Editora: Crítica
ISBN: 978-85-4221-019-4
Tradução: Renato Marques
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 400
Sinopse: Ver Parte
I
“Considerações semelhantes nos levam diretamente
para a segunda questão de maior relevância, analisada na capa da edição de
novembro/dezembro de 2011 da revista Foreign Affairs, já citada anteriormente: o conflito Israel-Palestina. Nessa arena
seria difícil demonstrar de maneira mais evidente o medo dos EUA em relação à
democracia. Em janeiro de 2006 foram realizadas eleições na Palestina, pleito
que monitores internacionais consideraram livre e justo. A reação instantânea
dos Estados Unidos (e, claro, de Israel), acompanhados de perto pela cortês
Europa, foi impor duras penalidades aos palestinos por votarem errado.
Isso não é inovação nenhuma. Está plenamente de
acordo com o princípio geral reconhecido pelas correntes dominantes do
pensamento acadêmico: os Estados Unidos apoiam a democracia se, e somente se,
os resultados estiverem em consonância com seus objetivos estratégicos e
econômicos – a pesarosa conclusão de Thomas Carothers, o mais meticuloso e
respeitado analista erudito das iniciativas de “promoção da democracia”.”
“A Coreia do Norte talvez seja o país mais louco do
mundo; é um bom concorrente a esse título. Mas faz todo sentido tentar
compreender o que se passa na cabeça das pessoas quando estão agindo
loucamente. Por que se comportam da forma como se
comportam? Basta imaginar-se na situação delas. Imagine o que significou, nos
anos da Guerra da Coreia na década de 1950, ver seu país ser totalmente
arrasado – tudo destruído por uma mastodôntica superpotência, a qual estava se
regozijando com suas ações. Imagine a marca que isso deixaria.
Tenhamos em mente que a liderança norte-coreana à
época provavelmente leu as publicações militares públicas dessa superpotência
explicando que, uma vez que tudo na Coreia do Norte havia sido devastado, a
força aérea foi enviada para lá a fim de destruir as represas norte-coreanas,
enormes represas que controlavam o abastecimento de água da nação – um crime de
guerra, aliás, pelo qual pessoas foram enforcadas em Nuremberg. E essas
publicações oficiais discorriam entusiasticamente sobre como era maravilhoso
ver a água jorrando e arrasando os vales, e o corre-corre dos “asiáticos” em
sua tentativa de sobreviver.[5] As publicações exultavam
com o que isso significava para aqueles asiáticos – horrores além da nossa imaginação.
Significava a destruição de suas colheitas de arroz, o que queria dizer fome e
morte. Que magnífico! Não está em nosso banco de memórias, mas está no deles.
Voltemos ao presente. Há uma interessante história
recente: em 1993, Israel e Coreia do Norte caminhavam para um acordo no qual a
Coreia do Norte interromperia o envio de todo e qualquer tipo de míssil e
tecnologia militar para o Oriente Médio e em contrapartida Israel reconheceria
o país. O presidente Clinton interveio e bloqueou o acordo.[6]
Pouco depois, em retaliação, a Coreia do Norte realizou um teste de mísseis de
pequena envergadura. Os Estados Unidos e a Coreia do Norte chegaram a um acordo
estrutural em 1994, que interrompeu o programa nuclear norte-coreano e foi mais
ou menos honrado por ambos os lados. Quando George W. Bush assumiu a
presidência, a Coreia do Norte tinha talvez uma arma nuclear e comprovadamente
não estava produzindo outras mais.
Bush imediatamente lançou seu militarismo
agressivo, ameaçando a Coreia do Norte (“Eixo do Mal” e tudo mais), de modo que
os norte-coreanos retomaram seu programa nuclear. Quando Bush deixou a Casa
Branca, a Coreia do Norte possuía de oito a dez armas nucleares
e um sistema de mísseis, outra formidável realização neoconservadora.[7] No meio, outras coisas aconteceram. Em 2005, os Estados
Unidos e a Coreia do Norte chegaram efetivamente a um acordo por meio do qual a
Coreia do Norte cessaria todo o desenvolvimento de armamentos nucleares e de
mísseis; em troca, o Ocidente – mas principalmente os Estados Unidos –
forneceria um reator de água leve para suas necessidades médicas e daria fim às
suas declarações agressivas. A seguir, ambos firmariam um pacto de não agressão
e caminhariam para a conciliação.
