quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Hegel e a liberdade dos modernos (Parte III), de Domenico Losurdo

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-709-5
Tradução: Diego Silveira Coelho Ferreira e Ana Maria Chiarini
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 472
Sinopse: Ver Parte I

8. Revolução Francesa e celebração do ético
O neoaristotelismo conservador acredita poder fazer referência a Hegel, mas, na verdade, se associa a Burke, o implacável inimigo da Revolução Francesa, à qual, por sua vez, faz referência, em primeiro lugar, o páthos hegeliano da eticidade e da comunidade política. A celebração da política, em contraposição a uma moralidade meramente individual, constitui um momento essencial da preparação ideológica da Revolução Francesa. É um tema encontrado em Rousseau, que se dá conta de que “tudo depende radicalmente da política”, de modo que os “vícios pertencem não tanto ao homem quanto ao homem mal governado “[41].
Em termos análogos se exprime Helvétius, que, após considerar “os diferentes vícios das nações como consequências necessárias das diversas formas de governo, ressalta que a mudança decisiva é aquela que concerne à “legislação”, razão pela qual, em última análise, “a moral não é mais que uma ciência frívola se não a fundirmos com a política e a legislação”[42]. Ou ainda, citando Rousseau: “Aqueles que quiserem tratar separadamente da política e da moral nunca entenderão nada de ambas”[43]. Por sua vez, D’Holbach acredita que a moral pode demonstrar eficácia enquanto se unir com a política e, para expressar tal necessária “união entre a Moral e a Política”, o filósofo iluminista cunha, a partir do grego, o termo ethocratie[44], que faz pensar um tanto vagamente na hegeliana Sittlichkeit. O clima cultural que antecede a eclosão da Revolução Francesa encontra sua expressão mais clara talvez no abade de Saint-Pierre, que, em sua autobiografia, falando de si mesmo em terceira pessoa, escreve:
Ele se deu conta de que a maior parte da felicidade e da infelicidade provinha das boas e das más leis [...]. Essa reflexão, que se apresentava amiúde ao seu espírito, o persuadiu de que a moral não era a ciência mais importante para a felicidade dos homens, mas que era a política ou a ciência do governo e que uma lei sábia era capaz de tornar feliz um número de homens incomparavelmente maior do que cem bons tratados de moral. Assim, com o propósito de se tornar útil para a sociedade, ele abandonou o estudo da moral por aquele da política.[45]
Às vésperas da Revolução, é a configuração objetiva das instituições políticas que se coloca no centro das atenções.
Pode-se, então, compreender o real significado da insistência de Hegel no fato de que, no que diz respeito à miséria que se alastra na Irlanda, não se trata de recorrer apenas ao “meio moral das queixas, das exortações, das associações de indivíduos isolados”, mas, em primeiro lugar, à “mudança das instituições”, de “leis e relações” (B. Schr., p. 466 e 479). Os apelos morais fazem pouco sentido ou são pouco relevantes, pois não está em questão a “culpa deste ou daquele indivíduo”; a tônica deve ser colocada na “mudança da situação geral” (Änderung des allgemeinen Zustands) (Rph., 57 AL; V. Rph., II, p. 243), isto é, na transformação política.
No mesmo Kant, é possível perceber um deslocamento dessa tônica após a Revolução Francesa e as esperanças que esta suscitou. Em Fundamentação da metafísica dos costumes, “não é concebível nada de incondicionalmente bom para além de uma vontade boa”, que deve ser considerada e apreciada independentemente de sua “capacidade de alcançar os fins a que se propõe”[46]. Depois de 1789, leem-se declarações que parecem teorizar a centralidade da política também em relação à moral: não é desta última que “podemos esperar a boa constituição do Estado”; “é, sobretudo, a partir de uma boa constituição do Estado que se deve esperar a boa educação moral de um povo”[47]. Confiando apenas na moral, “não se faz coisa alguma” (ist nichts auszurichten)[48].
Claro, Kant nunca foi o filósofo de uma moral edificante e politicamente inócua. A “vontade boa” não deve ser confundida com um voluntarismo inerte, pois, para ser verdadeiramente tal, esta deve “recorrer a todos os meios que estão em nosso poder”[49]. Já por ser construída sobre a categoria de universalidade, a moral kantiana revela precisas implicações políticas, capazes de questionar o ordenamento político existente (infra, cap. XIII, § 1). Não por acaso, já muitos anos antes da Revolução Francesa, o filósofo afirmava: “Sempre se fala muito de virtude. No entanto, deve-se preliminarmente suprimir a injustiça para que se possa ser virtuoso [...]. Toda virtude é impossível sem essa decisão”[50]. Entretanto, é indubitável que, ao defender a Revolução Francesa, Kant é obrigado a polemizar com o clássico argumento da ideologia da conservação que visava a desvalorizar a importância da transformação objetiva das instituições políticas frente à mudança moral in interiore homine. É justamente essa ideologia que contrapõe a “boa vontade” do monarca à precisa determinação política de suas “obrigações jurídicas” reivindicada pelo movimento revolucionário e constitucional[51]. É tal ideologia conservadora que nega a possibilidade de uma “Constituição republicana” pelo fato de que seu funcionamento pressuporia um povo de grandes qualidades morais e até de “anjos”. É significativa a resposta de Kant: o “homem moralmente bom”, a “interioridade moral” (das Innere der Moralität), não é o pressuposto necessário de uma boa “constituição de um Estado”; aliás, tal problema “é solucionável, por mais que a expressão possa parecer dura, também por um povo de diabos, contanto que sejam dotados de inteligência”[52]. Se a ideologia conservadora, para negar a necessidade e a utilidade da mudança político-institucional, é levada a deslocar a atenção da esfera política para a esfera da interioridade moral (do monarca ou de seus súditos), Kant, a fim de defender a Revolução Francesa e justificar a necessidade da “constituição republicana”, não pode não colocar a tônica na política, aproximando-se, assim, da teorização do primado da política.
Quando, mais tarde, Rosenkranz afirma que “não vivemos mais com Kant no século do roi-philosophe, mas com Hegel no século da política”[53], certamente ele tem razão no que se refere a Hegel, que, não por acaso, recorda a afirmação de Napoleão, durante seu encontro com Goethe, de que “no lugar do antigo destino apresentou-se a política” (W., XII, p. 339), mas talvez peque ao considerar apenas o Kant anterior à eclosão da Revolução Francesa. Quanto a seus escritos posteriores, nota-se certa consonância com Hegel. À paz perpétua sublinha a irrelevância política das qualidades morais do monarca: o ótimo Marco Aurélio tem como sucessor o indigno Cômodo; isso não teria acontecido se houvesse uma válida “Constituição” (Staatsverfassung), que, portanto, é mais relevante no plano político do que as qualidades morais do monarca[54]. O mesmo exemplo retorna em Hegel: sim, Marco Aurélio
soube se comportar também na vida privada como homem nobre e honesto. Porém, esse imperador filósofo não pôde mudar as condições do Império Romano, e nada impediu que seu sucessor, de caráter completamente diferente, fizesse todo o mal que puderam fazer seu arbítrio e sua maldade. Bem superior é o princípio interno do espírito, da vontade racional, que consegue realizar-se de modo que passe a existir uma vida pública governada pela razão, uma condição fundamentada no direito e na organização [...]. Então, temos um sistema de relações éticas; as obrigações (Pflichten) que vêm à tona são parte de um sistema; toda determinação está em seu lugar, cada uma subordinada a outra, e aquela superior domina. Acontece, então, que a consciência moral (Gewissen) [...] é vinculada, que as relações objetivas, que denominamos obrigações, não só se detêm no plano jurídico, como valem na consciência moral como sólidas determinações. (W., XIX, p. 294-5)

