Editora: Paz e Terra
Tradução: Luiz Fernando Cardoso, Carlos Nelson Coutinho e Giseh Vianna Konder
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 198
“O presente estudo se insere num trabalho
filosófico mais amplo. Embora a erudição seja uma condição de todo pensamento
filosófico sério, não faremos aqui um estudo exaustivo nem um trabalho de
erudição pura. Filósofos e historiadores eruditos trabalham sem dúvida sobre os
mesmos fatos1, mas as perspectivas de que eles abordam esses fatos e
os fins que se propõem são totalmente diferentes.
O historiador erudito fica no plano do fenômeno empírico abstrato que ele se
esforça por conhecer nos mínimos detalhes, fazendo assim um trabalho não só
válido e útil, mas, ainda, indispensável ao historiador-filósofo, que quer, a
partir desses mesmos fenômenos empíricos
abstratos, chegar à sua essência
conceitual.
Assim os dois campos da pesquisa se
completam: a erudição fornecendo ao pensamento filosófico os conhecimentos
empíricos indispensáveis, o pensamento filosófico, por sua vez, orientando as
pesquisas eruditas e esclarecendo-as sobre a importância maior ou menor dos
múltiplos fatos que constituem a massa inesgotável dos dados individuais.
Infelizmente, a divisão do trabalho favorece
as ideologias e chega-se, muito frequentemente, a desconhecer a importância de
um ou outro desses dois aspectos da pesquisa: o historiador erudito crê que a
única coisa importante é o estabelecimento preciso de tal detalhe biográfico ou
filológico concernente à vida do escritor ou ao texto; o filósofo olha com
certo desdém os eruditos puros que amontoam os fatos sem levarem em conta sua
importância e sua significação.
Não vamos insistir nesses mal-entendidos.
Contentemo-nos em estabelecer que os
fatos empíricos isolados e abstratos são o único ponto de partida da pesquisa
e também que a possibilidade de compreendê-los e deles extrair as leis e a
significação é o único critério válido
para julgar o valor de um método ou de um sistema filosófico.”
1: Eles devem, bem entendido, uns e outros,
conhecer tudo que lhes seja possível, levando em conta o estado das pesquisas e
também do tempo e das forças de que dispõem.
3: A volta aos resultados conseguidos é sempre possível e mesmo provável
e frequente para o pensamento
racionalista ou empirista. Nem por isso é menos acidental e, em princípio,
evitável.
“O principal objeto de qualquer pensamento
filosófico é o homem, sua consciência e seu comportamento. Em última análise,
toda filosofia é uma antropologia.”
“Partindo do princípio fundamental do
pensamento dialético — isto é, do princípio de que o conhecimento dos fatos
empíricos permanece abstrato e superficial enquanto ele não foi concretizado
por sua integração ao único conjunto que permite ultrapassar o fenômeno parcial
e abstrato para chegar à sua essência
concreta, e, implicitamente, para chegar à sua significação — não cremos
que o pensamento e a obra de um autor possam ser compreendidos por si mesmos se
permanecermos no plano dos escritos e mesmo no plano das leituras e das
influências. O pensamento é apenas um aspecto parcial de uma realidade menos
abstrata: o homem vivo e inteiro. E este, por sua vez, é apenas um elemento do
conjunto que é o grupo social. Uma ideia, uma obra só recebe sua verdadeira
significação quando é integrada ao conjunto de uma vida e de um comportamento.
Além disso, acontece frequentemente que o comportamento que permite compreender
a obra não é o do autor, mas o de um grupo social (ao qual o autor pode não
pertencer) e sobretudo, quando se trata de obras importantes, o comportamento
de uma classe social.”
