domingo, 26 de junho de 2022

A pequena fadette, de George Sand

Editora: Clube de Literatura Clássica

ISBN: 978-65-87036-22-9

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 360

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Sinopse: Nesta história, que se passa no interior da França, somos apresentados a Landry e Sylvinet, gêmeos idênticos na aparência e opostos no temperamento. A relação dos irmãos, até então inseparáveis, é abalada pela chegada de Fadette, menina pobre e desprezada que se apaixona por Landry e causa ciúmes em Sylvinet.




“Para os homens de ação que se ocupam pessoalmente da política, há, em toda decisão, em toda situação, uma febre de esperança ou de angústia, uma cólera ou uma alegria, a embriaguez do triunfo ou a indignação da derrota. Mas para o pobre poeta, como para a mulher ociosa, que contemplam os acontecimentos sem neles encontrar um interesse direto e pessoal, qualquer que seja o resultado da luta, há o horror profundo ao sangue derramado de uma parte e de outra, uma espécie de desespero à vista desse ódio, dessas injúrias, dessas ameaças, dessas calúnias que sobem aos céus como um holocausto impuro, após as convulsões sociais.

Nesses momentos, um gênio tempestuoso e poderoso como o de Dante escreve com suas lágrimas, com sua bile, com seus nervos, um poema terrível, um drama todo repleto de torturas e de gemidos. É preciso ter a têmpera dessa alma de ferro e de fogo para deter a imaginação sobre os horrores de um inferno simbólico, quando se tem diante dos olhos o doloroso purgatório da desolação sobre a terra. Em nossos dias, mais fraco e mais sensível, o artista, que é tão-somente o reflexo e o eco de uma geração bem parecida com ele, sente a necessidade imperiosa de desviar a vista e de distrair a imaginação, dirigindo-se a um ideal de calma, de inocência e de devaneio. É sua enfermidade que o faz agir assim, mas que ele não enrubesça por isso, pois isto também é seu dever. No tempo em que o mal vem do fato de os homens se ignorarem e se odiarem, a missão do artista é celebrar a brandura, a confiança, a amizade, lembrando assim aos homens empedernidos ou desalentados que os costumes puros, os sentimentos ternos e a igualdade primitiva são, ou podem ser, ainda deste mundo. As alusões diretas aos infortúnios presentes, o apelo às paixões que fermentam, não é este o caminho da salvação; mais vale uma doce canção, o som da flauta rústica, um conto para ninar as criancinhas sem pavor e sem sofrimento, que o espetáculo dos males reais reforçados e obscurecidos também pelas cores da ficção.” (Prefácio)

 

 

“— A natureza não mudou, prosseguiu meu amigo: a noite é sempre pura, as estrelas brilham sempre, e o tomilho selvagem sempre cheira bem.

— Mas os homens pioraram, e nós como os outros. Os bons se tornaram fracos; os fracos, medrosos; os medrosos, covardes; os generosos, temerários; os céticos, perversos; os egoístas, ferozes.

— E nós, disse ele, que éramos nós e o que nos tornamos?

— Éramos tristes, tornamo-nos infelizes, respondi-lhe.

Ele repreendeu meu desânimo e quis provar que as revoluções não são leitos de rosas. Eu o sabia muito bem e, da minha parte, isso não me preocupava; mas ele também quis provar que a escola da infelicidade era boa e desenvolvia forças que a calma termina por entorpecer. Não concordei com ele naquele momento; eu não podia aceitar tão facilmente os maus instintos, as más paixões e as más ações que as revoluções trazem à tona. Um pouco de embaraço e de aumento de trabalho pode ser bastante salutar para as pessoas de nossa condição, dizia-lhe eu; mas o aumento da miséria é a morte do pobre. Além disso, deixemos de lado o sofrimento material: há, na humanidade, neste momento, um sofrimento moral que nada pode trazer de bom. O mau sofre, e o sofrimento do mau é a raiva; o justo sofre, e o sofrimento do justo é o martírio, ao qual poucos homens sobrevivem.

— Estás então perdendo a fé? perguntou-me meu amigo, escandalizado.

— É o momento da minha vida em que, pelo contrário, mais tive fé no futuro das ideias, na bondade de Deus, nos destinos da revolução. Mas a fé se conta em séculos; e a ideia abrange o tempo e o espaço, sem fazer caso dos dias e horas; e nós, pobres humanos, contamos os instantes de nossa rápida passagem e saboreamos sua alegria ou amargura, sem podermos nos proibir de viver pelo coração e pelo pensamento com nossos contemporâneos. Quando eles se desorientam, nós nos inquietamos; quando se perdem, nos desesperamos; quando sofrem, não podemos ficar sossegados e felizes. A noite está bela, dizes, e as estrelas brilham. Sem dúvida, essa serenidade tanto dos céus quanto da terra é a imagem da imperecível verdade cuja fonte divina os homens não são capazes de esgotar nem turvar. Mas, enquanto contemplamos o éter e os astros, enquanto respiramos o perfume das plantas selvagens e a natureza canta à nossa volta seu eterno idílio, há gente sufocando, definhando, chorando, estertorando, expirando nas mansardas e masmorras. Jamais a raça humana fez ouvir um queixume mais surdo, rouco e ameaçador. Tudo isso passará, e o futuro nos pertence, eu sei; mas o presente nos dizima. Deus sempre reina; mas, neste momento, não governa.

— Faz um esforço para sair desse abatimento, disse-me meu amigo. Pensa em tua arte e trata de encontrar algum encanto para ti mesmo nos prazeres que ela te impõe.

— A arte é como a natureza, disse-lhe eu: é sempre bela. Ela é como Deus, que é sempre bom, mas há épocas em que ela se contenta em existir no estado de abstração, podendo se manifestar mais tarde, quando seus adeptos forem dignos. Então seu sopro reanimará as liras há muito emudecidas; mas poderá vibrar aquelas que se partiram na tempestade ? A está hoje em processo de decomposição para uma nova eclosão. Ela é como todas as coisas humanas em tempos de revolução, como as plantas que morrem no inverno para renascer na primavera. Mas o mau tempo faz muitos germes perecer. Que importância têm, na natureza, algumas flores ou alguns frutos a menos? Que importância têm, na humanidade, algumas vozes extintas, alguns corações congelados pela dor ou pela morte? Não, a arte não conseguiria me consolar do que a justiça e a verdade sofrem hoje na terra. A arte viverá bem sem nós. Esplêndida e imortal como a poesia, como a natureza, ela sorrirá sempre sobre nossas ruínas. Nós que atravessamos esses dias nefastos, antes de artistas, tratemos de ser homens; temos muito mais a lamentar do que o silêncio das musas.”

 

 

“Era bem verdade que ele era o mais sensível dos dois, fosse por ter um temperamento menos forte, fosse porque Deus, em sua lei da natureza, tivesse escrito que de duas pessoas que se amam, seja por amor, seja por amizade, houvesse sempre uma que devesse entregar seu coração mais do que a outra.”