9. Moralidade, eticidade e liberdade moderna
Isso não significa que a moral tenha perdido seu trono: a subjetividade moral é parte integrante do “direito à liberdade subjetiva”, que, por sua vez, é parte integrante e irrenunciável da eticidade moderna. Nesse sentido, “moralidade” e “consciência moral” constituem o princípio da sociedade civil”, são “momentos da constituição política” (Rph., § 124 A). Não estamos, portanto, na presença de uma desvalorização da moralidade. Aliás, a opinião que Hegel tem sobre ela é tão elevada que Filosofia do direito equipara à escravidão a “alienação da racionalidade inteligente, da moralidade, da eticidade, da religião” (Rph., 66 A).
Justamente por isso, fica clara a mudança de estatuto que a moral conhece em Hegel. Não se trata mais de um conjunto de valores eternos; a moral tem uma história que se identifica com a história mesma da liberdade moderna. Não por acaso, o princípio de “infinita subjetividade e liberdade da autoconsciência” se vê face a face, pela primeira vez, com Sócrates (W., XVIII, p. 442), que, logo, não deve ser considerado mestre da moral” (moralischer Lehrer) — como se a moral fosse algo de eterno — mas “inventor da moral” (W., XII, p. 329). Não apenas seu conteúdo, mas a figura mesma da consciência moral enquanto tal, é um resultado histórico: “Os gregos não tiveram nenhuma consciência moral” (Gewissen), no sentido de que entre eles havia identificação imediata com as leis e os costumes concretamente existentes, de modo que não havia lugar para aquela “reflexão” e aquela separação da interioridade” constitutivas da consciência moral (V. G., p. 263*). Juntamente com a “moral” e com a consciência moral”, é um resultado histórico “o homem moral” (der moralische Mensch) (W., XII, p. 329), isto é, o homem capaz de transcender a objetividade na autorreflexão e interioridade da própria consciência.
A invenção da “moral”, da “consciência moral”, do “homem moral”, é a invenção, ao mesmo tempo, da liberdade. E isso num duplo sentido: primeiro, no sentido forte e moderno do termo, a liberdade implica a superação da identificação imediata com a objetividade política por parte da subjetividade, sendo que esta última se reserva agora um espaço autônomo de reflexão moral que introduz um elemento de tensão e de problematicidade na relação com a objetividade. Nesse sentido, os gregos que não conheciam o Gewissen não conhecem nem propriamente a liberdade (V. G., p. 263); a liberdade como autorreflexão era estranha até para os homens livres. Cabe, contudo, fazer mais uma consideração. Para que se possa desenvolver uma moral no sentido mais rigoroso do termo, como discurso dirigido, ao menos potencialmente, a todos os seres humanos, é necessário que a cada um seja reconhecida a dignidade de sujeito moral, capaz de autorreflexão e titular de um direito à liberdade. Equiparados como são, na Antiguidade clássica, a instrumentos de trabalho, os escravos não pertencem à categoria de ser humano, o que torna impossível a construção da universalidade moral. Desse ponto de vista, Sócrates, mais do que “inventor” tout court da moral, constitui apenas uma etapa, ainda que de grande importância, de seu processo de construção, um processo difícil e complexo, assim como é difícil e complexa a construção histórica do conceito universal de homem.”
[41] Jean-Jacques Rousseau, “Confessions” (1782, póstumo), em O. C., v. I, p. 404, e “Narcisse ou l’Amant de lui-même, Préface” (1753), em O. C, v. II, p. 969.
[42] Claude-Adrien Helvétius, “De l’esprit” (1758), em (Euvres complètes (Paris, F. Didot, 1795) (ed. fac-similar: Hildesheim, 1969), v. II, p. 237, 244 e 249-50.
[43] Jean-Jacques Rousseau, “Emile” (1762), em O. C., v. IV, p. 524.
[44] Paul-Henry Thiry d’Holbach, Ethocratie ou le Gouvernement fondé sur la morale (Amsterdã, Marc-Michel Rey, 1776) (ed. fac-similar: Hildesheim, 1973), p. 55 e Avertissement.
[45] Reportado em Bronislaw Baczko, Lumières de l’utopie (Paris, Payot, 1978), p. 182.
[46] Immanuel Kant, “Grundlegung der Metaphysik der Sitten” (1785), em KGS, v. IV, p. 393-4.
[47] Idem, “Zum ewigen Frieden” (1795), em KGS, v. MII, p. 366.
[48] Idem, “Handschriftlicher NachlaB”, em KGS, v. XXIII, p. 135.
[49] Idem, “Grundlegung der Metaphysik der Sitten”, cit., p. 394.
[50] Idem, “Handschriftlicher NachlaB”, em KGS, v. XX, p. 151.
[51] Ibidem, em KGS, v. XXIII, p. 135.
[52] Idem, “Zum ewigen Frieden”, cit., p. 366; sobre a polêmica de Kant contra o argumento da ideologia conservadora, ver Domenico Losurdo, Autocensura e compromesso nel pensiero politico di Kant (2. ed., org. Istituto Italiano per gli Studi Filosofici, Nápoles, Bibliopolis, 2007 [1983]), cap. III, § 6.
[53] Karl Rosenkranz, Geschichte der Kantschen Philosophie (Leipzig, L. Voss, 1840), p. 495.
[54] Immanuel Kant, “Zum ewigen Frieden”, cit., p. 353, nota.
*: Die Vernunft in der Geschichte, organizada por Johannes Hoffmeister, Hamburgo, 1955.


“O comportamento de ruptura ou de afastamento em relação à realidade política, motivado pelo não reconhecimento da subjetividade moral na eticidade existente, é legítimo apenas se constituir um estágio transitório, isto é, se servir de estímulo para a realização de um mais rico ordenamento ético e político, ao passo que “o dever ser que se torna perene” (perennierendes Sollen) em que se detém “o ponto de vista meramente moral” (Rph., 135 A) é acusado por Hegel não só de inconclusão política, mas também, como sabemos, de insinceridade moral. Nesses momentos de crise, eis que pode voltar à atualidade a figura trágica do herói, que, porém, é herói só na medida em que expressa, por seu risco e perigo, uma necessidade objetiva da época e dos seres humanos de sua época, mas também na medida em que consegue realizar concretamente tal necessidade, edificando, assim, uma eticidade nova e mais rica, que, por sua vez, torna supérflua a figura do herói. Nesse sentido, Hegel poderia exclamar com Brecht: “Felizes os povos que não precisam de heróis”, ainda que a ação deles, em situações dramáticas de crise, possa se revelar historicamente necessária e benéfica.”


