sábado, 25 de novembro de 2017

História Natural da Religião (Parte II) – David Hume

Editora: Unesp
ISBN: 978-85-7139-604-3
Tradução, Apresentação e Notas: Jaimir Conte
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 160
Sinopse: Ver Parte I


“Os homens não param de se olhar, e não há meio nenhum de lhes fazer entrar na cabeça que o turbante de um africano não é uma moda nem melhor nem pior que a do capuz de um europeu. “É um homem honesto”, dizia o príncipe de Salé, ao falar de Ruyter. “É uma lástima que ele seja cristão”.
Suponhamos que um professor da Sorbonne pergunte a um eclesiástico de Saís: “Como podeis adorar alhos e cebolas?”. “Se nós os adoramos”, responde este último, “pelo menos não os comemos ao mesmo tempo (como a hóstia). Mas que estranhos objetos de adoração são os gatos e os macacos!”, diz o erudito doutor. “Eles são pelo menos tão bons quanto as relíquias ou os ossos podres dos mártires”, responde nosso antagonista, que não é menos sábio. “Não sois louco”, insiste o católico, “a ponto de preferir cortar a garganta de alguém em vez de cortar um repolho ou um pepino?” “Sim”, responde o pagão, “reconheço, se confessásseis que são ainda mais loucos os que disputam sobre a preferência dentre livros de sofismas, que todos reunidos não valem um repolho ou um pepino”.
Todo observador imparcial (embora, infelizmente, existam poucos observadores imparciais) julgará facilmente que, se para estabelecer um sistema popular bastaria mostrar os absurdos de outros sistemas, todo adepto de qualquer superstição poderia justificar seu apego cego e fanático aos princípios nos quais foi educado. Mas na falta de um conhecimento tão amplo sobre o qual fundar essa confiança (e talvez seja melhor não tê-lo), não falta zelo religioso e fé suficientes entre os homens. Diodoro De Sicília oferece a esse respeito um exemplo notável, do qual ele mesmo foi testemunha ocular. No tempo em que o nome romano inspirava o máximo terror no Egito, todo o povo levantou-se com a máxima fúria contra um soldado legionário que, sem querer, se tornou culpado de cometer o sacrilégio ímpio de matar um gato; e todos os esforços do príncipe foram incapazes de salvá-lo. O senado e o povo de Roma, estou persuadido, não teriam se mostrado, nessa época, tão suscetíveis em relação às suas divindades nacionais. Pouco tempo depois, eles votaram abertamente em Augusto para um lugar nas casas celestiais; e teriam destronado todas as divindades do céu por sua causa, caso ele tivesse dado a impressão de querer isso. “Presens divus habebitur Augustus”, diz Horácio. Isso é muito importante. E a mesma circunstância não foi considerada completamente indiferente em outras nações e em outras épocas.
Apesar da santidade de nossa religião sagrada, diz Cícero, nenhum crime é mais comum entre nós do que o sacrilégio. Mas nunca se ouviu dizer que um egípcio violou o templo de um gato, de um íbis ou de um crocodilo? Não existe tortura nenhuma, diz o mesmo autor em outra parte, à qual um egípcio não se submeteria em vez de ferir um íbis, uma serpente, um gato, um cão ou um crocodilo. Assim, é estritamente verdadeiro o que Dryden observa:
Qualquer que seja a descendência de sua divindade, de um tronco, de uma pedra, ou de outro objeto familiar, seus servos são tão apaixonados na sua defesa, como se ela tivesse nascido do ouro fundido.”


“Podemos observar que, apesar do caráter dogmático e imperioso de toda superstição, a convicção dos homens religiosos é, em todas as épocas, mais fingida que real, e apenas raramente e em certa medida se aproxima a firme crença e a firme convicção que nos governa nos assuntos comuns da vida. Os homens não ousam confessar, nem mesmo no seu íntimo, as dúvidas que os assaltam sobre essas questões: ostentam uma fé sem reservas e dissimulam ante si mesmos sua real incredulidade, por meio das mais categóricas afirmações e do mais absoluto fanatismo. Mas a natureza é mais forte que seus esforços e não permite que a luz obscura e pálida, surgida nessas sombrias regiões, iguale-se às impressões vívidas produzidas pelo senso comum e pela experiência. A habitual conduta dos homens contradiz suas próprias palavras e mostra que seu assentimento nessas questões é uma operação inexplicável da mente, situada entre a incredulidade e a convicção, mas que está muito mais próxima da primeira que da segunda.”


“Mas a fim de mostrar mais claramente que é possível que uma religião represente a divindade sob aspectos ainda mais imorais e desagradáveis do que aqueles sob os quais os antigos pintavam seus deuses, citaremos uma longa passagem* de um autor de gosto e imaginação, que sem dúvida não foi um inimigo do cristianismo. Trata-se do cavalheiro Ramsay, escritor que tinha uma tendência bastante louvável para a ortodoxia. Sua razão não via nenhum problema mesmo nas doutrinas que, segundo os livres pensadores, mais levantam dificuldades: a trindade, a encarnação, a redenção; somente os sentimentos de humanidade desse autor, os quais ele parece ter tido de sobra, revoltavam-se contra as doutrinas da punição eterna e da predestinação. Ele se exprime assim: “Que estranhas ideias” diz ele, “um filósofo indiano ou chinês teria de nossa santa religião se julgasse a partir das exposições que dela nos dão os livres pensadores modernos e os doutores fariseus de todas as seitas!”. Segundo o sistema odioso e muito vulgar desses zombadores incrédulos e desses escrevinhadores crédulos, “o Deus dos judeus é um ser muito cruel, injusto, parcial e extravagante. Ele criou, há cerca de seis mil anos, um homem e uma mulher, e os colocou num belo jardim da Ásia, do qual nada resta. Esse jardim era repleto de todas as espécies de árvores, de fontes e de flores. Ele permitiu que eles comessem todos os tipos de frutos desse belo jardim, exceto os de uma árvore plantada no meio dele e que tinha a virtude secreta de mantê-los numa saúde e vigor corporal e espiritual eternos, de desenvolver seus poderes naturais e de torná-los sábios. O diabo assumiu a forma de uma serpente e tentou a primeira mulher a comer desse fruto proibido; ela seduziu seu marido a fazer o mesmo. Para punir essa pequena curiosidade e esse desejo natural de vida e de conhecimento, Deus não somente expulsou nossos primeiros pais do paraíso terrestre, mas condenou também toda a posteridade aos sofrimentos temporais, e a maioria de seus descendentes ao mal eterno, ainda que as almas dessas crianças inocentes não tenham mais relação nenhuma com a de Adão do que com as de Nero e de Maomé, já que, segundo os tolos escolásticos, os autores de fábulas e os mitólogos, todas as almas são criadas puras e são insufladas imediatamente no corpo mortal a partir do momento em que o feto é formado. Para aplicar esse decreto bárbaro e parcial da predestinação e da danação, Deus abandonou todas as nações às trevas, à idolatria e à superstição, sem qualquer conhecimento redentor ou graças salutares, exceto uma nação que ele escolheu como sua nação particular. Essa nação eleita era, entretanto, a mais estúpida, a mais ingrata, rebelde e pérfida de todas. Após ter guardado, durante mais de quatro mil anos, a maior parte da espécie num estado de reprovação, Deus mudou de repente de opinião, e teve afeição por outras nações além da nação judaica. Ele enviou então ao mundo seu filho único, sob forma humana, para que ele aplacasse sua ira, satisfizesse sua justiça vingativa e morresse pelo perdão dos pecados. Poucas dessas nações, entretanto, ouviram falar desse evangelho – e todas as demais, ainda que colocadas numa insuperável ignorância, são condenadas sem exceção e remissão possíveis. A maioria dos que ouviram falar a seu respeito mudou apenas algumas noções especulativas acerca de Deus, bem como algumas formas visíveis de culto, pois, em outros aspectos, o conjunto dos cristãos continuou tão corrompido quanto o resto dos homens em seu comportamento moral; sim, muito mais perverso e criminoso, uma vez que suas luzes eram maiores. À parte um pequeno número eleito, todos os demais cristãos, como todos os pagãos, serão condenados para sempre; o grande sacrifício oferecido a sua saúde permanecerá sem objeto e sem efeito; Deus encontrará sempre suas delícias em seus tormentos e em suas blasfêmias; e ainda que possa por um fiat mudar seu coração, jamais, entretanto, eles se converterão nem poderão se converter, porque nunca poderão apaziguá-lo nem se reconciliar com ele. É verdade que tudo isso torna Deus odioso, na verdade um ser que detesta as almas mais que as ama, um tirano cruel, sedento de vingança, um demônio impotente e colérico, em vez de um pai todo-poderoso e benevolente dos espíritos. Entretanto, tudo isso é um mistério. Há razões secretas para agir assim, razões que nos são impenetráveis, e, ainda que pareça injusto e bárbaro, devemos, no entanto, acreditar no contrário, pois o que para nós é uma injustiça, um crime, uma crueldade e a maldade mais negra, para Ele é uma justiça, uma misericórdia e bondade soberanas”. Foi assim que os livres pensadores incrédulos, os cristãos judaizantes e os doutores fatalistas desfiguraram e desonraram os mistérios sublimes de nossa santa fé; foi assim que confundiram a natureza do bem e do mal, transformaram as paixões mais monstruosas em atributos divinos, e superaram os pagãos em suas blasfêmias, atribuindo à natureza eterna, como perfeições, o que constitui entre os homens os crimes mais odiosos. Os pagãos, mais grosseiros, contentaram-se em divinizar a luxúria, o incesto e o adultério, mas os doutores da predestinação divinizaram a crueldade, a cólera, o furor, a vingança e todos os vícios mais negros.”
*: Princípios filosóficos da religião natural e revelada do Cavalheiro Ramsay, Parte II, p.401.