 

 

“Então, Landry, tendo prometido fazer o seu melhor, foi para a lavoura, onde se portou bem e trabalhou bem todo o dia, e donde voltou com grande apetite; pois era a primeira vez que trabalhava tão arduamente, e um pouco de fadiga é um remédio infalível contra a tristeza.”

 

 

“Jamais se faz justiça quando se deixa consumir o próprio coração pelo ciúme.”

 

 

“Na roça, ninguém jamais é sábio sem ser um pouco bruxo.”

 

 

“Há quem seja feliz demais e não conheça sua sorte.”

 

 

“— Seus pais o ensinaram a ser ingrato, Landry, e esse é o pior defeito para um homem, depois de ser medroso.”

 

 

“— Não há tolice maior do que mostrar seu próprio sofrimento aos outros.”

 

 

“As mulheres têm o coração feito de modo que um rapaz começa a parecer homem assim que elas o veem estimado e mimado por outras mulheres.”

 

 

“O amor não espera, e, uma vez que se infiltra no sangue de dois jovens, é um milagre se ele aguarda a aprovação de outrem.”

 

 

“O bom deus só abandona aqueles que se abandonam a si mesmos, e aquele que tem coragem de dissimular a sua dor é mais forte contra ela que aquele que se queixa.”

 

 

“O ressentimento, nas mulheres, dura mais que a mágoa.”

 

 

“O mundo funciona da seguinte maneira, que quando duas ou três pessoas maltratam outra, todas as outras também se envolvem, atiram-lhe as pedras e lhe criam uma má reputação sem saber muito bem por quê, e como se fosse pelo prazer de esmagar quem não se pode defender.”

sábado, 25 de junho de 2022

Deuses americanos, de Neil Gaiman

Editora: Intrínseca

Opinião: ★★★☆☆

Tradução: Ana Ban

Páginas: 576

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Sinopse: Deuses americanos é, acima de tudo, um livro estranho. E foi essa estranheza que tornou o romance de Neil Gaiman, publicado pela primeira vez em 2001, um clássico imediato. Nesta nova edição, preferida do autor, o leitor encontrará capítulos revistos e ampliados, artigos, uma entrevista com Gaiman e um inspirado texto de introdução.

A saga de Deuses americanos é contada ao longo da jornada de Shadow Moon, um ex-presidiário de trinta e poucos anos que acabou de ser libertado e cujo único objetivo é voltar para casa e para a esposa, Laura. Os planos de Shadow se transformam em poeira quando ele descobre que Laura morreu em um acidente de carro. Sem lar, sem emprego e sem rumo, ele conhece Wednesday, um homem de olhar enigmático que está sempre com um sorriso no rosto, embora pareça nunca achar graça de nada.

Depois de apostas, brigas e um pouco de hidromel, Shadow aceita trabalhar para Wednesday e embarca em uma viagem tumultuada e reveladora por cidades inusitadas dos Estados Unidos, um país tão estranho para Shadow quanto para Gaiman. É nesses encontros e desencontros que o protagonista se depara com os deuses ― os antigos (que chegaram ao Novo Mundo junto dos imigrantes) e os modernos (o dinheiro, a televisão, a tecnologia, as drogas) ―, que estão se preparando para uma guerra que ninguém viu, mas que já começou. O motivo? O poder de não ser esquecido.

O que Gaiman constrói em Deuses americanos é um amálgama de múltiplas referências, uma mistura de road trip, fantasia e mistério ― um exemplo máximo da versatilidade e da prosa lúdica e ao mesmo tempo cortante de Neil Gaiman, que, ao falar sobre deuses, fala sobre todos nós.


 

“— Como foi o enterro? — perguntou.

— Terminou — disse Shadow.

— Quer conversar sobre isso?

— Não.

— Bom — Wednesday sorriu seu sorriso malicioso. — Há conversa demais hoje em dia. Blá-bla-blá. Este país estaria bem melhor se as pessoas aprendessem a sofrer em silêncio.”

 

 

“Uma voz precisa, presunçosa e exata, falava com ele, no sonho, mas Shadow não enxergava ninguém.

“Estes são deuses que foram esquecidos e que agora podem até mesmo estar mortos. Só podem ser encontrados em histórias áridas. Eles se foram, todos eles, mas seus nomes e suas imagens continuam entre nós.”

Shadow dobrou uma esquina e percebeu que tinha entrado em outra sala, ainda mais ampla que a primeira. Continuava além de onde os olhos podiam enxergar. Perto dele havia a caveira de um mamute, lustrada e marrom, e uma capa ocre peluda, vestida por uma mulherzinha com a mão esquerda deformada. Perto daquilo havia três mulheres — cada uma delas esculpida a partir da mesma rocha de granito — unidas pela cintura: seus rostos tinham uma aparência inacabada, precipitada, apesar de os seios e a genitália terem sido esculpidos com cuidado elaborado. Havia um pássaro que não podia voar, que Shadow não reconheceu: era duas vezes mais alto do que ele, com um bico parecido com o de um urubu, mas com braços humanos... E assim por diante.

A voz ecoou mais uma vez, como se estivesse falando com uma sala de aula:

“Esses são os deuses que já perderam a consciência da memória. Até mesmo seus nomes foram perdidos. As pessoas que os adoravam estão tão esquecidas quanto eles. Desde há muito tempo, seus totens foram quebrados e derrubados. Seus últimos sacerdotes morreram sem passar o segredo adiante. Deuses morrem. E, quando morrem de verdade, ninguém chora nem se lembra deles. As ideias são mais difíceis de matar do que as pessoas, mas também podem ser mortas, no fim.”

 

 

— Esse ó o único país no mundo — disse Wednesday, quebrando o silêncio, — que se preocupa com o que é.

— O quê?

— O resto sabe bem o que é. Ninguém nunca precisa sair procurando o coração da Noruega. Ou procurar a alma de Moçambique. Eles sabem o que são.”

 

 

— Quando as pessoas vieram pros Estados Unidos, elas nos trouxeram junto. Trouxeram eu, Loki e Thor, Anansi e o Deus-Leão, Leprechauns e Kobolds e Banshees, Kubera e Frau Holie e Ashtaroth, e trouxeram vocês. Viemos até aqui na cabeça dessa gente e criamos raízes. Viajamos com os colonizadores pró Novo Continente do outro lado do oceano. A terra é vasta. Mas o tempo passou e nosso povo nos abandonou, lembrando de nós apenas como criaturas do Velho Continente, como coisas que não tinham vindo com elas pró Novo. Quem acreditava verdadeiramente em nós morreu, ou parou de acreditar, e fomos abandonados, ficamos perdidos, assustados e sem posses, vivendo de migalhas de adoração e de crença que podíamos encontrar. E fomos sobrevivendo da melhor maneira possível. Então foi isso que fizemos, sobrevivemos à margem das coisas, onde ninguém prestava muita atenção em nós. Hoje temos, vamos admitir, pouca influencia. Fazemos das pessoas nossas presas, tiramos delas e sobrevivemos; nós nos despimos e nos prostituímos e bebemos demais. Pegamos gasolina, roubamos, trapaceamos e existimos nas fendas das margens da sociedade. Somos deuses antigos, aqui neste Novo Continente sem deuses.

