segunda-feira, 1 de março de 2021

Karl Marx: uma biografia (Parte I), de José Paulo Netto

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-438-4

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 816

Análise em vídeo: Clique aqui

Link para compra: Clique aqui

Sinopse: Com maestria e erudição, José Paulo Netto nos conta a história de Karl Marx neste livro fundamental, fruto de uma vida inteira dedicada ao estudo da obra marxiana. Entrelaçando realidade sociopolítica e aspectos da vida privada do biografado, o autor dá luz à trajetória do pensamento, da atividade política, da elaboração dos textos, dos afetos e desafetos – enfim, ao grande legado do criador do socialismo científico.

Ao recorrer aos textos produzidos por Marx um a um, entremeando suas reflexões a uma ampla série de citações (escolhidas a dedo), José Paulo Netto oferece ao leitor um rico guia de leitura da vida e da obra de Marx. Também são convocados a participar dessa sinfonia textual outros biógrafos e comentaristas, tornando o quadro ainda mais complexo e instigante, sem nunca perder o fio.

Trata-se de uma narrativa que se dá em dois tempos: além do texto principal (dividido em oito capítulos mais o epílogo), o livro conta com 1.006 imprescindíveis notas de fim. Esse portentoso conjunto, além de formar uma obra incontornável na área dos estudos marxistas, há também de ser celebrado pelos amantes das boas biografias.


 

“Nunca a ignorância ajudou a quem quer que fosse!” (Karl Marx, 1846)

 

 

“Os que se propõem a contribuir para a plena emancipação humana, para a realização da liberdade e da igualdade, reconhecem em Marx um pensador indispensável para a construção da humanidade humana, para a superação da vida danificada, para todos. Jean-Paul Sartre disse, sobre isso, algo como “o marxismo é a filosofia insuperável do nosso tempo”; antes de querer atribuir ao marxismo a perfeita impossibilidade de tudo explicar, a frase afirma sua inexcedível centralidade como instrumento decisivo na permanente busca tanto de compreender o capitalismo quanto de contribuir para a sua superação.” (João Antonio de Paula)

 

 

“Em Marx, a teoria, produto do cérebro dos homens, constitui a reprodução, no plano das ideias, do movimento real do objeto de que se ocupa. O núcleo duro da obra que Marx nos legou é a teoria que reproduz idealmente o movimento real do capital no processo da gênese, da consolidação, do desenvolvimento e das condições de crise da sociedade embasada no modo de produção capitalista: a sociedade burguesa. E a verdade da teoria, assim posta, não depende apenas da sua coerência interna: a sua prova decisiva se faz no confronto com a dinâmica profunda dessa sociedade, faz-se na prática social. Enfim, não penso que Marx seja o teórico do socialismo e/ou do comunismo: penso-o como teórico do capitalismo.

Com toda a evidência, a teoria social revolucionária, fundada pela e na obra de Marx, não se concluiu com ele, nem poderia concluir-se: na medida em que deve reproduzir idealmente o movimento real do modo de produção capitalista e da sociedade nele assentada, é uma teoria também em movimento (ou, se se quiser, em desenvolvimento). No tocante à validez contemporânea da obra de Marx, penso que, nesta segunda década do século XXI, a teoria marxiana continua válida e absolutamente necessária para compreender o capitalismo dos nossos dias, mas, ao mesmo tempo, entendo que ela não é suficiente: para compreender o capitalismo contemporâneo, é preciso investigá-lo a partir não das conclusões marxianas, e sim da sua concepção teórico-metodológica.”

 

 

“De fato, no Marx dos Manuscritos econômico-filosóficos, a categoria de alienação tal como teorizada antes por Hegel e Feuerbach[60] é criticada, enriquecida e transformada. Nos Manuscritos, Marx avança para além de ambos os filósofos na formulação da sua teoria da alienação: nesses textos, está em processo a ultrapassagem dos influxos hegelianos (para Hegel, a objetivação do sujeito, a Ideia/Espírito, é universal e necessariamente alienação) e da inspiração basicamente feuerbachiana (na qual a alienação tem como sujeito o homem abstrato e é um processo que se opera na consciência de si desse homem em geral), e Marx caminha para a historicização materialista da alienação, determinando-lhe um novo sujeito nuclear (o produtor direto, o trabalhador) e precisando a sua processualidade sociomaterial e histórica: o ato e o processo da produção[61]. A alienação do sujeito recebe um novo trato: deixa de ser uma objetivação universal e necessária (como em Hegel, que identifica objetivação com alienação) e não se reduz a um produto da consciência (como em Feuerbach). Se em Hegel a supressão da alienação equivale à supressão da objetivação, nos Manuscritos a objetivação só é alienação em condições históricas determinadas – nas condições próprias à existência histórica da propriedade privada (com as suas conexões com a divisão do trabalho, a produção mercantil e o trabalho assalariado); se em Feuerbach ela se mostra privilegiadamente na consciência religiosa, nos Manuscritos esta é, antes, uma dentre várias resultantes de condições sócio-históricas muito determinadas. (...)

É preciso, portanto, esclarecer a exteriorização do trabalho, a “relação essencial do trabalho”, a saber, “a relação do trabalhador com a produção” – o que a economia política não faz, ocultando, assim, “a alienação na essência do trabalho”. Tal operação analítica deve realizar-se para descobrir os fundamentos das categorias da economia política, em primeiro lugar a de propriedade privada. Ora, é justamente aqui que Marx põe em cena, expressamente, a sua perspectiva filosófico-antropológica (...). É à luz da concepção filosófico-antropológica desenvolvida no primeiro semestre de 1844 que ele trata do substrato da propriedade privada, a alienação do trabalhador. Tal concepção, embora ainda marcada por influxos hegelianos e feuerbachianos, já evidencia componentes de clara ultrapassagem dessas duas fontes seminais, como viemos de indicar.

A concepção filosófico-antropológica de Marx[67] é explicitada nos parágrafos que compõem o segmento “Trabalho alienado e propriedade privada”, mas é objeto de novas determinações no terceiro manuscrito; por isso, na exposição dela, já aqui recorreremos também a passagens deste último manuscrito. Clarificar essa concepção, num excurso necessariamente sumário, por certo contribui para a compreensão da concepção marxiana da alienação e dos próprios Manuscritos.