“Eis aqui uma espécie de contradição entre os diferentes princípios da natureza humana que intervêm na religião. Nossos terrores naturais produzem a noção de uma divindade diabólica e maligna, mas nossa tendência para a adulação nos leva a reconhecer um ser perfeito e divino. E a influência desses princípios opostos varia de acordo com as diferentes situações do entendimento humano.
As nações bárbaras e ignorantes, como as africanas e as indianas, e inclusive a japonesa, são incapazes de formar uma ideia mais ampla do poder e do conhecimento, por isso cultuam um ser que eles confessam ser perverso e detestável – ainda que mostrem, talvez, uma prudência ao pronunciar esse julgamento em público ou no templo, onde, supõem, suas censuras podem ser ouvidas.
Ideias tão rudes e tão imperfeitas sobre a divindade são abraçadas por longo tempo por todos os idólatras; e podemos afirmar, com segurança, que os próprios gregos nunca se libertaram totalmente delas. Xenofonte observa, para a glória de Sócrates, que este filósofo não apoiava a opinião vulgar que supunha que os deuses sabiam algumas coisas e ignoravam outras. Ele sustentava que eles sabiam tudo o que era feito, dito, ou mesmo pensado. Mas como esse era um ensinamento filosófico muito acima da capacidade de seus contemporâneos, não devemos nos surpreender quando Xenofonte, em seus livros e diálogos, censura muito abertamente as divindades que eles adoravam em seus templos. Podemos observar que Heródoto, particularmente, não tem nenhum escrúpulo em atribuir, em muitas passagens, inveja aos deuses, um sentimento, dentre todos, mais adequado a uma natureza perversa e diabólica. Os hinos pagãos, entretanto, cantados em cultos públicos, nada mais continham que epítetos de louvor, ainda quando atribuíam aos deuses as mais bárbaras e detestáveis ações. Quando o poeta Timóteo cantou um hino em louvor a Diana, no qual enumerou, com os mais altos elogios, todas as ações e todos os atributos dessa deusa cruel e caprichosa, um ouvinte lhe disse: “Que tua filha se torne igual à divindade que tu celebras”.
Mas quanto mais os homens exaltam a ideia que têm da divindade, mais aumenta a noção que eles têm de seu poder e conhecimento, não a de sua bondade. Ao contrário, à medida que aumenta a suposta extensão de sua ciência e de sua autoridade, o medo que naturalmente sentem cresce, enquanto acreditam que nenhum segredo pode escondê-los de seu exame minucioso, e que mesmo os recônditos mais íntimos de seus corações ficam expostos à divindade. Eles devem, então, tomar cuidado para não formar expressamente nenhum sentimento de censura ou de desaprovação. Não deve haver senão aplausos, arrebatamentos, êxtases. E enquanto suas apreensões sombrias os fazem atribuir à divindade modelos de conduta que entre as criaturas humanas seriam vivamente censurados, devem ainda fingir louvar e admirar tal conduta no objeto de suas orações religiosas. Assim, podemos afirmar com segurança que as religiões populares são, na realidade, quando se considera as concepções de seus adeptos mais ordinários, espécies de demonismo, e que, quanto mais ela é exaltada em poder e conhecimento, menos é, evidentemente, rebaixada em sua bondade e benevolência, sejam quais forem os epítetos de louvor que possam ser aplicados à divindade por seus adoradores maravilhados. Entre os idólatras, as palavras podem ser falsas e desmentir uma opinião secreta, mas, entre os fanáticos mais exaltados, a própria opinião adquire uma espécie de falsidade e desmente o sentimento interior. O coração detesta secretamente tais medidas, de uma vingança cruel e implacável, mas o juízo não ousa senão pronunciá-las perfeitas e adoráveis. E o sofrimento adicional desse conflito interior aumenta todos os outros terrores, que assombram eternamente essas vítimas infelizes da superstição.”


“É certo que, em toda religião, por mais sublime que seja a definição verbal que ela ofereça de sua divindade, muitos adeptos, talvez a maioria, procurarão, não obstante, obter o favor divino, não por suas virtudes nem por seus bons costumes, únicas coisas que podem ser agradáveis a um ser perfeito, senão por práticas frívolas, por um zelo imoderado, por êxtases violentos ou pela crença em opiniões misteriosas e absurdas.”


“Além disso, suponhamos, o que nunca acontece, que se encontre uma religião popular que declare expressamente que só a moralidade pode obter o favor divino; suponhamos também que uma ordem de eclesiásticos seja instituída para inculcar essa opinião nos homens por meio dos sermões diários, com toda a arte da persuasão; apesar disso, os preconceitos das pessoas estão tão profundamente arraigados que, por necessidade de alguma outra superstição, eles tornariam o comparecimento das pessoas a esses sermões a parte essencial da religião, em vez de colocá-las no caminho da virtude e dos bens morais.”


