sexta-feira, 24 de julho de 2020

A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI (Parte IV) — David Harvey

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-4430-374-0
Tradução: Artur Renzo
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 224
Sinopse: Ver Parte I

“Marx reconhecia que o valor da força de trabalho variava de país para país, dependendo de “preço e volume das necessidades vitais elementares, natural e historicamente desenvolvidas, custos da educação do trabalhador, papel do trabalho feminino e infantil, produtividade do trabalho, sua grandeza extensiva e intensiva”. Variações geográficas na intensidade do trabalho são particularmente importantes. O “trabalho nacional mais intensivo produz, em tempo igual, mais valor, que se expressa em mais dinheiro”. A “lei do valor” é “modificada” pela “diversidade nacional dos salários”3 e pelas variações geográficas em extensão, intensidade, produtividade e porosidade da jornada de trabalho. Produtividades diferentes de trabalho conforme as diferenças naturais (por exemplo, alimentos mais baratos provenientes de terras férteis sob um clima favorável), diferentes definições de vontades, necessidades e desejos conforme a situação natural e cultural e dinâmicas de lutas de classes significam que a equalização da taxa de lucro não virá acompanhada de uma equalização da taxa de exploração entre os países4. Na eventualidade de uma transação comercial entre países, o “país favorecido recebe mais trabalho em troca de menos trabalho, embora essa diferença, esse excedente, tal como no intercâmbio entre o trabalho e o capital em geral, seja embolsado por uma classe determinada”5. Não ganha brinde quem adivinhar qual é a classe beneficiada. “Aqui”, diz Marx, “a lei do valor sofre uma modificação essencial [...] o país mais rico explora o mais pobre, mesmo quando o segundo ganha com a troca.”6 Isso evita qualquer “nivelamento direto de valores por tempo de trabalho e ainda o nivelamento de preços de custo por uma taxa geral de lucro entre os diferentes países”7.
O trabalho social que realizamos para os outros em determinada parte do mundo é diferente, tanto qualitativa quanto quantitativamente, do trabalho social que realizamos para os outros em outra parte do mundo. Na eventualidade de uma transação comercial entre diferentes regimes de valor regionais, o trabalho social de uma região pode acabar subsidiando e sustentando a economia e o estilo de vida de outra. Regimes de alta produção de valor, como aqueles baseados em setores produtivos trabalho-intensivos (por exemplo, México ou Bangladesh), podem estar sustentando regimes capital-intensivos de alta produtividade (como os Estados Unidos). E ainda mais grave: as usinas de engarrafamento de dívidas em Nova York e Londres, que produzem antivalor, cobram o resgate desse valor nas fábricas de Bangladesh e Shenzhen, e não nas quebradas de Manhattan ou Soho.
Esse argumento tem implicações de grande alcance. No Livro I d’O capital, Marx se pergunta como a igualdade pressuposta pelas relações concorrenciais de troca pode ser compatível com a desigualdade da produção de mais-valor. A resposta repousa na transformação da força de trabalho em mercadoria e na exploração do trabalho vivo na produção. No Livro III, Marx resolve outra surpreendente charada. A equalização da taxa de lucro por meio da concorrência força a troca das mercadorias não por seus valores, mas por seus preços de produção8. Os capitalistas recebem mais-valor de acordo com a força de trabalho que empregam. A redistribuição de mais-valor a que isso leva em situações de comércio aberto no interior da classe capitalista favorece produtores capital-intensivos em detrimento de produtores trabalho-intensivos.