Tal concepção filosófico-antropológica[68], que Marx desenvolve em 1844, assenta na ideia de que o ser do homem se constitui enquanto atividade vital consciente, enquanto atividade livre consciente. A forma primária dessa atividade é o trabalho, a própria vida produtiva, traço distintivo do ser do homem em face do universo da vida animal. Lê-se nesse primeiro manuscrito:

O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se diferencia dela. É ela. O homem faz a sua própria atividade vital objeto da sua vontade e da sua consciência. Não é uma determinidade com a qual ele se confunda imediatamente. A atividade vital consciente diferencia imediatamente o homem da atividade vital animal. […] Decerto, o animal também produz. Constrói para si um ninho, habitações, como as abelhas, castores, formigas etc. Contudo, produz apenas o que necessita imediatamente para si ou para a sua cria; produz unilateralmente, enquanto o homem produz universalmente; produz apenas sob a dominação da necessidade física imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da necessidade física e só produz verdadeiramente na liberdade da mesma. […] O animal dá forma apenas segundo a medida e a necessidade da species a que pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de cada species e sabe aplicar em toda a parte a medida inerente ao objeto; por isto, o homem dá forma também segundo as leis da beleza.[69]

Mas o trabalho, atividade vital específica do homem – que o distingue da vida animal –, não suprime a sua naturalidade. Para Marx, “o homem (tal como o animal) vive da natureza”,

tanto na medida em que ela é 1) um meio de vida imediato, como na medida em que ela é 2) o objeto/matéria e o instrumento da sua atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem, quer dizer a natureza na medida em que não é ela própria corpo humano. O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de permanecer em constante processo para não morrer. Que a vida física e espiritual do homem esteja em conexão com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está em conexão com ela própria, pois o homem é uma parte da natureza.[70]

Sinalizamos linhas antes que a perspectiva filosófico-antropológica marxiana desenvolvida em 1844 ainda não se liberou de algumas hipotecas ao pensamento de Hegel e de Feuerbach; mas, ao mesmo tempo, dissemos que ela já patenteia vetores de superação de tais débitos. O lastro feuerbachiano é visível no trato, por Marx, da relação homem-natureza: por exemplo, com o expressivo apelo, no terceiro manuscrito, à sensibilidade tal como pensada por Feuerbach[71]. Nesse mesmo terceiro manuscrito, entretanto, Marx escreve que o homem é um ser da natureza ativo[72]; a qualificação do homem como ser da natureza ativo (ou, se se quiser, produtivo) colide abertamente com a antropologia de Feuerbach, na qual o caráter ativo (produtivo) do homem carece de ponderação – como Marx haveria de apontar cerca de um ano depois (na primavera de 1845), nas suas Teses sobre Feuerbach. É a gravitação dessa qualificação que permitirá a Marx, ainda no próprio terceiro manuscrito, formular o núcleo duro da sua compreensão do “ser da natureza ativo”, que então aparece expressa e explicitamente: “Para o homem socialista, toda a chamada história do mundo não é senão a geração do homem pelo trabalho humano”. Eis aí o ponto arquimediano da concepção filosófico-antropológica de Marx: a emergência do ser do homem pela via da sua atividade vital, o processo da autoconstituição (autoprodução) do homem mediante o trabalho[73]. O homem é, viu-se linhas antes, “uma parte da natureza”; “o homem, porém, não é apenas ser da natureza, mas ser da natureza humano”; o ser do homem, ao constituir-se pelo trabalho, é algo específico, diverso do ser natural: o seu desenvolvimento supõe sempre a insuprimível naturalidade do homem, mas implica a contínua redução dos condicionalismos postos por ela (em formulações ulteriores, é o que Marx vai caracterizar como o “afastamento” – ou “recuo” – das “barreiras naturais”)[74].

No primeiro manuscrito (e, como se verá, também no segundo), a relação do homem com a natureza, que Marx continuará desenvolvendo ulteriormente na consideração do metabolismo sociedade-natureza, não é apreendida como apenas utilitária e/ou unilateral (nada casual é a notação, que registramos há pouco, de que o homem dá forma também segundo as leis da beleza)[75]. Bem diversamente: sendo a natureza “corpo inorgânico do homem”, este se socorre dela (relaciona-se com ela) de modo omnilateral, à diferença do animal, que o faz unilateralmente. No mesmo passo, há pouco transcrito, em que caracteriza a “atividade vital consciente” – distintiva do trabalho humano –, Marx pontua:

[O animal] produz unilateralmente, enquanto o homem produz universalmente […]; [o animal] produz-se apenas a si próprio, enquanto o homem reproduz a natureza toda; o seu [do animal] produto pertence imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o homem enfrenta livremente o seu produto.

A produção humana, que tem na natureza o objeto/matéria e o instrumento da sua atividade vital, torna a natureza o corpo inorgânico do homem, provando a sua universalidade e a genericidade do seu ser (cf. Marx, 2015, Antología, p. 311). Para Marx,

o homem é um ser genérico não apenas na medida em que prática e teoricamente torna objeto seu o gênero, tanto o seu próprio como o das restantes coisas, mas também – e isto é apenas uma outra expressão para a mesma coisa – na medida em que ele se comporta para consigo próprio como gênero vivo, presente, na medida em que ele se comporta para consigo próprio como um ser universal, por isso livre.

É sabido que procede de Feuerbach a ideia do homem como ser genérico e consciente[76]. Marx coincide com Feuerbach em determinar a genericidade e a consciência como especificidades humanas, mas, à diferença dele – diferença essencial –, em razão do caráter ativo (produtivo) que atribui ao homem, vê que este só na elaboração do mundo objetivo […] se prova realmente como ser genérico. Esta produção é a sua vida genérica operativa. Por ela, a natureza aparece como obra sua e realidade sua. O objeto do trabalho é, portanto, a objetivação da vida genérica do homem, na medida em que ele se duplica não só intelectualmente, como na consciência, mas também operativamente, realmente, e contempla-se por isso num mundo criado por ele.

Daí porque, para Marx, o homem, nas suas genericidade e consciência, é um ser objetivo. No terceiro manuscrito, no excurso sobre Hegel, ele o afirma expressamente: referindo-se ao “homem real, corpóreo, de pé sobre a terra bem redonda e firme, expirando e inspirando todas as forças da natureza”, registra que

o ser objetivo opera objetivamente e não operaria objetivamente se o objeto não residisse na sua determinação essencial. […] O seu produto objetivo apenas confirma a sua atividade objetiva, a sua atividade como a atividade de um ser natural objetivo. […] Que o homem é um ser objetivo […] significa que ele tem objetos sensíveis, reais por objeto da sua essência, da sua exteriorização de vida ou que só pode exteriorizar a sua vida em objetos sensíveis reais.

E de forma conclusiva: “Um ser que não tenha nenhum objeto fora de si não é nenhum ser objetivo. […] Um ser não-objetivo é um não-ser”.

