domingo, 22 de junho de 2014

Elogio da Loucura – Erasmo de Roterdã

Editora: Livro distribuído
Tradução base: Paulo M. Oliveira
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 154
Sinopse: Escrito em latim, publicado no ano de 1509, o Elogio da loucura foi um dos best-sellers do século XVI. De rara violência contra os poderosos da época, o livro e seu autor só escaparam à fogueira porque Erasmo se escondeu atrás de uma máscara, como faziam os bobos da corte, únicas pessoas a quem se permitia serem insolentes por sua condição de corcundas ou aleijados. No caso, a máscara escolhida foi a loucura, narradora em primeira pessoa dessa prosopopeia.
 
Erasmo de Roterdã

“Já escreveu sensatamente alguém que ser deus consiste em favorecer os mortais.”


“Quando a trôpega velhice coloca os homens à beira da sepultura, então, na medida do que sei e do que posso, eu os faço de novo meninos. De onde o provérbio: Os velhos são duas vezes crianças. (...)
Enfim, quanto mais entra na velhice, tanto mais se aproxima o homem da infância, a tal ponto que sai deste mundo como as crianças, sem desejar a vida e sem temer a morte.”


“O delírio e a loucura não serão, talvez, próprios das crianças? Que é que, a vosso ver, mais agrada nas crianças? A falta de juízo. Um menino que falasse e agisse como um adulto não seria um pequeno monstro? Pelo menos, não poderíamos deixar de odiá-lo e de ter por ele um certo horror. Há muitos séculos, é trivial o provérbio: Odeio o menino de saber precoce. Quem, por outro lado, poderia fazer negócios ou ter relações com um velho, se este aliasse a uma longa experiência todo o vigor do espírito e a força do discernimento?”
     

“Segundo o provérbio dos gregos, o macaco é sempre macaco, mesmo vestido de púrpura.”


“Tão agradável é a amizade que afastá-la do mundo equivaleria a afastar o sol.”


“Um homem que odeia a si mesmo poderá, acaso, amar alguém? Um homem que discorda de si mesmo poderá, acaso, concordar com outro? Será capaz de inspirar alegria aos outros quem tem em si mesmo a aflição e o tédio?”


“A natureza, que em muitas coisas é mais madrasta do que mãe, imprimiu nos homens, sobretudo nos mais sensatos, uma fatal inclinação no sentido de cada qual não se contentar com o que tem, admirando e almejando o que não possui: daí o fato de todos os bens, todos os prazeres, todas as belezas da vida se corromperem e reduzirem a nada.”


“Os homens que se consagram ao estudo da ciência são, em geral, infelicíssimos em tudo, sobretudo com os filhos. Suponho que isso provenha de uma precaução da natureza, que dessa forma procura impedir que a peste da sabedoria se difunda em excesso entre os mortais.”


“Se alguém se aproximasse de um cômico mascarado, no instante em que estivesse desempenhando o seu papel, e tentasse arrancar-lhe a máscara para que os espectadores lhe vissem o rosto, não perturbaria assim toda a cena? Não mereceria ser expulso a pedradas, como um estúpido e petulante? No entanto, os cômicos mascarados tornariam a aparecer; ver-se-ia que a mulher era um homem, a criança um velho, o rei um infeliz e Deus um sujeito à-toa. Querer, porém, acabar com essa ilusão importaria em perturbar inteiramente a cena, pois os olhos dos espectadores se divertiam justamente com a troca das roupas e das fisionomias. Vamos à aplicação: que é, afinal, a vida humana? Uma comédia. Cada qual aparece diferente de si mesmo; cada qual representa o seu papel sempre mascarado, pelo menos enquanto o chefe dos comediantes não o faz descer do palco. O mesmo ator aparece sob várias figuras, e o que estava sentado no trono, soberbamente vestido, surge, em seguida, disfarçado em escravo, coberto por miseráveis andrajos. Para dizer a verdade, tudo neste mundo não passa de uma sombra e de uma aparência, mas o fato é que esta grande e longa comédia não pode ser representada de outra forma.”


“Quando se reflete atentamente sobre o gênero humano, e quando se observam como de uma alta torre (justamente a maneira pela qual Júpiter costuma proceder, segundo dizem os poetas), todas as calamidades a que está sujeita a vida dos mortais, não se pode deixar de ficar vivamente comovido. Santo Deus! Que é, afinal, a vida humana? Como é miserável, como é sórdido o nascimento! Como é penosa a educação! A quantos males está exposta a infância! Como sua a juventude! Como é grave a velhice! Como é dura a necessidade da morte! Percorramos, ainda uma vez, esse deplorável caminho. Que horrível e variada multiplicidade de males! Quantos desastres, quantos incômodos se encontram na vida! Enfim não há prazer que não tenha o amargor de muito fel. Quem poderia descrever a infinita série de males que o homem causa ao homem, como sejam a pobreza, a prisão, a infâmia, a desonra, os tormentos, a inveja, as traições, as injúrias, os conflitos, as fraudes, etc.? Eu não saberia dizer-vos que delito teria o homem cometido para merecer tão grande quantidade de males, nem que deus furioso o teria constrangido a nascer em tão horrível vale de misérias.”


“Só a gramática é mais do que suficiente para nos aborrecer durante toda a vida.”


“A verdade se encontra no vinho e nas crianças.” (Alcebíades)


“Só se costuma defender a verdade quando não se é atingido por ela.”


“Suponha-se que, em meio a todos esses prejuízos, surgisse um odioso moralista que, em tom apostólico, fizesse esta patética, mas verdadeira exortação: “Não basta ter devoção por São Cristóvão: é preciso, também, viver segundo a lei divina, para não chegar a um mau fim. Não basta oferecer uma pequena moeda para obter perdões e indulgências: é preciso, ainda, odiar o mal, chorar, velar, rezar, jejuar, numa palavra, mudar de vida, praticando constantemente o Evangelho. Confiais em algum santo? Pois segui os seus exemplos, vivei como ele viveu, e assim merecereis a graça do vosso santo protetor”. Aqui entre nós: esse moralista não andaria mal falando dessa forma, mas, ao mesmo tempo tiraria os homens de um estado de felicidade, para lançá-los na miséria e na dor.”


“Os cômicos, os músicos, os oradores, os poetas eis aí, eis os melhores amigos do amor próprio! Quanto mais ignorantes, tanto mais perfeitos se julgam em sua arte, e, assim prevenidos em benefício próprio, aproveitam todas as ocasiões para celebrar os próprios louvores. Mas, não penseis que não encontrem quem os aplauda, pois toda tolice, por mais grosseira que seja, sempre encontra sequazes. Mas, ainda é pouco: quanto mais contrária ao bom senso é uma coisa, tanto maior é o número dos seus admiradores, e constantemente se vê que tudo o que mais se opõe à razão é justamente o que se adota com maior avidez.”