“Não é suficiente observar que em todos os lugares as pessoas rebaixam suas divindades até torná-las semelhantes a si mesmas, e que as consideram simplesmente uma espécie de criaturas humanas de algum modo mais poderosas e inteligentes. Isso não eliminará a dificuldade, pois não existe homem nenhum tão estúpido que não estime, a julgar por sua razão natural, que a virtude e a honestidade são as qualidades mais valiosas que uma pessoa pode possuir. Por que não atribuir o mesmo sentimento à divindade? Por que não fazer com que toda religião, ou sua parte principal, consista nessa realização?
Não é satisfatório dizer que a prática da moralidade é mais difícil que a da superstição – e é, portanto, rejeitada. (...) Toda virtude, quando nos reconciliamos com ela sem muito esforço, é agradável. Toda superstição é quase sempre odiosa e opressiva.”


“É por isso que o maior dos crimes tem sido considerado, em muitos casos, compatível com uma piedade e devoção supersticiosas. É por isso, justamente, que se considera arriscado fazer qualquer inferência a favor da moralidade de um homem, a partir do fervor ou do rigor de sua prática religiosa, ainda que ele mesmo acredite na sinceridade desta. Mais ainda: observou-se que as atrocidades mais negras têm sido mais apropriadas para produzir terrores supersticiosos e para aumentar a paixão religiosa. Bomilcar, tendo formado uma conspiração para assassinar de uma só vez todo o senado de Cartago e violar as liberdades de seu país, perdeu a oportunidade por causa de uma preocupação contínua com os presságios e com as profecias. “Os que empreendem as ações mais criminosas e mais perigosas são em geral os mais supersticiosos”, como oportunamente observa o historiador da antiguidade Diodoro de Sicília.
A isso podemos acrescentar que, depois da execução do crime, surgem remorsos e terrores secretos que não deixam nenhum repouso ao espírito, mas o fazem recorrer a ritos e a cerimônias religiosas como expiação de suas faltas. Tudo o que enfraquece ou perturba as disposições interiores do homem favorece os interesses da superstição; e nada os destrói mais do que uma virtude viril e constante, que nos preserva dos acidentes desastrosos e melancólicos ou que nos ensina a suportá-los. Quando resplandece essa serenidade de espírito, a divindade jamais aparece sob falsas aparências. Porém, quando nos abandonamos às sugestões naturais e indisciplinadas de nossos corações tímidos e ansiosos, atribuímos ao ser supremo, em virtude dos terrores que nos agitam, toda espécie de barbárie; e, em razão dos métodos que adotamos a fim de apaziguá-lo, todas as formas de arbitrariedade. Barbárie e arbitrariedade: essas são as qualidades, ainda que dissimuladas com outros nomes, que formam, como podemos observar universalmente, o caráter dominante da divindade nas religiões populares. E até os sacerdotes, em vez de corrigir essas ideias perversas dos homens, têm-se mostrado dispostos a alimentá-las e a encorajá-las. Quanto mais monstruosa é a imagem da divindade, mais os homens se tornam seus servidores dóceis e submissos, e quanto mais extravagantes são as provas que ela exige para nos conceder sua graça, mais necessário se faz que abandonemos nossa razão natural e nos entreguemos à condução e direção espiritual dos sacerdotes. Pode-se admitir, assim, que os artifícios dos homens agravam nossas enfermidades naturais e as loucuras desse tipo, mas que na origem nunca as engendram. Elas se enraízam mais profundamente no espírito e nascem das propriedades essenciais e universais da natureza humana.”


“Apesar de a estupidez dos homens bárbaros e incultos ser tão grande que eles não conseguem ver um autor soberano nas mais evidentes obras da natureza, obras que lhes são muito familiares, parece, entretanto, que é quase impossível que alguém de bom entendimento rejeite tal ideia, quando esta lhe é sugerida. Em cada coisa é evidente um propósito, uma intenção, um desígnio; e quando ampliamos nossa compreensão a ponto de contemplar os primeiros princípios desse sistema visível, devemos adotar, com a mais forte convicção, a ideia de uma causa ou autor inteligente. As máximas uniformes que vigoram em toda a estrutura do universo também nos levam, naturalmente, se não necessariamente, a conceber essa inteligência como única e indivisível, quando os preconceitos da educação não se opõem a uma teoria tão razoável. Até as contradições da natureza, ao se revelarem em toda parte, tornam-se provas de um plano coerente e estabelecem um projeto ou uma intenção única, ainda que inexplicável e incompreensível.
O bem e o mal se misturam e se confundem universalmente, da mesma forma que a felicidade e a miséria, a sabedoria e a loucura, a virtude e o vício. Nada é puro nem inteiramente uniforme. Todas as vantagens são acompanhadas de desvantagens. Uma compensação universal se impõe em todas as condições do ser e da existência. E não nos é possível, por meio de nossos mais quiméricos desejos, formar a ideia de um estado ou de uma situação perfeitamente desejável. O elixir da vida, segundo a ficção do poeta, é sempre uma mistura tirada das jarras que Júpiter tem em suas duas mãos, e, se um cálice perfeitamente puro nos é apresentado, como nos diz ainda o poeta, ele é vertido apenas da jarra colocada na mão esquerda.
Quanto mais excelente é um bem, do qual temos uma pequena amostra, mais agudo é o mal que o acompanha; e encontramos poucas exceções a essa lei uniforme da natureza. O espírito mais brilhante beira à loucura; as mais altas efusões de alegria engendram a melancolia mais profunda; os prazeres mais arrebatadores são seguidos da mais cruel lassidão e de desgosto; as esperanças mais promissoras abrem caminho para as decepções mais duras. E, em geral, nenhuma existência oferece tanta segurança (pois não é preciso sonhar com a felicidade) quanto a existência temperada e moderada que se atém, tanto quanto possível, a uma mediocridade e a uma espécie de insensibilidade em todas as coisas.
Como o bem, o grande, o sublime, o encantador encontram-se no mais alto grau nos princípios puros do monoteísmo, podemos esperar, por analogia com a natureza, que o baixo, o absurdo, o mesquinho, o terrificante sejam igualmente explorados nas ficções e quimeras religiosas.
A tendência universal para acreditar num poder invisível e inteligente, se não é um instinto original, é pelo menos uma coisa que geralmente acompanha a natureza humana e pode ser considerada uma espécie de sinal ou marca que o artífice divino colocou sobre sua obra; e nada, com certeza, pode elevar mais o homem do que ser assim eleito, entre todas as outras partes da criação, para exibir a imagem ou a impressão do criador universal. Mas levemos em consideração essa imagem como ela aparece nas religiões populares do mundo. Como nossas representações desfiguram a divindade! Como ela é rebaixada a um nível mais baixo do caráter que naturalmente atribuiríamos na vida comum a um homem de senso e de virtude!
É um nobre privilégio da razão humana alcançar o conhecimento do ser supremo e poder inferir, a partir das obras visíveis da natureza, um princípio tão sublime como seu criador supremo. Mas vejamos o reverso da medalha. Observemos a maioria das nações e épocas. Examinemos os princípios religiosos que têm, de fato, vigorado no mundo. Dificilmente nos persuadiremos de que eles são mais do que devaneios dos homens. Ou talvez os consideraremos mais uma brincadeira de macacos com a forma humana do que afirmações sérias, positivas e dogmáticas de um ser que se vangloria com o nome de racional.
Ouçamos os protestos verbais de todos os homens. Nada é tão certo quanto seus dogmas religiosos. Examinemos suas vidas. Dificilmente pensaremos que eles têm a menor confiança a seu respeito.
O máximo e mais sincero zelo não nos dá qualquer garantia contra a hipocrisia. A mais notória impiedade é acompanhada de um temor e arrependimento secretos.
Não existe um absurdo teológico tão evidente que não tenha sido adotado, um dia ou outro, por homens dotados do mais vasto e mais refinado entendimento. Nenhum preceito religioso é tão rigoroso que não tenha sido adotado pelo mais libidinoso e mais dissoluto dos homens.
A ignorância é a mãe da devoção. Essa é uma máxima proverbial, confirmada pela experiência geral. Procuremos uma pessoa inteiramente destituída de religião. Se a encontrarmos estaremos certos de que ela está a poucos graus de distância dos animais.
O que há de mais puro do que certo grau de moral incluído em certos sistemas teológicos? O que há de tão corrupto quanto certas práticas às quais esses sistemas dão origem?
A crença na vida futura abre perspectivas confortáveis que são arrebatadoras e agradáveis. Mas como esta desaparece rapidamente quando surge o medo que a acompanha e que possui uma influência mais firme e duradoura sobre o espírito humano!
É tudo uma incógnita, um enigma, um mistério inexplicável. O único resultado de nossas investigações mais meticulosas sobre esse assunto parece ser a dúvida, a incerteza e a suspensão do juízo. Mas tal é a fraqueza da razão humana e tal é o irresistível contágio da opinião que dificilmente poderíamos manter essa dúvida deliberada, se não ampliássemos nossa visão e, opondo uma espécie de superstição à outra, as colocássemos em disputa, enquanto de nossa parte, durante essa fúria e controvérsia, felizmente escapássemos para as regiões calmas, ainda que obscuras, da filosofia.”

