sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Luz Sobre a Idade Média (Parte I), de Régine Pernoud

Editora: Publicações Europa-América

ISBN: 978-97-2104-279-7

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 208

Sinopse: Idade Média. A Idade das Trevas. Eis a imagem que temos ainda do que aprendemos no liceu. Régine Pernoud reage contra estes preconceitos, revelando toda a riqueza do período medieval. No campo da literatura, refere-se a epopeias como a Canção de Rolando, aos romances de cavalaria, à novela amorosa, à poesia, às farsas, às fábulas. Evoca o desenvolvimento artístico desta época, assim como aspectos menos conhecidos: o interesse dedicado às ciências e à medicina. A própria vida quotidiana traz a marca de uma civilização já refinada. Basta dizer que a higiene estava mais desenvolvida do que no século XVII. A hierarquia social assentava essencialmente nos laços familiares. As mulheres tinham direitos que perderam a partir do século XVI.

 


“Em Roma, um homem só tem valor enquanto exerce os seus direitos de cidadão, enquanto vota, delibera e participa nos negócios do Estado. As lutas da plebe para obter o direito de ser representada por um tribuno são, a este nível, bastante significativas. Na Idade Média, raramente se trata de negócios públicos. Ou melhor, estes tomam logo o aspecto de uma administração familiar, são contas de domínio, regulamentos de rendeiros e de proprietários. Mesmo quando os burgueses reclamam direitos políticos, no momento da formação das comunas, é para poderem exercer livremente o seu ofício e não serem mais incomodados pelas portagens e pelos direitos de alfândega. A atividade política, em si, não apresenta interesse para eles. De resto, a vida rural é então infinitamente mais ativa que a vida urbana, e tanto numa como noutra é a família, não o indivíduo, que prevalece como unidade social.”

 

 

Assegurar à família uma base fixa e ligá-la ao solo de qualquer forma, para que aí tome raízes, dê fruto e se perpetue, tal é a finalidade dos nossos antepassados. Pode-se traficar com as riquezas móveis e dispô-las por testamento, porque por essência são mutáveis e pouco estáveis. Pelas razões inversas, os bens fundiários* são propriedade familiar, inalienáveis e impenhoráveis. O homem não é senão o guardião temporário, o usufrutuário. O verdadeiro proprietário é a linhagem.

Uma série de costumes medievais decorrem dessa preocupação de salvaguardar o patrimônio de família. Assim, em caso de falta de herdeiro direto os bens de origem paterna voltam para a família do pai, e os de origem materna para a da mãe, enquanto no direito romano só se reconhecia o parentesco por via masculina. É o que se chama direito de retorno, que desempata de acordo com a sua origem os bens de uma família extinta. Do mesmo modo, o asilo de linhagem dá aos parentes mesmo afastados o direito de preferência, quando por uma razão ou por outra um domínio é vendido. A maneira como é regulada a tutela de uma criança que ficou órfã apresenta também um tipo de legislação familiar. A tutela é exercida pelo conjunto da família, e torna-se naturalmente tutor aquele cujo grau de parentesco designa para administrar os bens. O nosso conselho de família é apenas um resíduo do costume medieval que regulava o arrendamento dos feudos e a guarda das crianças.

Na Idade Média se tem viva a preocupação de respeitar o curso natural das coisas, de não criar prejuízos quanto aos bens familiares, tanto que, no caso em que morram sem herdeiro aqueles que detêm determinados bens, o seu domínio não pode voltar para os ascendentes. Procuram-se os descendentes mesmo afastados, primos ou parentes, evitando voltar esses bens para os que tiveram antes a sua posse: “Bens próprios não voltam para trás”. Tudo isso pelo desejo de seguir a ordem normal da vida, que se transmite do mais velho para o mais novo e não volta para trás: os rios não voltam à nascente, do mesmo modo os elementos da vida devem alimentar aquilo que representa a juventude, o futuro. Esta é mais uma garantia para o patrimônio da linhagem, que se transfere necessariamente para seres jovens, portanto mais ativos e capazes de o fazer valer mais longamente.

Por vezes, a transmissão dos bens faz-se de uma forma muito reveladora do sentimento familiar, que é a grande força da Idade Média. A família (aqueles que vivem de um mesmo “pão e pote”) constitui uma verdadeira personalidade moral e jurídica, possuindo em comum os bens cujo administrador é o pai. Pela sua morte, a comunidade reconstitui-se com a orientação de um dos filhos, designado portanto pelo sangue, sem que tenha havido interrupção da posse dos bens nem transmissão de qualquer espécie. É aquilo a que se chama a comunidade silenciosa, de que faz parte qualquer membro da casa de família que não tenha sido expressamente posto “fora do pão e pote”. O costume subsistiu até ao fim do Antigo Regime, e podem-se citar famílias francesas que durante séculos nunca pagaram o mínimo direito de sucessão. Em 1840, o jurista Dupin assinalava nessa situação a família Jault, que não o pagava desde o século XIV.”