A transfiguração da tradição liberal
Em toda guerra religiosa se dá um estreito entrelaçamento entre dois elementos: a demonização e a autoapologia ou hagiografia. A condenação sem apelação do Oriente e da tradição cultural alemã caminha pari passu com a transfiguração da tradição liberal, em especial aquela anglo-saxônica. Mesmo sem desconhecer o grande mérito histórico adquirido por esta última em sua luta contra o absolutismo monárquico, acenamos, nos capítulos precedentes, a seus limites de fundo. Tais limites não consistem apenas na nítida separação entre política e economia e na configuração meramente formal da liberdade, mas se manifestam já em seu tema preferido e em seu cavalo de batalha, ou seja, no nível da liberdade negativa, que essa tradição não se cansa de celebrar como a liberdade tout court e que, entretanto, não consegue conceber em termos realmente universais.
É assim que podemos compreender a tranquila teorização da escravidão nas colônias a que se dedica Locke, que fala como de um fato óbvio e pacífico relativo aos “plantadores das Índias ocidentais” que possuem escravos e cavalos, com base em direitos adquiridos com contrato regular de compra e venda[37] (o contratualismo pode servir também para justificar a instituição da escravidão). O grande teórico da limitação do poder estatal, por outro lado, gostaria que fosse sancionado na Constituição de uma colônia inglesa na América o princípio de que “todo homem livre da Carolina deve ter absoluto poder e autoridade sobre seus escravos negros, qualquer que seja a opinião e a religião deles”[38]. Assim, num dos textos clássicos do liberalismo, encontramos a afirmação de que existem homens “pela lei da natureza sujeitos ao domínio absoluto e ao incondicional poder de seus donos”[39].
Ou talvez não se trate propriamente de homens, pois num texto sobre a história da navegação — por longo tempo atribuído a Locke, mas provavelmente de um autor próximo a ele —, a propósito do comércio com as colônias africanas, podemos ler inclusive: “As mercadorias que provêm desses países são o ouro, o marfim e os escravos”. Junto com outras commodities, os escravos negros são parte integrante e essencial da economia política da Inglaterra liberal daquela época, objetos de um “notável comércio” que se mostra “de grande ajuda para todas as plantações americanas”[40] e no qual Locke se mostra pessoalmente interessado, pois investiu nele uma parte de seu dinheiro[41]. Não nos esqueçamos de que um dos mais relevantes atos de política internacional da Inglaterra liberal derivada da Revolução Gloriosa consiste em arrancar da Espanha, por meio do Tratado de Utrecht, o Asiento, isto é, o monopólio do tráfico de escravos negros.
A dificuldade da tradição liberal em incluir todos os seres humanos na categoria de homem, a dificuldade em conceber o homem em sua universalidade, esse nominalismo antropológico não se manifesta apenas em relação aos negros importados da África. Se Locke insere o escravo na categoria de “mercadoria”, um século mais tarde, vimos Edmund Burke inserir o trabalhador braçal ou assalariado na categoria de instrumentum vocal (supra, cap. VI, § 4). Entre os adversários do grande antagonista da Revolução Francesa, encontramos certamente Sieyès, que, porém, quanto ao tema em questão, não parece pensar diferente do jornalista e estadista inglês, referindo-se também à “maior parte dos homens como máquinas de trabalho”, “instrumentos humanos da produção” ou “instrumentos bípedes”[42].
E de novo a tradição liberal revela seus limites de fundo também no que diz respeito à liberdade negativa, que é negada tanto aos escravos quanto aos pobres ou vagabundos” encarcerados em massa nas “casas de trabalho”, instituição total à qual Locke não faz nenhuma objeção e na qual, ao contrário, gostaria que a disciplina fosse mais dura: “Qualquer um que falsifique um visto [saindo sem permissão], que seja punido com um corte das orelhas na primeira vez, que, na segunda, seja deportado para as plantações como por um crime” e, assim, reduzido, na prática, à condição de escravo. Existe, no entanto, uma solução ainda mais simples, ao menos para aqueles que têm a infelicidade de serem surpreendidos pedindo esmola fora da própria paróquia e próximo a um porto marítimo: que sejam embarcados à força na Marinha Militar; “se, depois, descerem à terra firme sem permissão, ou se distanciarem ou se demorarem em terra mais do que o consentido, serão punidos como desertores”, isto é, com a pena capital[43].
A instituição das casas de trabalho tem seu centro na Inglaterra. Justamente fazendo referência ao país clássico do liberalismo, o jovem Engels nos revela detalhes impressionantes: “[...] os internados são obrigados a usar uniforme e não dispõem de nenhuma proteção em face do arbítrio do diretor”; para que “os pais ‘moralmente degradados’ não influam sobre seus filhos, as famílias são separadas: o homem vai para uma ala; a mulher, para outra; e os filhos, para uma terceira”. A unidade familiar é rompida; quanto ao resto, ficam todos amontoados, às vezes até o número de doze ou dezesseis num único cômodo, e sobre todos é exercido todo tipo de violência que não poupa sequer os velhos e as crianças e que implica atenções particulares no tocante às mulheres. Na prática, os internados das casas de trabalho são declarados e tratados como “foras da lei, objetos repugnantes postos fora da humanidade”[44]. Caso o quadro traçado por Engels pareça muito sentimental, basta considerar o juízo mais insensível de um estudioso liberal contemporâneo (Marshall), para quem é claro que, uma vez nas casas de trabalho, os pobres “cessavam de ser cidadãos em qualquer sentido genuíno da palavra”, pois perdiam o “direito civil da liberdade pessoal” (supra, cap. VII, § 6).
Mesmo quando conseguem evitar as casas de trabalho, as classes inferiores veem gravemente reduzida e mutilada sua liberdade negativa. Hayek faz uma bela celebração de Mandeville por ser aquele para quem “o exercício arbitrário do poder por parte do governo seria reduzido ao mínimo”[45]; na verdade, o renomado expoente do primeiro liberalismo inglês, defensor de uma moral despreconceituosamente laica, exige, porém, que a frequência à igreja nos domingos e a doutrinação religiosa se tornem “obrigação para pobres e iletrados”, a quem, de toda forma, aos domingos, “deveria ser impedido [...] o acesso a qualquer tipo de divertimento além da igreja”[46].
Em Sieyès, podemos ler inclusive a proposta de submeter os pobres a uma escravidão temporária e controlada pela lei: “A última classe, composta de homens que têm apenas os braços, pode precisar da escravidão legal para fugir da escravidão da necessidade”. Os amantes do Ocidente mais autêntico, aquele anglo-saxão, poderiam logo objetar que dele não faz parte Sieyès, que, entre outros, segundo Talmon, teria fornecido alguns argumentos para a “democracia totalitária”[47]. O fato é que, entretanto, ao defender a causa da introdução da “esclavage de la loi”, Sieyès remete explicitamente a um modelo anglo-saxão: “Quero vender meu tempo e meus serviços de toda espécie (não digo minha vida) por um ano, dois anos etc., como na América inglesa”[48]. A referência é aos denominados “indentureds servants” — na prática, “semiescravos”, ao menos pelo tempo de duração de seu “contrato” (aliás, com frequência, sob vários pretextos, arbitrariamente prolongados por seus senhores) — que, de fato, eram vendidos e comprados num mercado regular, anunciado pela própria imprensa local, e aos quais se dava caça em caso de fuga ou de afastamento indevido do lugar de trabalho[49]. É assim, ressalta Sieyès, que os “americanos” brilhantemente conseguiram “importar os operários de todo tipo de que precisam”, recorrendo a um meio” que, no entanto, continuava suscitando desconfiança na França[50].
Quando lemos hoje que o liberalismo desde o início foi sinônimo de liberdade para todos, quando lemos em Talmon que o liberalismo sempre abominou a “coerção” e a “violência”[51], logo nos damos conta de que, a essa altura, já foi abandonado o terreno da historiografia para pairar no céu e nas nuvens da hagiografia. Assim, quando lemos em Bobbio que “as declarações dos direitos do homem” estão “incluídas na constituição dos Estados liberais” e que temos de remontar a Locke “a ideia de que o homem enquanto tal tem direitos por natureza”[52], ou quando lemos em Dahrendorf que, já a partir da Glorious Revolution, é afirmada a ideia de “cidadania” (num nível mínimo, como “igualdade perante à lei”) para todos os homens[53], nos damos conta claramente de que nos movemos num espaço histórico imaginário, do qual foram eliminados fatos macroscópicos, como a escravidão, as casas de trabalho, as relações reais de trabalho e até a ideologia por tanto tempo dominante na Inglaterra liberal, uma ideologia que, em relação não apenas aos escravos negros, mas também em relação ao “novo proletariado industrial”, comportava uma atitude tão dura “que não encontra correspondência em nossos tempos, senão no comportamento dos mais abjetos colonizadores brancos em relação aos trabalhadores negros”[54].
Depois de operar essa apressada identificação entre tradição liberal e direitos do homem enquanto tal, Dahrendorf declara compartilhar “as ideias de fundo do grande whig” que é Burke[55], como se, entre as ideias de fundo deste, não houvesse, em primeiro lugar, a recusa categórica do discurso sobre os direitos do homem, condenado enquanto teoria subversiva que abre caminho para as reivindicações políticas e sociais de “cabeleireiros” e “vendedores de velas”, “para não falar de inúmeras outras atividades mais servis do que essas”, para as reivindicações da “multidão animalesca” ou de gente, cuja ocupação sórdida e mercenária” (sordid mercenary occupation) implica por si só “uma perspectiva mesquinha das coisas humanas”[56]. É ainda mais absurda a usual identificação entre direitos do homem e tradição liberal inglesa, se pensarmos que até um liberal radical como Bentham rechaça a reivindicação da égalité e a teorização revolucionária francesa dos direitos do homem com argumentos muito semelhantes àqueles de Burke, isto é, também nesse caso, a partir da preocupação que tal discurso possa estimular a arrogância ou a desobediência anárquica dos “aprendizes” e das classes inferiores em geral: “Todos os homens nascem iguais em seus direitos. O herdeiro dessa família mais indigente teria, portanto, direitos iguais ao herdeiro da família mais abastada? Quando isso é verdadeiro?”. E como justificar a necessária “submissão do aprendiz ao patrão”[57]?
Enfim, a identificação entre tradição liberal e direitos do homem se revela falsa também no que se refere à América — e não só pela presença da instituição da escravidão (e, em sua forma mais dura, a chattel slavery) até a Guerra da Secessão e de relações de trabalho semiservis e de uma espécie de “debt slavery” bem além de 1865, mas também pela polêmica mais ou menos explícita que podemos ler num autor como Hamilton. Este se opõe vitoriosamente à inserção na Constituição dos Estados Unidos de uma declaração dos direitos do homem, julgada adequada apenas como “tratado de moral”: não por acaso, notável influência na tradição política americana exercem os implacáveis acusadores da Revolução Francesa (e da teorização dos direitos do homem), como Burke e Gentz, este último tendo sido logo traduzido, em 1800, por John Quincey Adams, futuro sexto presidente dos Estados Unidos[58].”
[37] John Locke, Two Treatises of Civil Government, I, § 130.
[38] Idem, “The Fundamental Constitutions of Carolina” (1669), art. CX, em The Works (Londres, Thomas Tegg, 1823,’ ed. fac-similar: Aalen, 1963), v. X, 196.
[39] Idem, Two Treatises of Civil Government, I, § 85.
[40] Idem, “The Whole History of Navigation from the Original to this Time” (1704), em The Works, cit., v. X, p. 414.
[41] Ver Maurice Cranston, John Locke. A Biography (2. ed., Londres, Longmans, 1959), p. 115.
[42] Emmanuel-Joseph Sieyès, “Dire sur la question du veto royal” (1789), em Ecrits politiques (org. Roberto Zapperi, Paris, Editions des Archives Contemporaines, 1985), p. 236; idem, “Notes et fragments inédits”, também em Ecrits politiques, p. 75 (fr. Esclaves) e p. 81 (fr. Grêce. Citoyen-homme).
[43] O texto de 1697, escrito por Locke na qualidade de membro da Commission on Trade, é citado em Henry Richard Fox Bourne, The Life of John Locke (Londres, Henry S. King & Co., 1876) (reimp. Aalen, 1969), v. II, p. 377-90.
[44] Friedrich Engels, “Die Lage der arbeitenden Klasse in England” (1845), em MEW, v. II, p. 496-8 [ed. bras.: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, trad. B. A. Schumann, São Paulo, Boitempo, 2008, p. 318-9].
[45] Friedrich August von Hayek, New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, 1978; ed. it.: Nuovi studi di filosofia, politica, economia e storia delle idee (Roma, Armando, 1988), p. 280; é a afirmação de Nathan Rosenberg que Hayek subscreve e faz própria.
[46] Bernard de Mandeville, “An Essay on Charity and Charity-Schools” (1723), em The Fable of the Bees (1705 e 1714) (org. Frederick Benjamin Kaye, Oxford, Clarendon, 1924) (ed. fac-similar: Indianápolis, 1988), p. 307-8.
[47] Jacob Leib Talmon, The Origins of Totalitarian Democracy (1952); ed. it.: Le origini della democrazia totalitaria (Bolonha, II Mulino, 1967), p. 99 e seg.
[48] Emmanuel-Joseph Sieyès, “Notes et fragments inédits”, cit., p. 76 (fr. Esclavage).
[49] Ver Marcus Wilson Jernegan, Laboring and Dependent Classes in Colonial America. 1607-1783 (Westport, Connecticut, 1980 [1931]), p. 45-56.
[50] Emmanuel-Joseph Sieyês, “Notes et fragments inédits”, cit., p. 77 (fr. Salaires: moyen de niveler leurprix dans les différents lieux).
[51] Jacob Leib Talmon, The Origins of Totalitar’ian Democracy, cita, p. 12 e 15.
[52] Norberto Bobbio, L’età dei diritti (Turim, Einaudi, 1990), p. 45 e 21.
[53] Ralf Dahrendorf, Per un nuovo liberalismo, cit., p. 121.
[54] Richard Tawney, Religion and the Rise of Capitalism (Londres, 1929); ed. it.: “La religione e la genesi del capitalismo”, em Opere (trad. Aldo Martignetti, Orio Peduzzi e Gino Bianco, org. Franco Ferrarotti, Turim, Utet, 1975), P. 513.
[55] Ralf Dahrendorf, Riflessioni sulla rivoluzione in Europa, cit., p. 26.
[56] Edmund Burke, “Reflections on the Revolution in France” (1790), em The Works of the Right Honourable Edmund Burke (Londres, Rivington, 1826), p. 154 e 105-6.
[57] Jeremy Bentham, “Anarchical Fallacies. A Critical Examination of the Declaration of Rights” (1. ed. em inglês, 1838), em The Works (org. John Bowring, Edimburgo, William Tait, 1838-1843), p. 498-9.
[58] Sobre a persistência de formas de trabalho forçado no sul dos Estados Unidos, ver Willemins Kloosterboer, Involuntary Labour since the Abolition of Slavery (Leiden, E. J. Brill, 1960), cap. V; sobre a polêmica de Hamilton, ver The Federalist, n. 84, e Charles Edward Merriam, History of American Political Theories (Nova York, A. M. Kelley, 1969 [1903]), p. 96-142; sobre a influência de Burke sobre Hamilton e a tradição política americana em geral, ver Walter Gerhard, Das politische System Alexander Hamiltons (Hamburgo, Friederichsen, de Gruyter & Co., 1929), e Harold Joseph Laski, The American Democracy (Fairfield, EUA, A. M. Kelley, 1977 [1948]), p. 10; sobre Gentz e John Quincey Adams, ver Domenico Losurdo, “La Révolution Française a-t-elle echouée?”, em La Pensée, n. 267, jan.-fev. 1989, p. 85 e seg.