A lei da redistribuição capitalista, conforme apresentada no Livro III, evoca alguns paralelos interessantes. O comitê do Senado encarregado de investigar a crise de 2007-2008 perguntou a Lloyd Blankfein, CEO da Goldman Sachs, como ele definiria o papel do banco. Ele respondeu que a função do banco era “fazer o trabalho de Deus”9. Presume-se que tinha em mente a injunção bíblica do Evangelho de Mateus (25:29): “porque a todo aquele que tem será dado e terá em abundância, mas daquele que não tem, até o que tem será tirado”. É isso o que a equalização da taxa de lucro faz. As consequências têm um alcance potencialmente longo, dada a insistência de Marx (e de Ricardo) de que o trabalho é a fonte última do valor. O comércio entre um regime capital-intensivo (tal como o da Alemanha) e regimes trabalho-intensivos (tais como o de Bangladesh) resultará na transferência de valor e mais-valor do segundo para o primeiro. Isso será realizado de maneira “silenciosa” e “natural” através do próprio processo do mercado. Para tanto, não são necessárias táticas imperialistas de dominação e extrativismo, mas a simples promoção de práticas de livre-comércio. Essa é a maneira “silenciosa” pela qual regiões ricas enriquecem à custa das regiões pobres, que vão ficando cada vez mais para trás. Por esse motivo, muitos dos ditos países em desenvolvimento recorrem ao protecionismo, particularmente no caso das chamadas “indústrias nascentes”. Isso também ajuda a explicar por que tantos países em desenvolvimento, a começar pelo Japão dos anos 1960, preferem organizar e subsidiar formas de desenvolvimento capitalista capital-intensivas, em vez de formas trabalho-intensivas10. Aquilo que se denomina “subir na cadeia de valor” em direção a produções de maior valor agregado torna-se uma ambição generalizada.”
2 Peter Haggett, Locational Analysis in Human Geography (Londres, Edward Arnold, 1965).
3 Karl Marx, O capital, Livro I, cit., p. 631, 632, 633.
4 Os detalhes dos esparsos comentários de Marx sobre esse tópico estão reunidos em David Harvey, Spaces of Capital. cit. cap. 12.
5 Karl Marx, O capital, Livro III, cit., p. 277.
6 Idem, Theories of Surplus Value, Part 3, cit., p. 106.
7 Idem, Theories of Surplus Value, Part 2, cit., p. 474-5.
8 Idem, O capital, Livro III, cit., cap. 9.
9 Dealbook, “Blankfein Says Hes Just Doing ‘God’s Work’”, The New York Times [coluna], 9 nov., 2009.


““Para os senhores economistas”, no entanto, “é terrivelmente difícil avançar teoricamente da autoconservação do valor no capital à sua multiplicação.”9 Nossa compreensão do mundo se torna refém da insanidade de uma razão econômica burguesa que não apenas justifica como promove a acumulação sem limites, enquanto simula uma infinidade virtuosa de crescimento harmonioso e melhorias contínuas e alcançáveis no bem-estar social. Os economistas jamais enfrentaram a “má infinidade” do crescimento exponencial infindável, que só pode culminar em desvalorização e destruição. Ao contrário, louvam as virtudes de uma burguesia que triunfantemente “capturou o progresso histórico e o colocou a serviço da riqueza”10. Esquivam-se sistematicamente de saber se as crises são inerentes a tal sistema. As crises, dizem eles, devem-se a atos de Deus ou da natureza ou a equívocos humanos e erros de cálculo (em especial aqueles que podem ser atribuídos a intervenções estatais equivocadas). Todos ou qualquer um desses motivos pode provocar um descarrilamento da máquina supostamente imaculada do infinito capitalismo de livre mercado. Mas os economistas insistem que a máquina em si permanece o epítome da perfeição. Quando se depararem com uma crise, os economistas só poderão alegar que, “se a produção fosse realizada conforme os livros didáticos, as crises jamais ocorreriam”.
Toda razão que eles [os economistas] levantam contra as crises é uma contradição exorcizada e, portanto, uma contradição real. O desejo de convencer a si mesmos da não existência de contradições e ao mesmo tempo a expressão de um vão desejo de que as contradições, que estão efetivamente presentes, não existissem.11
A ciência econômica contemporânea não tem contradições.
Foi nesse contexto que Marx decidiu dedicar tanto de seu esforço teórico e de sua vida intelectual à crítica da economia política e da loucura da razão econômica. Nesse processo, ele revela irracionalidades e “formas insanas” cada vez mais profundas no pensamento sistêmico e no programa político que supostamente nos conduziria a um utopismo da vida cotidiana. As leis contraditórias do movimento que ele identifica beneficiam unicamente a classe capitalista e seus acólitos, ao mesmo tempo que reduzem populações inteiras a exploração de seu trabalho vivo na produção, a escassas oportunidades em sua vida cotidiana e a servidão por dívida em suas relações sociais.