Ele fez uma pausa. Encarou cada um de seus ouvintes, com gravidade e com jeito de político. Todos olhavam de volta para ele impassíveis, com rostos ilegíveis, que pareciam máscaras. Wednesday limpou a garganta e cuspiu com força no fogo. O cuspe reluziu e queimou, iluminando o interior do salão.

— Assim, como todos vocês tiveram oportunidade de descobrir sozinhos, existem novos deuses crescendo nos Estados Unidos, apoiando-se em laços cada vez maiores de crenças: deuses de cartão de crédito e de autoestrada, de internet e de telefone, de rádio, de hospital e de televisão, deuses de plástico, de bipe e de néon. Deuses orgulhosos, gordos e tolos, inchados por sua própria novidade e por sua própria importância. Eles sabem da nossa existência e tem medo de nós, e nos odeiam — disse Odin. — Vocês estão se enganando se acreditam que não. Eles vão nos destruir, se puderem. Ë hora de a gente se agrupar. E hora de agir.”

 

 

“Tudo que temos para acreditar ou não em algo são os sentidos, as ferramentas que usamos para perceber o mundo: nossa visão, nosso tato, nossa memória. Se os sentidos mentem para nós, então não dá para confiar em nada. E, mesmo se não acreditarmos, ainda assim não podemos tomar qualquer outro caminho além da estrada que os sentidos mostram; e é preciso percorrê-la até o fim.”

 

 

“A verdade é que você é o que pensam que você é.”

 

 

Quando eles saíram do Estado de Illinois, bem tarde naquela noite, Shadow fez a Wednesday sua primeira pergunta. Ele viu a placa de BEM-VINDO AO WISCONSIN e disse:

— Então, quem eram aqueles caras que me pegaram no estacionamento? O senhor Wood e o senhor Stone?

Os faróis do carro iluminavam a paisagem invernal. Wednesday avisou que eles não pegariam autoestradas porque não sabia para onde as autoestradas levavam, por isso iam rodar pelas estradinhas locais. Shadow não se importou. Ele nem tinha certeza se Wednesday era louco.

Wednesday deu um grunhido.

— Só uns agentes. Membros da oposição. Gente ruim.

— Eles acham que são gente boa.

— Claro que sim. Nunca aconteceu uma guerra entre dois lados que não se achavam corretos. As pessoas perigosas fazem o que querem somente e apenas porque acham que é o certo, sem sombra de dúvida. E é isso que as torna perigosas.

— E você? — perguntou Shadow. — Por que você faz o que faz?

— Porque eu quero fazer — disse Wednesday. Então, sorriu:

— Então está tudo certo.”

 

 

Sobrevoavam algum lugar do Nebraska tomando um café da manhã de avião nada impressionante, quando Shadow disse:

— Minha mulher.

— Aquela que já morreu.

— Laura. Ela não quer continuar morta. Ela me disse, depois que me libertou dos caras do trem.

— O ato de uma esposa maravilhosa. Libertar você da prisão vil e matar aqueles que o teriam machucado. Você deveria apreciá-la, sobrinho Ainsel.

— Ela quer ficar viva de verdade. Dá pra fazer isso? É possível? Wednesday ficou tanto tempo sem dizer nada que Shadow começou a se perguntar se ele escutara a pergunta ou se tinha caído no sono com os olhos abertos. Então disse, olhando para a frente, para o vazio:

— Sei um encanto que pode curar dor e doença, e que pode tirar o sofrimento do coração daqueles que sofrem. Sei um encanto que cura com um toque. Sei um encanto que faz as armas do inimigo se virarem pró outro lado. Sei outro encanto que me solta de todas as amarras e abre todas as fechaduras. Um quinto encanto: eu consigo pegar uma flecha no ar e não me machucar.

As palavras soavam pesadas, urgentes. O tom amedrontador não estava mais lá, o sorriso cínico também não. Wednesday falava como se recitasse as palavras de um ritual religioso, ou como se estivesse se lembrando de alguma coisa obscura e dolorida.

— Um sexto: feitiços feitos pra me machucar só vão machucar quem os enviou. Sétimo encanto que eu sei: posso apagar o fogo apenas olhando pra ele. Oitavo: se algum homem me odiar, eu consigo ganhar sua amizade. Nono: eu posso fazer o vento dormir com o meu canto e posso acalmar uma tempestade durante tempo suficiente pra levar um barco até a costa. Esses foram os primeiros nove encantos que eu aprendi. Durante nove noites eu fiquei pendurado na árvore nua, a lateral do meu corpo perfurada pela ponta de uma lança. Eu balançava de um lado pró outro e sacolejava aos ventos frios e aos ventos quentes, sem comida, sem água, um sacrifício de mim pra mim mesmo, e os mundos se abriram. Como décimo encanto, eu aprendi a dispersar bruxas e fazê-las rodopiar no céu de modo a nunca mais encontrarem seu caminho de volta às suas próprias portas. Décimo primeiro: se eu cantar quando uma batalha eclodir, posso fazer com que guerreiros passem pelo tumulto ilesos e intactos e posso trazê-los de volta a suas famílias e a seus lares sãos e salvos. Décimo segundo encanto que sei: se eu vir um homem enforcado, posso tirá-lo da forca pra que sussurre no nosso ouvido tudo de que consegue se lembrar. Décimo terceiro: se eu jogar água sobre a cabeça de uma criança, ela não vai sucumbir na batalha. Décimo quarto: sei os nomes de todos os deuses. De cada um dos malditos. Décimo quinto: sonho com poder, com glória, e com sabedoria, e eu posso fazer as pessoas acreditarem nos meus sonhos.

A voz dele estava tão baixa agora que Shadow precisava se esforçar para ouvi-lo por sobre o barulho do motor do avião.

— Décimo sexto encanto que sei: se preciso de amor, posso transformar a mente e o coração de qualquer mulher. Décimo sétimo: nenhuma mulher que eu desejo vai desejar alguém mais na vida. E eu ainda sei um décimo oitavo encanto, que é o maior de todos, e esse eu não posso contar pra nenhum homem, porque um segredo que ninguém mais além de você sabe é o segredo mais poderoso que pode existir.

Ele suspirou e então parou de falar.

Shadow sentia seus pelos se arrepiando. Era como se tivesse acabado de ver uma porta se abrindo para outro lugar, em algum lugar a muitos mundos de distância, onde homens enforcados balançavam ao vento em todas as encruzilhadas, onde bruxas guinchavam por cima das cabeças de todos no meio da noite.”

 

 

“Era um sonho, e em sonhos você não tem escolhas: não há decisões a serem tomadas, ou foram tomadas para você muito tempo antes de o sonho começar.”