Ora, a exteriorização (objetivação) básica do homem é o trabalho, que torna real e objetiva a sua atividade vital livre e consciente, pela qual se faz ser genérico – e a “vida produtiva é a vida genérica. É a vida que gera vida. No modo de atividade vital reside todo o caráter de uma species, o seu caráter genérico, e a atividade consciente e livre é o caráter genérico do homem”. Sublinhe-se com a máxima ênfase: o trabalho somente enquanto “a atividade consciente e livre é o caráter genérico do homem”; não o é, por exemplo, na forma (histórica) do que Marx chamou, nos Cadernos, de “trabalho lucrativo”, claramente uma designação do trabalho alienado, de que se ocupa o primeiro dos Manuscritos e a que logo voltaremos[77]. Enfim, posto como essa atividade consciente e livre, “o gerar prático de um mundo objetivo, a elaboração da natureza inorgânica, é a prova do homem como um ser genérico consciente, i.e., um ser que se comporta para com o gênero como sua própria essência ou para consigo como ser genérico”.

Vê-se claramente que está desenhada a perspectiva filosófico-antropológica que Marx vem desenvolvendo nesse primeiro semestre de 1844, perspectiva em construção e, portanto, ainda em aberto: ela só adquirirá mais densidade teórico-filosófica no curso dos dois próximos anos, quando então tomará seus traços definitivos. Contudo, seu núcleo central – que já sinalizamos: o ser do homem se autoproduz e se autoconstitui mediante o trabalho – confere ao homem a especificidade que se expressa na sua sociabilidade, resultante processual da prática operativa que é o trabalho; especial, mas não exclusivamente, no terceiro manuscrito, o humano, colocado pelo trabalho, identifica-se expressamente com o social. Quando for superada a propriedade privada, a sociabilidade humana revelar-se-á como tal: o ser do homem (o ser humano do homem) mostrar-se-á ser social, mesmo quando exercer uma atividade na aparência solitária e/ou puramente individual, por exemplo, a elaboração teórico-científica. Até nessa atividade,

que eu raramente posso executar em comunidade imediata com outros, estou socialmente ativo, porque [ativo] como homem. Não só o material da minha atividade – como a própria língua na qual o pensador é ativo – me é dado como produto social, a minha existência própria é atividade social; por isso, o que eu faço de mim, faço de mim para a sociedade e com a consciência de mim como um ser social.

E é na continuidade dessa notação que Marx salienta ser preciso

sobretudo […] evitar fixar de novo a “sociedade” como abstração face ao indivíduo. O indivíduo é o ser social. A sua exteriorização de vida – mesmo que ela não apareça na forma imediata de uma exteriorização de vida comunitária, levada a cabo simultaneamente com outros – é, por isso, uma exteriorização e uma confirmação da vida social. […] O homem – por muito que seja portanto um indivíduo particular e, precisamente, a sua particularidade faz dele um indivíduo e uma comunidade individual real – é tanto a totalidade, a totalidade ideal, a existência subjetiva para si da sociedade sentida e pensada como também existe na realidade, quer como intuição e fruição real da existência social quer como uma totalidade de exteriorização humana de vida.[78]

Vê-se nessas reflexões – ulteriormente aprofundadas e redimensionadas – que, desde as primeiras elaborações da sua obra, Marx não contrapõe nem hipostasia indivíduo e sociedade, o que lhe permite sobrepassar os pseudoproblemas que marcariam depois, no curso de sua história, algumas expressivas obras da tradição sociológica acadêmica[79]. Nesse passo da reconstrução da sua biografia intelectual, interessa assinalar que salta à vista a gravitação da “exteriorização humana de vida” na “existência social”: o “exteriorizar-se” é o “confirmar-se” da vida social. Ora, a reiterada insistência de Marx no processo do “gerar prático de um mundo objetivo” – vale dizer, no trabalho –, do qual natureza e homem são partes constituintes e constitutivas[80], põe o ser do homem como prático e social, ou, se se quiser, o homem como um ser da práxis[81].

Enquanto categoria, a práxis, tomada como prática social produtiva, objetiva, tendo por sujeito os homens e objeto a natureza – embora se direcionando também a outros homens, numa peculiar relação sujeitos-sujeitos –, está matrizada pela concepção marxiana de trabalho que tem seu primeiro desenho nos Manuscritos e, mais desenvolvida, atravessa o conjunto da reflexão marxiana a partir de 1844. Que a matriz da práxis em Marx resida no trabalho parece-me algo pouco discutível: os traços pertinentes deste são essenciais e constitutivos daquela; vê-se, pois, a razão de Lukács afirmar com propriedade e segurança que o trabalho é o modelo da práxis, ainda que essa categoria seja mais abrangente e o trabalho, como tal, não esgote, em absoluto, a práxis – ou, o que dá no mesmo, a práxis não se reduza ao trabalho (Lukács, Para uma ontologia do ser social, 2013, v. II). Sendo assim, a práxis é constitutiva da essência humana, núcleo da concepção filosófico-antropológica que Marx está articulando em 1844, conexa (mas não idêntica) à natureza humana, concepção que permeia os Manuscritos (e não só eles) e que haverá de tornar-se objeto de acesa polêmica na tradição marxista[82].

A primorosa análise de Márkus (2015) sobre a concepção marxiana de essência humana foi bem resumida por Agnes Heller, ao tempo em que era uma pensadora marxista. Após afirmar que “a ‘essência humana’ é também ela histórica” e que “a história é, entre outras coisas, história da explicitação da essência humana, mas sem identificar-se com esse processo”, a autora húngara diz:

As componentes da essência humana são, para Marx, o trabalho (a objetivação), a socialidade, a universalidade, a consciência e a liberdade. A essência humana, portanto, não é o que ‘esteve sempre presente na humanidade’ (para não falar mesmo de cada indivíduo), mas a realização gradual e contínua das possibilidades imanentes à humanidade, ao gênero humano. (Heller, O cotidiano e a história, 1972, p. 4)[83]

Está claro: a essência humana, assim tomada e assim posta em 1844 na concepção filosófico-antropológica de Marx, nada tem em comum com concepções essencialistas, supra-históricas ou ahistóricas, que a pensam como algo dado, fixo e eterno. Trata-se de uma estrutura antropológica dinâmica, que dispõe de possibilidades produzidas pelos homens no processo de constituição do ser social deflagrado pelo trabalho, possibilidades mutáveis, portanto; possibilidades que se constituem, se explicitam e se transformam no curso da história. É fato que, em 1844, a concepção filosófico-antropológica marxiana carece de fundamentação histórico-concreta ampla e profunda, antes resultando, sobretudo, de uma reflexão ainda de base dominantemente filosófica; já em A ideologia alemã (1845-1846) explicita-se a recorrência econômico-política e histórica[84] que só ganhará inteira densidade no curso da década seguinte, quando então Marx esclarecerá como, expressando o desenvolvimento das capacidades do gênero humano, aquelas possibilidades objetivam-se mediante um processo, também ele, historicamente determinado e imanentemente contraditório[85].