Marx descobre que a loucura da razão econômica burguesa é ainda mais exacerbada pelos crescentes antagonismos entre o valor e suas representações monetárias. À medida que o dinheiro se desprende necessariamente de qualquer lastro material (como as mercadorias-dinheiro ouro e prata), suas construções idealistas (como números de dólares, euros, ienes etc.) e, sobretudo, sua crescente manifestação na forma de dinheiro de crédito tornam-se vulneráveis aos caprichos dos juízos humanos, suscetíveis a excessos e manipulações de quem tem as rédeas do poder. “De sua figura de servo, na qual se manifesta como simples meio de circulação, converte-se repentinamente em senhor e deus no mundo das mercadorias”, cuja riqueza universal “pode ser tangivelmente incorporada às posses de um indivíduo singular”. O dinheiro é uma reivindicação individualizada sobre o trabalho social dos outros, exatamente da mesma maneira que a dívida constitui uma reivindicação sobre o trabalho futuro dos outros. O dinheiro confere a seu possuidor “o poder universal sobre a sociedade, sobre o inteiro mundo dos prazeres, dos trabalhos etc.”12. Do tempo de Marx para cá, ampliou-se enormemente o hiato entre a proliferação dessas reivindicações e a base de valor na qual elas supostamente estão lastreadas. Hoje, se todos se dirigissem aos bancos para sacar em espécie o equivalente de seus depósitos, levaria meses, se não anos, até que se conseguisse imprimir as notas necessárias. Todos os dias, 2 trilhões de dólares trocam de mãos nos mercados de comércio exterior.”
5 Idem, O capital, Livro III, p. 523.
6 Ibidem, p. 401.
7 Idem, Grundrisse, cit., p. 338.
8 Idem, O capital, Livro III, p. 442.
9 Idem, Grundrisse, cit., p. 210.
10 Idem, cit., p. 490.
11 Idem, Theories of Surplus Value, Part 2, cit., p. 468 e 549. Boa parte dos economistas reconhece as imperfeições de mercado provenientes de efeitos de externalidade e de imperfeições informacionais (e até as estudam enquanto “fracassos de mercado”). Os que possuem uma orientação mais keynesiana chegam a admitir um papel a ser desempenhado pelo Estado no sentido de garantir um gerenciamento adequado da oferta e da demanda agregada, principalmente voltado para amortecer as oscilações e os solavancos dos ciclos econômicos na esperança de eliminar crises e depressões. Mas o objetivo deles é fundamentalmente o de corrigir imperfeições e definir políticas otimizadas para balizar o envolvimento do Estado a fim de restaurar ao seu devido lugar o conceito do equilíbrio harmonioso. Nenhum deles, nem mesmo figuras como Paul Krugman, Joseph Stiglitz e Jeffrey Sachs, que reivindicam posições políticas progressistas, possuem qualquer concepção das contradições internas do capital ou dos perigos da má infinidade do crescimento exponencial infinito.


“O valor em Marx é trabalho alienado socialmente necessário. Na medida em que capital é valor em movimento, a circulação de capital implica a circulação de formas alienadas. Até que ponto essas alienações estão por trás das evidentes manifestações políticas de descontentamento e desespero?