* - Bens fundiários - Propriedades rústicas ligadas à terra, à agricultura, são a base da economia medieval.

 

 

É curioso seguir ao longo dos séculos a história dos povos formados nessas diferentes disciplinas, e verificar os resultados a que chegaram. A expansão romana tinha sido política e militar, e não étnica. Os romanos conquistaram pelas armas um império e o conservaram por intermédio dos seus burocratas. Esse império só foi sólido enquanto soldados e funcionários puderam vigiá-lo facilmente. Mas não parou de crescer a desproporção entre a extensão das fronteiras e a centralização, que é o fim ideal e a conseqüência inevitável do direito romano. O Império desabaria por si próprio, pelas suas próprias instituições, quando o ímpeto das invasões lhe veio dar o golpe de misericórdia.

Podemos opor a este exemplo o das raças anglo-saxônicas. Os seus costumes familiares foram idênticos aos nossos durante toda a Idade Média. Contrariamente ao que se passou entre nós, eles os mantiveram, e é isso sem dúvida que explica a sua prodigiosa expansão através do mundo. Vagas de exploradores, pioneiros, comerciantes, aventureiros e temerários, deixando as suas casas a fim de tentarem a sorte, sem por isso esquecerem a terra natal e as tradições dos pais — eis o que funda um império.”

 

 

Para compreender a Idade Média, temos de nos representar uma sociedade que vive de modo totalmente diferente, da qual a noção de trabalho assalariado, e mesmo em parte a de dinheiro, estão ausentes ou são muito secundárias. O fundamento das relações de homem para homem é a dupla noção de fidelidade, por um lado, e por outro a de proteção. Assegura-se devoção a qualquer pessoa, e dela espera-se em troca a segurança. Não se compromete a atividade em função de um trabalho preciso, de uma remuneração fixa, mas a própria pessoa, ou melhor, a sua fé, e em troca se requer subsistência e proteção, em todos os sentidos da palavra. Tal é a essência do vínculo feudal.

Esta característica da sociedade medieval explica-se, ao considerarmos as circunstâncias que presidiram à sua formação. A origem encontra-se nessa Europa caótica do século V ao século VIII. O Império Romano desmoronava-se sob o duplo efeito da decomposição interior e da pressão das invasões. Tudo em Roma dependera da força do poder central. A partir do momento em que esse poder foi ultrapassado, a ruína era inevitável. Nem a cisão em dois impérios nem os esforços de recuperação provisória poderiam travá-la. Nada de sólido subsiste nesse mundo em que as forças vivas foram pouco a pouco esgotadas por um funcionalismo sufocante, onde o fisco oprime os pequenos proprietários. Em breve estes não têm outro recurso senão ceder as suas terras ao Estado para pagar os impostos. O povo abandona os campos, e para o trabalho dos campos apela voluntariamente a esses mesmos bárbaros que dificilmente são contidos nas fronteiras. É assim que na Gália os borguinhões se instalam na região Sabóia-Franco-Condado e se tornam os rendeiros dos proprietários galo-romanos, cujo domicílio partilham. Sucessivamente, pacificamente ou pela espada, as hordas germânicas ou nórdicas assomam no mundo ocidental. Roma é tomada e retomada pelos bárbaros, os imperadores são eleitos e destituídos conforme o capricho dos soldados. A Europa não é mais que um vasto campo de batalha, onde se enfrentam as armas, as raças e as religiões.

Como poderá alguém defender-se numa época em que a agitação e a instabilidade são a única lei? O Estado encontra-se distante e impotente, senão inexistente, cada um move-se por isso naturalmente em direção à única força que permaneceu realmente sólida e próxima: os grandes proprietários fundiários, que podem assegurar a defesa do seu domínio e dos seus rendeiros. Fracos e pequenos recorrem a eles, confiam-lhes a sua terra e a sua pessoa, com a condição de se verem protegidos contra os excessos fiscais e as incursões estrangeiras. Por um movimento que se tinha esboçado a partir do Baixo Império, e não tinha parado de se acentuar nos séculos VII e VIII, o poderio dos grandes proprietários aumenta com a fraqueza do poder central. Cada vez mais se procura a proteção do “senhor” (senior), a única ativa e eficaz, que protegerá não só da guerra e da fome, mas também da ingerência dos funcionários reais. Assim se multiplicam as cartas de vassalagem, pelas quais a arraia-miúda se liga a um “senhor” para garantir a sua segurança pessoal. (...)