“É uma grande extravagância querer fazer consistir a felicidade do homem na realidade das coisas, quando essa realidade depende exclusivamente da opinião que dela se tem. Tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos certificar-nos de nenhuma verdade.”


“Se, finalmente, pudésseis observar, do mundo da lua, como o fez Menipo, as inúmeras agitações dos mortais, decerto acreditaríeis estar vendo uma densa nuvem de moscas ou de pernilongos brigando, insidiando-se, guerreando-se, invejando-se, espoliando-se, enganando-se, fornicando-se, nascendo, envelhecendo, morrendo. Não podeis sequer imaginar os horrores e as revoluções com que enche a terra esse animalzinho, tão pequeno e de tão pouca duração, que vulgarmente se chama homem.”


“A loucura tem uma força maior do que a razão, porque, muitas vezes, aquilo que não se pode conseguir com nenhum argumento se obtém com uma chacota.”


“Seria menos difícil sair de um labirinto do que desembaraçar-se do embrulho dos realistas, dos noministas, dos tomistas, dos albertistas, dos occanistas, dos scotistas, ai de mim! já me falta a respiração, e, contudo, só citei as principais seitas da escola, não falando de muitíssimas outras. Em todas essas facções, são tantas as erudições e tantas as dificuldades, que, se os próprios apóstolos descessem à terra e fossem obrigados a discutir com os teólogos modernos sobre essas sublimes matérias, sou de opinião que teriam necessidade de um novo espírito totalmente diverso daquele que, em seu tempo, lhes dava a possibilidade de falar. 
Os apóstolos consagravam com devoção e com piedade o sacramento da Eucaristia: se tivessem, porém, de explicar como Deus pode passar de um lugar para outro por meio da consagração; como se dá a transubstanciação; como um mesmo corpo pode encontrar-se ao mesmo tempo em vários lugares; que diferença existe entre o corpo de Jesus Cristo no céu, na cruz e na Eucaristia; em que momento se verifica a transubstanciação, de vez que a fórmula sacramental, como dizem eles, sendo composta de sílabas e de palavras, só pode ser pronunciada sucessivamente, creio eu que, se esses primeiros teólogos do cristianismo tivessem de dirimir tais dificuldades, teriam necessidade da agudeza dos scotistas, que são verdadeiros Mercúrios na arte de argumentar e definir. 
Tiveram os apóstolos, é verdade, a sorte de conviver com a mãe de Jesus, mas nenhum deles a conheceu tão bem como os nossos teólogos, que provaram geometricamente ter sido a Virgem fecunda preservada da mancha do pecado original. São Pedro recebeu as chaves das próprias mãos do Homem-Deus, sendo de supor-se que este não tivesse tido a intenção de colocá-las em más mãos; mas, não sei se o beato pescador conhecia bem o significado daquelas místicas chaves. Nós, porém, sabemos, com certeza, que ele nunca perguntou a Deus seu mestre como poderia um grosseiro e ignorante pescador ter as chaves da ciência. 
Os apóstolos batizavam continuamente, mas, apesar disso, nunca ensinaram a causa formal, material, eficiente e final do batismo, nem fizeram menção do caráter delével e indelével do mesmo. Esses fundadores da religião cristã adoravam a Deus, mas a sua adoração apoiava-se neste princípio fundamental do evangelho: Deus é um espírito puro e é preciso adorá-lo em espírito e verdade. Parece, igualmente, não ter sido revelado aos apóstolos que o culto, nas escolas chamado latria, possa prestar-se tanto a Jesus Cristo em pessoa como às suas imagens rabiscadas na parede com carvão, bastando que representem o filho de Deus dando a bênção com os dois dedos, índice e médio, da mão direita levantada, e com a cabeça ornada por uma longa cabeleira e um tríplice círculo de raios. Mas, como poderiam os apóstolos possuir tão grande e salutar erudição? Eles não encaneceram no fatigante estudo das ciências físicas e metafísicas de Aristóteles e dos scotistas. Os apóstolos costumam falar da graça, mas não distinguem a graça gratuita da graça gratificante; exortam às boas obras, mas não distinguem a obra operante da obra operada; inculcam a caridade, mas não separam a infusa da adquirida, além de não explicarem se essa amável e divina virtude é substância ou acidentecriada ou incriada; detestam o pecado, mas eu quisera morrer se eles já foram capazes de definir cientificamente o que chamamos de pecado, a não ser que tenham sido inspirados pelo espírito dos scotistas. Se São Paulo, pelo qual devemos julgar todos os outros apóstolos, tivesse tido uma boa teoria do pecado, teria ele condenado com tanta insistência as polêmicas, as contendas, as querelas, as discussões em torno de palavras? Digamos, pois, com franqueza, que São Paulo não conhecia as argúcias e as qualidades espirituais que distinguem os modernos, tanto mais quanto as controvérsias surgidas na primitiva Igreja não passavam de pueris mesquinharias diante do refinamento dos nossos mestres, que, em matéria de sutileza, ultrapassaram de muito o próprio sofista Crisipo. Façamos, porém, justiça à sua modéstia, pois não condenam o que os apóstolos escreveram com pouco acerto e precisão, mas se limitam a interpretá-lo de modo favorável, para usar de certa consideração para com a venerável antiguidade e para com o apostolado. Não seria, aliás, razoável pretender que os apóstolos tratassem dessas difíceis matérias, quando o seu divino mestre nunca lhes disse uma palavra a respeito. (...)
Não considerareis felicíssimas essas pessoas? Mas, prossigamos ainda um pouco. Quantas lindas lorotas não vão esses doutores impingindo a respeito do inferno? Conhecem tão bem todos os seus apartamentos, falam com tanta franqueza da natureza e dos vários graus do fogo eterno, e das diversas incumbências dos demônios, discorrem, finalmente, com tanta precisão sobre a república dos danados, que parecem já ter sido cidadãos da mesma durante muitos anos. Além disso, quando julgam conveniente, não se poupam o trabalho de criar ainda novos mundos, como o mostraram formando o décimo céu, por eles denominado empíreo e fabricado expressamente para os beatos, sendo mais do que justo que as almas glorificadas tivessem uma vasta e deliciosa morada para aí gozarem de todo o conforto, divertindo-se juntas e até jogando a péla quando tivessem vontade.
Os nossos finos pensadores têm a cabeça tão cheia, tão agitada por essas bobagens, que decerto não estava mais cheia a cabeça de Júpiter quando, ao querer parir Minerva, implorou o socorro do machado de Vulcano. Não vos admireis, pois, ao vê-los aparecer nas defesas públicas com a cabeça cuidadosamente cingida com tantas faixas, pois não fazem senão procurar impedir, por meio desses respeitáveis liames, que ela arrebente de todos os lados em virtude da porção de ciência de que o seu cérebro se acha sobrecarregado.”