 

 

Existem relatos que, se abrirmos nossos corações a eles, vão nos ferir muito profundamente. Olhe — aqui está um homem bom, bom de acordo com seu próprio ponto de vista e com o de seus amigos: é fiel e verdadeiro com sua esposa, adora e passa o maior tempo possível com seus filhinhos, preocupa-se com seu país, faz seu trabalho pontualmente, o melhor que pode. Então, com eficiência e boas intenções, extermina judeus: ele aprecia a música de fundo que toca para acalmá-los; adverte os judeus para que não esqueçam seus números de identificação quando vão para o banho — muitas pessoas, ele explica, esquecem seus números e pegam as roupas erradas quando saem do banho. Isso acalma os judeus. Haverá vida, eles se asseguram, depois do banho. Nosso homem supervisiona os detalhes de levar os corpos até os fornos; e, se há alguma coisa que faz com que ele se sinta mal, é ainda permitir que a exterminação da gentalha com gás o afete. Se fosse um homem verdadeiramente bom, ele sabe, não sentiria nada além de alegria por ver a terra livre de suas pestes.

Havia uma menina, e seu tio a vendera. Colocado assim, parece tão simples.

Nenhum homem, proclamou Donne, é uma ilha, e ele estava errado. Se nós não fôssemos ilhas, estaríamos perdidos, afogados nas tragédias dos outros. Nós nos isolamos (uma palavra que significa, literalmente, lembre-se, ser transformado em ilha) da tragédia dos outros por nossa natureza de ilha, e pelo desenho e pela forma repetitiva das histórias. O desenho não muda: havia um ser humano que nasceu, cresceu e então, por causa de uma coisa ou de outra, morreu. Pronto. É possível preencher as lacunas com base em sua própria experiência. Tão sem originalidade como qualquer outro conto, tão único como qualquer outra vida. Vidas são flocos de neve, formando figuras que já vimos antes, tão parecidos uns com os outros quanto ervilhas em uma vagem (e você já olhou para as ervilhas em uma vagem? Eu quero dizer, olhou mesmo para elas? Depois de um minuto de exame atento, não há chance de você confundir uma com a outra), mas, ainda assim, única.

Sem indivíduos, enxergamos apenas números: mil mortos, 100 mil mortos, “o número de vítimas pode chegar a um milhão”. Com histórias individuais, as estatísticas se transformam em pessoas — mas até isso é mentira, porque as pessoas continuam a sofrer em números que, por si só, são entorpecentes e sem sentido. Olhe, veja a barriga inchada do menino e as moscas que andam no canto dos olhos dele, seus membros esqueléticos: vai ajudar se você souber seu nome, idade, sonhos e medos? Se enxergá-lo por dentro? E, se ajudar, será que não estaremos prestando um desserviço à irmã dele, que está ali ao lado, estirada na poeira abrasadora, uma caricatura distorcida e inchada de uma criança humana? E daí, se lamentarmos por essas duas crianças, será que elas agora passarão a ser mais importantes para nós do que milhares de outras crianças atingidas pela mesma fome, milhares de outras vidas jovens e contorcidas que logo se transformarão em alimento para os mosquitos?

Nós desenhamos nossos limites ao redor desses momentos de dor... continuamos em nossas ilhas, e eles não podem nos ferir. Ficam escondidos sob uma cobertura nacarada, suave e segura para que escorreguem, como as ervilhas, de nossas almas sem que sintamos dor verdadeira.

A ficção nos permite deslizar para dentro dessas outras cabeças, para esses outros lugares, e olhar através de outros olhos. E então, no conto, paramos antes de morrer, ou morremos de forma indireta ou sem prejuízo e, no mundo além do conto, viramos a página ou fechamos o livro, e terminamos de viver nossa vida.

Uma vida que, como qualquer outra, é diferente de todas.”

 

 

O telefone de Shadow tocou.

— Fala.

— Isso não é jeito de atender o telefone — rosnou Wednesday.

— Quando ligarem meu telefone, atenderei com educação — disse Shadow. — Posso ajudar?

— Não sei — disse Wednesday. Fez uma pausa, então continuou:

— Organizar deuses é a mesma coisa que tentar mandar gatos fazerem filas retas. Não faz parte da natureza deles.

Havia um ar de morte e exaustão na voz de Wednesday, que Shadow nunca tinha ouvido antes.

— Qual é o problema?

— Está difícil. Está fodidamente difícil. Não sei se vai funcionar. A gente podia mesmo é cortar nossas próprias gargantas, só isso.

— Você não deve falar assim.

— É. Está certo.

— Bom, se você cortar sua própria garganta — disse Shadow, tentando animar Wednesday e deixá-lo menos sombrio — talvez nem doa.

— Doeria. Mesmo pró meu povo, a dor ainda machuca. Se você se movimenta e atua no mundo material, então o mundo material atua sobre você. A dor machuca, assim como a cobiça intoxica e a luxúria queima. Nós até podemos não morrer facilmente e, com tanta certeza quanto o inferno existe, não morremos bem, mas podemos morrer. Se ainda formos amados e lembrados, alguma coisa que se parece muito conosco chega e toma nosso lugar e a porra começa toda de novo. Mas, se formos esquecidos, é o nosso fim.

 

 

O carro ficou em silêncio, enquanto cruzava a ponte.

— Quem matou aqueles homens? — ela perguntou.

— Você não iria acreditar se eu contasse.

— Eu acreditaria.

Ela parecia brava agora. Ele se perguntou se tinha sido uma ideia sábia levar vinho para o jantar. A vida com certeza não era nenhum cabernet naquele momento.

— Não é fácil acreditar.

— Sou capaz de acreditar em qualquer coisa. Você não faz a mínima ideia das coisas em que eu posso acreditar.

— Mesmo?