A dinastia de Pepino tinha chegado ao poder porque os seus representantes se contavam entre os mais fortes proprietários da época. Contentaram-se em canalizar as forças das quais faziam parte, e em aceitar a hierarquia feudal tirando dela o partido que podiam tirar. Tal é a origem do estado social da Idade Média, cujas características são completamente diferentes das que se conheceram até então. A autoridade, em lugar de estar concentrada num só ponto (indivíduo ou organismo), encontra-se repartida pelo conjunto do território. A grande sabedoria dos carolíngios foi de não tentarem ter nas mãos toda a máquina administrativa, mantendo a organização empírica que tinham encontrado. A sua autoridade imediata se estendia apenas a um pequeno número de personagens, que possuíam elas próprias autoridade sobre outros, e assim sucessivamente até às camadas sociais mais humildes. De degrau em degrau, uma ordem do poder central podia assim transmitir-se ao conjunto do país, e aquilo que não controlavam diretamente podia ser atingido indiretamente. Em lugar de combatê-la, Carlos Magno contentou-se em disciplinar a hierarquia que deveria impregnar tão fortemente os hábitos franceses. Reconhecendo a legitimidade do duplo juramento que todo homem livre devia a si próprio e ao seu senhor, ele consagrou a existência do vínculo feudal. Tal é a origem da sociedade medieval, e também a da nobreza fundiária, não a militar, ao contrário do que se julgou demasiadas vezes. Desta formação empírica, modelada pelos fatos, pelas necessidades sociais e econômicas,* decorre uma extrema diversidade na condição das pessoas e dos bens, já que a natureza dos compromissos que uniam o proprietário ao seu rendeiro variava segundo as circunstâncias, a natureza do solo e o modo de vida dos habitantes. Toda sorte de fatores entram em jogo, os quais tornam diferentes as relações e a hierarquia de uma província para outra, ou mesmo de um domínio para outro. Mas o que permanece estável é a obrigação recíproca: fidelidade por um lado, proteção pelo outro. Por outras palavras, o vínculo feudal.

Durante a maior parte da Idade Média, a principal característica desse vínculo é ser pessoal. Um vassalo preciso e determinado recomenda-se a um senhor igualmente preciso e determinado, decide vincular-se a ele, jura-lhe fidelidade e espera em troca subsistência material e proteção moral. Quando Roland morre, evoca “Carlos, meu senhor que me alimentou”, e esta simples evocação diz bastante da natureza do vínculo que os une. Somente a partir do século XIV o vínculo se tornará mais real que pessoal. Ligar-se-á à posse de uma propriedade e decorrerá das obrigações fundiárias que existem entre o senhor e os seus vassalos, cujas relações se assemelharão desde então muito mais às de um proprietário com os seus locatários. É a condição da terra que fixa a condição da pessoa. Mas, para todo o período medieval propriamente dito, os vínculos criam-se de indivíduo para indivíduo: Nihil est preter individuum (nada existe fora do indivíduo). O gosto de tudo o que é pessoal e preciso, o horror da abstração e do anonimato são características da época.

Este vínculo pessoal que liga o vassalo ao suserano é proclamado no decorrer de uma cerimônia em que se afirma o formalismo, caro à Idade Média, porque qualquer obrigação, transação ou acordo deve traduzir-se por um gesto simbólico, forma visível e indispensável do assentimento interior. Quando se vende um terreno, por exemplo, o que constitui o ato de venda é a entrega pelo vendedor ao novo proprietário de um pouco de palha ou um torrão de terra proveniente do seu campo. Se a seguir se faz uma escritura — o que nem sempre ocorre —, servirá apenas para memória. O ato essencial é a traditio, como nos nossos dias é o aperto de mão em alguns mercados. Diz o Ménagier de Paris: “Como sinal deste grande acontecimento(como sinal de uma transação importante), entregar-lhe-ei um pouco de palha, ou um prego velho, ou uma pedra que me foram entregues”. A Idade Média é uma época em que triunfa o rito, em que tudo o que se realiza na consciência deve passar obrigatoriamente a ato. Isto satisfaz uma necessidade profundamente humana: a do sinal corporal, à falta do qual a realidade fica imperfeita, inacabada, fraca.