“Depois desses, segue-se imediatamente a espécie melhor do gênero animal, isto é, os que vulgarmente se chamam monges ou religiosos.
Seria, porém, abusar grosseiramente dos termos chamá-los, ainda hoje, por tais nomes. Com efeito, por via de regra, não há pessoas mais irreligiosas do que essas e, como a palavra monge significa solitário, parece-me não se poder aplicá-la mais ironicamente as pessoas que se encontram em toda parte, acotovelando-se a cada passo. Sem o meu socorro (da Loucura), que seria desses pobres porcos dos deuses? São de tal forma odiados que, quando por acaso são vistos, costuma-se tomá-los por aves de mau agouro. Isso não impede que cuidem escrupulosamente da sua conservação e se considerem personagens de alta importância. A sua principal devoção consiste em não fazer nada, chegando ao ponto de nem ler. Sem dar-se ao trabalho de entender os salmos, já se julgam demasiados doutos quando lhes conhecem o número, e, quando os cantam em coro, imaginam enlevar o céu com a asnática melodia. Entre esse variegado rebanho, alguns se encontram que se gabam da própria imundície e da própria mendicidade, indo de casa em casa esmolar, mas com uma fisionomia tão descarada que parecem mais exigir um crédito do que pedir a esmola. Albergues, botequins, carros, diligências, todos, em suma, são por eles importunados, com grande prejuízo dos verdadeiros necessitados. É dessa forma que pretendem ser, como dizem eles, os nossos apóstolos, com toda a sua imundície, toda a sua ignorância, toda a sua grosseria, todo o seu descaramento. 
Nada mais ridículo do que a ordem exata e precisa que observam em todos os seus atos: tudo é feito por eles a compasso e à medida. Os sapatos devem ter tantos nós, o cíngulo deve ser de tal cor, a roupa composta de tantas peças, a cinta de tal qualidade e de tal largura, o hábito de tal forma e de tal tamanho, a coroinha de tantas polegadas de diâmetro. Além disso, devem comer a tal hora, tal qualidade e tal quantidade de alimento, dormir somente tantas horas, etc. Ora, todos podem compreender muito claramente que é impossível conciliar tão precisa uniformidade com a infinita variedade de opiniões e de temperamentos. Pois é nessa metódica exterioridade que os monges encontram argumento para desprezar os que eles chamam de seculares. Muitas vezes, dá causa a sérias contendas entre as diferentes ordens, a ponto dessas santas almas que se vangloriam de professar a caridade apostólica se destruírem mutuamente. E por que? Por causa de um cíngulo diverso ou da cor mais carregada da roupa.
Alguns desses reverendos mostram, contudo, o hábito de penitência, mas evitam que se veja a finíssima camisa que trazem por baixo; outros, ao contrário, trazem externamente a camisa e a roupa de lã sobre a pele. Os mais ridículos, a meu ver, são os que se horrorizam ao verem dinheiro, como se se tratasse de uma serpente, mas não dispensam o vinho nem as mulheres. Não podeis, enfim, imaginar quanto se esforçam por se distinguirem em tudo uns dos outros. Imitar Jesus Cristo? É o último dos seus pensamentos. Muito se ofenderiam se lhes dissésseis que obtiveram isto ou mais aquilo deste ou daquele instituto. Julgais que a enorme variedade de sobrenomes e de títulos não deleite muito os seus ouvidos? Há os que se gabam de chamar-se franciscanos, tronco que se subdivide nos seguintes ramos: os reformados, os menores observantes, os mínimos, os capuchinhos; outros se dizem beneditinos; estes se chamam bernardinos e aqueles de Santa Brígida; outros são de Santo Agostinho; estes se denominam guilherminos e aqueles jacobitas, etc. Como se não lhes bastasse o nome de cristãos. Quase todos confiam tanto em certas cerimônias e em certas tradiçõezinhas humanas, que um só paraíso lhes parece um prêmio muito modesto para os seus méritos. No entanto, Jesus Cristo, desprezando todas essas macaquices, só julgará os homens pela caridade, que é o primeiro dos seus mandamentos. Em vão, tremendo no dia do juízo final, apresentarão eles a Deus um corpo bem nutrido por tudo quanto é peixe; em vão lhe oferecerão o canto dos salmos e os inúmeros jejuns; em vão sustentarão que arrumaram a barriga com uma única refeição; em vão produzirão uma porção de práticas fradescas, capazes de carregar pelo menos sete navios; em vão se gabará este de ter passado sessenta anos sem tocar em dinheiro, a não ser com dois dedos muitos sujos; em vão mostrará aquele o seu hábito tão sórdido que até um barqueiro se recusaria a vesti-lo; em vão se gabará outro de ter vivido cinquenta e cinco anos sempre encerrado em seu claustro, como uma esponja; em vão aquele fará ver que perdeu a voz de tanto cantar, e este que a longa solidão lhe perturbou o cérebro; em vão dirá um outro que o perpétuo silêncio entorpeceu-lhe a língua. Interrompendo todas essas gabolices (pois do contrário seria um nunca mais acabar), Jesus Cristo dirá: 
– De que país vem essa nova raça de judeus? Pois não dei aos homens uma lei única? Sim, e somente essa eu reconheço como verdadeiramente minha. E esses malandros não dizem sequer uma palavra a respeito? Abertamente e sem parábolas, eu prometi, outrora, a herança do meu Pai, não às túnicas, nem às oraçõezinhas, nem à inédia, mas à observância da caridade. Não, não reconheço pessoas que apreciam demais as suas pretensas obras meritórias e querem parecer mais santas do que eu próprio. Procurem, se quiserem, um céu a parte. Mandem construir um paraíso por aqueles cujas frívolas tradições eles preferiram à santidade dos meus preceitos. 
Qual não será a consternação de todos eles, ao ouvirem tão terrível sentença e ao verem que se lhes antepõem os barqueiros e os carroceiros? No entanto, a despeito de tudo isso, são sempre felizes com suas vãs esperanças, o que, em substância, não é senão o efeito da minha bondade para com eles.”


“(Estes teólogos) Principiam sempre as suas mixórdias com uma invocação tomada de empréstimo aos poetas, e fazem um exórdio sem relação alguma com o assunto que devem abordar. Devem, por exemplo, pregar a caridade? Começam pelo rio Nilo. Devem pregar sobre o mistério da cruz? Começam pelo Belo, o fabuloso dragão da Babilônia. Devem pregar o jejum quaresmal? Começam pelas doze constelações do zodíaco. Devem pregar a fé? Começam pela quadratura do círculo. E assim por diante. (...)
Pregam como os charlatães, e juraríeis que, embora conheçam muito mais que os frades o coração humano, com estes é que aprenderam a sua arte. Com efeito, é tal a semelhança das suas declamações que de duas uma: ou os charlatães aprenderam retórica com os nossos pregadores, ou os nossos pregadores estudaram eloquência com os charlatães.”