“O grande defeito da maior parte dos
trabalhos de psicologia foi o de tratar frequentemente o indivíduo como sujeito
absoluto e de considerar os outros homens nas suas relações com ele unicamente
como objeto de seu pensamento ou de sua ação. Era a posição atomista
comum ao Eu cartesiano ou fichteano, ao “Ego transcendental” dos
neokantianos e dos fenomenólogos, à estátua de Condillac* etc. Ora, esse
postulado implícito ou explícito da filosofia e da psicologia moderna não
dialéticas é simplesmente falso. Sua inexatidão se revela à mais simples
observação empírica. Quase nenhuma ação humana tem por sujeito um indivíduo
isolado. O sujeito da ação é um grupo, um “Nós”, mesmo se a estrutura
atual da sociedade, pelo fenômeno da reificação, tende a encobrir esse “Nós” e
a transformá-lo numa soma de várias individualidades distintas e fechadas umas
às outras. Há entre os homens uma outra relação possível além da relação de
sujeito a objeto ou da de Eu a Tu: é uma relação de comunidade que chamaremos o
“Nós”, expressão de uma ação comum sobre um objeto físico ou social.
É claro que na sociedade atual cada indivíduo
está engajado numa multiplicidade de ações comuns desse gênero, ações nas quais
o grupo sujeito não é idêntico e que, tomando todas essas ações uma importância
maior ou menor para o indivíduo, terão uma influência proporcional a esta
importância sobre o conjunto de sua consciência e de seu comportamento. Esses
grupos, sujeitos de ações comuns, podem ser associações econômicas, ou
profissionais, familiares, comunidades intelectuais ou religiosas, nacionais
etc. Tais grupos podem ser, enfim e sobretudo, os grupos que nos parecem —
pelas razões puramente positivas que expusemos em outro trabalho13 —
os mais importantes para a vida e a criação intelectual e artística: as classes
sociais. Essas classes são ligadas por um fundamento econômico que, até
hoje, tem uma importância primordial para a vida ideológica dos homens,
simplesmente porque os homens são obrigados a dedicar a maior parte de suas
preocupações e de suas atividades a garantir sua existência e quando se trata
das classes dominantes, à conservação de seus privilégios, à gerência e ao
aumento de sua fortuna.
Os indivíduos podem sem dúvida separar seu
pensamento e suas aspirações da atividade cotidiana deles; o fato fica
excluído, entretanto, quando se trata de grupos sociais.
Para o grupo, a concordância entre o
pensamento e o comportamento é rigorosa. A tese central do materialismo
histórico se limita a afirmar essa concordância e a exigir que se lhe dê um
conteúdo concreto até ao dia em que o homem chegará a se libertar de fato
no plano do comportamento cotidiano de sua submissão às necessidades
econômicas.
Nem todos os grupos fundados sobre os
interesses econômicos comuns, entretanto, constituem classes sociais. É preciso
ainda que esses interesses estejam orientados para uma transformação global da
estrutura social (ou, pelas classes “reacionárias”, para a manutenção global da
estrutura presente), e que eles se exprimam, assim, no plano ideológico, por
uma visão de conjunto do homem atual, de suas qualidades, de seus defeitos e
por ideal do que devem ser as relações do homem com os outros homens e com o
universo na humanidade futura.
Uma visão do mundo é precisamente esse
conjunto de aspirações, de sentimentos e de ideias que reúne os membros de um
grupo (mais frequentemente, de uma classe social) e os opõem aos outros grupos.
É, sem dúvida, uma esquematização, uma
extrapolação do historiador, mas a extrapolação de uma tendência real
entre os membros de um grupo no qual todos realizam esta consciência de classe
de uma maneira mais ou menos consciente e coerente. Dizemos mais ou menos,
porque se o indivíduo só raramente tem uma consciência verdadeiramente completa
da significação e da orientação de suas aspirações, de seus sentimentos, de seu
comportamento, nem por isso ele deixa de ter uma consciência relativa.
Só raramente, indivíduos excepcionais atingem, ou pelo menos quase atingem, a
coerência integral. Na medida em que chegam a exprimi-la, no plano conceitual
ou imaginativo, serão filósofos ou escritores; e suas obras serão tanto mais
importantes quanto mais se aproximarem da coerência esquemática de uma visão do
mundo, quer dizer do máximo de consciência possível do grupo
social que exprimem.
Essas poucas considerações já nos mostram em
que uma concepção dialética da vida social difere das concepções tradicionais
da psicologia e da filosofia.