Feito esse breve excurso sobre a concepção filosófico-antropológica marxiana que se constitui em 1844, podemos retornar à questão do desapossamento do trabalho, atentando para as suas implicações e resultantes, expressas no fenômeno e no processo da alienação do trabalhador (e não só dele). Marx constatou o fenômeno, vimo-lo páginas atrás, como um “fato nacional-econômico, […] um fato presente”, partindo “sempre dos pressupostos da economia nacional” e aceitando “a sua linguagem e as suas leis”; mas ele estabeleceu a sua crítica elevando-se “acima do nível da economia nacional”, isto é, tratando-o como fato e processo à luz da (nova) perspectiva propiciada pela sua concepção filosófico-antropológica. Sob essa luz Marx, no primeiro manuscrito, relaciona diretamente o salariato, trabalho desapossado (isto é, trabalho alienado) e a propriedade privada: “Salário é uma consequência imediata do trabalho alienado e o trabalho alienado é a causa imediata da propriedade privada”[86]; por isso, a propriedade privada é vista “enquanto a expressão material, resumida, do trabalho exteriorizado” Linhas antes, todavia, Marx já desenvolvera com mais elementos tais relações:

Através do trabalho alienado, exteriorizado, o trabalhador gera a relação de um homem alienado ao trabalho e postado fora deste trabalho. A relação do trabalhador com o trabalho gera a relação daquele para com o capitalista […].

A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado, a consequência necessária do trabalho exteriorizado […]. A propriedade privada resulta, portanto, por análise, a partir do conceito de trabalho exteriorizado, i.e., do homem exteriorizado, do trabalho alienado, da vida alienada, do homem alienado.

É certo que obtivemos o conceito de trabalho exteriorizado (da vida exteriorizada) a partir da economia nacional como resultado do movimento da propriedade privada. Mas a análise deste conceito mostra que, se a propriedade privada aparece como fundamento, como causa do trabalho exteriorizado, ela é antes uma consequência do mesmo, assim como também originariamente os deuses não são a causa, mas o efeito do extravio humano do entendimento. Mais tarde esta relação converte-se em ação recíproca.

Unicamente no ponto culminante do desenvolvimento da propriedade privada se evidencia de novo o seu segredo, a saber: por um lado, que ela é o produto do trabalho exteriorizado e, em segundo lugar, que ela é o meio através do qual o trabalho se exterioriza, a realização dessa exteriorização.(...)

O caráter crítico de todas as reflexões formuladas por Marx a partir daquele “fato nacional-econômico, [daquele] fato presente” está hipotecado à sua concepção filosófico-antropológica: é a perspectiva posta por esta que possibilita a ele colocar-se efetivamente “acima” das “leis” e da “linguagem” da economia política. Para sermos diretos: a categoria propriedade privada só pôde ser fundada a partir da categoria trabalho alienado, mas esta só pôde ser elaborada quando Marx, com base em sua concepção filosófico-antropológica – com a sua compreensão de essência humana –, apreendeu como a alienação trava o desenvolvimento dessa essência, como a compromete, fere, lesa, violenta e nulifica. Vê-se que a crítica marxiana da alienação remete, pois, à distinção entre existência humana e essência humana que se inscreve na condição operária[88]”.

[60] É inconteste que a problemática da alienação foi descortinada para Marx a partir de Hegel (fundamentalmente o Hegel da Fenomenologia do Espírito) e da crítica operada por Feuerbach (basicamente o Feuerbach de A essência do cristianismo); sobre o tratamento distinto dado a ela, ver Fischbach, Transformations du concept d’aliénation, 2008. Mas não se pode reduzir o débito de Marx somente a essas duas fontes. Ademais delas, mesmo com incidências de menor impacto na sua reflexão, há que mencionar ainda pelo menos Rousseau (o Rousseau de O contrato social, como salientou Mészáros, A teoria da alienação em Marx, 2006) e Hess (como assinalou McLellan, Marx y los jovenes hegelianos, 1971); e ainda, segundo Henri Chambre (em Engels, Esquisse d’une critique de l’Économie Politique, 1974), há também que levar em conta o contributo de Engels.

[61] Marx movimenta-se nessa direção, mas, nos Manuscritos, ainda está distante da abordagem histórico-social que se registra em A ideologia alemã (que, para Mandel, A formação do pensamento econômico de Karl Marx, 1968, p. 38, constitui a “obra filosófica principal” de Marx e Engels, que “funda a teoria do materialismo histórico sobre uma superação sistemática da filosofia pós-hegeliana alemã”), tratamento teórico-metodológico que só se completará nos Grundrisse.

[67] Fazemos reiteradas referências à concepção filosófico-antropológica para frisar que não há em Marx uma antropologia sem expressa fundação filosófica – mais exatamente, uma antropologia descolada de uma filosofia apoiada numa ontologia materialista. Sobre esse ponto fundamental, ver Mészáros, 2006, p. 45-8.

[68] “Se se compreende por ‘antropologia filosófica’ uma caracterização extra ou supra-histórica (ou mesmo simplesmente a-histórica) dos traços humanos, então Marx não possui uma antropologia e ele negaria a utilidade de tal antropologia para a compreensão da essência dos homens. Se, por outro lado, nós entendemos por antropologia uma resposta dada à pergunta sobre a ‘essência humana’, uma tentativa de resolução da questão ‘o que é essencialmente o homem’, então há uma ‘antropologia’ marxiana, só que não é uma abstração de história, mas sim uma abstração da história em si. Isto é, a concepção de Marx é diametralmente oposta a todas as tendências de pensamento que afastam e contrapõem a antropologia e a sociologia, que estabeleceram o estudo da ‘essência’ do homem em oposição ao estudo sócio-histórico do homem. Para Marx, a ‘essência humana’ do homem reside precisamente na ‘essência’ ou no ‘ser’ do processo global e evolutivo da humanidade e na unidade interna deste processo” (Márkus, Marxismo e antropologia, 2015, p. 98-9). Ver também, noutro registro e com expressivos desenvolvimentos, a sólida argumentação de Sève, Penser avec Marx aujourd’hui, 2008, caps. 2, 3 e 4.

[69] A partir de 1844, a consideração decisiva da atividade produtiva, do trabalho, como distintivo do ser do homem, estará presente no pensamento e no conjunto da obra marxiana. Em A ideologia alemã (2007, p. 87), quando os influxos hegelianos e feuerbachianos já estão superados no quadro da original concepção dialético-materialista marxiana, lê-se: “Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou pelo que se queira.