“Passemos, agora, aos grandes da corte. Não há escravidão mais vil, mais repulsiva, mais desprezível do que aquela a que se submete essa ridícula espécie de homens, que, não obstante, costuma ganhar para si, de alto a baixo, o resto dos mortais. Convenhamos, porém, que são modestíssimos num único ponto: é que, satisfeitos de possuir o ouro, as pedras, a púrpura e todos os outros símbolos da sabedoria e da virtude, cedem facilmente aos outros o cuidado da sabedoria e da virtude.”


“Com efeito, o principal objetivo dos nossos Ilustríssimos e Reverendíssimos consiste em viver alegremente, e, quanto ao rebanho, que dele cuide Jesus Cristo. Aliás, já não possuem os arcediagos, os vigários gerais, os confessores, os frades e mil outros fiéis mastins, que estão sempre em guarda contra o lobo do inferno? Os bispos chegaram a esquecer que o seu nome, tomado ao pé da letra, significa trabalho, zelo, solicitude pela redenção da almas. Mas por Baco! não se esquecem nunca das honrarias e do dinheiro.”


“Os nossos Santíssimos Pais de Cristo e o seus vigários gerais nunca empregam com maior zelo esse espantoso castigo do que no caso daqueles que, à instigação do demônio, tentam diminuir ou danificar o patrimônio de São Pedro. Dizia este bom apóstolo ao seu Mestre: 
– Deixamos tudo para seguir-te. 
Compreendereis que grande sacrifício fez o pobre pescador! Foi a fortuna o que ele conseguiu em virtude dessa renúncia; é por isso que Sua Santidade glorificada possui terras, cidades, domínios, e percebe impostos e taxas. E é sobretudo para defender e conservar essa rica aquisição que os pontífices romanos costumam condenar as almas. É verdade que nem ao menos poupam os corpos, e, inflamados pelo zelo de Jesus Cristo, desfraldam a bandeira de Marte e, sem piedade, empregam o ferro e o fogo para sustentar as suas razões. Bem vedes que não se pode fazer semelhante guerra sem derramar o sangue cristão.
– Mas, que importa? – respondem os papas – Estamos defendendo apostolicamente a causa da Igreja e só deporemos as armas quando tivermos vingado a esposa de Jesus Cristo contra os seus inimigos. 
Eu desejaria saber, porém, se haverá para a Igreja inimigos mais perniciosos do que esses ímpios pontífices, os quais, em lugar de pregar Jesus Cristo, deixam no esquecimento o seu nome e o põem de lado com leis lucrativas, alteram a sua doutrina com interpretações forçadas e, finalmente, o destroem com exemplos pestilentos.
Além disso, assim como a Igreja cristã foi fundada com sangue, confirmada com sangue, dilatada com sangue, assim também os papas a governam com sangue, como se nunca Jesus Cristo tivesse existido para protegê-la e sustentá-la. 
A guerra é, por natureza, tão cruel, que muito mais conviria às feras do que aos homens; tão insensata que os poetas a atribuíram às fúrias do inferno; tão pestilenta que corrompe todos os costumes; tão iníqua que a fazem melhor perversos ladrões do que homens probos e virtuosos; finalmente, tão ímpia que nenhuma relação possui com Jesus Cristo nem com sua moral. Isso não impede que alguns pontífices abandonem todas as funções pastorais para consagrar-se inteiramente a esse flagelo da humanidade. (...) E acham razões para provar que desembainhar a espada e cravá-la no coração de um irmão não é absolutamente infringir o grande mandamento da caridade para com o próximo.”


“Naturalmente, todos os homens fazem um alto conceito de si mesmos.”


“Não vos esqueçais deste antigo provérbio dos gregos: Muitas vezes, também o homem louco fala judiciosamente.”


“Em lugar de um epílogo quero oferecer-vos duas sentenças. A primeira, antiquíssima, é esta: Eu jamais desejaria beber com um homem que se lembrasse de tudo. E a segunda, nova, é a seguinte: Odeio o ouvinte de memória fiel demais.”

segunda-feira, 16 de junho de 2014

A Torre Negra: Lobos de Calla, de Stephen King

Editora: Suma de Letras

ISBN: 978–85–81050–25–6

Tradução: Mário Molina

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 744

Sinopse: Depois de escapar das perigosas entranhas de Blaine, o monotrilho desgovernado, e das garras do vingativo feiticeiro Randall Flagg, Roland e seu Ka-tet retomam o caminho do Feixe de Luz que conduz à Torre Negra, centro de todo tempo e todo espaço.

Nas fronteiras do Mundo Médio, o grupo de pistoleiros é abordado por um assustado grupo de representantes da cidade de Calla Bryn Sturgis. Dali a menos de um mês, Calla será atacada pelos Lobos – cavaleiros mascarados que surgem uma vez a cada geração, para roubar metade das crianças da cidade e devolvê-las semanas depois, física e mentalmente incapacitadas.

Enquanto isso, na Nova York de 1977, a Corporação Sombra planeja atacar o terreno baldio na esquina da Segunda Avenida com a Rua Quarenta e Seis onde floresce uma rosa – na verdade a Rosa, manifestação da Torre Negra no mundo atual.

Como Roland e seus amigos poderão ao mesmo tempo salvar a Rosa e combater os Lobos? Somente com a ajuda do Treze Preto, o mais poderoso dos Globos do Mago, na verdade o próprio olho do Rei Rubro. Mas, para salvar o mundo do caos, os pistoleiros terão de aprender a confiar nesse objeto sinistro e traiçoeiro...

Inspirada no universo imaginário de J.R.R. Tolkien, no poema épico do século XIX Childe Roland a Torre Negra Chegou, e repleta de referências à cultura pop, às lendas arturianas e ao faroeste, A Torre Negra mistura ficção científica, fantasia e terror numa narrativa que forma um verdadeiro mosaico da cultura popular contemporânea.



“Eddie passou no mínimo uma hora contando a Roland a história de João e Maria, transformando a perversa bruxa comedora de crianças em Rhea do Coos quase sem pensar nela. Quando chegou a parte em que ela tentava engordar as crianças, ele se interrompeu e perguntou a Roland: – Conhece esta? Uma versão desta?

– Não – disse Roland –, mas é uma bela história. Conte até o fim, por favor.

Eddie contou, acabando com o exigido E viveram felizes para sempre, e o pistoleiro aquiesceu.