O vassalo presta “fidelidade e homenagem” ao seu senhor. Fica na sua frente de joelhos, com o cinturão desfeito, e coloca a mão na dele — gestos que significam o abandono, a confiança, a fidelidade. Declara-se seu vassalo e confirma-lhe a dedicação da sua pessoa. Em troca, e para selar o pacto que doravante os liga, o suserano beija o vassalo na boca. Este gesto implica mais e melhor que uma proteção geral, é um laço de afeição pessoal que deve reger as relações entre os dois homens. Segue-se a cerimônia do juramento, cuja importância não é demais sublinhar. É preciso entender juramento no seu sentido etimológico de sacramentum, coisa sagrada. Jura-se sobre os Evangelhos, realizando assim um ato sagrado que compromete não só a honra, mas a fé, a pessoa inteira. O valor do juramento é tão grande, e o perjúrio tão monstruoso, que não se hesita em manter a palavra dada em circunstâncias extremamente graves — por exemplo, para atestar as últimas vontades de um moribundo com o testemunho de uma ou duas pessoas.

Renegar um juramento representa na mentalidade medieval a pior das desonras. Uma passagem de Joinville manifesta de maneira muito significativa que se trata de um excesso, porque um cavaleiro não pode decidir-se, mesmo que a sua vida esteja em jogo. Quando do seu cativeiro, os drogomanos do sultão do Egito vieram oferecer a libertação a ele e aos companheiros, e perguntaram-lhe se daria para a sua libertação algum dos castelos que pertencem aos barões de além-mar. O conde respondeu que não tinha poder, porque eles pertenciam ao imperador da Alemanha, ainda vivo. Perguntaram se entregaríamos algum dos castelos do Templo ou do Hospital, para a nossa libertação. E o conde respondeu que não podia ser, pois quando aí se nomeava um castelão, faziam-no jurar pelos santos que não entregaria castelo algum para libertação de corpo de homem. E eles manifestaram que parecia não termos talento para nos libertarmos, e que se iriam embora e nos enviariam aqueles que nos lançariam espadas, como tinham feito aos outros (isto é, que os massacrariam como aos outros).

A cerimônia completa-se com a investidura solene do feudo, feita pelo senhor ao vassalo. Confirma-lhe a posse desse feudo por um gesto de traditio, entregando-lhe geralmente uma vara ou um bastonete, símbolo do poder que deve exercer no domínio desse senhor. É a investidura cum baculo vel virga, para empregar os termos jurídicos em uso na época.

Desse cerimonial, das tradições que ele supõe, decorre a elevada concepção que a Idade Média fazia da dignidade pessoal. Nenhuma época esteve mais pronta para afastar as abstrações, os princípios, para se entregar unicamente às convenções de homem para homem; e também nenhuma fez apelo a mais elevados sentimentos como base dessas convenções. Era prestar uma magnífica homenagem à pessoa humana. Conceber uma sociedade fundada sobre a fidelidade recíproca, era indubitavelmente audacioso. Como se pode esperar, houve abusos, faltas, e as lutas dos reis contra os vassalos recalcitrantes são a prova disso. Resta dizer que durante mais de cinco séculos a fé e a honra permanecem a base essencial, a armadura das relações sociais. Quando estas foram substituídas pelo princípio de autoridade, no século XVI e sobretudo no século XVII, não se pode pretender que a sociedade tenha ganho com isso. Em qualquer dos casos, a nobreza, já enfraquecida por outras razões, perdeu a sua força moral essencial.”

* - Citemos a excelente fórmula de Henri Pourrat: “O sistema feudal foi a organização viva imposta pela terra aos homens da terra” (L’homme à la bêche. Histoire du paysan, p. 83).

 

 

Um grande número de camponeses é livre, nomeadamente aqueles a quem se chamava plebeus ou vilãos (os termos tomaram o sentido pejorativo muito depois). O plebeu é o camponês, o trabalhador, pois rutura designa a ação de romper a terra com a relha da charrua. O vilão é de modo geral aquele que habita um domínio, ou villa.