Mas eles mesmos começam a se distinguir dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida”.

Os grandes textos dos anos 1850 e 1860 – os Grundrisse e O capital – documentam, sem rupturas, a continuidade e o avanço da concepção marxiana de trabalho que emerge nos Manuscritos. A continuidade é flagrante e se registra no Livro I de O capital (ver, por exemplo, Marx, 1968, Livro I, v. 1, p. 202); o avanço pode ser verificado no trato que Marx concede ao processo de trabalho, aos instrumentos de trabalho e, muito especialmente, à exploração da dimensão teleológica constitutiva do trabalho – avanço verificável não só em O capital, mas já nos Grundrisse e noutros manuscritos de publicação igualmente póstuma: textos da abertura dos anos 1850 – Marx, 1984 – e dos anos 1860 – Marx, Para a crítica da economia política; Salário, preço e lucro; O rendimento e suas fontes (1982), e Para a crítica da economia política (2010b).

Aproximações a essa temática encontram-se em Katz, La concepción marxista del cambio tecnológico (1996); Discusiones marxistas sobre tecnología (1997) e em Romero, Marx e a técnica (2005).

Todos esses materiais referentes à concepção marxiana de trabalho consolidam a infirmação da tese que argumenta no sentido da ruptura entre o “jovem” Marx e o Marx “da maturidade” – ver a notação crítica de Vázquez (Filosofia da práxis, 2007, p. 228) sobre a contraposição que Althusser opera, nessa questão, entre os Manuscritos e O capital. No tocante à problemática da alienação, as linhas de continuidade entre o “jovem” Marx e o Marx dos Grundrisse são bem tematizadas por Díaz, La concepción del hombre en Marx, 1975, p. 271-302.

[70] É claríssimo o rebatimento dessas determinações do jovem Marx na sua obra “madura” – na “Introdução de 1857” aos Grundrisse, depois de assinalar que na produção em geral a natureza é sempre o objeto da ação do sujeito (a humanidade), Marx afirma que “toda produção é apropriação da natureza pelo indivíduo, no interior e mediada por uma determinada forma de sociedade” (Marx, 2011, p. 41-3); em O capital, o “permanecer em constante processo para não morrer” rebate da seguinte forma: “O trabalho, como criador de valores-de-uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem – quaisquer que sejam as formas de sociedade –, é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza e, portanto, de manter a vida humana” (Marx, 1968, Livro I, v. 1, p. 50). Sobre a relação trabalho/natureza na criação de riquezas sociais, ver Burkett, Marx and Nature (1999).

[71] É exatamente nesse passo que Marx sustentará a ideia de que “a própria história é uma parte real da história da natureza, do devir da natureza até ao homem. A ciência da natureza subsumirá em si mais tarde a ciência do homem, tal como a ciência do homem subsumirá a da natureza: haverá uma ciência”. Não parece que tal ideia possa ser identificada sumariamente com a passagem de A ideologia alemã (quando a crítica a Feuerbach já comparece explícita) em que Marx e Engels afirmam – em frase, aliás, suprimida no original pelos autores – conhecer “uma única ciência, a ciência da história” (Marx-Engels, 2007, p. 86). Quanto ao “caráter antropológico das ciências naturais”, ver Vázquez, 2007, p. 128 e seg. e, especialmente, Mészáros, 2006, p. 96 e seg.

[72] Leia-se: “O homem é imediatamente ser da natureza. Como ser da natureza, e como ser da natureza vivo, ele é, em parte, um ser da natureza ativo equipado com forças naturais, com forças vitais: estas forças existem nele como disposições e capacidades, como impulsos; em parte, como ser natural, corpóreo, sensível, objetivo, ele é um ser que sofre, condicionado e limitado, tal como o são o animal e a planta”. E poucos parágrafos adiante: “O homem, porém, é não apenas ser da natureza, mas ser da natureza humano”.

[73] Donde o elogio, no terceiro manuscrito, à hegeliana Fenomenologia do Espírito: “A grandeza da Phänomenologie de Hegel e do seu resultado final – da dialética, da negatividade como princípio motor e gerador – é […] que Hegel apreende a autogeração do homem como um processo […], apreende a essência do trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque homem real, como resultado do seu próprio trabalho”. No imediato seguimento dessa frase, Marx refere-se ao “ser genérico [do homem] como um ser genérico real, i.e., como essência humana”.

Mas, na sequência desse elogio, Marx faz a sua reserva básica à identificação hegeliana entre objetivação e alienação: em Hegel, “a objetividade como tal passa por uma relação alienada do homem, uma relação que não corresponde à essência humana […]. Portanto, a reapropriação da essência objetiva do homem gerada enquanto estranha, sob a determinação da alienação, tem […] o significado não apenas de suprimir a alienação, mas também a objetividade, i.e., portanto o homem passa por um ser não-objetivo”. Voltaremos a esse ponto, mas, desde já, considerem-se as palavras de Pra: “Pode-se dizer […] que o ponto de divergência entre o processo dialético hegeliano e o marxismo consiste em que o primeiro, fundado na autoconsciência, identifica alienação com objetivação e, portanto, faz coincidir a superação da alienação com a superação da objetivação, ao passo que o segundo, fundado no homem real sensível vinculado aos objetos, distingue a objetivação da alienação, que é um modo especial de manifestação daquela, e faz coincidir a superação da alienação com a superação do modo concreto e desumanizado em que se expressa a relação entre o homem e os objetos”; em páginas anteriores, o analista italiano já afirmara que “a alienação se apresenta como um caso particular de objetivação, já que não pode existir trabalho sem objetivação, mas pode existir objetivação sem alienação” (Pra, La dialettica in Marx, 1977, p. 156 e 118).

[74] Veja-se a notação de Lukács: “O ser humano pertence ao mesmo tempo […] à natureza e à sociedade. Esse ser simultâneo foi mais claramente reconhecido por Marx como processo, na medida em que diz, repetidas vezes, que o processo do devir humano traz consigo um recuo das barreiras naturais. É importante enfatizar: fala-se de um recuo, não de um desaparecimento das barreiras naturais, jamais sua supressão total. De outro lado, porém, jamais se trata de uma constituição dualista do ser humano. O homem nunca é, de um lado, essência humana, social, e, de outro, pertencente à natureza; sua humanização, sua sociabilização, não significa uma clivagem de seu ser em espírito (alma) e corpo. […] Vê-se que também aquelas funções do seu ser que permanecem sempre naturalmente fundadas, no curso do desenvolvimento da humanidade, se sociabilizam cada vez mais. Basta pensar na nutrição e na sexualidade, nas quais esse processo aparece de forma evidente” (Lukács, Prolegômenos para uma ontologia do ser social, 2010a, p. 41-2). Em resumidas contas, o processo do devir humano “faz recuar, com força cada vez maior na atividade dos seres humanos, aqueles comportamentos surgidos do ser biológico, impondo-lhes um comportamento sempre mais decisivamente determinado pela sociedade” (ibidem, p. 316).