— Posso acreditar em coisas que são verdade e posso acreditar em coisas que não são verdade. E posso acreditar em coisas que ninguém sabe se são verdade ou não. Posso acreditar no Papai Noel, no coelhinho da Páscoa, na Marilyn Monroe, nos Beatles, no Elvis e no Mister Ed. Ouça bem... Eu acredito que as pessoas evoluem, que o saber é infinito, que o mundo é comandado por cartéis secretos de banqueiros e que é visitado por alienígenas regularmente — uns legais, que se parecem com lêmures enrugados, e uns maldosos, que mutilam gado e querem nossa água e nossas mulheres. Acredito que o futuro é um saco e que é demais, e acredito que um dia a Mulher Búfalo Branco vai ficar preta e chutar o traseiro de todo mundo. Também acho que todos homens não passam de meninos crescidos com profundos problemas de comunicação e que o declínio da qualidade do sexo nos Estados Unidos coincide com o declínio dos cinemas drive-in de um Estado ao outro. Acredito que todos os políticos são canalhas sem princípios, mas ainda assim melhores do que as outras alternativas. Acho que a Califórnia vai afundar no mar quando o grande terremoto vier, ao mesmo tempo em que a Flórida vai se dissolver em loucura, em jacarés, em lixo tóxico. Acredito que sabonetes antibactericidas estão destruindo nossa resistência à sujeira e às doenças, de modo que algum dia todos seremos dizimados por uma gripe comum, como aconteceu com os marcianos em Guerra dos Mundos. Acredito que os melhores poetas do século passado foram Edith Sitwell e Don Marquis, que o jade é esperma de dragão seco, e que há milhares de anos em uma vida passada eu era uma xamã siberiana de um braço só. Acho que o destino da humanidade está escrito nas estrelas, que o gosto dos doces era mesmo melhor quando eu era criança, que aerodinamicamente é impossível pra uma abelha grande voar, que a luz é uma onda e uma partícula, que tem um gato em uma caixa em algum lugar que está vivo e que está morto ao mesmo tempo (apesar de que, se não abrirem a caixa algum dia e alimentarem o bicho, ele no fim vai ficar só morto de dois jeitos), e que existem estrelas no universo bilhões de anos mais velhas do que o próprio universo. Acredito em um deus pessoal que cuida de mim e se preocupa comigo e que supervisiona tudo que eu faço, em uma deusa impessoal que botou o universo em movimento e saiu fora pra ficar com as amigas dela e nem sabe que estou viva. Eu acredito em um universo vazio e sem deus, um universo com caos causal, um passado tumultuado e pura sorte cega. Acredito que qualquer pessoa que diz que o sexo é supervalorizado nunca fez direito, que qualquer um que diz saber o que está acontecendo pode mentir a respeito de coisas pequenas. Acredito na honestidade absoluta e em mentiras sociais sensatas. Acredito no direito das mulheres à escolha, no direito dos bebês de viver, que, ao mesmo tempo em que toda vida humana é sagrada, não tem nada de errado com a pena de morte se for possível confiar no sistema legal sem restrições, e que ninguém, a não ser um imbecil, confiaria no sistema legal. Acredito que a vida é um jogo, uma piada cruel e que a vida é o que acontece quando se está vivo e o melhor é relaxar e aproveitar.”

 

 

— Você precisa entender essa coisa de ser deus. Não é magia. E só ser você, mas aquele você em que as pessoas acreditam. É ser a essência concentrada e aumentada de si mesmo. É se transformar em trovão, ou no poder de um cavalo galopante, ou em sabedoria. Você absorve toda a f é e fica maior, mais legal, mais do que humano. Você cristaliza.

Ele fez uma pausa.

— Então, um dia esquecem que existe, não acreditam mais em você e não fazem mais sacrifícios... não se importam, e quando você percebe, está misturando cartas pra confundir quem passa na esquina da Broadway com a Rua 43.”

 

 

— Então eu morri — disse Shadow.

Ele estava se acostumando com a ideia.

— Ou vou morrer.

— Estamos a caminho do Salão dos Mortos. Eu pedi pra levar você até lá.

— Por quê?

— Você foi um bom trabalhador. Por que não?

— Porque... — Shadow colocava os pensamentos em ordem. — porque eu nunca acreditei em vocês. Porque eu não esperava isso. O que aconteceu com São Pedro e os portões do Paraíso?

A cabeça branca de bico comprido sacudiu de um lado para o outro, com gravidade.

— Não faz a mínima diferença se você acreditava em nós ou não... Nós acreditávamos em você.”

 

 

“— Eu me alimento de mortes que são dedicadas a mim.”

 

 

“As pessoas acreditavam, Shadow pensou. É isso que as pessoas fazem. Acreditam. E depois não se responsabilizam por suas crenças; fazem coisas aparecer e depois não acreditam nas aparições. As pessoas povoam a escuridão com fantasmas, deuses, elétrons e histórias. As pessoas imaginam e acreditam, e é essa crença, essa crença sólida como a pedra, que faz as coisas acontecerem.”

 

 

“Sentou-se em um morrinho gramado e olhou para a cidade que o rodeava, e pensou que um dia precisaria voltar para casa. Mas, primeiro, ele precisaria fazer uma casa para onde voltar. Ficou imaginando se o que se entende como “casa” era a coisa em que um lugar se transformava depois de um certo tempo ou se era uma coisa que se encontrava no final, se você simplesmente caminhasse, esperasse e desejasse aquilo por tempo bastante.”

Introdução ao fascismo (Parte III), de Leandro Konder

Editora: Expressão Popular

ISBN: 978-85-7743-118-2

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 184

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Sinopse: Ver Parte I


 

“Wilhelm Reich foi, nos anos de 1920, um pioneiro dos estudos voltados para uma síntese do marxismo e da psicanálise. Como militante político, participou das lutas que precederam a ascensão de Hitler ao poder e viu na derrota dos comunistas a confirmação de algumas das suas mais dolorosas apreensões: os marxistas tinham uma visão simplista do processo de estruturação da consciência e subestimavam a significação das influências dos fatores irracionais na conduta dos homens. Reich buscou em Freud os elementos de que precisava para corrigir as “insuficiências” de Marx. Marx, disse Reich, era sociólogo, e não psicólogo.103 Isso é compreensível, pois no tempo de Marx a psicologia ainda não havia alcançado um status de ciência, coisa que só viria a ocorrer com Freud, graças ao qual ela se transformou numa ciência natural.104 A psicologia de Freud, como ciência natural, com sua teoria do inconsciente, com sua concepção da libido, com sua interpretação do complexo de Édipo e com suas teses sobre as inibições, serviu a Reich para elaborar sua economia sexual, cujos fundamentos “sociológicos” viriam de Marx e cujos fundamentos “psicológicos” viriam de Freud.105

Insurgindo-se contra versões “economicistas”, empobrecedoras do marxismo, Reich teve o mérito de chamar a atenção para aspectos socioculturais importantes que os marxistas deixavam muitas vezes de lado quando se dispunham a analisar a difusão do fascismo. Reich fez observações interessantes, por exemplo, sobre as tradições educacionais fortemente repressivas da sociedade burguesa e sobre o papel que essa educação desempenhava na formação de indivíduos dóceis, recalcados, sem espírito crítico, fáceis de recrutar para as fileiras das organizações fascistas, onde lhes era proporcionada a chance compensadora de se “identificarem” com a personalidade enérgica do “chefe”. O sentido “antiautoritário” do pensamento de Reich assegurou-lhe grande interesse aos olhos dos estudantes rebelados de maio de 1968, na França.