O acordo era muito promissor, mas quase imediatamente
Bush o sabotou. O presidente retirou a oferta do reator de água leve e iniciou
programas para coagir os bancos a pararem de realizar transações financeiras
norte-coreanas, até mesmo as que fossem perfeitamente legais.[8]
Os norte-coreanos reagiram retomando seu programa de armas nuclear. E é assim
que a coisa vem seguindo.
O jargão é bem conhecido. Qualquer um pode lê-lo na
produção acadêmica norte-americana dominante. Sem meias palavras, o que se diz
é: trata-se de um regime bastante louco, mas que segue uma política do olho por
olho, dente por dente. Você faz um gesto hostil e nós responderemos na mesma
moeda, com o nosso próprio gesto louco. Você faz um gesto conciliador, e nós
retribuímos da mesma forma.
Recentemente, o comando militar dos EUA e da Coreia
do Sul realizaram exercícios militares de grande escala na península coreana, o
que do ponto de vista do norte deve parecer ameaçador. Nós acharíamos ameaçador
se manobras desse tipo estivessem acontecendo no Canadá, com armas apontadas
para nós. Durante esses exercícios, os mais avançados bombardeiros da história,
Stealth B-2 e B-52, simularam ataques de bombardeio nuclear bem nas fronteiras
da Coreia do Norte.[9]
Isso fez soarem os sinos de alarme do passado. Os
norte-coreanos lembram-se de algo daquele passado, por isso estão reagindo de
forma bastante agressiva e extremada. Bem, o que chega ao Ocidente é o quanto
os líderes norte-coreanos são loucos e terríveis. Sim, eles são – mas isso está
longe de ser a história completa, e é assim que o mundo tem caminhado.
Não é que não haja
alternativas. As alternativas simplesmente não estão sendo levadas em
consideração. Isso é perigoso. Então, se me perguntarem o que acontecerá com o
mundo e como vejo a feição do mundo no futuro, a imagem não é nada boa. A menos
que as pessoas façam algo a respeito. Sempre podemos.”
5. Sobre o bombardeio de diques como crime de
guerra, ver por exemplo Gabriel Kolko, “Report on the Destruction of Dikes:
Holland, 1944-45 and Korea, 1953”, in Against the Crime of Silence:
Proceedings of the Russell International War Crimes Tribunal, Estocolmo e
Copenhague, 1967, ed. John Duffett (Nova York: O’Hare Books, 1968), 224-26; ver
também Jon Halliday e Bruce Cumings, Korea: The Unknown War (Nova York:
Viking, 1988), 195-96; Noam Chomsky, Towards a New Cold War: Essays on the
Current Crisis and How We Got There (Nova York: Pantheon, 1982), 121-22
(edição brasileira: Rumo a uma Nova Guerra Fria – Política Externa dos EUA,
do Vietnã a Reagan, São Paulo: Record, 2007).
6. Oded Granot,
“Background on North Korea-Iran Missile Deal”, Ma’ariv, 14 de abril de
1995.
7. Fred Kaplan,
“Rolling Blunder: How the Bush Administration Let North Korea Get Nukes”, Washington
Monthly, maio de 2004.
8. Shreeya Sinha e
Susan C. Beachy, “Timeline on North Korea’s Nuclear Program”, The New York
Times, 19 de novembro de 2014; Leon Sigal, “The Lessons of North Korea’s
Test”, Current History 105, nº 694 (novembro de 2006).
9. Bill Gertz, “U.S.
B-52 Bombers Simulated Raids over North Korea During Military Exercises”, Washington
Times, 19 de março de 2013.