– Ninguém nunca vive feliz para sempre, mas deixamos as crianças aprenderem isso por conta própria, não é?”

 

 

“A mãe de Roland tinha um ditado: O amor tropeça.”

 

 

“– Se – disse Roland. – Um velho mestre meu dizia que esta era a única palavra de mil letras.”

 

 

“Havia um ditado em Gilead: Que o mal espere pelo dia em que deve se abater.”

 

 

“– Os que mantêm conversa consigo mesmos viram triste companhia.”

 

 

“Eddie sorriu e nada disse por mais algum tempo, esperando que Telford mudasse de assunto. Esperando que Telford desse o fora, na verdade. Não existe tal sorte. Os chatos não desgrudam da gente: isto era quase uma lei da natureza.”

 

 

“Acima de pequenas doses, o álcool é uma toxina, e Callahan vinha se envenenando todas as noites. Era o veneno em seu sistema, não o estado do mundo nem o de sua própria alma, que o estava derrubando. Fora isso sempre tão óbvio assim? Depois (em outra reunião dos AA), ele ouvira um sujeito referir-se ao alcoolismo e à dependência como o elefante na sala: como era possível não vê-lo? Callahan não lhe dissera, ainda estava nos primeiros noventa dias de sobriedade àquela altura (“Tire o algodão dos ouvidos e enfie na boca”, aconselhavam os dos velhos tempos, e todos agradecemos), mas podia ter-lhe dito, na verdade, sim. Era possível não ver o elefante se fosse um elefante mágico, se tivesse o poder de toldar as mentes dos homens. De fazer a gente acreditar mesmo que nossos problemas eram espirituais e mentais, mas de modo algum etílicos. Meu Bom Jesus, só a perda do sono REM, relacionada à bebedeira, bastava para nos foder com plena razão, mas de algum modo a gente nunca pensava nisso quando estava ativo. A pinga transformava seu processo mental numa coisa semelhante àquele número circense em que todos os palhaços vêm saltando do carrinho. Quando as revíamos na sobriedade, as coisas que disséramos e fizéramos nos faziam estremecer (“Eu me sentava num bar resolvendo todos os problemas do mundo, depois não conseguia encontrar meu carro no estacionamento”, lembrou um colega na reunião, e todos agradecemos”).”

 

 

“– Eu sei como começa a escalada de volta – disse. – Tinha tomado suficientes drinques de fundo, ido a suficientes reuniões dos AA no East Side, Deus sabe. Portanto, quando me deixaram sair, encontrei os AA em Topeka e passei a ir todo dia. Nunca olhava para a frente, nunca olhava para trás. “O passado é história, o futuro é um mistério”, dizem. Só que desta vez, em vez de me sentar no fundo da sala e não dizer nada, eu me obrigava a ir direto para a frente, e durante as apresentações dizia: “Sou Don C. e não quero beber mais.” Eu queria, sim, todo dia sentia falta, mas nos AA eles têm ditados para tudo, e um deles é: “Finja até conseguir.” E aos pouquinhos eu consegui mesmo. Acordei um dia no outono de 1982 e compreendi que realmente não queria mais beber. A compulsão, como eles dizem, se fora.”

 

 

“– As promessas são feitas para serem quebradas.”

 

 

“– Jack Kennedy não era um homem mau – disse Susannah calmamente. – Jack Kennedy era um homem bom. Um grande homem.

– Talvez. Mas sabe de uma coisa? Eu acho que é preciso ser um grande homem para cometer um grande erro.”

 

 

     “Meu pai e o pai de Cuthbert tinham uma regra entre eles: primeiro chegam os sorrisos, depois, as mentiras. Por último, o tiroteio.”

 

 

“Em Calla Bryn Sturgis (como na maioria dos lugares), os homens em estado de sobriedade não gostavam muito de falar sobre seus corações.”

 

 

“Susannah pôs a mão no quadril dele e virou-o para ela.

– Mas as coisas podem dar errado, por isso eu quero lhe dizer uma coisa enquanto estamos só nós dois, Eddie. Quero dizer o quanto amo você. – Falou simplesmente, sem drama.

– Eu sei que me ama – disse ele –, mas diabos me levem se eu souber por quê.

– Porque você me faz sentir inteira. Quando eu era mais jovem, vacilava entre achar que o amor era esse grande e glorioso mistério e que era apenas uma coisa que um bando de produtores de Hollywood inventou pra vender mais ingressos na Depressão, quando tudo deu errado – Eddie riu.

– Agora acho que todos nós nascemos com um buraco em nossos corações, e andamos por aí à procura da pessoa que possa enchê-lo. Você – Eddie, você o encheu até em cima.”

 

 

“Um amigo do padre Callahan dera-lhe uma blasfema mostra de tapeçaria que o fizera soltar rajadas de risada horrorizada na época, mas que foi parecendo mais verdadeiro e menos blasfemo com o passar dos anos: Deus me conceda a SERENIDADE para aceitar o que não posso mudar, a TENACIDADE para mudar o que posso e a BOA SORTE para não foder tudo com muita frequência.”

sábado, 14 de junho de 2014

10 dias que abalaram o mundo – John Reed

Editora: L&PM
ISBN: 978-85-254-1194-5
Tradução: José Octavio
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 376
Sinopse: Considerado como a primeira grande reportagem moderna, este livro é uma minuciosa e vibrante descrição da revolução comunista de 1917 na Rússia. Ler 10 dias que abalaram o mundo é como assistir pessoalmente aos dramáticos acontecimentos que culminaram com a instauração de um regime que durou mais de cinquenta anos e esteve no centro dos principais acontecimentos do século XX.
John Reed nasceu no Oregon, nos Estados Unidos, em 1887 e morreu em Moscou em 1920. Deslocado para a Europa em 1914 pela Metropolitan Magazine para a cobertura da Primeira Grande Guerra, recém-iniciada, Reed e sua esposa, Louise Bryant (1885-1936), percorreram os Bálcãs e chegaram em Moscou no auge do movimento revolucionário. Egresso da Universidade de Harvard, Reed sempre foi sensível às causas sociais e apaixonado pelo jornalismo. Ficou conhecido por acompanhar a revolução mexicana de Emiliano Zapata e Pancho Villa em 1914, cujo relato resultou no também célebre livro México rebelde.
Em Moscou, aproximou-se de Lênin e outros líderes comunistas, identificando-se integralmente com os ideais comunistas da Revolução. Morreu em Moscou ao contrair tifo e recebeu da Revolução – que acompanhou e ajudou a divulgar no mundo inteiro – a maior homenagem: foi o único ocidental a ser enterrado nas muralhas do Kremlin, próximo do mausoléu de Lênin, ao lado de Stalin, Gagarin e outros heróis da então União Soviética.