História Natural da Religião (Parte I) – David Hume

Editora: Unesp
ISBN: 978-85-7139-604-3
Tradução, Apresentação e Notas: Jaimir Conte
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 160
Sinopse: História natural da religião é uma profunda reflexão sobre os princípios que dão origem à crença original e como o contexto histórico, cultural e social influencia e é influenciado pelas disposições morais e filosóficas do ser humano. O percurso de Hume leva ao entendimento de que “o bem e o mal se misturam e se confundem universalmente, assim como a felicidade e a miséria, a sabedoria e a loucura, a virtude e o vício”. Por esse ângulo, a religião estaria associada a princípios sublimes, ao mesmo tempo que dá ensejo a práticas as mais vis. Uma conclusão audaz para a sua época e dramaticamente corroborada pelo cenário contemporâneo.


“Parece certo que, de acordo com o progresso natural do pensamento humano, a multidão ignorante deve, num primeiro momento, nutrir uma noção vulgar e familiar dos poderes superiores antes de ampliar sua concepção para aquele ser perfeito, que conferiu ordem a todo o plano da natureza. Seria tão razoável imaginar que os homens habitaram palácios antes de choças e cabanas, ou que estudaram geometria antes de agricultura, como afirmar que conceberam a divindade sob a forma de puro espírito, onisciente, onipotente e onipresente, antes de concebê-la como um ser poderoso, ainda que limitado, dotado de paixões e apetites humanos, de membros e órgãos. O espírito se eleva gradualmente do inferior para o superior: por abstração, forma, a partir do imperfeito, uma ideia da perfeição, e lentamente, distinguindo as partes mais nobres de sua própria constituição das mais grosseiras, aprende a atribuir à sua divindade somente as primeiras, as mais elevadas e puras. Nada poderia interromper esse progresso natural do pensamento, exceto um argumento evidente e invencível, que pudesse conduzir imediatamente o espírito aos genuínos princípios do monoteísmo, fazendo-o transpor, num salto, o amplo espaço intermediário que separa a natureza humana da natureza divina. Mas ainda que eu reconhecesse que a ordem e o plano do universo, quando cuidadosamente examinados, fornecem tal argumento, nunca poderia pensar, entretanto, que essa consideração poderia ter uma influência sobre os homens quando estes formavam suas primeiras noções rudimentares de religião.”


“Adão, levantando-se subitamente no Paraíso e na plena perfeição de suas faculdades, ficaria naturalmente espantado, como o representa Milton, com os magníficos fenômenos da natureza, com o céu, com o ar, com a terra, com seus próprios órgãos e membros; e seria levado a perguntar de onde nasceu esse maravilhoso espetáculo. Mas um animal selvagem e necessitado (como é um homem na origem da sociedade), oprimido por tantas necessidades e paixões, não tem tempo livre para admirar o aspecto regular da natureza, ou de se perguntar a respeito da causa desses objetos, com os quais se familiarizou pouco a pouco desde sua infância. Ao contrário, quanto mais regular e uniforme a natureza se mostra, ou seja, quanto mais perfeita ela é, mais o homem se familiariza com ela e menos inclinado estará a sondá-la e examiná-la. Um parto monstruoso desperta sua curiosidade e é considerado um prodígio. Ele o desperta por causa da sua novidade e imediatamente o leva a sentir medo, a fazer sacrifícios e a rezar. Mas um animal, com todos os seus membros e órgãos perfeitos, é, para o homem, um espetáculo ordinário, não produz nenhuma opinião ou sentimento religioso. Pergunte-lhe por que aquele animal nasceu e ele lhe dirá que foi em razão da cópula de seus pais. E estes, por quê? Por causa da cópula dos seus. Alguns graus de parentesco satisfazem sua curiosidade e colocam os objetos a tal distância que ele os perde inteiramente de vista. Não pensem que levantará a questão “de onde surgiu o primeiro animal?”, muito menos qual é a origem de todo o sistema do universo ou da harmonia de sua estrutura. Ou, se você lhe fizer semelhante pergunta, não espere que ele ocupe sua mente preocupando-se com um assunto tão remoto, desprovido de interesse e que ultrapassa em muito os limites de sua capacidade.
Além disso, se ao pensar no plano da natureza os homens fossem inicialmente levados a acreditar num ser supremo, eles talvez nunca pudessem abandonar essa crença a fim de abraçar o politeísmo; mas o mesmo princípio da razão, que inicialmente produziu e difundiu entre os homens uma opinião tão esplêndida, deve ser capaz, mais facilmente ainda, de preservá-la. É bem mais difícil inventar e provar pela primeira vez uma doutrina do que defendê-la e mantê-la.”


“Existe uma grande diferença entre os fatos históricos e as opiniões especulativas; o conhecimento dos fatos históricos não se propaga da mesma maneira que as opiniões especulativas. Um fato histórico, à medida que é transmitido pela tradição oral a partir dos testemunhos oculares e dos contemporâneos, é alterado em cada narração sucessiva, e pode, no final, conservar apenas uma fraca semelhança – se conservar alguma – com a verdade original, sobre a qual estava fundamentado. A frágil memória dos homens, seu gosto pelo exagero, sua enorme desatenção – todos esses princípios, se não são corrigidos pelos livros e escritos, deturpam rapidamente os relatos dos acontecimentos históricos, nos quais os argumentos e raciocínios têm pouco ou nenhum lugar, nem sequer podem evocar a verdade que um dia escapou a essas narrativas. E, assim, imagina-se que as fábulas de Hércules, de Teseu e de Baco foram originalmente fundadas na história verdadeira, corrompida pela tradição.”


“Todas as coisas do universo são evidentemente uniformes. Todas as coisas estão ajustadas a outras coisas. Um desígnio predomina inteiramente em tudo. E essa uniformidade leva a mente a reconhecer um só autor, pois a concepção de diferentes autores, sem qualquer distinção de atributos ou operações, serve apenas para tornar a imaginação perplexa, sem dar nenhuma satisfação ao entendimento.”