“Há graves barreiras e empecilhos a superar na luta
por justiça, liberdade e dignidade, mesmo além da cruel e implacável luta de
classes incessantemente conduzida pelo mundo corporativo – que tem elevada
consciência de classe – com o “apoio indispensável” dos governos que em larga
medida são controlados pelas corporações. Ware discute algumas dessas
insidiosas ameaças da forma como eram entendidas pela classe trabalhadora. Ele
discorre sobre o pensamento de trabalhadores qualificados de Nova York 170 anos
atrás, que repetiam a opinião comum de que um salário diário é uma forma de
escravidão e alertavam, com aguçado discernimento, que chegaria um dia em que
os escravos do salário “terão até certo ponto se esquecido tanto daquilo que se
deve à humanidade como à glória, em um sistema que lhes é impingido por sua
necessidade e em oposição a seus sentimentos de independência e autorrespeito”.[17] Eles tinham a esperança de que esse dia estivesse
“bem distante”. Hoje, são comuns os sinais desse dia, mas as demandas por
independência, respeito próprio, dignidade pessoal e controle de cada indivíduo
sobre o próprio trabalho e a própria vida, tal qual a velha toupeira de Marx,
continuam a cavar e a circular incessantemente por baixo da terra, não muito
longe da superfície, pronta para irromper bruscamente quando é despertada pelas
circunstâncias e pelo ativismo militante.”
17. Ware, The
Industrial Worker 1840-1860.
“Outros eventos importantes ocorreram imediatamente
após a queda do Muro de Berlim, dando fim à Guerra Fria. Um deles aconteceu em
El Salvador, o maior beneficiário de auxílio militar dos Estados Unidos em todo
o mundo – com exceção de Israel e do Egito, uma categoria à parte – e um país
com os piores históricos de desrespeito aos direitos humanos já registrados no
planeta. Essa é uma correlação frequente e bastante estreita.
O alto comando salvadorenho deu ordens para que o
Batalhão Atlacatl invadisse a universidade jesuíta e assassinasse seis
destacados intelectuais latino-americanos, todos eles padres jesuítas,
incluindo o reitor, o teólogo e filósofo frei Ignacio Ellacuría e todas as
testemunhas, a saber, a governanta e a filha dela. O batalhão já havia deixado
um rastro sangrento de milhares de vítimas – as habituais – no decurso da
campanha de terror patrocinada pelos Estados Unidos em El Salvador, parte de
uma campanha mais ampla de terror e tortura em toda a região.[4]
Tudo rotina, tudo ignorado e praticamente esquecido pelos EUA e por seus
aliados – como sempre, rotina. Mas isso nos diz muita
coisa sobre os fatores que conduzem a política, se nos dermos ao trabalho de
observar o mundo real.
Outro evento importante se deu na Europa. O
presidente soviético Mikhail Gorbachev concordou em permitir a unificação da
Alemanha e a integração da Alemanha unificada como membro da OTAN, uma aliança
militar hostil. À luz da história recente, foi uma concessão espantosa. Houve
uma troca justa, um toma lá dá cá: o presidente Bush e o secretário de Estado
James Baker estavam de acordo que a OTAN não se expandiria “um centímetro que
fosse para o leste”, querendo dizer Alemanha Oriental. No mesmo instante, os
dois expandiram a OTAN Alemanha Oriental adentro.
Gorbachev ficou obviamente enfurecido, mas, quando
reclamou, Washington esclareceu que a coisa toda havia sido apenas um
compromisso verbal, um acordo de cavalheiros, portanto sem força alguma.[5] Se Gorbachev foi ingênuo o bastante a ponto de
acreditar na palavra de líderes norte-americanos, era problema dele.
Tudo isso também era rotina, bem como a silenciosa
aceitação e aprovação da expansão da OTAN nos Estados Unidos e no Ocidente em
geral. A seguir, o presidente Bill Clinton expandiu ainda mais a OTAN até as
fronteiras da Rússia. Hoje, o mundo encara uma grave crise, em larga medida um
resultado dessas políticas.”
4. Ver Noam Chomsky, Hopes and Prospects
(Chicago: Haymarket Books, 2010), capítulo 12.
“O fascínio de saquear os pobres
Outra fonte de provas são os registros históricos
dessegredados e disponibilizados ao conhecimento público. Eles contêm
explicações reveladoras dos reais motivos da política de Estado. A história é
farta e complexa, mas alguns temas persistentes desempenham o papel dominante.