“Após a revolução, o termo “soviete” foi empregado para designar um tipo de assembleia eleita pelas organizações econômicas da classe operária: os sovietes dos deputados operários, camponeses e soldados.”


“Atravessei o rio para ir ao Circo Moderno, onde ia ter lugar um dos grandes comícios populares, comícios esses que se realizavam todas as noites, por toda a cidade, em número cada vez maior. No interior do anfiteatro, simples e triste, iluminado por cinco pequenas lâmpadas pendentes de um fio, apinhavam-se até o teto soldados, marinheiros, trabalhadores e mulheres, ouvindo atentamente os oradores, como se estivessem em jogo suas próprias vidas. Falava um soldado da 548ª Divisão. Tinha uma verdadeira angústia na fisionomia macilenta e nos gestos desesperados: – Camaradas – gritou ele –, os que estão no poder exigem de nós sacrifícios sobre sacrifícios. Mas os que tudo têm nada sofrem. Estamos em guerra com a Alemanha. Podemos consentir que generais alemães entrem para o nosso Estado-Maior? Pois bem, companheiros: estamos também em guerra com os capitalistas. Entretanto, consentimos que eles ingressem no nosso governo. O soldado quer saber por quem combate. Por Constantinopla, ou pela liberdade da Rússia? Pela democracia, ou pelo banditismo capitalista? Se me provarem que estamos lutando pela revolução, marcharei para a frente, sem que seja preciso me ameaçarem com a pena de morte. Quando a terra pertencer aos camponeses, as fábricas aos operários, e o poder aos sovietes, então teremos o que defender, então teremos por que lutar.”


“Não há nada de comum entre a classe trabalhadora e a classe exploradora.”


“– A insurreição é um direito de todos os revolucionários! Quando as massas oprimidas se rebelam, elas estão fazendo uso de um direito seu.” (Trótsky)


“Mas, de repente, ouviu-se uma nova voz, mais profunda, dominando o tumulto da assembleia. Era a voz surda do canhão! Todos os olhares voltaram-se ansiosamente para as janelas. Uma espécie de febre ardente dominou a assembleia.
Martov pediu a palavra. E, com voz rouca, disse:
– Camaradas! A guerra civil já começou. É necessário discutir em primeiro lugar a solução pacífica da crise. Tanto por questões de princípios, como por motivos políticos, devemos começar a sessão de hoje discutindo com a maior urgência os meios de fazer cessar a guerra civil. Nossos irmãos estão morrendo nas ruas... neste momento em que se procura resolver a questão do poder, antes da abertura do Congresso dos Sovietes, por meio de uma conspiração militar organizada por um único dos partidos revolucionários – (Durante alguns instantes o trovejar da artilharia abafou-lhe as palavras.) –... Todos os partidos devem encarar este problema. A primeira questão que o Congresso vai discutir é a do poder. Mas ela já está sendo resolvida nas ruas, pela força das armas... Temos a missão de criar um poder que toda democracia possa reconhecer. Se este congresso quer ser o porta-voz da democracia revolucionária, não deve ficar de braços cruzados ante a guerra civil que ameaça fazer explodir uma perigosa contrarrevolução. Só há uma solução pacífica para a crise atual: a formação de um poder com a participação de todas as organizações democráticas num bloco unido... Proponho que se eleja uma delegação para negociar com todos os partidos e organizações socialistas.
O surdo ribombar do canhão continuava a fazer estremecer os vidros das janelas, com intermitências regulares, enquanto os deputados discutiam e se insultavam.
Foi assim, sob o troar da artilharia, na obscuridade, no meio de ódios, de medo e da mais temerária das audácias, que nasceu a nova Rússia.”


“Exatamente às oito horas e quarenta minutos, uma tempestade de aplausos anunciou a chegada da presidência, com Lênin, o grande Lênin, à frente.
Uma silhueta baixa. Cabeça redonda e calva, mergulhada entre os ombros. Olhos pequenos, nariz rombudo, boca larga e generosa. Mandíbula pesada. Estava completamente barbeado. Mas a sua barba, dantes tão conhecida e que daquele momento em diante iria ser eterna, já começava a despontar novamente. O casaco estava puído; as calças eram compridas demais. Sua aparência física não indicava que ele poderia ser um ídolo das multidões. Mas foi querido e venerado como poucos chefes em toda a história. Um estranho chefe popular. Chefe só pelo poder do espírito. Sem brilho, sem ditos chistosos, intransigente e sempre em destaque, sem a menor particularidade interessante, mas possuindo, em alto grau, a capacidade de explicar ideias profundas em termos simples e de analisar concretamente as situações. Senhor de prodigiosa audácia intelectual. Assim era Lênin.”


“Os soldados de um povo livre não se entregam nem se rendem.”


“Trótsky ergueu-se, de novo, ardente, infatigável, dando ordens, respondendo às perguntas:
– A pequena burguesia, para aniquilar o proletariado, os soldados e os camponeses, é capaz de se aliar até com o Diabo.”


“No pavimento térreo, encontramos Kamenev, que acabava de chegar. Embora extenuado pela sessão noturna da Conferência para a Formação de um Novo Governo, estava satisfeito.
– Já os socialistas revolucionários inclinam-se a favor da nossa admissão ao novo governo – disse-me. – Os grupos da direita estão aterrorizados com tribunais revolucionários e pedem, espantados, que, antes de tudo, e sobretudo, os dissolvamos. Aceitamos a proposta do Vikjel referente à formação de um governo socialista homogêneo; tratamos, atualmente, dessa questão. É o fruto da nossa vitória. Quando éramos os mais fracos, nada queriam conosco; agora, todo mundo é partidário de um acordo com os sovietes. Entretanto, o que necessitamos é de uma vitória verdadeiramente decisiva. Kerenski quer armistício, mas será preciso que capitule.
Tal era o estado de espírito dos chefes bolcheviques. A um jornalista estrangeiro, que solicitava uma declaração, Trótsky disse:
– A única declaração possível, neste momento, é a que fazemos pela boca dos nossos canhões!”


“Melnitchanski contou-me também algumas passagens interessantes dos últimos acontecimentos. Num dia frio e escuro, estava ele na esquina da Nikítskaia. As descargas das metralhadoras varriam as ruas. Ao seu lado, estava reunido um bando de crianças, essas pobres criaturas que vendem jornais. Não pareciam impressionar-se com o tiroteio. Davam gritos agudos, como se estivessem brincando. Quando a fuzilaria diminuiu, procuraram atravessar a rua correndo... Muitos deles, atingidos pelos projéteis, caíram mortos. Mas os outros continuaram correndo pela rua de um lado para outro, rindo, brincando, numa absoluta inconsciência do perigo!”