A alienação inerente à valorização é bem conhecida e de longa data. O trabalhador que cria valor é afastado (alienado) dos meios de produção, do comando do processo de trabalho, do seu produto e do mais-valor. O capital faz com que pareça que muitos dos poderes inerentes (e dádivas gratuitas) do trabalho e da natureza pertencem a ele e se originam dele, porque é o capital que lhes confere significado. Até mesmo a mente e as funções corporais do trabalhador, assim como todas as forças naturais livremente investidas na produção, aparecem como poderes contingentes do capital, porque é ele que as mobiliza. A alienação da relação com a natureza é com a natureza humana e, portanto, uma precondição para a afirmação da produtividade e dos poderes do capital. Além disso, a produtividade do trabalho é conduzida por tecnologias escolhidas pelo capital não apenas para confirmar seu controle sobre o trabalhador mas também para minar a dignidade e os supostos poderes do trabalho tanto na produção quanto no mercado. A não ser que alguma resistência seja efetivamente mobilizada, o destino dos trabalhadores será o trabalho desprovido de sentido, empregos contingentes, desemprego e salários cada vez mais baixos. Não há dúvida de que em muitas partes do globo a alienação do trabalho vem se intensificando e aprofundando com as transformações tecnológicas, a supressão do poder organizado dos movimentos da classe trabalhadora e a mobilização da concorrência global por meio da reorganização dos regimes territoriais de valor no mundo. O desemprego e, não menos importante, o subemprego e a perda de sentido são subprodutos das fortes correntes de transformação tecnológica e organizacional. Os discursos utópicos sobre as novas configurações tecnológicas baseadas em inteligência artificial que estão nos conduzindo ao limiar de um admirável mundo novo de consumismo emancipatório e tempo livre para todos ignoram completamente a alienação desumanizante dos processos de trabalho residuais e dispensáveis que decorrem desse processo. É impossível ignorar os efeitos coletivos traumáticos e destrutivos do fechamento de indústrias manufatureiras sobre os laços sociais que uniam as pessoas em determinado tempo e espaço. Marx, por sua vez, considerava que era preciso traçar uma importante distinção entre trabalhadores que eram objetificados e explorados pelo capital, mas ainda sentiam que eram necessários (portanto mantinham certo orgulho e dignidade), e os trabalhadores que eram alienados, despossuídos e se sentiam descartáveis38. As condições de emprego decorrentes da mecanização e da automação tendiam para esse segundo tipo de trabalho. A perda da dignidade e do respeito é sentida quase tão duramente quanto a perda do emprego.
Mas há outras dimensões nesse problema. Trabalhadores são contratados individualmente e competem entre si por oportunidades de emprego. Eles precisam se vender ao capital como portadores de força de trabalho alardeando suas qualidades e ao mesmo tempo diminuindo e depreciando as de seus concorrentes. A concorrência entre trabalhadores frustra a cooperação e impede a construção de solidariedades de classe. Introduz toda sorte de fragmentações. Os trabalhadores passam a estranhar uns aos outros. Isso se torna ainda mais repulsivo quando se mistura ao racismo, as discriminações de gênero e de orientação sexual, as hostilidades religiosas, étnicas ou sexuais no mercado de trabalho (divisões que, historicamente, o capital promove com avidez). A concorrência aguda (sob condições de desemprego disseminado e maior integração espacial das forças de trabalho do mundo) está intensificando essas divisões e tensões no interior da força de trabalho, com consequências políticas previsíveis, particularmente em situações em que as solidariedades sociais anteriores se dissolveram por causa da desindustrialização. Foram esses, por exemplo, os sentimentos que Donald Trump soube explorar tão bem em 2016, em sua campanha à presidência dos Estados Unidos.
A alienação no processo de realização toma diversas formas e muitas vezes é uma faca de dois gumes. O estado das vontades, necessidades e desejos está sempre na origem da demanda. Marx considerava, sem ironia, que a criação de novas vontades e necessidades era parte da missão civilizatória do capital39. É difícil contestar essa opinião quando consideramos, por exemplo, todos os valores de uso que agora podem ser mobilizados para prolongar a expectativa de vida das pessoas, que nos primórdios do capitalismo era de 35 anos em média e hoje, em muitas regiões do mundo, é de setenta anos ou mais. O capital produz uma cornucópia de valores de uso a partir da qual as pessoas podem criar relações sociais e formas não alienadas de estar na natureza e umas com as outras. A potencialidade está lá. O mundo é repleto de brechas com espaços heterotópicos em que grupos buscam, em meio a um mar de alienação, construir modos não alienados de viver e de ser. As alienações experimentadas na produção podem ser recuperadas por meio do consumo compensatório de valores de uso que melhoram a qualidade da vida cotidiana40. Por outro lado, as vontades, necessidades e desejos do complexo militar-industrial, do lobby armamentista ou da indústria automobilística foram e continuam a ser fontes poderosas de demanda agregada, projetada pela influência corporativa sobre o aparato estatal e pelas escolhas impostas de estilo de vida. Suas contribuições ao bem-estar social são no mínimo dúbias. A base econômica de uma cidade como São Paulo é uma indústria automobilística que produz veículos que ficam horas parados em engarrafamentos, entupindo ruas, cuspindo poluentes e isolando indivíduos uns dos outros. Quão saudável é essa economia?”