“De fato, descobrimos que todos os idólatras, após ter dividido os domínios de suas divindades, recorreram àquele agente invisível, que os mantém sob sua autoridade imediata e cuja alçada é supervisionar aquele curso de ações, no qual a qualquer hora eles se empenham. Juno é invocado nos casamentos; Lucina nos partos. Netuno recebe as preces dos marinheiros; Marte, as dos guerreiros. Os agricultores cultivam seus campos sob a proteção de Ceres; e os negociantes reconhecem a autoridade de Mercúrio. Imagina-se que todo acontecimento natural é governado por algum ser inteligente; e nada próspero ou adverso pode acontecer no decorrer da vida que não possa ser assunto de preces particulares ou de ação de graças.
De fato, deve-se necessariamente reconhecer que, para poder levar suas intenções para além do curso presente das coisas ou para alguma inferência sobre o poder invisível e inteligente, os homens devem ser influenciados por uma certa paixão que suscita seus pensamentos e reflexão; por motivos que provocam sua investigação inicial. Mas a que paixão devemos aqui recorrer para explicar um efeito de consequências tão importantes? Não é certamente à curiosidade especulativa ou ao puro amor à verdade. Esse motivo é demasiado refinado para um entendimento tão grosseiro; e levaria os homens a investigações sobre o plano da natureza, um tema demasiado amplo e abrangente para suas estreitas capacidades. As únicas paixões que podemos imaginar capazes de agir sobre tais homens incultos são as paixões ordinárias da vida humana, a ansiosa busca da felicidade, o temor de calamidades futuras, o medo da morte, a sede de vingança, a fome e outras necessidades. Agitados por esperanças e medos dessa natureza, e sobretudo pelos últimos, os homens examinam com uma trêmula curiosidade o curso das causas futuras, e analisam os diversos e contraditórios acontecimentos da vida humana. E nesse cenário desordenado, com os olhos ainda mais desordenados e maravilhados, eles veem os primeiros sinais obscuros da divindade.”


“Estamos colocados neste mundo como em um grande teatro, onde as verdadeiras origens e causas de cada acontecimento nos estão inteiramente ocultas. Não temos sabedoria suficiente para prever os males que continuamente nos ameaçam, nem poder para evitá-los. Vivemos suspensos num perpétuo equilíbrio entre a vida e a morte, a saúde e a doença, a saciedade e o desejo, coisas que são distribuídas entre a espécie humana por causas secretas e desconhecidas, e que atuam frequentemente de forma inesperada e, sempre, inexplicável. Essas causas desconhecidas tornam-se, pois, o objeto constante de nossa esperança e medo; e, enquanto nossas paixões são continuamente excitadas pela ansiosa expectativa dos acontecimentos, empregamos também a imaginação, a fim de formar uma ideia sobre esses poderes, dos quais dependemos totalmente. Se os homens pudessem dissecar a natureza de acordo com a filosofia mais provável ou, pelo menos, com a mais inteligível, descobririam que tais causas consistem apenas na peculiar constituição e estrutura das partes diminutas de seus próprios corpos e dos objetos exteriores, e que, por um mecanismo regular e constante, produz todos os acontecimentos que tanto os inquietam. Mas essa filosofia ultrapassa a compreensão da multidão ignorante, que pode apenas conceber essas causas desconhecidas de uma maneira geral e confusa, embora sua imaginação, que gira perpetuamente sobre o mesmo assunto, deva esforçar-se para formar uma ideia particular e distinta acerca dessas causas. Quanto mais os homens examinam essas causas desconhecidas e a incerteza de sua operação, menos satisfação alcançam em suas investigações; e por mais relutantes, teriam necessariamente abandonado um esforço tão árduo se não houvesse na natureza humana uma inclinação que os levasse a um sistema capaz de lhes proporcionar alguma satisfação.
Os homens têm uma tendência geral para conceber todos os seres segundo sua própria imagem, e para transferir a todos os objetos as qualidades com as quais estão mais familiarizados – e das quais têm consciência mais íntima. Descobrimos formas de faces humanas na lua, e de membros nas nuvens, e por uma inclinação natural, se não for corrigida pela experiência ou pela reflexão, atribuímos maldade ou bondade a tudo o que nos faz mal ou nos agrada. Daí o frequente emprego das prosopopeias na poesia, e a sua beleza: árvores, montanhas e rios são personificados e atribui-se sentimentos e paixões aos elementos inanimados da natureza. E embora essas figuras e expressões poéticas não nos inspirem fé, podem servir, pelo menos, para mostrar uma certa tendência da imaginação, sem a qual não poderiam ser nem belas nem naturais. Nem sempre os deuses dos rios ou as hamadríadas* são tomados por seres puramente poéticos e imaginários; eles podem, às vezes, fazer parte das crenças autênticas do vulgo ignorante, ao mesmo tempo que cada bosque ou campo é representado sob o domínio de um gênio particular ou de um poder invisível que o habita e o protege. Nem mesmo os filósofos podem eximir-se inteiramente dessa fraqueza natural, ao contrário, têm frequentemente atribuído à matéria inanimada o horror ao vazio, simpatias, antipatias e outros sentimentos de natureza humana. O absurdo não é menor quando levantamos os olhos para o céu e, transferindo – como é bastante comum – as paixões e as fraquezas humanas para a divindade, a representamos como invejosa e vingativa, caprichosa e parcial, em suma, idêntica em todos os aspectos a um homem perverso e insensato, exceto quanto ao seu poder e autoridade superiores. Não é surpreendente, então, que o homem, absolutamente ignorante das causas, e ao mesmo tempo tomado por tamanha ansiedade quanto ao seu futuro destino, reconheça imediatamente que depende de poderes invisíveis, dotados de sentimentos e de inteligência. As causas desconhecidas que ocupam sem cessar seu pensamento, ao se apresentarem sempre sob o mesmo aspecto, são todas consideradas do mesmo tipo ou espécie. E pouco falta para que atribuamos à divindade pensamentos, raciocínio, paixões e, às vezes, até membros e formas humanas, a fim de aproximá-la mais da nossa própria imagem.”
*: Ninfa dos bosques que nascia e morria com a árvore de cuja guarda estava incumbida e da qual se julgava prisioneira.


“Qualquer um dos sentimentos humanos pode nos levar à noção de um poder invisível e inteligente: a esperança, assim como o medo; a gratidão, assim como a aflição. Mas se examinarmos nosso próprio coração, ou se observarmos o que se passa ao nosso redor, descobriremos que os homens ajoelham-se bem mais frequentemente por causa da melancolia do que por causa de paixões agradáveis. Aceitamos facilmente a prosperidade como nosso dever, e quase não nos perguntamos sobre sua causa ou sobre seu autor. Ela produz a alegria, a atividade, o entusiasmo e um vívido gozo de todos os prazeres sociais e sensuais. Enquanto permanecemos nesse estado de espírito, temos pouco tempo ou inclinação para pensar em regiões desconhecidas e invisíveis. Porém, todo acidente funesto nos desperta e nos incita a investigações sobre os princípios de sua origem. Surgem apreensões em relação ao futuro, e o espírito, em virtude da desconfiança, do terror e da melancolia, recorre a todos os métodos suscetíveis de satisfazer os poderes secretos e inteligentes, dos quais, pensamos nós, nosso destino depende inteiramente.
Não existe prática mais comum em todas as teologias populares do que exibir as vantagens da aflição, levando os homens a um verdadeiro sentimento religioso, reduzindo sua confiança e sua sensualidade, que, nos tempos de prosperidade, fazem com que esqueçam a providência divina. E essa prática não se limita apenas às religiões modernas. Os antigos também a empregaram. “A fortuna”, diz um historiador grego*, “nunca foi generosa, sem inveja, nunca concedeu liberalmente nem sem mistura uma felicidade perfeita aos homens; mas a todas as suas dádivas sempre uniu algumas circunstâncias desastrosas, a fim de castigar os homens e levá-los a venerar os deuses; pois os homens, em meio a uma prosperidade contínua, tendem a negligenciá-los e esquecê-los”. Que idade ou período da vida é o mais inclinado à superstição? O mais fraco e o mais tímido. Que sexo? É preciso dar a mesma resposta. “As mulheres”, diz Estrabão**, “são as líderes e modelos de todos os tipos de superstições. Elas incitam os homens à devoção, às súplicas e à observância dos dias religiosos. É raro encontrar um homem que viva afastado das mulheres, e que, no entanto, seja dado a tais práticas”.”
*: Diodoro Siculus, livro III, cap.47, séc. I.
**: Lib. VII. 297 [Estrabão, Geografia, livro VII, cap.3].