“Ao longo da praça, elevava-se a massa escura das torres e das muralhas do Kremlin. No alto das muralhas resplandecia um débil clarão de fogos invisíveis e, através da praça, chegavam até meus ouvidos ruídos de vozes, de picaretas e pás. Atravessei a praça.
Ao lado da muralha, erguia-se uma montanha de pedras e de terra. Subi ao alto e vi enormes fossas de uns dez ou quinze pés de profundidade e cerca de cinquenta metros de largura, que centenas de operários e soldados estavam cavando, à luz de grandes archotes.
Um jovem estudante disse-me em alemão:
– É o Túmulo Fraternal. Amanhã, enterraremos aqui os quinhentos proletários que tombaram combatendo pela revolução*.
Desci à fossa. Ninguém falava. As picaretas e as pás trabalhavam febrilmente. A montanha de terra crescia. Por cima de nossas cabeças, miríades de estrelas brilhavam na noite. E o antigo Kremlin dos czares levantava para os céus suas formidáveis muralhas.
– Neste lugar sagrado – disse o estudante –, o lugar mais sagrado de toda a Rússia, vamos enterrar aquilo que para nós é mais sagrado. Aqui, onde dormem os czares, descansará agora o nosso czar: o povo!
Tinha um braço na tipoia. Recebera uma bala no combate. Olhando para seu braço ferido, continuou:
– Vocês, estrangeiros, desprezam-nos porque suportamos durante muito tempo uma monarquia medieval. Mas hoje já se sabe que o czar não era o único tirano do mundo... Hoje, já se sabe que o capitalismo europeu é também uma tirania talvez pior que o czarismo, porque em todos os países do mundo o capitalismo é imperador! A tática da Revolução Russa mostra ao mundo inteiro o caminho, o verdadeiro caminho da libertação.
Quando me retirava, os trabalhadores, esgotados, e, apesar do frio, inteiramente empapados de suor, começavam a saltar com dificuldade para fora da fossa. Chegava outra turma, caminhando através da praça. Sem dizer uma só palavra, ela desceu, apanhou as ferramentas deixadas pelos companheiros e continuou o trabalho que estes haviam começado. Durante a noite inteira, os voluntários do povo revezaram-se sem cessar. Quando a fria luz da manhã se estendeu sobre a grande praça coberta por alvo lençol de neve, as fossas da Tumba Fraternal já estavam terminadas.”
*: Este cemitério ainda é conservado. Viça entre o túmulo de Lênin e as muralhas do Kremlin. Na própria base das muralhas do Kremlin, foram enterrados muitos revolucionários. As cinzas de John Reed também repousam aí. (N. do E.)


“Vagarosamente, os homens que levavam os féretros chegaram às bordas do túmulo. Transportando suas cargas, escalaram os montões de terra e desceram ao fundo das fossas. Havia entre eles muitas mulheres, dessas mulheres do povo, corpulentas e robustas. Acompanhando os mortos, outras mulheres ainda jovens, mas aniquiladas pelos sofrimentos; mulheres velhas, com as faces enrugadas, lançando gritos agudos de animais feridos querendo atirar-se na fossa atrás de seus filhos ou maridos, debatendo-se, quando mãos piedosas procuravam contê-las. É assim que os pobres amam.”


“Trótsky defendeu com ardor a resolução bolchevique, procurando mostrar a diferença entre a situação da imprensa durante a guerra civil e depois da vitória:
– Durante a guerra civil, só os oprimidos têm o direito de empregar a violência... – (Gritos: “Onde estão os oprimidos?”) – O adversário ainda não está vencido completamente. Os jornais são armas. Eis por que é necessário proibir a circulação de jornais burgueses. É uma medida de legítima defesa!
Em seguida, abordou a situação da imprensa após a vitória:
– Precisaremos, é claro, de uma lei de imprensa. Já estamos cuidando disso. Muito antes da vitória da revolução, já afirmávamos que não podíamos encarar a liberdade de imprensa do ponto de vista dos proprietários dos grandes jornais. As medidas aplicadas contra a propriedade privada são também aplicáveis à imprensa. É necessário confiscar, em benefício do povo, todos os grandes jornais, todas as oficinas, todos os depósitos de papel. – (Aparte: “Confisquem as oficinas do Pravda!”) – A burguesia sempre monopolizou a imprensa. Sem a abolição desse monopólio, a conquista do poder não tem o menor significado. Todos os cidadãos da Rússia precisam ter à sua disposição jornais, tipografias e papel. O direito de propriedade das tipografias e oficinas dos jornais cabe, em primeiro lugar, aos camponeses e operários, que representam a maioria da população. A burguesia está em segundo plano, porque é minoria insignificante. A tomada do poder pelos sovietes irá modificar radicalmente todas as condições de existência social. A imprensa também tem que ser atingida, também tem que ser modificada. Não nacionalizamos os bancos? Como poderemos respeitar jornais que são propriedade de bancos? O antigo regime deve perecer. Todos precisam compreender isso, de uma vez para sempre.”


“Quando se faz uma revolução, é necessário não contemporizar.” (Lênin)


“A 27 de novembro, apareceu no Smólni uma delegação de cossacos, que desejava falar com Lênin e Trótsky. Recebidos, perguntaram se era verdade que o governo soviético tinha a intenção de dar as terras dos cossacos aos camponeses da Grande Rússia.
– Não – respondeu Trótsky. Os cossacos discutiram entre si.
– Está bem – disseram. – Mas o governo tem a intenção de confiscar as terras dos grandes proprietários cossacos para entregá-las aos trabalhadores cossacos?
Foi Lênin quem respondeu:
– Isso depende de vocês. Cabe-lhes fazer isso. Nós apoiaremos tudo que os trabalhadores cossacos fizerem nesse sentido. Para começar, vocês devem desde já organizar seus próprios sovietes cossacos. Deste modo, poderão indicar seus representantes para o Comitê Central Executivo e o governo soviético será o governo de vocês mesmos...
Os cossacos se retiraram, mas não se esqueceram dessas palavras. Duas semanas depois, o General Kaledin foi procurado por uma delegação de suas tropas:
– É capaz de prometer-nos – perguntaram os delegados – repartir as terras dos senhores cossacos entre os trabalhadores cossacos?
– Nunca! Prefiro morrer! – respondeu Kaledin. Passado um mês, o exército de Kaledin dissolvia-se, como por encanto. Desesperado, Kaledin estourou os miolos com um tiro. O movimento cossaco terminou assim.”