[75] Ao contrário de leituras unilaterais, superficiais e/ou equivocadas, o pensamento de Marx contém sólidos elementos de crítica a concepções meramente utilitárias da relação sociedade-natureza (e, também, a produtivismos cegos, evidentes em certo marxismo vulgar e em práticas conduzidas na experiência do “socialismo real”). Aliás, ao mencionar uma sociedade liberada da propriedade privada, Marx observa que, então, “a necessidade ou a fruição perder[á] […] a sua natureza egoísta e a natureza perde[rá] a sua mera utilidade na medida em que a utilização se tornou uma utilização humana”.

Na verdade, e como o demonstrou, entre outros, Foster (A ecologia de Marx, 2005), Marx – ainda que, dada a sua contextualidade histórica, não tenha sido um “ecologista” no sentido que a palavra porta nos dias correntes – possuía “uma forte consciência ecológica”. Isso se verifica não só nos Manuscritos (veja-se, por exemplo, a menção ao “envenenamento universal”, que hoje chamaríamos poluição), mas em vários outros passos da sua obra. Já é larga a bibliografia que, remetendo-se a Marx, tematiza e/ou desenvolve essa dimensão dos seus escritos; a título indicativo, ver Grundmann (Marxism and Ecology, 1991); Vv. Aa. (L’Écologie, ce materialism historique), 1992; Kovel, 2002; Vv. Aa (Capital contre nature, 2003); Empson (Marxism, Ecology and Human History, 2013).

[76] Recorde-se que Feuerbach escrevera que “consciência no sentido rigoroso existe somente quando, para um ser, é objeto o seu gênero […]. De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo […], mas não como gênero – por isso falta-lhe a consciência […].

Somente um ser para o qual o seu próprio gênero […] torna-se objeto pode ter por objeto outras coisas ou seres de acordo com a natureza essencial deles” (Feuerbach, A essência do cristianismo, 1988, p. 43).

[77] Nos Cadernos, Marx escreveu que, supondo que “produzíssemos como seres humanos”, “meu trabalho seria uma livre manifestação de vida, um gozo de vida”; em troca, “sob a propriedade privada, o trabalho é alienação de vida, porque trabalho para viver, para conseguir um meio de viver. Meu trabalho não é a minha vida”; assim, ele distingue trabalho como manifestação de vida e trabalho como alienação de vida (ver MEW, Ergänzungsband, 1977, p. 463).

Parece-me não haver a menor dúvida de que é precisamente a propósito do “trabalho lucrativo”, do trabalho típico do regime do salariato – em suma, a propósito do trabalho alienado –, que Marx, em A ideologia alemã (Marx-Engels, 2007, p. 42), afirma que “a revolução comunista […] suprime o trabalho”. Comentando as passagens em que Marx se refere à “abolição do trabalho”, Marcuse chama a atenção para o fato de todas elas conterem “a palavra Aufhebung, do vocabulário hegeliano, de modo que a abolição do trabalho significa que um conteúdo é restaurado na sua forma verdadeira. […] Ele usa o termo ‘trabalho’ para significar o que o capitalismo na verdade entende que o trabalho, em última análise, signifique, ou seja, aquela atividade que cria a mais-valia na produção de mercadorias, ou que ‘produz capital’” (Marcuse, Razão e revolução, 1988, p. 266). Por outra parte, no seu ensaio sobre a alienação em Marx, Mészáros observa que, nos Manuscritos, “o trabalho é considerado tanto em sua acepção geral – como ‘atividade produtiva’: a determinação ontológica fundamental da ‘humanidade’ (‘menchliches Dasein’, isto é, o modo realmente humano de existência) – como em sua acepção particular, na forma da ‘divisão do trabalho’ capitalista. É nesta última forma – a atividade estruturada em moldes capitalistas – que o ‘trabalho’ é a base de toda a alienação” (Mészáros, 2006, p. 78).

[78] Marx, porém, não vê no indivíduo isolado o sujeito do ser social: na sequência imediata, escreve que “a morte aparece como uma dura vitória do gênero sobre o indivíduo determinado e parece contradizer a sua [entre o indivíduo e o gênero] unidade; mas o indivíduo determinado é apenas um ser genérico determinado, como tal mortal”. Aliás, Márkus afirmou corretamente que “o portador, o sujeito do ‘ser humano’ não é, para Marx, o indivíduo isolado, mas a própria sociedade humana, considerada na continuidade do seu movimento histórico” (Márkus, 2015, p. 100). É fato que Marx nunca reduziu nem minimizou a consideração dos indivíduos, desde que devidamente inscritos no marco societário; pouco tempo depois de redigidos os Manuscritos, ele anotou: “Os indivíduos partiram sempre de si mesmos, mas, naturalmente, de si mesmos no interior de condições e relações históricas dadas, e não do indivíduo ‘puro’, no sentido dos ideólogos” (Marx-Engels, 2007, p. 64).

[79] Se, em 28 de dezembro de 1846, em carta a Annenkov, Marx afirma que “a sociedade, qualquer que seja a sua forma”, é “o produto da ação recíproca dos homens” (MEW, 1959, v. 4, p. 548), já no calor da hora revolucionária (início de abril de 1849) ele é muito mais preciso, valendo-se de conquistas teóricas alcançadas em A ideologia alemã (como a categoria de forças produtivas): “As relações sociais nas quais os indivíduos produzem, as relações sociais de produção mudam, transformam-se com a transformação e desenvolvimento dos meios materiais de produção, das forças produtivas. As relações de produção em sua totalidade constituem o que chamamos de relações sociais, de sociedade, e na verdade uma sociedade em um determinado nível de desenvolvimento histórico, uma sociedade com caráter peculiar, distintivo. A sociedade antiga, a sociedade feudal, a sociedade burguesa são tais totalidades de relações de produção, cada uma das quais designa igualmente um nível específico de desenvolvimento na história da humanidade” (Marx, Nova Gazeta Renana, 2010a, p. 542-3). Cerca de um decênio depois, Marx escreve que “a sociedade não consiste de indivíduos, mas expressa a soma de vínculos, relações em que se encontram esses indivíduos uns com os outros. […] Ser escravo e ser cidadão são determinações, relações sociais dos seres humanos A e B. O ser humano A enquanto tal não é escravo. É escravo na e pela sociedade” (Marx, Grundrisse, 2011, p. 205). E, na sua plena maturidade, no cap. XLVIII do Livro III de O capital, registra, a propósito do “processo capitalista de produção” como “forma historicamente determinada do processo social de produção em geral”, que este “é tanto um processo de produção das condições materiais de existência da vida humana como um processo que, operando-se em específicas relações histórico-econômicas de produção, produz e reproduz estas mesmas relações de produção e, juntamente com isto, os portadores deste processo, suas condições materiais de existência e suas relações recíprocas, vale dizer, sua formação econômico-social determinada, pois a totalidade destas relações com a natureza e entre si em que se encontram e em que produzem os portadores desta produção, esta totalidade é justamente a sociedade, considerada segundo a sua estrutura econômica” (Marx, 1984, v. 8, p. 1.042. Na edição brasileira de O capital que venho citando, ver Marx, 1974, Livro III, v. 6, p. 940).