Um deles foi articulado com clareza numa conferência para o hemisfério
Ocidental convocada pelos Estados Unidos e realizada no México em fevereiro de
1945, ocasião em que Washington impôs uma “Carta Econômica das Américas”, cujo
intuito era eliminar o nacionalismo econômico “em todas as suas formas”.[6] Havia uma condição tácita: o nacionalismo econômico
seria bom para os EUA, cuja economia depende pesadamente de uma substancial
intervenção do Estado.
A eliminação do
nacionalismo econômico para os outros entrou em nítido e acentuado conflito com
a posição latino-americana naquele momento, o que os funcionários do alto
escalão do Departamento de Estado descreveram como “a filosofia do Novo
Nacionalismo [que] adota políticas concebidas para ocasionar uma distribuição
mais ampla de riqueza e aumentar o padrão de vida das massas”.[7]
Como acrescentaram analistas políticos norte-americanos, “os latino-americanos
estão convencidos de que os primeiros beneficiários do desenvolvimento dos
recursos de um país devem ser o povo desse país”.[8]
Isso, é claro, não poderia acontecer. Washington
entende que os “primeiros beneficiários” devem ser os investidores
norte-americanos, enquanto cabe à América Latina cumprir sua função de oferecer
serviços e propiciar recursos. Como as administrações Truman e Eisenhower
deixariam bem claro, a América Latina não poderia passar por um
“desenvolvimento industrial excessivo” que talvez prejudicasse os interesses
dos EUA. Assim, o Brasil poderia produzir aço de baixa qualidade com o qual as
empresas norte-americanas não precisavam se incomodar, mas cuja produção seria
considerada “excessiva” caso viesse a concorrer com siderúrgicas
norte-americanas.
Preocupações semelhantes ressoaram ao longo do
período pós-Segunda Guerra Mundial. O sistema global que seria dominado pelos
Estados Unidos estava ameaçado por aquilo que documentos internos chamam de
“regimes radicais e nacionalistas” que responderam a pressões populares por
desenvolvimento independente.[9] Foi essa a preocupação
que motivou a derrubada dos governos parlamentaristas do Irã e da Guatemala em
1953 e 1954, bem como inúmeros outros golpes. No caso do Irã, uma das
principais preocupações foi o impacto potencial da independência iraniana sobre
o Egito, então em turbulência por causa das práticas coloniais britânicas. Na
Guatemala, além do crime cometido pela nova democracia ao dar poder à maioria
camponesa e as expropriações de latifúndios da United Fruit Company – o que por
si só já era suficientemente ofensivo –, o que inquietava Washington eram a
agitação dos trabalhadores e a mobilização popular em ditaduras vizinhas
apoiadas pelos EUA.
Em ambos os casos, as
consequências chegam até o presente. Literalmente, não se passou um dia desde
1953 sem que os Estados Unidos tivessem deixado de torturar o povo do Irã. A
Guatemala continua sendo uma das mais perversas câmaras de horror do mundo; até
hoje há maias fugindo dos efeitos das quase genocidas campanhas dos governos
militares no país, respaldadas pelo presidente Ronald Reagan e seus comandantes
do alto escalão. Como relatou em 2014 um médico guatemalteco, diretor da Oxfam
no país: “Está em curso uma drástica deterioração do contexto político, social
e econômico. Ataques contra defensores [dos direitos humanos] aumentaram em
300% no último ano. Há claras evidências de uma estratégia muito bem organizada
pelo setor privado e o Exército; ambos capturaram o governo a fim de manter o status
quo e impor o modelo econômico extrativista, expulsando dramaticamente os
povos nativos de suas próprias terras, ocupadas pela indústria de mineração e
por plantações de dendezeiros e cana-de-açúcar. Além disso, o movimento social
que defende as terras e os direitos dos nativos foi criminalizado, muitos
líderes estão presos e muitos outros foram assassinados”.[10]
Nada disso chega ao conhecimento das pessoas nos
Estados Unidos, e a causa óbvia desses fatos continua sendo abafada.