“Se considerarmos devidamente o assunto, tornar-se-á evidente que os deuses de todos os politeístas não valem mais que os duendes e as fadas de nossos ancestrais, e merecem bem pouca devoção ou veneração.
Esses pretensos religiosos são, na realidade, uma espécie de ateus supersticiosos que não reconhecem ser algum que corresponda à nossa ideia da divindade. Nenhum primeiro princípio espiritual ou intelectual; nenhum governo ou administração supremos; nenhum plano ou intenção divinos na constituição do mundo.
Os chineses batem em seus ídolos quando suas preces não são ouvidas. As divindades dos lapônios são todas as pedras enormes, de formato extraordinário, que eles encontram. Os mitólogos egípcios, a fim de explicar o culto aos animais, diziam que os deuses, perseguidos pela violência dos homens mortais, seus inimigos, tinham sido outrora obrigados a disfarçar-se sob a forma de bestas. Os caunis, um povo da Ásia Menor, decidiram não admitir entre eles qualquer deus estrangeiro; eles reuniam-se e armavam-se completamente em certos períodos regulares e, dando golpes no ar com suas lanças, avançavam até suas fronteiras, a fim de, diziam eles, expulsar as divindades estrangeiras. “Nem mesmo os deuses imortais”, diziam algumas nações germânicas a César, “estão à altura dos suecos”.
Em Homero, Dione diz a Vênus ferida por Diomedes: “Muitos males, muitos males, minha filha, os deuses têm infligido aos homens; e, em troca, muitos males os homens têm infligido aos deuses”. Não precisamos mais que abrir um autor clássico para encontrar essas representações grosseiras das divindades. E Longino observa, com razão, que tais ideias da natureza divina, se tomadas literalmente, encerram um verdadeiro ateísmo. (...)
Os lacedemônios, diz Xenofonte, sempre faziam seus pedidos, durante a guerra, logo de manhã cedo, a fim de se anteciparem aos seus inimigos e, ao ser os primeiros a rezar, engajar antecipadamente os deuses a seu favor. Podemos concluir, a partir de Sêneca, que era comum nos templos que os devotos usassem sua influência com o bedel ou sacristão de maneira que arrumassem um lugar para sentar próximo à imagem da divindade, a fim de ser mais bem ouvidos por esta em suas preces e pedidos. Os tírios, quando sitiados por Alexandre, lançaram algemas sobre a estátua de Hércules com o intuito de impedir que este deus passasse para o lado inimigo. Augusto, após ter perdido sua frota duas vezes por causa das tempestades, proibiu que Netuno fosse carregado em procissão com os outros deuses; e imaginou que se tinha vingado suficientemente através de tal expediente. Após a morte de Germânico, as pessoas ficaram tão enfurecidas contra seus deuses que os apedrejaram nos templos e renunciaram abertamente a toda devoção a eles.
Nunca entra na imaginação de um politeísta ou idólatra atribuir a esses seres imperfeitos a origem e a constituição do universo. Hesíodo, cujos escritos, ao lado dos de Homero, contêm o sistema canônico dos céus; Hesíodo, eu dizia, supõe que os deuses e os homens foram engendrados uns e outros pelos poderes desconhecidos da natureza. E do início ao fim de toda a teogonia desse autor, Pandora é o único exemplo de uma criação ou de uma produção voluntária – e ela também foi criada pelos deuses por simples despeito a Prometeu, que tinha dado aos homens o fogo roubado das regiões celestiais. Na verdade, os antigos mitólogos parecem, do começo ao fim, ter antes abraçado a ideia da geração que a da criação ou formação e, a partir disso, explicado a origem deste universo.”


“Esses são, pois, os princípios gerais do politeísmo, fundamentados na natureza humana e que não dependem em nada – ou em quase nada – do capricho ou do acaso. Como as causas que provocam felicidade ou desgraça são, em geral, muito pouco conhecidas e bastante incertas, nossos ansiosos esforços tentam alcançar delas uma ideia determinada, e não encontram melhor meio do que representá-las como agentes dotados de inteligência e de vontade semelhantes às nossas, salvo pelo seu poder e sabedoria um pouco superiores. A influência limitada desses agentes, e sua fraqueza muito próxima da fraqueza humana, introduz várias repartições e divisões de sua autoridade, e, desse modo, dá nascimento à alegoria. Os mesmos princípios divinizam, como é natural, aqueles mortais que são superiores em força, coragem ou sabedoria, e originam a veneração dos heróis, com as fabulosas histórias e as tradições mitológicas, em todas as suas formas caóticas e extravagantes. E como uma inteligência espiritual e invisível é um objeto muito sutil para a compreensão comum, os homens naturalmente a vinculam a certas representações sensíveis, bem como a partes mais visíveis da natureza ou a estátuas, imagens e pinturas que uma época mais refinada forja de suas divindades.”


““Pouca filosofia”, diz lorde Bacon, “torna os homens ateus; muita, reconcilia-os com a religião”. Pois o homem, tendo aprendido através de preconceitos supersticiosos a dar importância a algo falso, quando isso lhe falta e ele descobre, ao refletir um pouco, que o curso da natureza é regular e uniforme, toda sua fé cambaleia e desmorona. Mas quando chega a aprender, por meio de uma reflexão mais profunda, que precisamente tal regularidade e uniformidade constitui a prova mais clara da existência de um desígnio e de uma inteligência suprema, volta àquela crença que tinha abandonado e pode, agora, estabelecê-la sobre fundamentos mais firmes e duráveis.”


“O assassinato ilegítimo de um homem por um tirano é mais pernicioso que a morte de mil pela peste, pela fome ou por qualquer outra calamidade.”


“A comparação entre o monoteísmo e a idolatria nos permite fazer outras observações que também confirmarão a observação comum de que a corrupção das melhores coisas engendra as piores.
A crença em um deus representado como infinitamente superior aos homens, ainda que seja completamente justa, é suscetível, quando acompanhada de terrores supersticiosos, de afundar o espírito humano na submissão e na humilhação mais vil, e de representar as virtudes monásticas da mortificação, da penitência, da humildade e do sofrimento passivo como as únicas qualidades que são agradáveis a deus. Mas quando concebemos os deuses como seres só um pouco superiores aos homens, e tendo visto que muitos deles se elevaram dessa classe inferior, sentimo-nos mais tranquilos em nosso trato com eles e até podemos, às vezes, sem impiedade, aspirar a competir com os deuses e imitá-los. Originam-se assim a atividade, a vitalidade, a coragem, a magnanimidade, o amor à liberdade e todas as virtudes que engrandecem um povo.
Os heróis no paganismo correspondem exatamente aos santos no catolicismo romano e aos santos dervixes na religião maometana. O lugar de Hércules, Teseu, Heitor e Rômulo está agora ocupado por São Domingos, São Francisco, Santo Antônio e São Benedito. Em vez da destruição dos monstros, da luta contra os tiranos e da defesa da pátria, flagelos e jejuns, covardia e humildade, submissão abjeta e obediência servil tornaram-se, entre os homens, os meios para obter as honras celestiais.”