No quadro da sociologia acadêmica (e não só dela), a relação indivíduo-sociedade (ou “grupo”, “comunidade” etc.) se pôs como um problema consistente na prioridade, precedência ou ponderação de um dos termos sobre o outro – foi assim desde Tarde (La logique sociale, 1999; e As leis sociais, 2012) e Durkheim (A produção teórica de Marx, 1972), com suas distintas “soluções”, culminando com o “esquema relacional” de Parsons (The Social System, 1959). Também pouco exitoso foi o esforço, intencionalmente crítico, de Gerth e Mills (Caráter e estrutura social, 1973).

[80] Além do que já se viu, note-se: “na elaboração do mundo objetivo” pelo homem, “a natureza aparece como obra sua e realidade sua”; mais adiante, no terceiro manuscrito, vê-se a que ponto, tornando-se e apreendendo-se como “ser genérico, como homem”, “o comportamento natural do homem se tornou humano, ou até que ponto a essência humana se tornou essência natural, até que ponto a sua natureza humana se tornou para ele natureza”.

[81] Filósofos iugoslavos – Gajo Petrović, Mihailo Marković, Predrag Vranicki – foram os principais formuladores, nos anos 1960, da tese segundo a qual a obra marxiana constitui uma filosofia da práxis, concepção que rebateu na América Latina (Vázquez, 2007); na mesma época, significativos marxistas europeus contribuíram na renovação do debate em torno da práxis (por exemplo, Karel Kosík e Henri Lefebvre); opondo-se a tal interpretação da obra marxiana, em posições muito diversas, encontravam-se Althusser e Sève. Quanto à peculiar e problemática posição de Gramsci, ver o verbete pertinente, de Roberto Dainotto, em Liguori e Voza, orgs., Dicionário gramsciano, 2017.

[82] Conforme a correta análise de Márkus, em Marx natureza humana não é sinônimo de essência humana. Enquanto esta diz respeito ao “ser do homem”, aquela designa “a totalidade das necessidades, as capacidades, as propriedades em geral, entendidas no sentido de suas possibilidades humanas, que têm os indivíduos típicos das várias épocas históricas”; ela é “historicamente mutável, mesmo que contenha certos elementos constantes” (Márkus, 2015, p. 90-1).

A mutabilidade histórica da natureza humana é expressamente afirmada por Marx em 1847: “Toda a história não é mais que uma transformação contínua da natureza humana” (Marx, Miséria da filosofia, 2017b, p. 128); tem razão, pois, Mészáros quando observa que Marx “não aceita algo como uma natureza humana fixa” e que, por isso mesmo, realiza a sua crítica da economia política “com uma abordagem […] baseada numa concepção de natureza humana radicalmente oposta” à dos economistas políticos (Mészáros, 2006, p. 137). Já antes, tratando da “ambiguidade terminológica” verificável nos Manuscritos, Mészáros se referira à essência humana: Marx teria rejeitado “categoricamente a ideia de uma ‘essência humana’. No entanto, ele manteve a expressão transformando o seu significado original até torná-la irreconhecível” (ibidem, p. 19).

Tais categorias comparecem tanto nos Cadernos quanto nos Manuscritos, e Marx nunca as abandonou inteiramente: registra-se, por exemplo, a presença de “natureza humana” em O capital (Marx, 1968, Livro I, v. 2, p. 708; 1974, Livro III, v. 6, p. 943) e nas Teorias da mais-valia (1983, v. II, p. 549); quanto à “essência humana”, a concepção que se formula nos Manuscritos conservar-se-á, concretizada e enriquecida, ao longo da obra marxiana – como afirmou Heller (1972, p. 4), trata-se de concepção “que se mantém no período da maturidade [de Marx]”. Muita tinta correu no debate dessas categorias; assinalemos uns poucos materiais: Venable (Human Nature, 1966); Gouliane, (Le Marxisme devant l’homme, 1968); Sève (Marxisme et théorie de la personnalité, 1974 e 2008, v. II); Heller (Sociologia della vita quotidiana, 1975); Plamenatz (Karl Marx’s Philosophy of Man, 1975); Roguinski et al. (La concepción marxista del hombre, 1978); Sayers (Marxism and Human Nature, 1998); Quiniou (L’Homme selon Marx, 2011); Tabak (Dialectics of Human Nature in Marx’s Philosophy, 2012).

[83] Note-se que, por seu turno, Vázquez arrola como “traços ou determinações do homem: a) a consciência (o homem é um ser consciente); b) o trabalho (como atividade vital); c) a socialidade (o homem é sempre um ser social); d) a universalidade (o homem é um ser universal na medida em que faz de toda a natureza seu corpo); e) a liberdade (na medida em que pode enfrentar-se livremente com sua necessidade e seus produtos); f) a totalidade (o homem é um ser total na medida em que realiza a ideia de totalidade e na medida em que, como indivíduo, desenvolve todas as suas potencialidades)”. E acrescenta que, a rigor, “estas determinações não se apresentam isoladas, mas sim em estreita unidade” (Vázquez, 2003, p. 243).

[84] Como se pode verificar, por exemplo, nos rascunhos e anotações (novembro de 1845 a abril de 1846) – ver Marx-Engels, 2007, p. 29-78. Observe-se como comparecem aí a divisão do trabalho e seu papel decisivo na fixação da “atividade social”, fazendo com que “o poder social” apareça aos indivíduos “como uma potência estranha, situada fora deles” (ibidem, p. 38); como “o modo de produção desenvolvido”, rompendo o “isolamento primitivo das nacionalidades singulares”, constitui o mercado mundial, instaura uma história que é plenamente história mundial (idem). Noutro passo (de redação provavelmente posterior), Marx – com Engels – assinala as relações entre a divisão do trabalho e as formas de propriedade, procurando determinações históricas destas últimas (Marx-Engels, 2007, p. 89-92).