36 David Harvey, 17 contradições e o fim do capitalismo (trad. Rogerio Bettoni, São Paulo, Boitempo, 2016).
37 Bertell Ollman, Alienation, cit.
38 Karl Marx, Grundrisse, cit.
39 Ibidem, p. 283-4.
40 Andre Gorz, Metamorfoses do trabalho: crítica da razão econômica (trad. Ana Montoia, Sao Paulo, Annablume, 2003); sobre os limites do consumismo compensatório, ver Karl Marx, Grundrisse. cit., p. 207 e seg.


“A relação entre o processo de realização e a história do consumismo se sobrepõe à evolução histórica dos distintos estilos de vida. A construção dos subúrbios e dos condomínios fechados nos Estados Unidos pode ter salvado o capitalismo global das condições de retorno à depressão econômica, mas também confinou as escolhas de habitação, de maneira que estejam ligadas não apenas a exigências materiais (por exemplo, ter carro e casa própria) mas também sejam acompanhadas de justificativas políticas e ideológicas de certo modo de vida (o chamado “american dream”) que limita e aprisiona, em vez de ampliar os horizontes da realização pessoal. A ascensão do “consumismo compensatório” nas classes trabalhadoras é complementada pelo consumismo conspícuo de “bens hedonistas” em todas as classes sociais, que não remontam a nada além de um desperdício conspícuo. A busca infindável de satisfação de vontades, necessidades e desejos — que não podem nunca ser realmente satisfeitos — vem necessariamente acompanhada do crescimento exponencial infindável da produção. Embora seja errado considerar a reconfiguração de todas as novas vontades, necessidades e desejos como “alienada”, não é difícil enxergar que as alienações estão proliferando na sociedade consumista que o capital necessariamente constrói e vem se intensificando em muitos lugares e em certas classes marginalizadas. O abismo entre a promessa e a realização vem se alargando.
Se a circulação de capital está sob imensa pressão competitiva para se acelerar, isso exige que haja também um aumento na velocidade do consumo. Eu ainda uso os talheres que eram dos meus avós. Se o capital produzisse apenas itens desse tipo, já teria afundado há muito tempo numa crise permanente. O capital desenvolve toda uma gama de táticas — da obsolescência programada à mobilização de pressões de propaganda e a moda como ferramentas de persuasão — para acelerar o tempo de rotação no consumo. Considere o caso de uma produção original da Netflix. O fato de eu a consumir não impede que outros também a consumam, e o tempo de consumo é de, digamos, cerca de uma hora — em comparação com os meus talheres, que já duram mais de cem anos. O valor implicado na produção e na transmissão do filme por meio de complexas infraestruturas de comunicação é recuperado pelos milhões de usuários que assinam a Netflix. Não é à toa que o capital tem cultivado uma “sociedade do espetáculo” a fim de garantir uma forma de crescimento do mercado de produtos efêmeros para consumo instantâneo41. As consequências sociais são amplas, e muitas delas são facas de dois gumes. A rapidez na transformação de estilos de vida, tecnologias e expectativas sociais faz com que se multipliquem as inseguranças sociais e aumentem as tensões sociais entre gerações, assim como entre grupos sociais cada vez mais diversificados. Todos parecem mais interessados em consultar seus smartphones ou tablets do que em conversar uns com os outros. O enraizamento dos significados culturais torna-se mais precário e aberto as reconstruções casuais, conforme as fantasias contemporâneas. Identidades flutuam em um mar de vínculos transitórios e efêmeros. Pessoas e produtos que correspondam a isso são necessários para que o capital cumpra a exigência de crescimento exponencial infindável. Da perspectiva da acumulação infindável de capital, é com isso que se parece o “consumo racional”.”