Na década de 1950, o presidente Eisenhower e o
secretário de Estado John Foster Dulles explicaram o dilema enfrentado pelos Estados
Unidos. Eles reclamaram do fato de que os comunistas contavam com uma vantagem
injusta: tinha a habilidade de “apelar diretamente às massas” e “obter o
controle dos movimentos de massa, coisa que nós não temos a capacidade de
reproduzir. É com os pobres que eles falam diretamente, e sempre quiseram
saquear os ricos”.[11]
Isso causa problemas. De uma forma ou de outra os
Estados Unidos, com sua doutrina segundo a qual os ricos devem saquear os
pobres, encontram dificuldades para falar diretamente aos pobres.”
6. “U.S. Economic and Industrial Proposals
Made at Inter-American Conference”, The New York Times, 26 de fevereiro
de 1945.
7. David Green, The
Containment of Latin America: A History of the Myths and Realities of the Good
Neighbor Policy (Nova York: Quadrangle Books, 1971), 175.
9. “United States
Objectives and Courses of Action with Respect to Latin America”, Foreign
Relations of the United States, 1952-1954, vol. IV, Documento 3, 18 de
março de 1953.
10. Luis Paiz a Noam Chomsky,
13 de junho de 2014, de posse do autor.
11. Dwight
Eisenhower, conforme citado por Richard Immerman em “Confession of an
Eisenhower Revisionist: An Agonizing Reappraisal”, Diplomatic History
14, nº 3 (verão de 1990); John Foster Dulles em telefonema a Alan Dulles,
“Minutes of Telephone Conversations of John Foster Dulles and Christian
Herter”, 19 de junho de 1958, Biblioteca Presidencial Dwight D. Eisenhower.
“Atrocidade
Praticamente todos os dias somos bombardeados por
notícias de crimes horríveis, mas alguns são tão hediondos, tão horrendos e
malignos que fazem com que todos os demais pareçam menores. Um desses raros
eventos ocorreu quando o voo MH17 da Malaysia Airlines foi derrubado no leste
da Ucrânia, matando 298 pessoas.
O Guardião da Virtude na Casa Branca condenou o
episódio como “uma atrocidade de proporções indescritíveis”, que ele atribuiu a
“apoio russo”.[1] Na ONU, a embaixadora dos EUA
denunciou, aos berros, que “quando 298 civis são mortos” na “horrível
derrubada” de um avião civil, “devemos trabalhar de forma irrefreável para
determinar quem são os responsáveis e levá-los à justiça”. Ela também conclamou
Vladimir Putin a acabar com seus vergonhosos esforços de se evadir de sua
claríssima responsabilidade.[2]
Verdade seja dita, aquele “homenzinho irritante”
com “cara de rato” – como Timothy Garton Ash o descreveu – tinha exigido uma
investigação independente, mas isso só poderia ter acontecido por causa das
sanções do único país suficientemente corajoso para impô-las, os Estados
Unidos.[3]
Na CNN, o ex-embaixador norte-americano na Ucrânia,
William Taylor, assegurou ao mundo que aquele homenzinho irritante é
“claramente responsável [...] pela derrubada dessa aeronave”.[4]
Durante semanas, as manchetes, matérias de capa e
principais reportagens noticiaram a agonia das famílias, a vida das vítimas
assassinadas, os esforços internacionais para reclamar os corpos e a fúria
suscitada pelo horrível crime que “chocou o mundo”, de acordo com o que a
imprensa veiculava diariamente, com profusão de detalhes, o criminoso desastre.
Toda pessoa alfabetizada, e todos os editores,
comentaristas e analistas deveriam instantaneamente ter recordado outro caso em
que um avião civil foi abatido com um número comparável de perda de vidas: o
voo 655 da Iran Air, em que morreram todas as 290 pessoas a bordo, entre elas
66 crianças; a aeronave foi derrubada em espaço aéreo iraniano, numa rota
comercial claramente identificada. O agente responsável sempre foi do
conhecimento de todos: um míssil guiado disparado pelo cruzador norte-americano
Vincennes, operando em águas iranianas no golfo Pérsico.
