicar a natureza porque estava inteiramente integrado nela e pertencia a ela. Após a revolução neolítica, o humano começa a se emancipar do natural: o homem faz dois com a natureza.

O desenvolvimento da dominação das forças naturais colocou exigências práticas que levaram a consciência humana a uma profunda transformação. Uma nova realidade se desvendava, se criava. Ao caráter problemático da existência dos indivíduos, no novo estágio, passava a corresponder uma consciência problemática.

Nas condições anteriores, a vida se legitimava a si mesma; agora, a consciência humana precisava explicá-la, justificá-la. Antes, era a natureza que, através da imposição das suas leis, dava sentido à vida; depois que o homem iniciou a conquista da sua vida de homem uma vida simultaneamente natural e supranatural cabia-lhe doar um sentido à sua existência.

O problema do sentido a ser encontrado para a vida, por conseguinte, estava colocado para o homem. E para que homem? Para o homem frágil, inexperiente, que mal começava a controlar a natureza, que só a controlava em grau limitadíssimo. Para o homem dividido, para o ser individual mutilado de uma espécie desintegrada.

A partir das condições em que o problema estava colocado, não era fácil encontrar uma solução para ele. O conhecimento religioso – dado o seu caráter basicamente imediato – proporcionava uma resposta que era, ao mesmo tempo, capaz de proporcionar certo conforto espiritual mínimo necessário aos indivíduos e era imune aos eventuais ataques do precário conhecimento científico esboçado até então.

A questão do sentido da vida, assim, desde o seu primeiro equacionamento mais ou menos consequente, encontrou nas condições sociais vigentes uma resposta pronta de tipo religioso. Como escreveu o filósofo polonês Adam Schaff: “Quando se é crente, a questão se resolve de maneira muito simples: a vida tem sempre um sentido (quer dizer, vale a pena viver, quaisquer que sejam as circunstâncias), pois mesmo o sofrimento, a dor e a morte são conformes à intenção do Ser Supremo, que nos prepara, em compensação, uma recompensa na outra vida, ou que nos aplica um castigo terreno pelos nossos pecados” (La pensée nº 101).49

Na medida em que a explicação contida na resposta religiosa, antes mesmo de ser elaborada, já correspondia a uma necessidade sentimental e intuitivamente sentida pelos homens, em decorrência das condições históricas, ela tinha garantida a sua aceitação, difusão e vigência, antes mesmo do aperfeiçoamento da sua racionalização.

Kant descreveu, em termos muito interessantes porque insuspeitos, na sua Crítica da razão prática,50 como encara o crente típico (que Kant chama de “o homem honesto”) a racionalização da sua fé: “O homem honesto pode perfeitamente dizer: eu quero que exista um Deus, que a minha existência neste mundo seja ainda, fora da conexão natural, uma existência num puro mundo do entendimento, a fim de que a minha duração seja infinita; eu me agarro firmemente a isso e não deixo que me levem essas crenças, pois este é o único caso em que o meu interesse – que eu não posso absolutamente abandonar – determina inevitavelmente o meu julgamento, sem levar em conta as sutilezas e mesmo que eu não tenha a opor-lhes outras sutilezas mais especiosas, contestando-as”.

O poeta Baudelaire também exprimiu admiravelmente o caráter essencialmente cego como que, na sua gênese, a necessidade da fé é experimentada pelos crentes, escrevendo: “Mesmo que Deus não existisse, a religião ainda seria santa e divina. Deus é o único ser que, para reinar, não tem sequer necessidade de existir” (Fusées).51

O que nos interessa aqui, entretanto, é salientar que, a despeito da autossuficiência sentimental subjetiva da fé, a religião, por razões históricas e sociais, tem-se revestido de formas ricas de aparelhagem conceitual e com elevado nível de racionalização.”

44 Contribution à la critíque de la Philosophie du Droit de Hegel, MARX, in Oeuvres philosophiques, vol. 1, trad. Molitor, éd. Costes, Paris.

45 Moise et le monothéisme, S. FREUD, éd. Gallimard, Paris.

46 Les marxistes et la religion, essai sur l’athéisme moderne, Michel VERRET, éd. Sociales, Paris.

47 Carnets, LÉVY-BRUHL, éd. Presses Univ. France, Paris.

48 As origens da religião, Charles HAINCHELIN, ed. Fulgor, São Paulo.

49 La pensée, revue du rationalisme modem e, nº 101, Paris.

50 Critique de la raison pratique, E. KANT, trad, Picavet, éd. Presses Univ. France, Paris.

51 Fusées, in Journaux intimes, Charles BAUDELAIRE, éd. G. Cres et Cie., Paris.

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