Depois vêm os servos. A palavra foi muitas vezes mal compreendida, porque se confundiu a servidão própria da Idade Média com a escravatura, que foi a base das sociedades antigas, e da qual não se encontra qualquer rastro na sociedade medieval. Como refere Loisel: “Todas as pessoas são livres neste reino, e logo que um escravo atinge os degraus do conhecimento, fazendo-se batizar, é franqueado”. Por força das circunstâncias a Idade Média teve de buscar o seu vocabulário na língua latina, e seria tentador concluir da semelhança dos termos a semelhança do sentido. Ora, a condição do servo é totalmente diferente da do escravo antigo: o escravo é uma coisa, não uma pessoa; está sob a dependência absoluta do seu dono, que possui sobre ele direito de vida e de morte; qualquer atividade pessoal lhe é recusada; não conhece nem família, nem casamento, nem propriedade. O servo medieval, pelo contrário, é uma pessoa, não uma coisa, e tratam-no como tal. Possui uma família, uma casa, um campo, e fica desobrigado em relação ao seu senhor logo que pague os censos. Está ligado a um domínio, mas não submetido a um patrão. Não é uma servidão pessoal, mas uma servidão real.

A restrição imposta à liberdade do servo é que ele não pode abandonar a terra que cultiva. Mas é conveniente notar que essa restrição não deixa de ter uma vantagem, já que, embora não possa deixar a propriedade, também não podem tomá-la dele. Esta particularidade não estava longe, na Idade Média, de ser considerada um privilégio. De fato, o termo encontra-se numa coleta de costumes, o Brakton, que diz expressamente quando fala dos servos: “Tali gaudent privilegio, quod a gleba amoveri non poterunt“ (gozam desse privilégio de não poderem ser arrancados à sua terra). Isto corresponde mais ou menos àquilo que seria, nos nossos dias, uma garantia contra o desemprego. O rendeiro livre está submetido a toda espécie de responsabilidades civis, que tornam a sua sorte mais ou menos precária: endividando-se, podem confiscar-lhe a terra; em caso de guerra, pode ser forçado a tomar parte nela, ou o seu domínio pode ser destruído sem compensação possível. Quanto ao servo, está ao abrigo das vicissitudes da sorte: a terra que trabalha não pode escapar-lhe, da mesma maneira que não pode afastar-se dela. Esta ligação à gleba é muito reveladora da mentalidade medieval.

A esta altura é oportuno notar-se que o nobre está submetido às mesmas obrigações que o servo, porque também em caso algum pode ele alienar o seu domínio, ou separar-se dele de qualquer forma que seja. Nas duas extremidades da hierarquia encontramos essa mesma necessidade de estabilidade e fixação, inerente à alma medieval, que produziu a França e, de uma maneira geral, a Europa ocidental. Não é um paradoxo dizer que o camponês atual deve a sua prosperidade à servidão dos seus antepassados, pois nenhuma instituição contribuiu mais para o destino do campesinato francês. Mantido durante séculos sobre o mesmo solo, sem responsabilidades civis, sem obrigações militares, o camponês tornou-se o verdadeiro senhor da terra. Só a servidão poderia realizar uma ligação tão íntima do homem à gleba, fazendo do antigo servo o proprietário do solo.

Se permaneceu tão miserável a condição do camponês na Europa oriental — na Polônia e em outros lugares — é porque não houve esse laço protetor da servidão. Nas épocas de perturbação, o pequeno proprietário responsável pela sua terra, entregue a si próprio, conheceu as mais terríveis angústias, que facilitaram a formação de domínios imensos. Daí um flagrante desequilíbrio social, contrastando a riqueza exagerada dos grandes proprietários com a condição lamentável dos seus rendeiros. Se o camponês francês pôde desfrutar até aos últimos tempos uma existência fácil, comparada à do camponês da Europa oriental, não o deve apenas à riqueza do solo, mas também e sobretudo à sabedoria das nossas antigas instituições, que fixaram a sua sorte no momento em que tinha mais necessidade de segurança, e o subtraíram às obrigações militares, as quais pesaram depois mais duramente sobre as famílias camponesas.”

 

 

As atas mostram-nos, aliás, que os servos não tinham em relação aos senhores essa atitude de cães espancados, que demasiadas vezes se supôs. Vemo-los discutir, afirmar o seu direito, exigir o respeito por antigas convenções e reclamar sem rodeios o que lhes era devido.*

Cabe-nos o direito de aceitar sem contestação a lenda do camponês miserável, inculto (esta é uma outra história) e desprezado, que se impõe ainda em grande número dos nossos manuais de História? Veremos que o seu regime geral de vida e de alimentação não oferecia nada que deva suscitar piedade. O camponês não sofreu mais na Idade Média do que sofreu o homem em geral, em todas as épocas da história da humanidade. Sofreu sim a repercussão das guerras, mas terão elas poupado os seus descendentes dos séculos XIX e XX? Além disso, o servo medieval estava livre de qualquer obrigação militar, como a maior parte dos plebeus. E o castelo senhorial era para ele um refúgio na desventura, a paz de Deus uma garantia contra as brutalidades dos homens de armas. Sofreu a fome nas épocas de más colheitas, como da mesma forma sofreu o mundo inteiro, até que as facilidades de transportes permitiram levar ajuda às regiões ameaçadas. Mesmo a partir dessa altura... Mas o camponês tinha a possibilidade de recorrer ao celeiro do senhor.