Por um lado, o indivíduo não aparece mais
como um átomo, que se opõe, enquanto eu isolado, aos outros homens e ao
mundo físico e, por outro lado, a “consciência coletiva” não é mais uma
entidade estática supra-individual que se opõe do exterior aos indivíduos. A
consciência coletiva só existe nas consciências individuais, mas não é a soma
destas. O próprio termo, aliás, é infeliz e se presta à confusão; preferimos a
ele o de “consciência de grupo” acompanhado, sempre que possível, da sua
especificação: consciência familiar, profissional, nacional, consciência de
classe, etc. Esta última é a tendência comum dos sentimentos, aspirações
e pensamentos dos membros da classe, tendência que se desenvolve precisamente a
partir de uma situação econômica e social que engendra uma atividade da qual o
sujeito é a comunidade, real ou virtual, constituída pela classe social.”
* Para provar que da sensação derivam todas
as noções, Condillac imagina uma estátua de mármore, sem comunicação com o
mundo exterior, à qual se concedesse um único dos sentidos humanos: o do
olfato. A partir deste, segundo o filósofo francês, iriam aparecendo, em
seguida à sensação olfativa: a memória, 0 poder de comparar e ajuizar, a
vontade, etc. (N. da T.)
13: Ver Lucien Goldmann; Sciences Humaines et Philosophie, P. U.
F., 1952.
“O que é um pensamento filosófico?
Pode-se, com efeito, dar a essa expressão um
significado estreito: o de um discurso conceitual coerente e fechado.
Nesse caso sua extensão engloba grande número de sistemas gregos e certo número
de sistemas modernos situados mais ou menos entre Descartes e Hegel, mas exclui
os teóricos do misticismo, os pensadores orientais na medida em que eles buscam
uma sabedoria que ultrapassa o pensamento conceitual, a maioria dos pensadores
cristãos da Idade Média que subordinam o discurso conceitual à graça e à
revelação e, enfim, o pensamento materialista e dialético que o subordina à
ação.
A escolha das definições apresenta sem dúvida
um mínimo de arbitrariedade e é preciso evitar as discussões puramente
terminológicas.
Parece-nos, contudo, que essa definição é
muito estreita, pois ela deixa fora de sua esfera obras que, como a de Santo Tomás ou de Pascal, são altamente filosóficas1. Assim, preferimos outra
definição mais ampla, cuja esfera nos parece corresponder melhor ao que o senso
comum, bem como a maioria dos historiadores, designa sob o termo filosofia,
qual seja, a expressão conceitual mais ou menos coerente e consequente das
diferentes concepções do mundo que se sucederam no decorrer da História.
Essas filosofias podem — como é o caso do
racionalismo, do empirismo e mesmo, em última instância, da dialética hegeliana
— satisfazer-se inteiramente com a expressão conceitual, podem ser círculos
conceituais fechados, mas podem também proclamar, no próprio plano do
conceito, a insuficiência deste, sua autonomia relativa, seu caráter de
etapa em direção a qualquer coisa que o ultrapassa e completa, podem reclamar
que se avance através do conceito para a sabedoria, para o êxtase místico, para
a graça ou para a ação.
As duas definições são possíveis e é evidente
que, se adotarmos a primeira, a filosofia como tal se torna uma forma de
ideologia que um humanismo materialista e dialético pode apenas combater e
tentar ultrapassar, enquanto que, se adotarmos a segunda, pode haver fora das
filosofias do conceito e mesmo da consciência, não só filosofias da sabedoria
individual, do êxtase ou da graça sobrenatural, mas também uma filosofia
humanista e dialética da história e da ação.
1: Foi deliberadamente que escolhemos os
exemplos de Santo Tomás e de Pascal. O primeiro porque o tomismo afirma a
autonomia relativa do discurso conceitual e se afasta assim do filósofo que
fazia desse discurso um círculo fechado. Deste ângulo a relação
Aristóteles-Santo Tomás apresenta certas analogias com a relação Hegel-Marx. O segundo porque, como Marx, Pascal em certas fases de sua vida teria
certamente recusado com energia que o chamassem de filósofo. Embora nem por
isso o fosse menos.