“Uma vez desmantelados os estereótipos nacionais e lançadas as bases para uma reconstrução da história cultural e política dos países europeus, nos múltiplos entrelaçamentos e nas recíprocas influências que a caracterizam, uma vez abatida a barreira erigida pela ideologia da guerra ao longo dos dois conflitos mundiais, é evidente que não faz sentido arrastar a filosofia clássica alemã para a frente do tribunal da tradição liberal. Quer se chegue a uma absolvição, quer se chegue a uma condenação parcial ou total, acaba-se por perder de vista um ponto essencial, aliás, decisivo: em Kant, em Fichte, em Hegel, a Revolução Francesa encontra sua expressão teórica bem mais do que nos autores liberais da época, que, ao contrário, se formaram, na maioria, durante a polêmica e a luta exatamente contra a Revolução Francesa. Na medida em que o patrimônio político e ideal derivado dela constitui, como nós acreditamos, o ato fundador, por excelência, da liberdade dos modernos, se quisermos compreender adequadamente o que isso significa, é preciso recorrer à filosofia clássica alemã bem mais do que à tradição liberal a ela contemporânea.
Quanto a Hegel, em particular, a herança da Revolução Francesa, considerada em todo o período de desenvolvimento, mostra-se evidente em dois pontos de importância capital: 1) a afirmação do conceito da universalidade do homem e a leitura do progresso histórico como progressiva e difícil construção de tal conceito; 2) a relação instituída entre política e economia, uma relação em que a indigência material levada ao extremo implica “total falta de direitos” por parte do faminto. Diga-se que entre esses dois pontos existe uma estreita conexão, no sentido de que negar ao faminto seus direitos significa negar-lhe a inclusão concreta e real na categoria universal de homem. Em tal sentido, a filosofia hegeliana da história, enquanto legitima plenamente o moderno, não considera concluído nem consente, de alguma forma, que não se considere concluído o processo de emancipação que se desenvolveu em seu âmbito.”