Reich foi vítima de um equívoco de tipo neopositivista: ele buscou em Freud uma psicologia que, para poder ser “científica”, estava concebida como uma “ciência natural”. A visão do ser humano proporcionada por uma “ciência natural” limita-se necessariamente aos aspectos naturais e orgânicos da vida dos indivíduos, estorvando a compreensão daquilo que neles é essencialmente social. Ao contrário do que supunha Reich, Marx não era um mero sociólogo: era um filósofo que, por força de sua concepção peculiar da essência do ser humano, teorizava sobre a economia, sobre a história, sobre a sociedade, sobre a política. A concepção marxista do homem não pode ignorar o alcance dos fenômenos irracionais, provenientes da esfera biológica, nas elaborações da consciência, nos movimentos da ideologia; mas ela exige, também, que não percamos de vista a lógica que o social apresenta em sua manifestação política. Reich tinha uma compreensão deficiente do político. Fixando sua atenção na “patologia” das massas pequeno-burguesas alemãs e exagerando os efeitos que sobre elas produzia o símbolo da cruz gamada, Reich foi levado a desconhecer a extensão do papel desempenhado pelo capital financeiro. Sentindo-se isolado no interior do movimento socialista, Reich foi para os Estados Unidos e praticamente renunciou a toda e qualquer atividade política (especificamente política) significativa.106

103 Massenpsychologie des Faschismus, ed. Junius, Frankfurt, 1972, reprodução da edição Verlag für Sexual-politik, Copenhague, 1933, p. 43.

104 Idem, p. 44.

105 Idem, p. 47.

106 Freud, ao contrário de Reich, nunca teve experiência alguma no campo da atividade política. Sua ingenuidade política chegou ao ponto de ele ter dedicado um exemplar de um livro seu a Mussolini, no começo dos anos de 1930, homenageando os “serviços prestados à cultura” pelo ditador italiano (patrocinando escavações arqueológicas). A falta de experiência política explica que Freud tenha se interessado tão pouco pelo marxismo e tenha escrito tolices a respeito do pensamento de Marx e Engels. No final de sua vida, porém, o extraordinário cientista que era Freud parece ter se dado conta do seu equívoco. Ernst Jones, em sua documentada biografia do criador da psicanálise, transcreve uma carta de Freud (de 1937) na qual este diz: “Sei que os meus comentários sobre o marxismo não mostram nem um conhecimento profundo nem uma compreensão exata dos escritos de Marx e de Engels. Soube, mais tarde, com certa satisfação que nenhum dos dois negou a influência dos fatores do Ego e do Superego. Isso desfaz o principal contraste que eu julgava existir entre o marxismo e a psicanálise” (Vita e Opere di Freud, ed. Il Saggiatore, Milano, 1966, vol. 3, p. 408).

 

 

“Mais decisivamente ainda do que por Wilhelm Reich, os aspectos socioculturais importantes que os marxistas haviam subestimado na análise do fascismo em ascensão foram abordados pelos pensadores da chamada “Escola de Frankfurt”, especialmente por Max Horkheimer e por Theodor W. Adorno. Reich havia investido contra a educação burguesa, autoritária, repressiva; Adorno e Horkheimer dispuseram-se a examinar criticamente a estrutura familiar burguesa, patriarcal, elucidando a função que ela tinha tido na preparação de uma aceitação do fascismo por parte de muita gente.107

Mas os filósofos da “Escola de Frankfurt” não se limitaram à análise crítica do papel desempenhado pela estrutura familiar burguesa na formação dos quadros fascistas: promoveram, também, uma ampla discussão sobre os mecanismos de deformação ideológica acionados pela sociedade capitalista. Para desenvolverem suas interpretações dos fenômenos ligados a tais mecanismos, Adorno e Horkheimer (e, em certa medida, também Herbert Marcuse, Erich Fromm e outros) aproveitaram algumas ideias de Marx e alguns conceitos de um livro publicado por Lukács em 1923: História e consciência de classe.

Na economia política de Marx, esses filósofos se interessaram menos pela análise do processo de produção do que pelas observações relativas à esfera da circulação das mercadorias. Do primeiro volume de O capital, quase que só conservaram e aproveitaram o capítulo do “fetichismo da mercadoria”; História e consciência de classe, de Lukács, por outro lado, levou-os a um esforço apaixonado no sentido de elaborarem um pensamento radicalmente historicista, capaz de superar a aparência de coisa que a ideologia burguesa atribui às relações essencialmente dinâmicas dos seres humanos entre si (a reificação).108

Na época em que escreveu História e consciência de classe, Lukács vinha de algumas experiências políticas intensamente vividas, mas insuficientemente amplas, e além disso mal sedimentadas. Seus horizontes de comunista neófito estavam marcados por certo voluntarismo, que o levava a subestimar a força material dos obstáculos sociais com que a ação revolucionária precisava se defrontar. Seu pensamento carecia de um nervo materialista mais robusto e tendia a exagerar o papel do sujeito humano, atribuindo-lhe poderes quase miraculosos na transformação da sociedade e minimizando os recursos de que dispunham as classes empenhadas na resistência contra o socialismo. Uma assimilação precipitada da reabilitação da subjetividade e da iniciativa revolucionária, realizada por Lenin, na prática (desmoralizando os esquemas social-democratas, que levavam a uma atitude de espera passiva do amadurecimento das contradições sociais), levou Lukács a acolher ilusões idealistas (que Lenin soubera evitar).

Posteriormente, Lukács evoluiu. Ao longo dos anos de 1920, em estreita colaboração com Josef Landler, inteirou-se mais concretamente das condições reais da luta política revolucionária. No final dos anos de 1920, após uma visita clandestina à Hungria (sob o regime fascistizante do almirante Horthy), Lukács soube avaliar a situação do país com tal realismo que foi levado a propor uma linha de ação política que antecipava a linha do front populaire, mas sua proposta (consubstanciada nas chamadas “Teses de Blum”) foi derrotada. Até o final de sua vida, Lukács se manteve empenhado na luta política, embora muitas vezes se tenha visto marginalizado no interior do processo revolucionário.

No pós-guerra, quando já se iniciara a “guerra fria”, Lukács publicou um livro – A destruição da razão (1954) – no qual fazia um balanço implacável, por vezes excessivamente rude, mas a nosso ver substancialmente justo, do uso da filosofia irracionalista na preparação do terreno para o fascismo. Nessa época, Adorno e Horkheimer desenvolviam as teses que haviam exposto em A dialética do esclarecimento*, obra conjunta que haviam lançado em 1947. Para os dois pensadores da “Escola de Frankfurt”, as matrizes ideológicas do fascismo na consciência burguesa se encontravam não no irracionalismo e sim no neopositivismo, com sua capitulação diante do real, com seu pseudorracionalismo manipulatório. Na vida cultural de nossa época, Adorno e Horkheimer enxergavam quase que apenas os efeitos devastadores da manipulação dos indivíduos por parte da indústria cultural. As raízes dessa manipulação se acham tão profundamente cravadas no nosso tempo que afeta a própria classe operária e se estende inclusive à política das forças socialistas “tradicionais”, cujo “otimismo oficial” Adorno condena em Lukács.109