Ora, nesse ponto, a resposta nos parece sem dúvida afirmativa. Sem
querer estabelecer uma lista exaustiva de exemplos, contentemo-nos em mencionar
alguns.
Entre os julgamentos de fato: a unidade entre o sujeito e o objeto no
terreno de todo conhecimento em geral e a identidade parcial ou total entre
sujeito e objeto quando se trata do conhecimento dos fatos humanos, o caráter
histórico e social de toda vida e manifestação humanas, o caráter dialético de
toda realidade individual ou coletiva, etc...
No plano dos julgamentos de valor, o humanismo materialista e dialético
retomou em grande parte os valores desenvolvidos pela burguesia do Iluminismo,
progressista e individualista, a liberdade e a felicidade e —
liberto dos limites ideológicos do racionalismo — colocou seriamente e de modo
radical apenas o problema de sua realização. Isso o leva, de um lado, a
desembaraçá-los do caráter excessivamente ético e racional que lhes havia
concedido o pensamento do Iluminismo e, por outro lado, a acrescentar-lhes como
fundamento e condição indispensável para sua realização um terceiro valor que
implica nos outros dois: a comunidade. Devemos precisar que, assim, o
humanismo materialista e dialético acrescentou, na perspectiva individual, aos
planos da razão e da experiência nas quais o pensamento — racionalista
ou empírico — do Iluminismo situava exclusivamente seus valores, o valor —
simultaneamente religioso e imanente — da esperança e da fé que
pressupõe a ação histórica. Além disso, pôs no centro de seu sistema
como uma de suas principais categorias — ao mesmo tempo teórica e prática,
inseparável da ideia de realização — o conceito da possibilidade
objetiva.
O humanismo materialista e dialético afirma assim como valor supremo a realização
histórica de uma comunidade humana autêntica que só pode existir
entre homens inteiramente livres, comunidade que pressupõe a supressão de
todos os entraves sociais, jurídicos e econômicos à liberdade individual, a
supressão das classes sociais e da exploração.”
“O humanismo materialista e dialético é uma
filosofia específica? Para sabê-lo é necessário indagar se as ideias
fundamentais se encontram num encadeamento idêntico ou semelhante em qualquer
uma das filosofias que o precederam.
Já sabemos que ele concebe o homem como um
ser social cuja natureza é agir em colaboração com outros homens para
transformar, por sua ação, o universo e a sociedade no sentido de uma crescente
dominação dos homens sobre o mundo físico, de uma comunidade cada vez mais
ampla e perfeita e de uma liberdade cada vez maior na vida social. É a
união desses quatro elementos — ação comum para realizar uma dominação
crescente sobre a natureza, uma comunidade autêntica e uma liberdade
integral — que encontramos em todos os grandes escritos que explicam a
ideia socialista do homem e — se não temos medo das palavras — da felicidade.
Há aí uma visão específica do homem e do
universo? Acreditamos que sim. Pois a afirmação da insuficiência do discurso
conceitual separa essa posição de todas as filosofias racionalistas ou
empíricas, a ideia de imanência histórica a separa de toda filosofia
cristã, seu caráter histórico, a importância primacial da ação e
também a comunidade como bem supremo a separam do spinozismo e, enfim, a perspectiva histórica do caminho que leva a esse bem
supremo a distingue do pensamento de Pascal e de Kant.”
“O valor de uma doutrina é medido por seu
caráter operativo, pela possibilidade que ela oferece de melhor compreender os
aspectos essenciais da vida humana e do universo.”
“A filosofia é uma tentativa de resposta
conceitual aos problemas humanos fundamentais tal como eles se apresentam
em certa época numa determinada sociedade. É preciso ainda acrescentar que
esses problemas são em número limitado e que a época e o país — isto é, as
circunstâncias sociais — determinam apenas:
a) aqueles que, num certo momento da história, passam
para o primeiro plano e assumem um lugar importante nas preocupações dos
pensadores;
b) os que, ao contrário, são relegados a segundo plano ou
mesmo desaparecem da consciência;
c) a forma concreta que esses problemas
fundamentais e gerais assumem num determinado instante e num determinado lugar.