9. O conflito das liberdades
Existe um ponto de particular interesse. Hegel não se limitou a distinguir entre “direito negativo” e “direito positivo”, entre “liberdade formal” e “liberdade real”, mas, mesmo se pronunciando a favor da síntese, ressaltou a possibilidade, ou o risco, no plano da concreta realidade histórica, de um conflito entre esses diversos aspectos do direito e da liberdade (supra, cap. IV, 6). Claro, Smith já observa que, justamente num “país livre” (free country)[117] e sob um “governo livre” (free government), revela-se particularmente difícil ou impossível para os escravos obter a emancipação ou mesmo apenas uma melhora das condições ou uma atenuação da opressão. E mais fácil que isso aconteça com um “governo despótico”, não vinculado por organismos representativos, na maioria, nas mãos de proprietários de escravos[118] O pensamento se volta para as colônias inglesas na América, já amplamente fundadas no autogoverno e nas quais, entretanto, justamente o liberal Locke quer ver consagrado, também no plano constitucional, o princípio do “absoluto poder e autoridade” que todo “homem livre” deve deter “sobre seus escravos negros”. Uma consideração análoga à defendida para a instituição da escravidão, Smith faz no que se refere à servidão da gleba, dessa vez com o olhar voltado para os países da Europa oriental, onde a fraqueza do poder central torna impossível para o monarca impor à nobreza feudal a emancipação dos servos (supra, cap. XII, § 6).
A consciência do possível conflito das liberdades, aflorada no autor de Lições de jurisprudência e perdida ao longo da posterior tradição liberal, reemerge com força em Hegel. O filósofo, a partir disso, questiona as tranquilas certezas de Smith, que, apesar de tudo, continua a chamar de “livre” um governo que aprova a escravidão ou a servidão da gleba e de “despótico” um governo que, ao contrário, embatendo-se com a resistência de organismos representativos dominados por camadas privilegiadas, suprime uma e outra instituição. É também devido a essa aguda consciência do possível conflito das liberdades que Hegel, ainda que nitidamente se afastando do jacobinismo, se recusa a subscrever a simplista demonização que a tradição liberal opera de um movimento ou de um partido que, se por um lado impõe uma férrea ditadura, por outro leva a termo a dissolução das relações feudais de propriedade e de trabalho, acabando por decretar a emancipação dos escravos das colônias, reconhecendo os resultados da revolução deflagrada por eles no Haiti, sob a liderança do jacobino negro Toussaint Louverture, e finalmente incluindo os ex-escravos sob o conceito universal de homem, como titulares de direitos inalienáveis e imprescritíveis.
Nesse sentido, podemos dizer que Hegel tornou mais problemática e incerta a fronteira entre liberdade e opressão, e assim bem se compreende a obsessão, em especial por parte dos neoliberais, em confinar esse grande intérprete da liberdade, positiva e negativa, na história do totalitarismo ou, na melhor das hipóteses, da democracia totalitária. Outros, ainda que longe do zelo com que os neoliberais pretendem proceder à depuração do Ocidente, podem, contudo, sentir nostalgia das tranquilas certezas perdidas e sentir-se pouco à vontade pelo fato de que, a partir de Hegel, tornou-se mais complexo ou mais problemático o discurso da liberdade. Convém, entretanto, que não esqueçamos que a única alternativa a tal complexidade e problematicidade é uma história meramente, e banalmente, ideológica dos conflitos políticos e sociais que, a partir da Revolução Francesa, agitaram e continuam a agitar o mundo.”
[117] Adam Smith, Lectures on Jurisprudence (1762-1763 e 1766) (v. V, ed. de Glasgow), p. 186 (lições de 1762-1763).
[118] Ibidem, p. 452.

Hegel e a liberdade dos modernos (Parte II), de Domenico Losurdo

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-709-5
Tradução: Diego Silveira Coelho Ferreira e Ana Maria Chiarini
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 472
Sinopse: Ver Parte I

8. Ius necessitatis, ius resistentiae, Notrecht
O acúmulo de fatos que pareceriam justificar o “direito dos pobres à rebelião”, de que fala Henrich, é impressionante. Deve-se, todavia, notar que os levantes que efetivamente ocorrem nesse período são aqueles dos ludistas, acerca dos quais o juízo de Hegel é crítico. É verdade que Lições descreve com extraordinária objetividade a destruição das máquinas pelos “operários, sobretudo os operários de fábrica” que “ficam facilmente descontentes” pois “perdem seu sustento por causa das máquinas” (V. Rph., IV, p. 503; V. Rph., III, p. 613). Numa nota berlinense, porém, fala dos “excessos” da “plebe inglesa” responsável pela destruição das “máquinas a vapor” (B. Schr., p. 782*). É natural que tal distanciamento em relação ao ludismo deva ser explicado com a incompreensão por parte desse movimento do significado potencialmente libertador das máquinas: não por acaso Hegel destaca que “o universal deve favorecer a introdução de novas máquinas e, ao mesmo tempo, deve tentar manter aqueles que perderam seu pão” (Rph., I, 120 A). É característica no comportamento de Hegel não a teorização, nem sequer propriamente o fato de se interrogar acerca de um pretenso direito à revolução ou à resistência (um direito em si contraditório), mas a análise das contradições objetivas que, na ausência de oportunas reformas, tornam inevitável a eclosão da revolução, esta última suscetível de justificação apenas post factum, do ponto de vista do espírito do mundo (supra, cap. IV., § 4).
A teorização do direito da necessidade extrema não é um apelo à revolução nem à resistência à autoridade, é simplesmente um apelo à não absolutização do direito de propriedade: “O importante pertence à vida ética, universal, e as questões que se referem a essas antíteses de bem-estar e direito e também ao direito da necessidade extrema só se referem a casos de uma esfera extremamente limitada” (Rph., 126 AL; V. Rph., II, p. 459). O Notrecht de Hegel não é o ius necessitatis nem o ius resistentiae da tradição (que Henrich não parece distinguir), mas tem como objetivo evidenciar o potencial explosivo que a questão social vai acumulando, denunciar aquilo que de não conciliado e substancialmente violento continua havendo nas relações sociais existentes. A esperança do filósofo é que a conciliação seja produzida pela intervenção do poder político. Se, de um lado, a teorização do Notrecht constitui uma polêmica ao menos objetiva contra a criminalização das agitações operárias àquela época condenadas em bloco como atentados ao direito de propriedade, e frequentemente comparadas à delinquência comum, de outro lado, tal teorização almeja principalmente demonstrar o caráter “abstrato” da propriedade privada, destacando os embates em que esta inevitavelmente incorre. Em Smith, Hegel já tinha lido:
Para chegar a uma decisão rápida, os operários recorrem sempre aos meios mais clamorosos e, às vezes, à violência e às ofensas mais impressionantes. Estão desesperados e agem com a loucura e os excessos de homens desesperados que devem morrer de fome ou obrigar seus patrões a acatar suas reivindicações.
Smith descreve com lucidez e frieza a “ruína” que espera por esses “desesperados” inexoravelmente atacados pela polícia e pelo Judiciário[65]. Agora, tais “desesperados que devem morrer de fome” veem reconhecido um direito que não aquele à revolução, mas que, apesar do caráter vago de seu conteúdo, desempenha bem sua função, que é, como dissemos, principalmente demonstrar o caráter “abstrato” da propriedade privada, destacando os conflitos em que esta inevitavelmente incorre.”
*: B. Schr. = Berliner Schriften, organizada por Johannes Hoffmeister, Hamburgo, 1956.
[65] Adam Smith, An Inquiry into the Nature and the Causes of the Wealth of Nations, Livro I, cap. VIII, cit., p. 84-5.


“Não há dúvidas de que, depois das primeiras tentativas, Hegel se esforça para ser o teórico do mundo moderno e da liberdade moderna, cujo fundamento está no reconhecimento da dignidade e da autonomia do indivíduo.”


“Voltemos, aqui, a Rousseau e Hegel. Se olharmos com atenção, vemos que foram acusados pela tradição liberal por instituir uma relação entre política e economia, entre liberdade e condições materiais de vida, por teorizarem com maior ou menor clareza aquilo que Hegel define como “direito positivo” ou “direito material”. Deve-se acrescentar que essa nova e mais rica configuração do direito foi pensada por Rousseau num esforço de permanecer fiel a um ideal de sociedade que está aquém do mundo industrial moderno, ao passo que Hegel se esforçou para pensá-la a partir dos problemas e das contradições próprias deste mundo, já que não é mais possível nem lícito retroceder.”