A única época realmente dura para o camponês na Idade Média — que também o foi para todas as classes da sociedade indistintamente — foi a dos desastres produzidos pelas guerras que marcaram o declínio da época. Período lamentável de perturbações e de desordens, engendradas por uma luta fratricida durante a qual a França conheceu uma miséria que só se pode comparar à das guerras de religião, da Revolução Francesa ou do nosso tempo. Bandos de plebeus devastando o país, fomes provocando revoltas e insurreições camponesas, e para cúmulo essa terrível epidemia de peste negra, que despovoou a Europa. Mas isso faz parte do ciclo de misérias próprias da humanidade, e das quais nenhum povo foi isento. A nossa própria experiência basta largamente para nos informar sobre isso.

Terá o camponês sido o mais desprezado? Talvez nunca o tenha sido menos, de fato, do que na Idade Média. Não deve iludir-nos determinada literatura, em que o vilão muitas vezes está envolvido. Não passa de testemunho do rancor, velho como o mundo, que sente o charlatão, o vagabundo, pela situação do camponês no domínio, cuja morada é estável, cujo espírito por vezes é lento, e cuja bolsa muitas vezes demora a abrir-se. A isto se acrescenta o gosto, bem medieval, de zombar de tudo, inclusive daquilo que parece mais respeitável. Na realidade, nunca foram mais estreitos os contatos entre o povo e as classes ditas dirigentes — neste caso, os nobres. Contatos estes facilitados pela noção de laço pessoal, essencial para a sociedade medieval, e multiplicados pelas cerimônias locais, festas religiosas e outras, nas quais o senhor encontra o rendeiro, aprende a conhecê-lo e partilha a sua existência, muito mais estreitamente do que, nos nossos dias, os pequenos burgueses partilham a dos seus criados.

A administração do feudo obriga o nobre a ter em conta todos os detalhes da vida dos servos. Nascimentos, casamentos, mortes nas famílias de servos entram em linha de conta para o nobre, como interessando diretamente o domínio. O senhor tem encargos judiciários, donde para ele a obrigação de assistir os camponeses, resolver os seus litígios, arbitrar os seus diferendos. Tem portanto em relação a eles uma responsabilidade moral, do mesmo modo que suporta a responsabilidade material do feudo em relação ao suserano. Nos nossos dias o patrão de fábrica está liberto de qualquer obrigação material e moral relativamente aos operários, a partir do momento em que “passaram pelo caixa para receber o salário”. Não o vemos abrir as portas da sua casa para lhes oferecer um banquete, por exemplo, na ocasião do casamento de um dos filhos. No conjunto, uma concepção totalmente diferente da que prevaleceu na Idade Média. Como disse Jean Guiraud, o camponês ocupa a ponta da mesa, mas é a mesa do senhor.”

* - Em Portugal, a partir dos fins do século XI até princípios do século XIII, o servo adscrito à gleba foi progressivamente transformado em colono livre. Entre nós, foi D. Afonso III que deu exemplo nos seus reguengos, ao conceder carta de franquia aos servos.

 

 

Não poderíamos definir melhor a corporação medieval do que vendo nela uma organização familiar aplicada ao ofício. Ela é o agrupamento, num organismo único, de todos os elementos de um determinado ofício: patrões, operários e aprendizes estão reunidos, não sob uma autoridade dada, mas em virtude dessa solidariedade que nasce naturalmente do exercício de uma mesma indústria. Como a família, ela é uma associação natural, não emana do Estado nem do rei. Quando São Luís manda Étienne Boileau redigir o Livre des métiers (Livro dos ofícios), é apenas para colocar por escrito os usos já existentes, sobre os quais não intervém a sua autoridade. O único papel do rei face à corporação, como de todas as instituições de direito privado, é controlar a aplicação leal dos costumes em vigor. Como a família, como a universidade, a corporação medieval é um corpo livre, que não conhece outras leis senão as que ela própria forjou. É esta a sua característica essencial, que conservará até ao fim do século XV.