Ao conjunto desses problemas há três espécies
de respostas importantes para a cultura humana:
a) as respostas conceituais e abstratas, a
filosofia;
b) as respostas sensíveis e concretas, a
arte1;
c) as respostas práticas, a ação.
E agora chegamos ao que nos parece
fundamental para a questão que tratamos. As respostas que um pensador dá aos
diferentes problemas com que depara não são independentes umas das outras e,
mais ainda, nem mesmo são independentes da maneira pela qual ele encara as
questões mais periféricas e subordinadas que inevitavelmente ele encontra em
seu caminho. Entre as maneiras de encarar as mais diferentes coisas, entre
as respostas que o pensador dá às questões mais afastadas, existe um vínculo
que faz do conjunto dessas respostas e dessas maneiras de ver uma totalidade,
ou, pelo contrário, um amontoado eclético de fragmentos esparsos. No
primeiro caso, esse pensamento é filosófico; no segundo não o é.
Dito isto, talvez possamos compreender melhor
a posição materialista. As novas concepções do mundo aparecem subitamente por
uma intuição de gênio. São necessárias transformações lentas e graduais na
antiga mentalidade para permitir à nova constituir-se e superá-la. Semelhantes
transformações não podem jamais ser obra de um só homem, pois as dificuldades
afetivas, lógicas e materiais que ele deveria superar ultrapassam em muito as
forças de um indivíduo isolado. É necessário um grande número de esforços
dirigidos no mesmo sentido e que às vezes se estendem através de várias
gerações. Numa palavra, é necessário haver uma corrente social e o filósofo
nada mais é que o primeiro homem a exprimir de modo mais ou menos consequente
essa nova concepção do mundo em face dos problemas fundamentais que se
apresentam aos homens dessa sociedade, o primeiro a constituir a nova visão
do mundo em totalidade no plano do pensamento conceitual.2
E agora podemos compreender também a
importância inegável, mas relativa, dos dois fatores acima mencionados — a
originalidade e a influência.
A originalidade é sem dúvida uma condição necessária,
mas não é suficiente. Descartes e Kant são filósofos. Os discípulos mais fiéis e os menos originais de
Descartes e de Kant têm sem dúvida um pensamento filosófico, sem serem, por
isso, filósofos eles próprios; inversamente, um pensador “original” não é
filósofo a menos que preencha a condição mencionada.
Quanto à influência, trata-se de um fenômeno social
que se explica exatamente pela definição que enunciamos para o pensamento
filosófico. Pois, se no momento da publicação da obra, um sem-número de
circunstâncias diversas — de resto também sociais — pode decidir de seu êxito e
sua celebridade, a longo prazo apenas as obras em que certas posições
fundamentais se acham expressas de maneira mais ou menos consequente, as
obras que desvendam ao leitor aquilo que ele há muito pensava “sem saber”, as
obras que lhe dão consciência das implicações de sua própria visão do mundo, só
essas podem manter através dos tempos sua influência e sua ação.
É por isso que, como já dissemos, fiando-se
na celebridade e na sobrevivência através dos tempos, os historiadores
racionalistas, empiristas ou ecléticos da filosofia puderam fazer, de modo
geral, pelo menos uma escolha precisa e aceitar em suas obras se não todos
(veja-se o caso de Marx, contra quem os preconceitos políticos ainda atuam),
pelo menos a maioria dos grandes pensadores do passado.”
1: É essa comunidade de problemas e às vezes
de respostas, em termos filosóficos, essa comunidade de visão do mundo, que
explica o parentesco que encontramos a cada época entre as obras dos grandes
artistas e as dos grandes pensadores. (Basta pensar nos pares:
Descartes-Corneille, Pascal-Racine, Kant-Schiller, Schelling-românticos
alemães, Hegel-Goethe).
Mas, é necessário repeti-lo, ao lado do
parentesco que a cada época une os pensamentos e as obras de arte, há também o
que os separa: o caráter conceitual e abstrato de uns, o caráter sensível
e abstrato de outras.