“Do ponto de vista de Hegel, havia uma perigosa contiguidade ou continuidade entre as posições liberais e aquelas dos teóricos da Restauração, umas e outras caracterizadas pela visão de que a educação e a instrução devem se ater exclusivamente à esfera privada. A intromissão do poder político não violaria os sagrados direitos da família, sua sagrada intimidade? Eis a resposta supreendentemente moderna de Hegel: a criança, porém, também é sujeito de direitos e de nenhum modo pode ser considerada uma “coisa” (Sache) de propriedade dos pais (Rph., 175). Trata-se de uma afirmação nada óbvia. Vimos Kant teorizar um “direito dos pais sobre os filhos como de uma parte da casa”, um direito dos pais de reaver os filhos fugitivos “como coisas” (Sachen), aliás, como “animais domésticos fugidos” (supra, cap. IV, § 2). Mesmo sem chegar a formulações tão duras, o próprio Fichte afirmara que, no que se refere à educação dos filhos, “os pais são seus próprios juízes”[13]. Hegel polemiza explicitamente com Kant a propósito do excerto citado — e provavelmente tem Fichte também como alvo quando escreve que os pais em nenhuma circunstância podem ser “juízes” dos filhos, pois o juiz é uma “pessoa universal” (Rph., I, 85 A).
Nessa ou em outras ocasiões, Hegel destaca a necessidade de acabar de vez com o direito romano, ou com seus resquícios, que considerava os filhos escravos dos pais. A criança é sujeito de direitos: “Se ela deve ser membro da sociedade civil, tem direitos e reivindicações a seu respeito, assim como os tinha no âmbito da família. A sociedade civil deve defender seu membro, deve defender seus direitos” (V. Rph., III, p. 700). De quais direitos se trata aqui? É verdade que, no que concerne à educação, não se trata de “um direito rigoroso a ponto de poder ser afirmado dessa forma” (V. Rph., IV, 457), isto é, apelando-se a um tribunal. Como escrevera Fichte, “o filho não tem um direito coativo (Zwangsrecht) à educação”[14]; todavia, na síntese que o discípulo Von Henning faz do pensamento do mestre, fala-se a esse respeito de um “direito absoluto” (V. Rph., III, 550), que, portanto, vai além das leis sancionadas positivamente.
Era um direito questionado pela prática da inserção precoce, depois de uma frequência escolar bastante limitada, na atividade de trabalho da família, difusa na pequena ou média burguesia comercial e artesã, como fica claro pelo testemunho contemporâneo de Schleiermacher, que a esse respeito fala de “conflito entre atividade de trabalho e educacional”[15]. A esse fenômeno parece se referir Hegel quando declara que “os filhos têm o direito de ser nutridos e educados com base no patrimônio familiar comum” (Rph., 174). Os filhos podem, assim, reivindicar uma educação à altura do patrimônio da família a que pertencem. Fichte opinava que “os filhos não têm qualquer comunhão com a propriedade e não têm qualquer propriedade[16]. Hegel não só fala de “comum patrimônio familiar”, como acrescenta, de modo ainda mais explícito: “Os filhos fazem parte do conjunto da família; portanto, têm direito de exigir [alguma coisa] do patrimônio familiar para suas necessidades e sua educação. Na medida em que os pais se recusem a fazer isso, deve intervir o Estado para afirmar e praticar tal direito” (Rph., I, 85 A).
Também a outra prática, aquela do trabalho infantil nas fábricas ou em demais atividades de trabalho externas à família, faz referência Princípios de filosofia do direito e as respectivas lições: “O direito dos pais aos serviços dos filhos, enquanto serviços, encontra fundamento e limitação nas questões comuns relativas à economia doméstica” (Rph., 174). Para sermos mais claros: “Os serviços das crianças aos pais se limitam ao fato de que as crianças nas famílias devem ser ativas” (V. Rph., III, p. 549). E até mesmo os serviços no âmbito da família devem ser consoantes à “relação familiar” (Rph., III, p. 143), não devem configurar uma verdadeira relação de trabalho. Assim, “não podem ir contra a educação” (Rph., I, 85 A), isto é, devem deixar tempo livre para a educação e a frequência escolar. A referência ao trabalho infantil nas fábricas ou em outros setores de trabalho é explícita:
Os pais não devem almejar apenas obter vantagens do trabalho dos filhos. Portanto, o Estado tem a obrigação de proteger as crianças. Na Inglaterra, crianças de seis anos são utilizadas para limpar chaminés estreitas; nas cidades industriais da Inglaterra, crianças de tenra idade são obrigadas a trabalhar, e somente aos domingos se provê de alguma forma para sua educação. O Estado tem, então, o dever absoluto de garantir que as crianças sejam educadas. (Rph., 1, 85 A)
O direito à instrução/educação não somente é obrigado a se chocar com a ideologia feudal, como entra em contradição com a realidade das fábricas do capitalismo nascente, que começa a se manifestar também na Prússia. Aqui se desenvolve o debate, e a intervenção do Estado para vetar ou controlar o trabalho infantil nas fábricas é rejeitada com argumentos liberais[17], aliás, pouco depois da morte de Hegel, contrapondo “o espírito prático dos liberais” às “teorias dos hegelianos e dos socialistas”, uns e outros evidentemente doentes de estatismo (supra, cap. 111, § 6).
Podemos agora fazer um balanço da tradição liberal, retornando a Wilhelm von Humboldt, segundo o qual é decididamente refutável a visão de que o Estado deveria se preocupar positivamente com o bem-estar dos cidadãos. Ao contrário, ele só tem a tarefa negativa de garantir a segurança e, assim, a autonomia da esfera privada: “A felicidade a que o homem se destina não é senão aquela que lhe atribui sua força”, sua capacidade. Justamente por colocar em dúvida essa espécie de harmonia preestabelecida entre mérito e posição social do indivíduo (supra, cap. VI, § 3), Hegel é levado a se perguntar sobre o papel que escola e educação têm não somente para o processo de formação cultural do indivíduo, como no nível social como um todo. Não, a natureza ou o mérito individuais não podem ser invocados para explicar a miséria de uma classe, miséria que, ao contrário, remete à organização político-social de conjunto, incluído o sistema escolar. O indivíduo “não tem um direito em sentido próprio em relação à natureza. Ao contrário, nas condições da sociedade, quando se depende dela, dos homens, a indigência adquire imediatamente a forma de uma injustiça cometida contra esta ou aquela classe” (V. Rph., IV, p. 609). O indivíduo, então, “tem o direito de reivindicar sua subsistência”, e a esse direito corresponde uma “obrigação da sociedade civil” (V. Rph., IV, p. 604).
Como, porém, a sociedade civil pode cumprir essa obrigação sem uma adequada política escolar, sem intervir na esfera da instrução? E eis que a questão da escola se revela indissociavelmente entrelaçada à questão social:
Se existem desempregados, estes têm o direito de exigir que lhes consigam trabalho [...]. Os indivíduos devem, antes de mais nada, adquirir as capacidades (Geschicklichkeit) de satisfazer suas necessidades mediante a participação no patrimônio geral. Daí a autorização à sociedade civil para obrigar os pais a darem aos filhos uma educação correspondente. (Rph., III, p. 192-3)
Sem educação, estamos condenados à miséria: “Pobre é aquele que não possui nenhum capital ou nenhuma qualificação” (Geschicklichkeit) (Rph., § I, 118 A). Hegel chega a identificar, ou entrever, no sistema escolar, nas dificuldades de acesso à escola ou a um nível adequado de educação, um instrumento de reprodução das diferenças de classe existentes: “O pobre não pode transmitir a seus filhos nenhuma qualificação, nenhuma instrução” (keine Geschicklichkeit, keine Kenntnisse) (V. Rph., IV, p. 606). Ademais, se a Geschicklichkeit adquirida é limitada, ela certamente não basta para desviar os golpes da crise e para se salvar de um destino de miséria. Eis, então, o operário que “talvez tenha desempenhado um trabalho parcelado numa fábrica que depois faliu, e tal unilateralidade o impede mais tarde de empreender qualquer outra função” (idem). Logo após a falência de um ramo industrial antes promissor, o operário é obrigado a buscar outro trabalho – o que não é fácil, pois é necessária uma adequada “qualificação” (Geschicklichkeit) (V. Rph., IV, p. 625). A falta de instrução ou de um nível de instrução adequado marca o destino do pobre. Não por acaso, entre as tarefas da corporação há também a da educação/instrução (Erziehun) de seus membros (V. Rph., III, p. 710), com uma indicação correspondente, ao menos no plano objetivo, aos estatutos das associações sindicais que então nasciam[18]. (...)
Fica claro, então, que, não obstante as aparências, no fim das contas, a distância para Mandeville não é assim tão grande: as respostas parecem antitéticas, mas as preocupações político-sociais que as motivam são as mesmas. Se o pressuposto da estabilidade político-social é identificado pelo autor de A fábula das abelhas na ignorância das massas, pelo autor de A riqueza das nações, ao contrário, é identificado na difusão entre os estratos populares de um mínimo de educação. No intervalo de tempo entre ambos, a Revolução Industrial deu grandes passos à frente, e a força de trabalho de que se necessita agora apresenta características muito diferentes da época de Mandeville. Mantém-se válido, porém, que o problema da escola e da educação é pensado em função das exigências de estabilidade econômica, política e inclusive militar da sociedade; nesse âmbito, o liberal Smith atribui ao poder político tarefas extensas. Para aumentar a coesão em seu interior, reforçar o próprio potencial produtivo e militar e apagar o espetáculo de uma degradação repugnante, o Estado tem a faculdade de impor a frequência escolar — e de impô-la no âmbito de uma escola que não é sequer propriamente pública (a contribuição do Estado é apenas parcial)[35]. Em todo caso, a obrigação ou a semiobrigação escolar não surge do reconhecimento dos direitos da criança e das aspirações à ascensão social por parte de estratos e indivíduos menos favorecidos, como acontece em Hegel. Assim, uma vez mais (supra, cap. IV, 3, e cap. VIII, § 9) percebe-se a inconsistência de um esquema interpretativo que pretende erigir a tradição liberal a juíza do “holismo” atribuído ao filósofo alemão.”
[13] Johann Gottlieb Fichte, “Grundlage des Naturrechts” (1796), § 52, Fichtes Werke (org. Immanuel Hermann Fichte, Berlim, Felix Meiner, 1971) (doravante F. W.), v. III, p. 363.
[14] Ibidem, § 43, em F. W., v. III, p. 358.
[15] Remetemos a Ursula Krautkrämer, Staat und Erziehung. Begründung öffentlicher Erziehung bei Humdoldt, Kant, Fichte, Hegel und Schleiermacher (Munique, Johannes Berchmans, 1979), p. 293 e 301.
[16] Johann Gottlieb Fichte, “Grundlage des Naturrechts”, cit., § 57, em F. W., v. III, p. 366.
[17] Ver Franz Mehring, Geschichte der deutschen Sozialdemokratie (s.l., s.n., 1897-1898); ed. it.: Storia della social democrazia tedesca (prefácio de Ernesto Ragionieri, Roma, Editori Riuniti, 1961), v. I, p. 56-9.
[18] Sobre isso, ver Domenico Losurdo, Tra Hegel e Bismarck (Roma, Editori Riuniti, 1983), p. 178-9.
[35] Adam Smith, An Inquiry into the Nature and the Causes of the Wealth of Nations (1775-1776; 3. ed., 1783), Livro I, cap. I, parte III, art. II, p. 785.