A retomada da lógica dialética hegeliana, em lugar de ajudar os marxistas “oficiais” a superarem as ilusões da consciência reificada, fortalece-as. Adorno inverte a tese hegeliana de que a verdade é o todo e sustenta que o todo é o falso.110 Lukács acusa-o, em 1963, de defender um “conformismo disfarçado de não conformismo”.111 Mas Adorno tinha, na época, bons argumentos para não se sentir atingido pela crítica: suas ideias, ao longo dos anos de 1960, vinham encontrando notável receptividade entre os estudantes rebeldes. Quando, em 1968, a contestação estudantil alcançou seu clímax em diversos países da Europa, o “marxismo ocidental” da “Escola de Frankfurt” parecia demonstrar a eficácia de seu não conformismo. Em breve, contudo, os acontecimentos desautorizavam semelhante interpretação: o teórico das potencialidades revolucionárias das explosões irracionais escandaliza-se com o comportamento politicamente irracional de alguns estudantes revoltados. Como reitor da Universidade de Frankfurt, o filósofo chega a pedir que a polícia intervenha, para pôr fim à “irracionalidade”, que se tornara insuportável. Lukács tripudiou: numa entrevista à revista Spiegel, observou que muitos estudantes tinham aprendido com Adorno a avaliar a extensão dos males da sociedade atual e, quando tais estudantes saíram às ruas para tentar derrubar a estrutura da sociedade, Adorno deixou de ter alguma coisa para lhes dizer.112

De fato, independentemente de muitas observações notavelmente argutas sobre as mazelas da “sociedade contemporânea” e sobre as tendências fascistas que ela necessariamente encerra, Adorno e Horkheimer – estorvados por um ceticismo elitista, de consequências políticas negativas – chegavam em suas análises a um determinado ponto a partir do qual não conseguiam mais ir adiante: o ponto onde a compreensão dos problemas passava a depender do reconhecimento da direção de sua possível solução.

107 Além dos artigos publicados sob a responsabilidade de Horkheimer em Autorität und Familie (ed. Alcan, Paris, 1936), há uma grande quantidade de material sobre o tema nas edições da Zeitschrift für Sozialforschung, ao longo dos anos de 1930.

108 No artigo que publicou em 1930 na revista Die Gesellschaft (Zum Problem der Dialektik), Herbert Marcuse defende História e consciência de classe contra as críticas que o filósofo social-democrata Siegfried Marck fizera ao livro (considerando-o “metafísico”); mas – sintomaticamente – admite que num ponto Marck tinha razão: ao afirmar a existência de uma “consciência de classe correta”, por oposição a uma “falsa”, Lukács teria deixado de ser um historicista radical coerente.

* Muito antenado ao que se produzia em outros países, Leandro Konder eventualmente traduz expressões e termos em suas obras que os tradutores viriam a popularizar academicamente no Brasil de outra forma. Em seu livro Hegel: a razão quase enlouquecida, Konder utiliza a expressão “ardil da razão” – que posteriormente veio a ser conhecida como “astúcia da razão”. No livro desta postagem, Konder traduz “Dialética do iluminismo” – o que de fato seria a tradução comum, mas o tradutor brasileiro preferiu “Dialética do esclarecimento”. A categoria “indústria cultural” é traduzida por Konder como “indústria da cultura”. Deixamos aqui as expressões na forma como normalmente são referidas academicamente, e não como Konder as escreveu na já longínqua década de 1970.

109 “Erpresste Versöhnung”, Der Monat, nov. 1958.

110 “Das Ganze ist das Unwahre”, escreve Adorno em Minima moralia, Frankfurt, 1962, p. 57.

111 No prefácio à nova edição de Die Theorie des Romans, Neuwied, 1963, p. 17.

112 Der Spiegel nº 17, de 1970.

 

 

“A ideia de procurar definir os traços de uma hipotética personalidade fascista pode servir de estímulo a úteis discussões sobre problemas educacionais do sistema capitalista, mas dificilmente nos levará a uma melhor compreensão da natureza do fascismo como movimento político.

O que caracterizaria, afinal, essa personalidade fascista? A íntima insegurança? O espírito aventureiro? O fascínio pela violência? O ódio?113

Na realidade, como expressão política de determinadas tendências sociais, o fascismo tem se expressado através da ação de personalidades individuais muito variadas. (...)

Se levarmos demasiadamente a sério o que esses personagens pensavam de si mesmos e procurarmos, a partir do que diziam, concluir algo sobre o sentido específico dos movimentos que cada um deles liderava, estaremos nos servindo de um método inadequado. O fascismo tem se servido de tipos humanos bastante diversos, desde tarados sexuais como Julius Streicher até zelosos funcionários que se limitavam a cumprir disciplinadamente os seus deveres (mesmo quando esses “deveres” consistiam na liquidação de três milhões de pessoas, como se viu no caso de Rudolf Hoess, comandante do campo de concentração de Auschwitz, executado em abril de 1947, que fez questão de deixar bem claro em seu testamento que nunca tinha sido “um homem de mau coração”).

As contradições e a complexidade psicológica dos indivíduos apresentam interesse secundário, quando se trata de avaliar a exata significação da política que punham em prática. Precisamente por ter chegado a se tornar um movimento de massas, o fascismo não pode deixar de ter mobilizado (e não pode deixar de continuar a mobilizar) gente de toda espécie. Fixar unilateralmente a atenção nos indivíduos é um modo de perder de vista o social. Um daqueles casos em que, como dizia Hegel, as árvores impedem de enxergar a floresta.

113 O psicanalista Bruno Bettelheim, recordando o período em que esteve internado como judeu num campo de concentração nazista e tentando explicar o fundamento da conduta dos SS, rejeita a interpretação que se baseia essencialmente no sadismo deles, com o argumento de que nunca vira um funcionário nazista “perder” seu tempo livre maltratando prisioneiros quando não estava de serviço (Cf. The informed heart).

 

 

“Na origem das apreensões com que são registradas as pressões políticas empenhadas em uma radicalização dos deslocamentos para a direita, acha-se a consciência de que a amplitude com que tais pressões se manifestam não é casual: corresponde à profundidade das exigências dos setores mais reacionários do capital financeiro, aqueles mesmos setores que em última análise promoveram o fascismo “clássico” e que, nas condições atuais do sistema imperialista, continuam a necessitar de uma política tendencialmente fascista para defender o capitalismo monopolista de Estado.