2: Poderiam acusar-nos — erradamente — de
abandonar o marxismo colocando a filosofia no plano do pensamento conceitual.
Marx escreveu; “Os filósofos contentaram-se em interpretar o mundo; é tempo de
transformá-lo”.
Seria realmente compreender muito mal o
pensamento de Marx. Exigir a unidade do pensamento e da ação não quer
absolutamente dizer que se nega o pensamento como tal, nem que se está pronto a
abrandar seu rigor. É em nome mesmo desse rigor que exige a unidade entre o
pensamento e a ação.”
“O problema é, de resto, muito complexo, pois
estando a filosofia numa posição intermediária entre a arte — que como ela
exprime uma certa visão do mundo — e a ciência — que, como ela, apresenta um
caráter teórico e conceitual — o critério da verdade reveste-se aí de
importância maior do que na história da primeira e menos exclusivo do que na da
outra.”
“Para o materialismo histórico, o elemento
essencial no estudo da criação literária reside no fato de que a literatura e a
filosofia são, em planos diferentes, expressões de uma visão do mundo e que
as visões do mundo não são fatos individuais, mas sim fatos sociais.
Uma visão do mundo é um ponto de vista coerente
e unitário sobre o conjunto da realidade. Ora, o pensamento dos
indivíduos — com pequenas exceções — é raramente coerente e unitário. Submetido
a uma infinidade de influências, sofrendo a ação não somente dos mais diversos
meios como também da constituição fisiológica no mais amplo sentido, o pensamento
e o modo de sentir dos indivíduos se aproximam sempre mais ou menos de uma
certa coerência, mas não a atingem senão excepcionalmente. Eis porque podem
muito bem existir cristãos marxistas, românticos que gostam das tragédias de
Racine, democratas que mantêm preconceitos raciais, etc. Não existe,
entretanto, verdadeira filosofia ou verdadeira arte que seja ao mesmo tempo
cristã e imanente, clássica e romântica, humanista e racista.”
“Toda realidade está sempre em mutação.”
“Ora, é certo que no decorrer dos trinta e
cinco anos que nos separam da grande obra de Lukács1, o mundo se
modificou profundamente e devemos indagar em que medida essas antigas análises
ainda se mantêm válidas para a nossa sociedade atual, a qual tentamos hoje
compreender.
E isso vale a fortiori para a obra
ainda mais antiga de Marx, que não é para nós uma Bíblia na qual buscamos
fórmulas sacrossantas, mas a expressão de um pensamento genial, de um dos mais
extraordinários esforços para compreender a realidade humana, expressão que, em
todo caso, é preciso conhecer, mas a partir da qual devemos tentar ir mais
longe, na medida em que isso seja possível e mesmo necessário.
Diz-se, com razão, que talvez sejamos anões
ao lado dos gigantes do passado; mas quando um anão sobe aos ombros de um
gigante ele pode enxergar mais longe do que este.”
1: GEORG LUKÁCS, Geschichte und
Klassenbetcustsein (História e consciência de
classe). Berlim, Malik-Verlag, 1923.
“Ora, se por ocasião de suas primeiras
manifestações o comércio abrangia apenas os bens excedentes e a troca só era
praticada dentro dos limites das comunidades, sabemos que logo depois o mercado
destruiu as antigas formas econômicas para apoderar-se da própria produção. No
início, o grupo produzia para seu próprio consumo e só intercambiava alguns
bens excedentes por outros que ele mesmo não podia produzir; ao final desta
evolução os grupos desapareceram como unidades econômicas e os indivíduos
passaram a produzir apenas para a venda.
É assim que a produção para o mercado (e sua
forma desenvolvida, a produção capitalista) não apenas contém em si a
possibilidade de uma economia universal, mas também representa um fator ativo
de dissolução de todas as antigas economias naturais1 que ela tende
a substituir.”
1: Empregamos essa expressão para designar,
em relação com a economia mercantil, todas as formas de organização econômica
envolvendo um organismo de planificação da produção e do consumo.
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