1. Mundo moderno e ocaso dos heróis da moral
Segundo Kierkegaard, o sistema hegeliano é desprovido de ética[1]. A acusação é conhecida e foi retomada uma infinidade de vezes, mas seria justificada? Hegel insiste no fato de que o mundo moderno é marcado pela centralidade das instituições políticas, pela objetividade da norma jurídica, não havendo, portanto, lugar para heróis. E os santos, os heróis da moral, parecem compartilhar o mesmo destino. São Crispim, que roubava couro para fazer sapatos para os necessitados, hoje terminaria numa “casa de trabalho” ou numa “penitenciária”; ou seja, aquele que na Idade Média era um herói da moral no mundo moderno é atacado pelo rigor da lei e tratado como ladrão. Hegel não demonstra nenhuma compaixão pela sorte de são Crispim: sim, é um homem pio, mas também é justo que, “num Estado bem ordenado”, receba uma sanção penal (V. Rph., IV, p. 341, e Rph., § 126 AL; V. Rph., 11, p. 457); “de fato, o direito (das Rechtliche) enquanto existência da liberdade é uma determinação essencial diante da intenção moral” (V. Rph., III, p. 399).
O mundo moderno é o mundo da “probidade” (Rechtschaffenheit), que é definida pelo respeito das leis. A transformação dos heróis, inclusive dos heróis da moral, em cidadãos membros de um Estado ordenado é também a transformação da poesia em prosa, da poesia do indivíduo que, da profundidade de sua personalidade e de sua consciência moral, extrai a prosa do comportamento fixado para todos pela lei: “Se agora o ordenamento baseado na lei se desenvolveu mais completamente em sua forma prosaica e se tornou predominante, a aventurosa autonomia de indivíduos cavalheirescos está fora de lugar” (W., XIII, p. 257*). Não é mais o tempo em que o heroísmo moral de indivíduos privilegiados supria a ausência de instituições políticas objetivas e ordenadas. O fim do período estético[2] implica, ainda, o redimensionamento do papel da moral. Em Estética, lemos:
A formação reflexiva de nossa vida de hoje cria em nós a necessidade, seja quanto à vontade, seja quanto ao juízo, de fixar pontos de vista gerais e de regular, em consequência, o particular, de forma que universais, leis, deveres, direitos e máximas valem como motivos determinantes e são o que fundamentalmente nos guia. (W., XIII, p. 24-5)
A motivação que o filósofo adota aqui e em outros momentos para explicar a perda da centralidade da arte no mundo moderno vale também no que se refere à intenção moral.”
*: W. = Werke in zwanzig Bänden, organizada por Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel, Frankfurt, 1969-1979.


“É verdade, a ampliação do mundo ético por ora se chocou com obstáculos insuperáveis, mas o fim permanece uma sociedade no âmbito da qual se torne supérfluo o mandamento moral, ou ao menos o mandamento moral que impõe o auxílio aos pobres; a persistência da beneficência, o fato de que se é obrigado ainda a recorrer a uma medida ocasional, tudo isso aponta para os dramáticos problemas que o mundo moderno não consegue resolver. A polêmica de Hegel se volta mais uma vez contra aqueles que gostariam de dilatar ao máximo, e eternizar, essa esfera da casualidade, de modo a celebrar a suposta excelência da própria interioridade moral:
À caridade ainda resta muito a fazer, e é uma visão errada aquela que ela mesma pretende reservar o remédio para a miséria exclusivamente à particularidade de seus bons sentimentos e de seus conhecimentos e se sente ferida e mortificada por ordenamentos e prescrições obrigatórias e universais. A situação política, ao contrário, deve ser considerada mais perfeita quanto menos restar a fazer ao indivíduo, com sua particular opinião, diante do que é organizado de maneira universal. (Rph., 242 A)
Noutras palavras, o desenvolvimento e o aperfeiçoamento das instituições éticas reduzem o campo no interior do qual somos obrigados a fazer apelo à sensibilidade moral do indivíduo.”