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Tratado sobre a Tolerância – Voltaire

Editora: L&PM
ISBN: 978-85-2541-801-2
Tradução: William Lagos
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 128

“Ninguém mais teme na Holanda que as afirmações de um Gomar sobre a predestinação façam decapitar o grande pensionário, o presidente do conselho de ministros. Não se teme mais em Londres que as querelas entre os presbiterianos e os episcopais por causa da liturgia ou de uma sobrepeliz acabem por derramar o sangue de um rei no cadafalso. A Irlanda povoada e enriquecida não verá mais seus cidadãos católicos sacrificarem a Deus durante dois meses seus cidadãos protestantes, enterrá-los vivos, pendurar mães em forcas e amarrar as meninas ao pescoço de suas mães para vê-las morrerem juntas; abrir os ventres das grávidas, arrancar dali os fetos semiformados e lançá-los aos porcos e cães para serem devorados; colocar punhais nas mãos de prisioneiros sufocados no garrote e empurrar seus braços contra o peito de suas esposas, de seus pais, de suas mães, de suas filhas, imaginando que assim os tornariam mutuamente parricidas e os condenariam todos ao inferno ao mesmo tempo em que exterminavam a todos. Esse foi o relato de Rapin-Thoiras, que foi oficial na Irlanda e quase contemporâneo desses fatos; é o que registram todos os anais, todas as histórias da Inglaterra, ações que, sem a menor dúvida, jamais serão imitadas. A filosofia, unicamente a filosofia, irmã da religião, desarmou as mãos que a superstição havia ensanguentado por tanto tempo; e o espírito humano, ao despertar de sua embriaguez, assombrou-se ante os excessos a que o havia lançado o fanatismo.
Nós mesmos temos na França uma província opulenta em que o luteranismo é mais forte do que o catolicismo. A Universidade da Alsácia é controlada por luteranos; eles ocupam parte dos cargos municipais; jamais a menor disputa religiosa perturbou o repouso dessa província desde que ela passou a nos pertencer. Por quê? É porque nela ninguém foi perseguido. Quando não se busca magoar os corações, todos os corações estão a nosso favor.”


“O melhor método de diminuir o número dos maníacos, se é que existe, é o de deixar essa doença do espírito sob o controle da razão, que esclarece aos homens lentamente, mas de maneira infalível. A razão é doce, é humana, inspira a indulgência, abafa a discórdia, fortalece a virtude, torna agradável a obediência às leis, mais ainda que a força pode obrigar a cumpri-las. E não se deverá levar em conta o ridículo que todas as pessoas sensatas atribuem hoje aos excessos religiosos? Esse ridículo é uma poderosa barreira contra as extravagâncias de todos os sectários.”


“Direito natural é aquele que a natureza indica a todos os homens. Você cria um filho, ele lhe deve respeito na qualidade de seu pai e reconhecimento na qualidade de seu benfeitor. Você tem direito aos produtos da terra que cultivou com suas próprias mãos. Você fez ou recebeu uma promessa; ela deve ser cumprida.
O direito humano não pode ser fundamentado em nenhum caso senão sobre esse direito da natureza; e o grande princípio, o princípio universal de um e do outro, é o mesmo em toda a terra: “Não faças aos outros o que não queres que te façam”. Ora, não se percebe como, segundo esse princípio, um homem poderia dizer a outro: “Crê no que eu creio e não no que não podes crer; caso contrário, morrerás”. É isso que se diz em Portugal, na Espanha ou em Goa. Atualmente, em alguns outros países, prefere-se dizer: “Crê, ou te odiarei; crê, ou te farei todo o mal que estiver a meu alcance; monstro, se não tens minha religião, então não tens religião nenhuma; terás de ser um motivo de horror para teus vizinhos, tua cidade e tua província”.
Se fosse o direito humano que nos levasse a nos conduzirmos dessa maneira, seria necessário que os japoneses detestassem os chineses, que, por sua vez, execrariam os siameses; estes perseguiriam os habitantes do Ganges, que se lançariam contra os moradores do Indo; um mongol arrancaria o coração do primeiro malabar que encontrasse; os malabares poderiam matar os persas, que poderiam massacrar os turcos: e todos juntos se lançariam contra os cristãos, se bem que estes vêm de fato devorando uns aos outros há muito tempo.
O direito da intolerância é, portanto, absurdo e bárbaro; é o direito dos tigres, sendo bem mais horrível também, porque os tigres dilaceram suas presas para comer, enquanto nós nos exterminamos por causa de alguns parágrafos.”


“Se fosse possível encontrar alguém suficientemente desprovido de boa-fé ou fanático o bastante para me dizer aqui: “Por que você quer revelar nossos erros e nossas faltas? Por que deseja destruir nossos falsos milagres e nossas falsas lendas? Eles servem de alimento para a piedade de muitas pessoas; há erros necessários; não se arranca do corpo uma úlcera crônica, porque isso acarretaria a destruição do próprio corpo”, eis o que eu lhe responderia:
Todos esses falsos milagres com os quais vocês abalam a fé devida aos verdadeiros, todas essas lendas absurdas que acrescentais às verdades do Evangelho só servem para extinguir a religião dentro dos corações; muitas pessoas que desejam se instruir e que não têm tempo para se instruir o suficiente dizem: “Os catequizadores de minha religião me enganaram, portanto a religião não existe; é melhor jogar-se nos braços da natureza que nas garras do erro; prefiro depender da lei natural a depender das invenções dos homens”. Outros têm a infelicidade de ir ainda mais longe: percebem que usaram imposturas para lhes pôr um freio e não querem mais saber sequer do freio da verdade; inclinam-se para o ateísmo; tornam-se depravados porque os outros foram trapaceiros e cruéis.
Essas são certamente as consequências de todas as fraudes pias e de todas as superstições.”


“Quanto mais a religião cristã é divina, tanto menos pertence ao homem dirigi-la: se foi Deus que a fez, Deus a sustentará sem a nossa ajuda.”


“Evitemos procurar descobrir aqui por que Deus substituiu a lei que havia dado a Moisés por uma lei nova, ou por que ele havia mandado Moisés fazer muito mais coisas do que ordenara ao patriarca Abraão e por que Abraão tivera de fazer muito mais do que Noé. Parece que ele se digna a adaptar aos tempos e à população do gênero humano: trata-se de uma gradação paternal, mas esses abismos são profundos demais para nossa débil visão.”