Todos os membros de um mesmo ofício fazem obrigatoriamente parte da corporação, mas nem todos, bem entendido, desempenham aí o mesmo papel. A hierarquia vai dos aprendizes aos mestres-jurados, que formam o conselho superior do ofício. Habitualmente distinguimos aí três graus: aprendiz, companheiro ou servente de ofício e mestre. Mas isto não pertence ao período medieval, durante o qual, até por meados do século XIV, na maior parte dos ofícios se pode passar a mestre logo que terminada a aprendizagem. Os serventes de ofício só se tornarão numerosos no século XVIII, quando uma oligarquia de artesãos ricos procura cada vez mais reservar-se o acesso à mestria, o que esboça a formação de um proletariado industrial. Durante toda a Idade Média, no entanto, as possibilidades iniciais são exatamente as mesmas para todos, e todo aprendiz, a menos que seja demasiado desajeitado ou preguiçoso, acaba por passar a mestre.

O aprendiz está ligado ao mestre por um contrato de aprendizagem — sempre esse laço pessoal caro à Idade Média — que comporta obrigações para as duas partes: para o mestre, a de formar o aluno no ofício e lhe assegurar a casa e o sustento, sendo proporcionado o pagamento pelos pais das despesas de aprendizagem; para o aprendiz, a obediência ao mestre e a aplicação ao trabalho. Transposta para o artesanato, encontramos aí a dupla noção de “fidelidade-proteção”, que une o senhor ao vassalo ou ao rendeiro. Mas, como aqui uma das partes do contrato é uma criança de doze a quatorze anos, são tomados todos os cuidados para reforçar a proteção de que deve gozar. Enquanto se manifesta toda a indulgência para as faltas, as leviandades, até mesmo as vadiagens do aprendiz, os deveres do mestre são severamente precisados: só pode receber um aprendiz de cada vez, para que o ensino seja frutuoso e para que não possa explorar os alunos descarregando sobre eles uma parte do trabalho. O aprendiz só tem o direito de incumbir-se do trabalho depois de o ter praticado durante um ano, pelo menos, para que se possa avaliar as suas capacidades técnicas e morais.

Dizem os regulamentos: “Ninguém deve receber um aprendiz, se não for tão sábio e tão rico que possa ensiná-lo, governá-lo e mantê-lo, [...] e isto deve ser sabido e feito pelos dois membros do conselho que defendam o ofício”. Eles fixam expressamente aquilo que o mestre deve gastar diariamente para a alimentação e a manutenção do aluno. Finalmente, os mestres estão submetidos a um direito de visita detido pelos jurados da corporação, que vêm ao domicílio examinar a forma como o aprendiz é alimentado, iniciado no ofício e tratado de maneira geral. O mestre tem para com ele os deveres e os encargos de um pai e deve velar pela sua conduta e pelo seu comportamento moral, entre outras coisas. Em contrapartida, o aprendiz lhe deve respeito e obediência, mas vai-se ao ponto de favorecer uma certa independência deste. No caso de um aprendiz abandonar a casa do mestre, este deve esperar um ano até poder receber outro, e durante todo esse ano é obrigado a receber o fugitivo, se ele voltar. Todas as garantias estão assim do lado mais fraco, não do mais forte.

Para passar a mestre, é preciso ter terminado o tempo de aprendizagem, que varia conforme os ofícios, como é natural, e dura em geral de três a cinco anos. É provável que então o futuro mestre devesse fazer prova da sua habilidade face aos jurados da corporação, o que está na origem da obra-prima, cujas condições irão complicar-se no decorrer dos séculos. Além disso, deve pagar uma taxa — aliás mínima, em geral de 3 a 5 soldos — pela sua cotização na confraria do corpo do ofício. Finalmente, em alguns ofícios cuja solvabilidade o mercador é obrigado a justificar, é exigido o pagamento de uma caução.

Tais são as condições da mestria durante o período medieval propriamente dito.”

 

 

A par deste espírito metódico, é preciso mencionar a bonomia, a amável familiaridade desses reis da França. Alguém fez notar que nada há de menos autocrata que um monarca medieval.* Nas crônicas, nas narrativas, trata-se sempre de assembleias, de deliberações, de conselhos de guerra. O rei não faz nada sem ter a opinião do seu conselho, que não é composto por dóceis cortesãos como o será Versalhes. São os homens de armas — vassalos tão poderosos e às vezes mais ricos que o próprio rei — monges, sábios, juristas. O rei solicita os seus conselhos, discute com eles, e dá muita importância a esses contatos. Lê-se nos Enseignements de Saint Louis: “Toma empenho para teres na tua companhia homens honestos e leais, que não estejam cheios de cobiça, quer sejam religiosos ou seculares, e fala muitas vezes com eles. [...] E se algum tem uma ação contra ti, não o julgues até que saibas a verdade, porque assim o julgarão mais ousadamente os teus conselheiros de acordo com a verdade, por ti ou contra ti”. Ele próprio pratica o que ensina. É preciso ler minuciosamente, em Joinville, a narrativa desse patético conselho de guerra realizado pelo rei na Terra Santa, quando os começos difíceis da sua cruzada vêm pôr tudo em questão e incitam a maior parte dos barões a querer regressar à França.