41 Guy Debord, A sociedade do espetáculo (trad. Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997).


“Convido os leitores a comparar essa sequência as linhas gerais do que ocorreu na crise financeira de 2007-2008 (substituindo “hipotecas” por “letras de câmbio”):
Num sistema de produção em que toda a rede de conexões do processo de reprodução se baseia no crédito, quando este cessa de repente e só se admitem pagamentos à vista, tem de se produzir evidentemente uma crise, uma demanda violenta de meios de pagamento. À primeira vista, a crise se apresenta como uma simples crise de crédito e crise monetária. E, com efeito, trata-se apenas da conversibilidade das letras de câmbio [hipotecas] em dinheiro. Mas a maioria dessas letras [hipotecas] representa compras e vendas reais, cuja extensão, que vai muito além das necessidades sociais e acaba servindo de base a toda a crise. Ao mesmo tempo, há uma massa enorme dessas letras [hipotecas] que representa apenas negócios fraudulentos, que agora vem à luz e estouram como bolhas de sabão; além disso, há especulações feitas com capital alheio, porém malogradas; e, por fim, capitais-mercadorias [casas] desvalorizados, ou até mesmo invendáveis [...]. Esse sistema artificial inteiro de expansão forçada do processo de reprodução não pode naturalmente ser remediado fazendo com que um banco, por exemplo, o Banco da Inglaterra [o Federal Reserve], conceda a todos os especuladores, com suas cédulas, o capital que lhes falta e compre todas as mercadorias depreciadas [casas] a seus antigos valores nominais. Além disso, aqui tudo aparece distorcido, pois nesse mundo de papel jamais se manifestam o preço real e seus fatores reais [...]. Principalmente nos centros em que se concentra todo o negócio monetário do país, como Londres, nota-se claramente essa distorção; todo o processo se torna incompreensível, mas em menor medida nos centros de produção.49
Isso nos leva a considerar o poder e a importância daquele aspecto da distribuição que opera como uma câmara de compensação para a conversão de dinheiro ocioso em circulação de capital portador de juros. É aqui, pela criação de antivalor e pela promoção de servidão por dívida, que a loucura da razão econômica assume o controle. Em um mundo com excesso de liquidez (denominação frequentemente usada pelo FMI em seus relatórios), esse dinheiro precisa ser mobilizado, centralizado e emprestado com a garantia e a certeza de uma produção futura de valor. A conversão de dinheiro excedente em uma forma de anticapital que demanda seu quinhão futuro é realizada nas instituições financeiras. O credor retém o direito de propriedade referente ao dinheiro ao longo do processo todo e espera receber de volta esse valor monetário em um prazo estipulado, acrescido de um excedente, que é o juro, e de um ganho de capital, que também pode ser alcançado com um aumento das valorações dos ativos da empresa na bolsa.
O gerenciamento geral dessa operação de conversão (ou metamorfose, como Marx preferiria se referir a ela) do dinheiro em antivalor está localizado em larga medida naquilo que chamei em outro lugar de “nexo Estado-finanças”50. Nos Estados Unidos (assim como na maior parte das democracias ocidentais), isso é constituído de um departamento do Tesouro (que tem sempre um estatuto especial no interior do aparato estatal) e de um Banco Central, que é o ápice do sistema bancário privado. A primeira estrutura desse tipo surgiu com a fundação do Banco da Inglaterra, em 1694. Uma carta régia de Guilherme e Maria concedeu monopólio bancário e garantiu amplos poderes a um grupo de comerciantes ricos em troca de crédito e financiamento a um Estado que havia sido quebrado pelo desregramento dos reis da Casa de Stuart. O equilíbrio de poder entre o Estado e as finanças se deslocou com o tempo. Desde que Bill Clinton admitiu, nos primeiros anos de sua presidência, que seu programa econômico dependia do consentimento dos credores, o posto de secretário do Tesouro dos Estados Unidos tem sido ocupado por alguém da Goldman Sachs.