Quando John Maynard Keynes se insurgiu contra a ideologia do “capitalismo liberal”, em 1926, e preconizou uma “nova mentalidade” que levasse os capitalistas a encarar os problemas de uma “ação social” em lugar de se encastelarem no otimismo ingênuo do “laissez-faire”, ele ainda encontrou pouco eco, embora a guerra de 1914-1918 já tivesse mostrado na prática que – para usar palavras do próprio Keynes – havia uma mudança no ar.122 E quando numerosos defensores do sistema capitalista se sentiram perplexos e angustiados ante a crise de 1929, o conservadorismo inteligente de Keynes levou-o a sustentar que se tratava apenas de uma crise de transição, da passagem de um período a outro na evolução natural do capitalismo. Ele escreveu: “Não estamos sofrendo de reumatismo decorrente da velhice e sim das dores-de-crescimento de mudanças demasiado rápidas, do reajustamento doloroso entre um período econômico e o outro”.123

Keynes se abstinha explicitamente de atribuir qualidade moral ao sistema capitalista. O comunismo, que ele encarava como uma religião nova e que causava acentuada repugnância à sua sensibilidade de lorde,124 parecia-lhe ter sobre o capitalismo certas vantagens morais inegáveis, levando os cidadãos a encararem mais seriamente os problemas da comunidade. Para compensar as desvantagens morais, o capitalismo precisava mostrar uma esmagadora superioridade no terreno da eficiência econômica: “O capitalismo moderno é absolutamente irreligioso, sem união interna, sem muito espírito público (...) Tal sistema precisa ser imensamente – e não apenas moderadamente – bem sucedido para sobreviver.”125 Keynes dedicou-se a fundo ao esforço de esclarecer as direções que o capitalismo precisaria seguir, em sua autorrenovação, para alcançar a indispensável eficiência econômica. Os problemas colocados por semelhante autorrenovação eram reconhecidamente delicados; sua solução dependeria de uma direção política forte e razoável, cujo discernimento e cabeça fria precisavam ser protegidos contra as pressões democráticas dos eleitores “ignorantes”: “Acredito que a solução correta envolverá elementos intelectuais e científicos que precisam achar-se acima das cabeças da vasta massa de eleitores mais ou menos analfabetos” (“I believe that the right solution will involve intellectual and scientific elements which must be above the heads of the vast mass of more or less illiterate voters”).126

Keynes enxergou claramente a ligação profunda entre a necessária intervenção crescente do Estado capitalista na economia e a política necessariamente antidemocrática que deveria preservar a ação estatal contra “interferências” populares. E essa ligação ainda aparece mais nitidamente descrita no estudo que Hobson publicou em 1938 sobre o imperialismo: “Uma democracia política na qual os interesses e a vontade de todo o povo controlassem os poderes do conjunto do Estado se oporia ativamente ao processo global do imperialismo. Semelhante democracia aprendeu agora a lição de que a igualdade econômica substancial na renda e na propriedade é essencial para ela funcionar. Por isso, a defesa do capitalismo está ligada, em cada país, à destruição ou ao enfraquecimento das liberdades públicas e do governo representativo” (“A political democracy in which the interests and will of the whole people wield the powers of the whole state will actively oppose the whole process of imperialism. Such a democracy has now learned the lesson that substantial economic equality in income and ownership of property is essential to its operation. The defense of capitalism is, therefore, bound up in every country with the destruction or enfeeblement of the public franchise and representative government”).127

122 The end of Laissez-Faire, ed. Hogarth, London, 1926: “Sugerir ação social para o bem público à City de Londres é como discutir a Origem das espécies com um bispo há 60 anos atrás. A primeira reação não é intelectual e sim moral. Uma ortodoxia está em questão: e quanto mais convincentes são os argumentos tanto maior é a ofensa” (p. 38). Cf. também p. 5: “a change is in the air”.

123 “Economic possibilities for our grandchildren”, 1930. In: Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. IX (Essays in Persuasion), ed. Macmillan, London, 1972, p. 321.

124 Depois de ter visitado a União Soviética, Keynes escreveu, em 1925: “Como posso adotar um credo que prefere a lama ao peixe, que exalta o proletariado grosseiro, colocando-o acima do burguês e da intelligentsia, os quais, quaisquer que sejam seus erros, são a qualidade na vida e representam seguramente as sementes de todo e qualquer avanço humano?” (Collected Writings... vol. IX, op. cit., p. 258).

125 Collected Writings... vol. IX, op. cit., p. 267, Keynes ainda continua, na página seguinte, a discorrer sobre o capitalismo, dizendo: “Como um meio, ele é tolerável; como fim, não é tão satisfatório assim. Começa-se a se perguntar se as vantagens materiais de manter a atividade dos negócios e a religião em compartimentos diferentes são vantagens suficientes para compensar as desvantagens morais”.

126 “Am I a liberal?” (1925), em Collected Writings... vol. IX, op. cit., p. 295.

127 Imperialism, J. A. Hobson, London, 1938, p. 21 (introdução).

 

 

“Togliatti, em 1935, já advertia: “É preciso não considerar o fascismo como qualquer coisa de definitivamente caracterizado, é preciso considerá-lo no seu desenvolvimento, nunca como algo fixo, nunca como um esquema ou como um modelo” (“Non bisogna considerare il fascismo come qualche cosa di definitivamente caratterizzado, [...] bisogna considerarlo nel suo sviluppo, mai fisso, mai come uno schema, come modello”).130

130 Lezioni sul fascismo, ed. Riuniti, Roma, 1974, p. 37.

 

 

“Privado de grandes respiradouros bélicos, o fascismo evolui contrafeito, caminha com dificuldade. Mas o sistema se recusa a deixá-lo morrer, porque precisa dele: dá-lhe injeções, reanima-o, sugere-lhe sucedâneos para os alimentos que lhe faltam, guerras “localizadas”, guerras “intestinas”, “agressões internas” etc. Se não é possível vendê-lo por atacado, tenta-se vendê-lo no varejo, a prestações.

Os mitos racistas e o antissemitismo estão desgastados, mas a “demonização” do socialismo continua a funcionar com excepcional eficácia. Políticos que nunca leram Hitler nem Mussolini falam do socialismo como uma força essencialmente antinacional, que deve ser implacavelmente combatida e aniquilada em nome da grandeza da nação, servindo-se quase que textualmente de expressões caras aos dois ditadores.

As condições atuais da luta não animam o capital financeiro a correr o risco de apoiar partidos de massa, capazes de empunhar bandeiras com cruzes suásticas nas ruas: é preferível tentar manipular a “maioria silenciosa”, que fica discretamente em casa, entregue ao consumo da Coca-Cola e da televisão. Novos padrões de conduta política passam a ser inculcados sob a capa de atitudes “não políticas”.

As circunstâncias exigem dos fascistas que eles sejam mais prudentes e mais discretos do que desejariam. Pragmaticamente, adaptam-se às exigências dos novos tempos. Mas continuam a trabalhar, infatigavelmente, preparando-se para tempos “melhores”, que lhes permitam maior desenvoltura.

Tal como no conto A colônia penal, de Franz Kafka. O comandante da colônia, que tinha instalado nela um regime de tipo fascista, morrera e fora enterrado nos fundos de uma taverna, embaixo de uma mesa. Com sua morte, o fascismo tinha sofrido uma grave derrota, na penitenciária. Mas sobre o seu túmulo foi colocada uma lápide com a seguinte inscrição:

Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, cujos nomes por ora devem permanecer secretos, dedicaram-lhe esta pedra tumular. Dentro de alguns anos, quando seus adeptos forem mais numerosos, ele voltará a se erguer e reconquistará a colônia. Tende fé e esperai.