[85] É nos Grundrisse (1857-1858) que Marx apreendeu os fundamentos econômico-políticos e históricos da dialética da alienação: “No valor de troca, a conexão social entre as pessoas é transformada em um comportamento social das coisas; o poder pessoal, em poder coisificado. Quanto menos força social possui o meio de troca, quanto mais está ainda ligado à natureza do produto imediato do trabalho e às necessidades imediatas dos trocadores, maior deve ser a força da comunidade que liga os indivíduos uns aos outros, relação patriarcal, comunidade antiga, feudalismo e sistema corporativo. […] Cada indivíduo possui o poder social sob a forma de uma coisa. Retire da coisa esse poder social e terá de dar tal poder a pessoas sobre pessoas. Relações de dependência pessoal […] são as primeiras formas sociais nas quais a produtividade humana se desenvolve de maneira limitada e em pontos isolados. Independência pessoal fundada sobre uma dependência coisal é a segunda grande forma na qual se constitui pela primeira vez um sistema de metabolismo social universal, de relações universais, de necessidades múltiplas e de capacidades universais. A livre individualidade fundada sobre o desenvolvimento universal dos indivíduos e a subordinação de sua propriedade coletiva, social, como seu poder social, é o terceiro estágio. O segundo estágio cria as condições do terceiro” (Marx, 2011, p. 105-6). Para Marx, mais adiante e entre parênteses, a “conexão coisificada” entre os indivíduos (a “segunda forma”) “é certamente preferível à sua desconexão, ou a uma conexão local baseada unicamente na estreiteza da consanguinidade natural ou nas [relações] de dominação e servidão. É igualmente certo que os indivíduos não podem subordinar suas próprias conexões sociais antes de tê-las criado. Porém, é absurdo conceber tal conexão puramente coisificada como a conexão natural e espontânea, inseparável da natureza da individualidade […] e a ela imanente. A conexão é um produto dos indivíduos. É um produto histórico. Faz parte de uma determinada fase de seu desenvolvimento. A condição estranhada e a autonomia com que ainda existe frente aos indivíduos demonstram somente que estes estão ainda no processo de criação das condições de sua vida social, em lugar de terem começado a vida social a partir dessas condições. É a conexão natural e espontânea de indivíduos em meio a relações de produção determinadas, estreitas. Os indivíduos universalmente desenvolvidos, cujas relações sociais, como relações próprias e comunitárias, estão igualmente submetidas ao seu próprio controle comunitário, não são um produto da natureza, mas da história. O grau e a universalidade do desenvolvimento das capacidades em que essa individualidade se torna possível pressupõem justamente a produção sobre a base dos valores de troca, que, com a universalidade do estranhamento do indivíduo de si e dos outros, primeiro produz a universalidade e multilateralidade de suas relações e habilidades. Em estágios anteriores de desenvolvimento, o indivíduo singular aparece mais completo precisamente porque não elaborou ainda a plenitude de suas relações e não as pôs diante de si como poderes e relações sociais independentes dele. É tão ridículo ter nostalgia daquela plenitude original: da mesma forma, é ridícula a crença de que é preciso permanecer naquele completo esvaziamento. O ponto de vista burguês jamais foi além da oposição a tal visão romântica e, por isso, como legítima antítese, a visão romântica o acompanhará até seu bem-aventurado fim” (ibidem, p. 109-10; note-se a relação entre “o ponto de vista burguês” e a “visão romântica”).

Passemos a palavra ao Marx dos anos 1860: “Com razão para seu tempo, Ricardo considera o modo capitalista de produção o mais vantajoso para a produção em geral, o mais vantajoso para a geração da riqueza. Quer a produção pela produção, e está certo. […] A produção pela produção significa apenas desenvolvimento das forças produtivas humanas, ou seja, desenvolvimento da riqueza da natureza humana como fim em si. Opor a essa finalidade [como fazem os românticos e os críticos sentimentais de Ricardo, como Sismondi] o bem do indivíduo é afirmar que o desenvolvimento da espécie tem de ser detido […]. Deixa-se de compreender que esse desenvolvimento das aptidões da espécie humana, embora se faça de início às custas da maioria dos indivíduos e de classes inteiras, por fim rompe esse antagonismo e coincide com o desenvolvimento do indivíduo isolado; que assim o desenvolvimento mais alto da individualidade só se conquista por meio de um processo histórico em que os indivíduos são sacrificados” (Marx, 1983, v. II, p. 549).

[86] Nesse mesmo passo e linhas antes dessa afirmação, Marx escreveu: “Uma elevação violenta do salário […] nada seria, portanto, senão um melhor assalariamento do escravo e não teria conquistado para o operário nem para o trabalho a sua determinação e dignidade humanas. A própria igualdade dos salários, como Proudhon exige, apenas transforma a relação do operário de hoje com seu trabalho na relação de todos os homens com o trabalho”. Vê-se: bem antes de sua demolidora crítica a Proudhon (Miséria da filosofia, 1847), Marx já apreende os limites do seu programa de reforma social. Lembre-se que, mais de vinte anos depois, na discussão (“Salário, preço e lucro”, 1865) com o operário John Weston, Marx diria que a classe operária, “em vez deste lema conservador: ‘ Um salário justo para uma jornada de trabalho justa! ’, deverá inscrever na sua bandeira esta divisa revolucionária: ‘Abolição do sistema de trabalho assalariado!’” (Marx, Trabalho assalariado e capital & Salário, preço e lucro, 2006a, p. 142).

[87] Aliás, já na abertura do primeiro manuscrito, a mercantilização do trabalhador fora posta de manifesto: “A demanda de homens regula necessariamente a produção de homens como de qualquer outra mercadoria. Se a oferta for muito maior do que a demanda, então uma parte dos trabalhadores cai na situação da miséria ou na morte pela fome. A existência do trabalhador é, portanto, reduzida à condição da existência de qualquer outra mercadoria. O trabalhador tornou-se uma mercadoria e é uma sorte para ele quando consegue encontrar quem o compre”.

[88] Com alguma razão, Fromm escreveu que o conceito marxiano de alienação baseou-se “na distinção entre existência e essência, no fato de a existência do homem ficar alheada de sua essência, de na realidade ele não ser o que é potencialmente, ou, por outras palavras, de ele não ser o que deveria ser e de ele dever ser aquilo que poderia ser” (Fromm, Conceito marxista do homem, 1979, p. 53).