O comandante de uma embarcação norte-americana que
estava nos arredores, David Carlson, escreveu na revista do Instituto Naval dos
EUA, Proceedings, que “se surpreendeu, incrédulo” quando “o Vincennes
anunciou suas intenções” de atacar um alvo que era uma aeronave civil. Ele
especulou que o “cruzador robô”, como o Vincennes era chamado por causa
de seu comportamento agressivo, “sentiu necessidade de provar a viabilidade do
Aegis (o sofisticado sistema antiaéreo do cruzador) no golfo Pérsico, e que
estava ansioso por mostrar seu equipamento.[5]
Dois anos depois, o comandante do Vincennes
e o oficial encarregado do equipamento antiaéreo foram agraciados com a Legião
de Mérito por “conduta excepcionalmente meritória na execução de
extraordinários serviços” e pela “atmosfera calma e profissional” mantida
durante o período em que o avião de passageiros iraniano foi derrubado. A
destruição do avião não foi mencionada na cerimônia de entrega da comenda.[6]
O presidente Ronald Reagan culpou os iranianos pelo
desastre e defendeu as ações do navio de guerra, que “seguiu ordens padrão e
procedimentos amplamente divulgados, disparando para se proteger contra um
possível ataque”.[7] Seu sucessor, George H. W. Bush,
proclamou que “jamais pedirei desculpas pelos Estados Unidos – não me importo com os fatos. [...] Não sou o tipo de cara que
pede desculpas em nome dos EUA”.[8]
Nenhuma evasão de responsabilidade aqui, ao
contrário dos bárbaros do Leste.
À época, as reações foram mínimas: nenhum furor,
nenhuma busca desesperada por vítimas, nenhuma acusação veemente e apaixonada
dos responsáveis, nenhum lamento eloquente da embaixadora dos EUA na ONU sobre
a perda “imensa e pesarosa” quando o avião de passageiros foi derrubado. As
condenações iranianas foram esporadicamente mencionadas, mas logo descartadas
como “ataques de praxe contra os Estados Unidos”, conforme definiu Philip
Shenon no jornal The New York Times.[9]
Não é de surpreender, portanto, que esse
insignificante evento anterior tenha merecido apenas algumas escassas linhas na
mídia dos EUA durante o vasto furor por causa de um crime real, no qual o
demoníaco inimigo talvez estivesse diretamente envolvido.
Uma exceção foi o jornal londrino Daily Mail,
onde Dominic Lawson escreveu que, embora os “apologistas de Putin” talvez
pudessem trazer à baila o ataque ao avião da Iran Air, a comparação demonstra
os nossos altos valores morais em contraste com os dos miseráveis russos, que
tentam, com mentiras, eximir-se de sua responsabilidade no caso do MH17, ao
passo que Washington anunciou de imediato que o navio de guerra havia derrubado
a aeronave iraniana – de modo correto e moralmente justo.[10]
Qual evidência mais poderosa poderia haver da nossa nobreza e da perversidade
dos russos?