6. Hegel, Burke e o neoaristotelismo conservador
A restrição da esfera moral em prol dessa ética não significa a regressão à moral convencional denunciada por Apel e Habermas no neoaristotelismo de hoje[25]. Porém, tal denúncia não questiona a validade da interpretação de Hegel tecida por autores como Gadamer e Ritter. É essa interpretação, no entanto, que aqui pretendemos discutir. Em Hegel, há uma polêmica cerrada contra o apelo conservador à “sabedoria dos antepassados” e aos “direitos consuetudinários” (Gewohnheitsrechte): “No costume (Gewohnheit) enquanto tal toma a frente o acidental, o homem pode se habituar às piores coisas, pode se habituar a ser escravo, servo da gleba” (V. Rph. IV, p. 534). Joachim Ritter, que reinterpreta Hegel em tom neoaristotélico, reconhece ao mesmo tempo que, para Aristóteles, “as leis fundadas no costume são mais importantes e tratam de matérias mais importantes do que as leis escritas”[26]. Para Hegel, ao contrário, sem um texto escrito, a lei perde a “universalidade” (Rph., 221 e 215). De tal modo, a liberdade está em perigo ou é negada. Não por acaso, Filosofia da história celebra a luta conduzida pelos plebeus na Roma antiga para obter “leis escritas”: a ausência dessas leis consagrava, na verdade, o “privilégio dos patrícios” na “administração da justiça” (isso tornava os plebeus “tanto mais dependentes” dos patrícios) (Ph. G., p. 695). E não é por acaso que Hegel acusa Hugo e a escola histórica do direito de querer reduzir, com a polêmica contra a codificação das leis, “o resto dos homens” a “servos da gleba no plano jurídico” (Rechtsleibeigen) (Rph., 3 AL; V. Rph., II, p. 99). Pensemos, enfim, na celebração da Charte, desvalorizada ou desprezada por Schelling enquanto “letra escrita” e, portanto, “caduca e fugaz” e, em todo caso, considerada coisa bem pobre em comparação com a mais íntima disposição de ânimo” e com a “lei escrita no coração”[27].
Para Hegel, o vício de fundo da eticidade grega consiste nisto: “É apenas hábito e costume e, com isso, é ainda uma particularidade da existência” (Ph. G., p. 611). Não se trata de um limite de pouca importância. Onde domina o costume, não há universalidade, ou, ao menos, a “universalidade do pensamento é mais turva” (Rph., § 211 A; W., VII, p. 362). Eis, então, a eticidade grega manchada pela escravidão:
Para que não exista escravidão, é necessária, antes de mais nada [...], a noção de que o homem como tal é livre. Para isso, porém, urge que o homem possa ser pensado como universal e que se prescinda da particularidade segundo a qual ele é cidadão deste ou daquele Estado. Nem Sócrates, nem Platão, nem Aristóteles tiveram a consciência de que o homem abstrato, universal, é livre. (Ph. G., p. 611)
Na eticidade hegeliana há o páthos da razão, da universalidade: “A razão deve ser o elemento dominante, e é assim num Estado desenvolvido” (Rph., § 3 AL; V. Rph., II, p. 89). Se o mandamento moral-religioso já é acusado por Hegel de remeter, em última análise, ao saber imediato, isso vale ainda mais para usos e costumes; também eles podem subsumir o pior dos conteúdos. A eticidade hegeliana pressupõe os resultados do jusnaturalismo, pressupõe a consciência da existência de direitos inalienáveis que competem ao homem enquanto tal, não apenas ao cidadão livre desta ou daquela Pólis ou daquele Estado. Claro, tais direitos inalienáveis cessam de ser mera exigência moral na medida em que se realizam nas instituições éticas de um Estado e, no entanto, não por isso perdem sua intrínseca universalidade.
No lado contrário, remetendo à “política prática da Antiguidade”, bem como explicitamente a Aristóteles, temos um autor como Burke[28], empenhado numa implacável polêmica dirigida, ao mesmo tempo, à Revolução Francesa e a todo “princípio abstrato” e todo princípio geral”. A lição de Aristóteles parece ter se encarnado no país da Common Law e naquela “liberdade inglesa” (English liberty)[29], odiosa para Hegel exatamente porque caracterizada pelo culto supersticioso do costume (a “sabedoria dos antepassados”) (B. Schr., p. 467-8; ver também Rph., § 3 AL; V. Rph., II, p. 99) e pela falta de universalidade. Aos “abstratos princípios concernentes aos ‘direitos do homem’”, Burke contrapõe os “direitos dos ingleses entendidos como patrimônio que chega a eles dos próprios avós”[30]. Sabemos, porém, que para Hegel a construção da categoria “abstrata” do conceito universal de homem não só representa um gigantesco progresso, como constitui, em última análise, o fio condutor do processo histórico enquanto desenvolvimento e ampliação da liberdade. É justamente o homem enquanto tal, não existente no estado de natureza, mas historicamente construído por enormes lutas, quem reivindica esses direitos inalienáveis que já constituem sua “segunda natureza” (supra, cap. III, 2-4). Se Burke nega os “abstract principles” dos direitos do homem em nome daquela “sabedoria prática” (practical wisdom)[31] que representa, na Inglaterra, a herdeira da “política prática” (practical politics) da Antiguidade”, Hegel denuncia, no assim chamado “senso prático, isto é, aquele que visa ao lucro, à subsistência, à riqueza”, o obstáculo que impede a nação britânica” de suprimir os “antigos privilégios” e afirmar um “princípio geral” (B. Schr., p. 487-8). Se é também em nome de Aristóteles que Burke condena os princípios gerais da Revolução Francesa, aos quais contrapõe o exemplo da Inglaterra, Hegel submete a “liberdade inglesa” a uma crítica análoga à que submete a eticidade grega.”
[25] Ver, em particular, Karl-Otto Apel, “Kann der postkantische Standpunkt der Moralität noch einmal in substantieller Sittlichkeit ‘aufgehoben’ werden?”, em Wolfgang Kuhlmann (org.), Moralität und Sittlichkeit (Frankfurt, Suhrkamp, 1986), p. 217-64; Jürgen Habermas, “Legitimationsprobleme im modernen Staat”, em Karl-Otto Apel et al. (orgs.), Praktische Philosophie/Ethik, v. I (Frankfurt, Suhrkamp, 1980), p. 392-401. Sobre o neoaristotelismo como neoconsewadorismo, ver também Herbert Schädelbach, “Was ist Neoaristotelismus?”, em Wolfgang Kuhlmann (org.), Morälitat und Sittlichkeit, cit., p. 38-63.
[26] Joachim Ritter, “‘Politik’ und ‘Ethik’ in der praktischen Philosophie des Aristoteles” (1967), em Metaphysik und Politik (Frankfurt, Suhrkamp, 1977), p. 114; Ritter cita de Política, 1287b 5-7.
[27] Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling, “SchluBwort zur öffentlichen Sitzung der Akademie der Wissenschaften in München” (sessão de 25 de agosto de 1830), em Sämtliche Werke (Sttutgart/Augsburgo, Cotta, 1856-1861), p. 424. No que se refere à celebração hegeliana da Charte, bem como da invenção da imprensa, desvalorizada pelos românticos em nome da tradição “viva”, ver Domenico Losurdo, Hegel und das deutsche Erbe, cita, cap. VII, § 19; cap. IX, 4; cap. XI, S 3. No que se refere ao comportamento de Schelling em relação à Charte, ver Domenico Losurdo, L’ipocondria dell’impolitico, cit., p. 413-41.
[28] Edmund Burke, “Letters on a Regicide Peace”, IV, em The Works of the Right Honourable Edmund Burke (Londres, Rñington, 1826), v. VIII, p. 400.
[29] Idem, “Letter to the Right Honourable Henry Dundas” (1792), em The Works of the Right Honourable Edmund Burke, cit., p. 281; idem, “Letters on a Regicide Peace”, IV, cit., p. 110. Também a celebração da cardinal virtue of Temperance, cara aos “antigos”, como pressuposto de “nosso bem-estar físico, nosso valor moral, nossa felicidade social ou nossa tranquilidade política” – ibidem, p. 376 –, tem forte sabor aristotélico. O aristotelismo de Burke já foi notado por Jürgen Habermas, “Die klassische Lehre von der Politik in ihrem Verhältnis zur Sozialphilosophie” (1961), em Theorie und Praxis. Sozialphilosophische Studien (Frankfurt, Suhrkamp, 1988), p. 48-9.
[30] Edmund Burke, “Reflections on the Revolution in France” (1790), em The Works of the Right Honourable Edmund Burke, cit., p. 76.
[31] Idem.


“Em conclusão, se de neoaristotelismo se pretende falar a propósito de Hegel, tal aristotelismo consiste essencialmente na afirmação do primado da política, na recusa à evasão consolatória do mundano e do político para uma esfera meramente intimista; consiste na ambição de construir uma Pólis terrena como lugar da satisfação e do reconhecimento recíproco entre os homens. E tudo isso remete não a um fato acadêmico, mas à visão filosófica e política que prepara e acompanha a eclosão da Revolução Francesa. Schelling, em Stuttgart, acusa os revolucionários franceses justamente de quererem realizar na terra aquela “verdadeira politeia” que, porém, pode acontecer “somente no céu”[39]. E a acusação de Stahl, que se considera discípulo de Schelling, contra Hegel é por ele ter identificado no Estado, isto é, numa comunidade política terrena, “a solução das contradições” que exaurem a existência humana, por ter “colocado não mais no além, mas no mundo terreno, a almejada redenção universal, trazendo-a para o presente” (em V. Rph., I, p. 575-6). Em tal quadro, bem se compreende a celebração já vista em Stahl da “caridade”, justificada pelo sentimento religioso e moral interior, em contraposição à objetividade da eticidade hegeliana.”
[39] Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling, “Stuttgarter Privatvorlesungen” (1810), em Sämtliche Werke, cit., p. 462. Mais tarde, para rechaçar as reivindicações democráticas, Schelling não hesita em apelar ao Aristóteles teórico da escravidão (“a um compete ser escravo, a outro, senhor”, Política I, 2ª: ver “Philosophie der Mythologie”, v. I, em Sämtliche Werke, cit., p. 530, nota 2); aqui, então, ao “aristotelismo” de Schelling é possível contrapor o “antiaristotelismo” de Hegel, para quem onde há escravidão não há propriamente Estado: “A escravidão [...] se inclui em uma condição que precede o direito” (Rph., § 57 AL, em Rph., II, p. 241).