A forma como Luís IX faz saber a Joinville que lhe está agradecido por ter tomado o partido contrário, e por ter ele ousado exprimi-lo, é toda ela marca dessa familiaridade, extremamente simpática, dos reis para com os que os cercam: “Enquanto o rei ouvia as suas graças, fui a uma janela de ferro. Tinha os meus braços entre os ferros da janela, e pensava que se o rei viesse para França, eu iria para o príncipe de Antíoco. Neste ponto em que me encontrava então, o rei veio apoiar-se nos meus ombros e pôs-me as duas mãos na cabeça. Julguei que fosse o Sr. Philippe de Nemours, que me tinha causado demasiado aborrecimento nesse dia, pelo conselho que lhe tinha dado, e eu disse assim: ‘Deixe-me em paz, Sr. Philippe’. Por pouca sorte, ao voltar a cabeça, a mão do rei caiu-me sobre o rosto, e percebi que era o rei por causa de uma esmeralda que tinha no dedo. E ele disse-me: ‘Fique tranquilo, porque quero perguntar-lhe como foi que, embora sendo tão jovem, ousou defender a minha permanência, contra todos os grandes homens e os sábios da França que louvavam a minha partida’. Eu lhe respondi: ‘Senhor, teria eu a maldade no meu coração, se não defendesse a qualquer preço a vossa permanência’. Perguntou-me: ‘Eu faria mal se partisse?’, e eu lhe respondi que ‘se Deus me ajuda, senhor, faríeis mal em partir’. Perguntou-me então: ‘Se eu ficar, ficas também?’. Respondi-lhe que sim, e ele disse: ‘Esteja tranquilo, porque lhe tenho muita amizade por ter aprovado a minha permanência’”.

Esta bonomia, esta simplicidade de hábitos, são muito características da época. Enquanto o imperador e a maior parte dos grandes vassalos se comprazem em manifestar o seu fausto, a linhagem capetiana faz-se notar pela frugalidade do seu modo de vida. Os reis vão e vêm no meio do povo. Luís VII adormece na orla de uma floresta, e quando os familiares o despertam, faz-lhes observar que pode bem dormir assim, sozinho e sem armas, já que ninguém lhe quer mal. Filipe Augusto, algumas horas antes de Bouvines, senta-se ao pé de uma árvore e recupera as forças com um pouco de pão molhado no vinho. São Luís deixa-se insultar na rua por uma velha mulher, e proíbe os seus companheiros de a repreenderem. Gibões de veludo e capas de arminho são reservados para as festas e recepções solenes, e ainda assim é muitas vezes usado o cilício sob o arminho. É um motivo corrente de gracejo, para os estudantes alemães habituados às magnificências imperiais, a simplicidade do equipamento real. Esta simplicidade não foi imitada pelos Valois, e menos ainda pelos seus sucessores do Renascimento, mas se estes ganharam com isso uma corte brilhante, perderam esse contato familiar com o povo, elemento precioso do prestígio de um príncipe.”

* – Citemos esta passagem muito pertinente de A. Hadengue, na sua obra Bouvines, victoire créatrice: “Os conselhos de guerra estão muito em uso nos estados-maiores dos exércitos da Idade Média. Sem cessar, vêm à pena dos cronistas as mesmas referências a eles. No século XIII, um chefe militar não comanda, não decide à maneira de um general onipotente. A sua autoridade é feita de colaboração, de confiança, de amizade. Está em dificuldade? Senta-se ao pé de uma árvore, chama os seus altos barões, expõe os fatos, recolhe as opiniões. A sua opinião pessoal não prevalece sempre. ‘Cada um diz a sua razão’, como escreve Philippe Mouskès (pp. 188-189)”.

Um comentário:

Doney disse...

A opinião sobre o livro não é tão favorável não porque seja um livro de leitura desagradável, mas sim porque no afã de dourar a pílula da Idade Média, a autora distorce, mente e omite. Com vigor.