“Com o decreto sobre a nacionalização dos bancos; com a criação do Conselho Superior da Economia Nacional; com a aplicação efetiva do decreto sobre a terra; com a reorganização democrática do Exército, através das transformações radicais realizadas em todos os domínios do Estado e da vida social, medidas que só puderam ser postas em prática porque eram a expressão da vontade dos operários, soldados e camponeses, começou a surgir, lentamente, por entre erros e dificuldades, a nova Rússia proletária.
Os bolcheviques conquistaram o poder. Mas conquistaram-no sem acordos com as classes dominantes ou com os diversos chefes de partidos políticos, destruindo o antigo mecanismo governamental. Não chegaram tampouco ao poder por meio de um golpe de força organizado por um pequeno grupo. A revolução teria fracassado, se as massas não tivessem sido preparadas em toda a Rússia para a insurreição. Por que os bolcheviques venceram? Porque sabiam lutar pelas pequenas e pelas grandes aspirações e reivindicações das grandes camadas populares, organizando-as e dirigindo-as para a destruição do passado e lutando com elas para edificar, sobre as ruínas fumegantes do sistema social destruído, uma nova sociedade, um novo mundo.”


“Lênin pediu a palavra, sendo ouvido, desta vez, com a maior atenção:
– Neste momento, está em jogo não só a questão da terra, mas o problema da revolução social. E esse problema não se limita à Rússia: é um problema de importância mundial. A questão da terra não pode ser separada das demais questões da revolução social. Para confiscarmos a terra, teremos de vencer não só a resistência dos proprietários russos, como a resistência do capital estrangeiro, porque os proprietários estão ligados a ele, através dos bancos. O regime da propriedade territorial na Rússia baseava-se na mais terrível exploração dos camponeses. Confiscando as terras dos grandes proprietários feudais, os camponeses realizaram o mais importante ato da nossa revolução. Para provarmos isto basta examinar as etapas percorridas pela revolução. Na primeira etapa, a autocracia, o poder da indústria capitalista e dos grandes proprietários, cujos interesses estão intimamente ligados, foi derrubada. Na segunda, os sovietes consolidam-se. É nesta etapa que se firma um compromisso político com a burguesia. Os socialistas revolucionários da esquerda erraram porque não se opuseram a esse acordo. E, para justificar sua atitude, disseram que, nesse momento, a consciência revolucionária das massas era ainda muito débil. Ora, se fôssemos esperar que todos os homens atingissem o mesmo grau de consciência para só depois disso lutar pelo socialismo, teríamos de esperar uns quinhentos anos para começar a luta!... O partido político do proletariado é a vanguarda da classe operária e, como vanguarda das massas, deve, ao contrário, lutar para arrastar essas massas atrás de si. Para tanto, os sovietes devem ser utilizados como instrumentos de iniciativa revolucionária. Mas, para dirigir os vacilantes, para arrastá-los, é preciso que os socialistas revolucionários da esquerda deixem de vacilar. De julho para cá, as massas populares começaram a romper com os “conciliadores”. Apesar disso, a esquerda revolucionária ainda estende a mão a Avksentiev... Conservar os compromissos é matar a revolução. Firmar acordos com a burguesia é trair a revolução. Não precisamos de entendimentos ou de compromissos com a burguesia. Precisamos, sim, esmagar completamente o poder burguês! O Partido Bolchevique não repudiou seu programa quando aceitou os regulamentos elaborados pelos comitês agrários, porque esses regulamentos não implicam a conservação da propriedade privada. Queremos encarnar, na prática, a vontade popular. Queremos ser os executores da vontade do povo, porque, de outro modo, não poderemos fundir, num só bloco, todos os elementos da revolução social.”


“Já convidamos os socialistas revolucionários a ingressar no novo governo. Novamente lhes fazemos o mesmo convite. Só estabelecemos uma condição. Exigimos que os socialistas revolucionários da esquerda rompam, definitivamente, com os elementos vacilantes do seu partido. Os socialistas revolucionários precisam romper com seu passado e olhar para frente...”
“O orador que me precedeu disse que as decisões da Assembleia Constituinte serão determinadas pela pressão revolucionária das massas. Concordamos. Mas achamos que é preciso apresentar a questão da seguinte maneira: “Camponeses! Confiem na pressão revolucionária, mas não esqueçam nunca que em suas mãos há um fuzil!”.
Em seguida, Lênin leu o seguinte projeto, elaborado pelos bolcheviques:
“O Congresso Camponês aprova, por unanimidade, e sem qualquer restrição, o decreto sobre a terra que foi promulgado a 8 de novembro último pelo Conselho dos Comissários do Povo, na qualidade de Governo Provisório Operário e Camponês da República Russa, reconhecido pelo Congresso Pan-Russo dos Deputados Operários e Camponeses. O Congresso Camponês declara que está disposto a lutar sem a menor vacilação e com todas as suas forças para fazer aplicar na prática o decreto sobre a terra. Ao mesmo tempo, aconselha todos os camponeses não só a apoiá-lo, como a aplicá-lo na prática, por si mesmos, sem perda de um minuto. Aconselha também todos os camponeses a eleger para os cargos importantes unicamente pessoas que já tenham demonstrado, não por palavras, mas através de atos, sua capacidade de lutar com a maior abnegação pelos interesses dos camponeses contra toda resistência dos grandes proprietários, dos capitalistas e de todos os seus lacaios e defensores. O Congresso Camponês declara também estar convencido de que as decisões do decreto sobre a terra só poderão ser definitivamente asseguradas com a vitória da revolução proletária socialista iniciada a 7 de novembro. Só a vitória dessa revolução poderá assegurar a divisão de terras entre os camponeses, o confisco das máquinas agrícolas e a defesa dos interesses de todos os assalariados agrícolas, através da abolição imediata e definitiva do sistema de escravidão capitalista, com a distribuição racional e regular dos produtos da agricultura e da indústria por todas as diferentes regiões do país, entre seus habitantes, através da nacionalização dos bancos (condição indispensável para que a terra se transforme, efetivamente, em propriedade coletiva) e da ajuda sistemática à agricultura, aos trabalhadores, aos explorados, etc., por parte do Estado”.
“Por todos esses motivos, o Congresso Camponês, ao mesmo tempo que se declara inteiramente solidário com a Revolução Socialista de 7 de novembro, afirma sua vontade de lutar, com a maior energia e sem vacilações, em prol da aplicação das medidas necessárias à transformação socialista da Rússia.”
“Sem a mais estreita união dos trabalhadores explorados do campo com a classe operária e com o proletariado de todos os países, a revolução socialista não poderá vencer, nem o decreto sobre a terra poderá ser aplicado integralmente. De agora em diante, toda a organização do Estado, na Rússia, será erguida na base desta estreita união. Essa união das massas exploradas do campo com a classe operária e o proletariado de todos os países garante a vitória do socialismo no mundo inteiro, desde que se exclua toda tentativa, direta ou indireta, clara ou disfarçada, de colaboração com a burguesia ou com seus políticos influentes.”