“O espírito perseguidor, que abusa de tudo, busca ainda sua justificação na expulsão dos vendilhões do templo e na legião de demônios que foram expulsos do corpo de um possuído e enviados para os corpos de dois mil animais imundos. Mas será que não se vê que esses dois exemplos não são outra coisa senão uma justiça que Deus se digna a realizar por Si mesmo em castigo a uma contravenção da lei? Era uma falta de respeito para com a casa do Senhor transformar seu recinto em uma loja de comerciantes. Não importa que o sinédrio e os sacerdotes permitissem esse negócio para a comodidade dos sacrifícios: o Deus a quem se sacrificava poderia, sem dúvida, mesmo que disfarçado em figura humana, impedir tal profanação; ele poderia até mesmo punir os que introduziam na região rebanhos inteiros de animais proibidos por uma lei que ele mesmo se dignava a observar. Esses exemplos não têm o menor relacionamento com perseguições motivadas por dogmas. É necessário que o espírito de intolerância seja apoiado sobre razões muito más, uma vez que busca em toda parte os pretextos mais vãos.
Quase todo o restante das palavras e das ações de Jesus Cristo prega a doçura, a paciência e a indulgência. É o pai de família que recebe o filho pródigo; é o operário contratado na última hora que recebe o mesmo que os outros; é o samaritano caridoso; ele mesmo justifica seus discípulos por não jejuar; ele perdoa a pecadora; ele se contenta em recomendar à mulher adúltera que passe a ser fiel; ele se digna mesmo a condescender à alegria inocente dos convivas de Caná que, já estando encharcados de vinho, ainda pedem mais; ele se dispõe a fazer um milagre em seu favor e transforma água em vinho para eles.
Ele não se enfurece sequer contra Judas, que o deve trair; ele ordena a Pedro que jamais se sirva da espada; ele repreende os filhos de Zebedeu que, a exemplo de Elias, queriam fazer descer o fogo dos céus sobre uma aldeia onde lhes haviam recusado alojamento.
Finalmente, ele morre vítima da inveja. Se ousarmos comparar o sagrado com o profano e um Deus com um homem, sua morte, humanamente falando, tem muitos elementos em comum com a de Sócrates. O filósofo grego pereceu pelo ódio dos sofistas, dos sacerdotes e dos principais do povo; o legislador dos cristãos sucumbiu sob o ódio dos escribas, dos fariseus e dos sacerdotes. Sócrates podia ter evitado a morte, mas não o quis; Jesus Cristo ofereceu-se voluntariamente. O filósofo grego não somente perdoou a seus caluniadores e a seus juízes iníquos, mas também lhes pediu que tratassem um dia seus próprios filhos como estavam tratando a si mesmo, se eles alcançassem a felicidade de merecer seu ódio pelos mesmos motivos que ele; o legislador dos cristãos, infinitamente superior, rogou a Seu Pai que perdoasse Seus inimigos.
Se Jesus Cristo pareceu temer a morte, se a angústia que sentiu foi tão extrema que Seu suor se misturou com sangue, o que é um sintoma extremamente violento e muito raro, é porque ele se dignou a se rebaixar à plenitude da fraqueza do corpo humano de que estava revestido. Seu corpo tremia, mas Sua alma permanecia inabalável; ele nos ensinou que a verdadeira força e a verdadeira grandeza consistem em suportar os males sob os quais nossa natureza sucumbe. Existe extrema coragem em correr para a morte quando mais se a teme.
Sócrates havia tratado os sofistas de ignorantes e demonstrado que usavam de má-fé; Jesus, usando de seus direitos divinos, tratou os escribas e fariseus de hipócritas, insensatos, cegos, malfeitores, serpentes, raça de víboras.”


“É a tolerância ou a intolerância que provém do direito divino? Se quereis vos assemelhar a Jesus Cristo, sede mártires, e não carrascos.”


“Para que um governo não tenha o direito de punir os erros dos homens, é necessário que esses erros não sejam crimes; os erros somente são crimes quando perturbam a sociedade; eles perturbam a sociedade desde que inspirem fanatismos: é preciso, portanto, que os homens comecem por deixar de ser fanáticos a fim de merecer a tolerância.”


“Em qualquer lugar em que houver uma sociedade estabelecida, uma religião é necessária; as leis reprimem os crimes conhecidos, enquanto a religião se encarrega dos crimes secretos.”


“A superstição está para a religião na mesma proporção em que a astrologia está para a astronomia; é a filha abobalhada de uma mãe muito sábia. Mas essas duas filhas durante muito tempo subjugaram toda a Terra.”


“Quanto menos dogmas, menos disputas; e quanto menos disputas, menos infelicidades; se isso não é verdade, então o errado sou eu.
A religião foi instituída para nos tornar felizes nesta vida e na outra. O que é necessário para ser feliz na vida que há de vir? Ser justo.
Para ser feliz na vida atual, tanto quanto o permite a miséria de nossa natureza humana, o que é necessário? Ser indulgente.
Seria o cúmulo da loucura pretender levar todos os homens a pensar de maneira uniforme no terreno da metafísica. Será muito mais fácil subjugar o universo inteiro pela força das armas do que dominar todos os espíritos de uma única cidade.”


“Quando a natureza faz ouvir de um lado sua voz doce e benfazeja, o fanatismo, esse inimigo da natureza, se põe a uivar; e tão logo a paz se apresenta aos homens, a intolerância forja suas armas.”


“A natureza diz a todos os homens: “fiz com que todos vocês nascessem fracos e ignorantes para vegetar durante alguns minutos sobre a terra e para fertilizá-la com seus cadáveres. Uma vez que são fracos, busquem socorro; já que são ignorantes, esclareçam-se e busquem apoio. Quando todos vocês tiverem a mesma opinião, coisa que certamente não há de acontecer nunca, caso só haja um único homem com opinião contrária, vocês deverão perdoá-lo: porque sou eu que o faço pensar como pensa. Eu dei a todos vocês braços para cultivarem a terra e uma minúscula luz de razão para conduzi-los; coloquei em seus corações um germe de compaixão para que todos vocês se ajudem mutuamente a suportar a vida. Não sufoquem esse germe, não o corrompam, compreendam que ele é divino e não substituam a voz da natureza pelos miseráveis furores de escolares.
“Sou apenas eu que ainda uno todos vocês, apesar de tudo, por meio de suas necessidades mútuas, mesmo no meio de suas guerras cruéis iniciadas tão levianamente, teatro eterno das maldades, dos riscos e das infelicidades. Sou apenas eu que dentro de uma nação interrompo as consequências funestas das divisões intermináveis entre a nobreza e a magistratura, entre essas duas classes e o sacerdócio, entre o burguês e o camponês. Eles ignoram todos os limites de seus direitos; porém, a despeito de si mesmos, todos escutam a longo prazo a minha voz, que lhes fala ao coração. Sou apenas eu que conservo a equidade nos tribunais em que, sem mim, tudo seria entregue à indecisão e aos caprichos, no meio de um amontoado confuso de leis feitas frequentemente ao acaso, para atender a uma necessidade passageira, diferentes de província para província, de cidade para cidade e quase sempre apresentando contradições entre si até no mesmo local. Sou apenas eu que posso inspirar a justiça, quando as leis apenas inspiram as chicanas. Aquele que me escuta julga sempre bem; aquele que não busca senão conciliar as opiniões que se contradizem é aquele que se desorienta.
“Existe um edifício imenso cujos alicerces eu lancei com minhas próprias mãos; era sólido e simples, todos os homens podiam nele entrar em segurança; contudo, quiseram acrescentar-lhe os ornamentos mais bizarros, mais grosseiros e mais inúteis; agora o edifício cai em ruínas por todos os lados; os homens pegam suas pedras e as jogam nas cabeças uns dos outros; eu lhes grito: Parai, abandonai esses escombros funestos que são o resultado de vossas próprias obras e vinde morar comigo em paz nesse edifício inquebrantável que é o meu”.”




“Existe um outro dever, o da benevolência, que é mais raramente satisfeito pelos tribunais, que parecem acreditar que foram criados para ser somente justos.”