Sabemos por que ucranianos e russos estão em seus
próprios países, mas é o caso de se perguntar o que exatamente o Vincennes
estava fazendo em águas iranianas. A resposta é simples: a belonave estava
defendendo o grande amigo de Washington, Saddam Hussein, em sua assassina
agressão contra o Irã. Para as vítimas, a derrubada do avião não foi uma
questão rasa. Foi um fator de considerável peso na aceitação por parte do Irã
de que já não podia seguir lutando, de acordo com o historiador Dilip Hiro.[11]
Vale a pena lembrar a extensão da devoção de
Washington por seu amigo Saddam. Reagan retirou o nome de Saddam da lista de terroristas do Departamento de Estado, de modo que assim
fosse possível enviar ajuda para acelerar o ataque de Hussein ao Irã, e mais
tarde ambos negaram seus terríveis crimes contra os curdos, incluindo o uso de
armas químicas, e Reagan bloqueou a condenação por parte do Congresso a esses
crimes. Reagan também cedeu a Saddam um privilégio que só havia sido dado a
Israel: não houve reação relevante quando o Iraque atacou com mísseis Exocet o
USS Stark, matando 37 membros da tripulação, num caso muito parecido ao
que aconteceu quando o USS Liberty foi repetidamente atacado por jatos e
torpedeiros israelenses em 1967, matando 34 tripulantes.[12]
O sucessor de Reagan, George H. W. Bush, cedeu a
Saddam um amparo maior ainda, auxílio de que Hussein precisava após a guerra
contra o Irã, iniciada por ele. Bush também convidou engenheiros nucleares
iraquianos para passar uma temporada nos Estados Unidos a fim de receber
treinamento avançado em produção de armamentos. Em abril de 1990, Bush
despachou uma delegação de alto escalão do Senado, encabeçada por Bob Dole,
futuro candidato Republicano à presidência, para transmitir a seu amigo Saddam
as mais calorosas saudações e reassegurar que ele deveria desprezar as críticas
irresponsáveis da “imprensa arrogante e mimada”, e que os torpes canalhas desse
calibre haviam sido retirados da Voz da América.[13] A
adulação a Saddam continuou até que ele tornou-se um novo Hitler meses depois,
quando desobedeceu a ordens, ou talvez as tenha entendido mal, e invadiu o
Kuwait, com claras consequências que devo deixar de lado aqui.
Desde então, outros precedentes do MH17 foram
descartados como fatos sem importância e mandados para dentro do buraco da
memória: vejamos, por exemplo, o episódio do avião de passageiros líbio (voo
114 da Libyan Arab Airlines) que, em fevereiro de 1973, se perdeu numa
tempestade de areia e foi abatido por jatos israelenses fornecidos pelos EUA, a
dois minutos de chegar a seu destino, em sua rota regular de Trípoli ao Cairo.[14] Nessa ocasião, o número total de mortos foi de apenas
110. Israel culpou o capitão francês do avião líbio, com o endosso do jornal The
New York Times, que acrescentou que o ato israelense foi “na pior das
hipóteses [...] um ato de insensibilidade que nem mesmo
a selvageria das ações árabes prévias pode desculpar”.[15]
O incidente foi rapidamente ignorado nos Estados Unidos e passou em brancas
nuvens, com poucas críticas. Quando a primeira-ministra Golda Meir chegou a
Washington quatro dias depois, enfrentou algumas perguntas embaraçosas e voltou
para casa levando alguns novos presentinhos militares. A reação foi basicamente
a mesma quando a organização terrorista angolana favorita de Washington, a
União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) reivindicou ter
derrubado dois aviões civis.”
1. Katie Zezima, “Obama: Plane Crash in
Ukraine an ‘Outrage of Unspeakable Proportions’”, Washington Post, 18 de
julho de 2014.
2. “Explanation of
Vote by Ambassador Samantha Power, US Permanent Representative to the United
Nations, After a Vote on Security Council Resolution 2166 on the Downing of
Malaysian Airlines Flight 17 in Ukraine”, Missão dos Estados Unidos nas Nações
Unidas, 21 de julho de 2014, http://usun.state.gov/remarks/6109.
3. Timothy Garton
Ash, “Putin’s Deadly Doctrine”, Opinion, The New York Times, 18
de julho de 2014.
4. William Taylor, entrevista a Anderson
Cooper, CNN, 18 de julho de 2014, transcrição publicada em
http://www.cnn.com/TRANSCRIPTS/1407/18/acd.01.html.
5. United Press
International, “Vincennes Too Aggressive in Downing Jet, Officer Writes”, Los
Angeles Times, 2 de setembro de 1989.
6. David Evans,
“Vincennes Medals Cheapen Awards for Heroism”, Daily Press, 15 de abril
de 1990.
7. Ronald Reagan,
“Statement on the Destruction of an Iranian Jetliner by the United States Navy
over the Persian Gulf”, 3 de julho de 1988. Disponibilizado online por
Gerhard Peters e John T. Woolley, The American Presidency Project, http://www.presidency.ucsb.edu/ws/?pid=36080.
8. Michael Kinsley,
“Rally Round the Flag, Boys”, Time, 12 de setembro de 1988.
9. Philip Shenon,
“Iran’s Chief Links Aid to Better Ties”, The New York Times, 6 de julho
de 1990.
10. Dominic Lawson,
“Conspiracy Theories and the Useful Idiots Who Are Happy to Believe Putin’s
Lies”, Daily Mail (Londres), 20 de julho de 2014.
11. Dilip Hiro, The
Longest War: The Iran-Iraq Military Conflict (Nova York: Psychology Press,
1989).
12. John Crewdson,
“New Revelations in Attack on American Spy Ship”, Chicago Tribune, 2 de
outubro de 2007.
13. Miron Rezun, Saddam
Hussein’s Gulf Wars: Ambivalent Stakes in the Middle East (Westport:
Praeger, 1992), 58f.
14. Michael Omer-Man,
“This Week in History: IAF Shoots Down Libyan Flight 114”, Jerusalem Post,
25 de fevereiro de 2011.
15.
Edward W. Said e Christopher Hitchens, Blaming the Victims: Spurious
Scholarship and the Palestinian Question (Nova York: Verso, 2001), 133.
“Para a
Cisjordânia, a norma tem sido Israel prosseguir com a sua construção ilegal de
assentamentos e de infraestrutura, de modo que possa anexar e integrar tudo o
que tiver valor, ao passo que os palestinos recebem os cantões inviáveis e são
submetidos a intensa repressão e violência. Nos últimos catorze anos, a norma
tem sido Israel matar mais de duas crianças palestinas por semana. Um recente
episódio de violência israelense teve início em 12 de junho de 2014, quando
foram brutalmente assassinados três meninos israelenses de um assentamento
ocupado na Cisjordânia. Um mês antes, dois meninos palestinos haviam sido
mortos a tiros na cidade de Ramallah, na Cisjordânia. Isso despertou pouca
atenção, o que é compreensível, já que é rotineiro. “O desprezo
institucionalizado pela vida palestina no Ocidente ajuda a explicar não somente
por que os palestinos recorrem à violência”, segundo Mouin Rabbani, o
respeitado analista do Oriente Médio, “mas também o mais recente ataque de
Israel na Faixa de Gaza”.[21]”
21. Mouin Rabbani,
“Institutionalised Disregard for Palestinian Life”, blog LRB, 9 de julho de
2014.
“Se
alguma espécie extraterrestre estivesse compilando uma história do Homo
sapiens, poderia muito bem dividir o seu calendário em duas eras: AAN
(antes das armas nucleares) e EAN (era das armas nucleares). Esta última,
claro, teve início em 6 de agosto de 1945, o primeiro dia na contagem
regressiva para o que pode ser o inglório fim desta estranha espécie que teve
inteligência para descobrir os meios efetivos de destruir a si mesma, mas –
assim mostram as evidências – não capacidade moral e intelectual de controlar
seus piores instintos.”
“É importante ter em mente que os republicanos
abandonaram há muito tempo o fingimento de funcionar como um partido
parlamentar normal. Conforme observou o respeitado comentarista político
conservador Norman Ornstein, do direitista Instituto Empresarial
Norte-americano (American Enterprise Institute – AEI, na sigla em inglês), os
republicanos tornaram-se uma “insurgência radical” que mal e mal procura
participar da política normal no Congresso.[6] Desde os
dias do presidente Ronald Reagan, a liderança do partido mergulhou tão fundo
nos bolsos dos ricaços e do setor corporativo que só consegue atrair votos
mobilizando partes da população que anteriormente não foram arregimentadas em
forças políticas organizadas. Entre esses setores estão
os cristãos evangélicos extremistas, que hoje devem constituir a maioria dos
eleitores republicanos; remanescentes dos antigos estados escravagistas;
nativistas que estão aterrorizados com o fato de que “eles” estão roubando de
nós o nosso país, branco, cristão e anglo-saxão; e outros que transformam as
primárias republicanas em espetáculos distantes das tendências dominantes das
sociedades modernas – embora não do mainstream do país mais poderoso da
história mundial.”
6. Thomas E. Mann e Norman J. Ornstein,
“Finding the Common Good in an Era of Dysfunctional Governance”, Daedalus
142, nº 2 (primavera de 2013).
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