Esse nexo Estado-finanças não é sujeito a controle democrático ou popular. Sua função é garantir a regulação e o controle do sistema bancário privado, em benefício do capital como um todo. A natureza das finanças, sugere Marx, é garantir o gerenciamento do “capital comum de uma classe”51. Da perspectiva do todo, o nexo Estado-finanças é análogo ao sistema nervoso central de qualquer totalidade orgânica. Ele sanciona e garante práticas de alavancagem que pegam dinheiro ocioso em depósitos e o convertem em anticapital. O papel do anticapital, como vimos anteriormente, é comprometer o futuro do maior número possível de agentes econômicos e condenar todos — consumidores, produtores, comerciantes, proprietários e até os próprios financistas — à servidão por dívida.
“O capital, como mercadoria de tipo específico” sempre teve “um modo peculiar de alienação”:
toda a enorme expansão do sistema de crédito, todo o crédito em geral, é explorada por eles como se fosse seu capital privado. Esses sujeitos possuem o capital e a receita sempre em forma de dinheiro ou de direitos que versam diretamente sobre o dinheiro. A acumulação da fortuna dessa classe pode ter lugar de maneira muito distinta da acumulação real, mas, em todo caso, demonstra que essa classe embolsa uma parcela considerável desta última.52
O problema é que a finança normalmente:
estabelece o monopólio [em certas esferas] e, com isso, provoca a ingerência estatal. Produz uma nova aristocracia financeira, uma nova classe de parasitas sob a forma de projetistas, fundadores e diretores meramente nominais; todo um sistema de especulação e de fraude no que diz respeito à fundação de sociedades por ações e ao lançamento e comércio de ações.53
Ademais, “se o mais-valor é concebido sob a forma sem conceito dos juros, o limite é apenas quantitativo” e a consequência disso, acrescenta Marx, “desafia toda a fantasia”54. A má infinidade mostra sua cara. O bônus que os operadores de Wall Street deram a si mesmos no período de crise “desafia toda a fantasia”. Foi isso o que causou indignação no movimento Occupy, que surgiu de repente no Zuccotti Park de Wall Street, em 2011.
O efeito disciplinador do ônus da dívida é vital para a reprodução da forma contemporânea do capital. Dívida significa que não somos mais “livres para escolher”, como supõe Milton Friedman em seu elogio do capitalismo. O capital não perdoa nossas dívidas, conforme pede a Bíblia, ele insiste que nós as quitemos com produção futura de valor. O futuro já foi anunciado e encerrado (pergunte a qualquer estudante que tenha 100 mil dólares de empréstimo universitário para pagar). A dívida nos aprisiona em certas estruturas de produção futura de valor. A dívida é o meio predileto do capital de impor sua forma particular de escravidão. Isso se torna duplamente perigoso quando o poder dos credores subverte e tenta aprisionar a soberania do Estado. É por esse motivo que a única maneira de o capital sobreviver é por meio da coerência e da fusão obtidas pelo nexo Estado-finanças. Com isso, completa-se o processo de alienação de populações inteiras de qualquer influência e poder reais. Nem o Estado nem o capital oferecem alívio às privações e aos desempoderamentos. Atenas é tradicionalmente celebrada como o berço da democracia. Hoje é apenas o berço da servidão por dívida, a total e completa demolição de qualquer democracia.
O poder corruptor e alienante do dinheiro — que, quando assume a forma de juro, age “como se tivesse amor no corpo”55 — é parte do problema. Não foi só Marx que reconheceu as alienações envolvidas. Até mesmo Keynes, um profundo defensor da ordem burguesa, mas ocasionalmente um afiado crítico, opinou sobre o tema:
Quando a acumulação da riqueza não for mais de grande importância social, haverá grandes mudanças nos códigos morais. Seremos capazes de nos libertar de muitos dos princípios pseudomorais que nos atormentam há duzentos anos, pelos quais elevamos algumas das mais repugnantes qualidades humanas a posição das mais altas virtudes. Seremos capazes de nos dar ao luxo de ousar avaliar o imperativo do dinheiro pelo que ele realmente vale. Amar o dinheiro enquanto posse — em contraposição a amar o dinheiro como meio para os gozos e as realidades da vida — será  reconhecido por aquilo que é, uma morbidez um tanto asquerosa, uma daquelas propensões semicriminosas, semipatológicas, que se deve encaminhar com um estremecimento aos especialistas em doenças mentais. Seremos finalmente livres para nos desfazer de todos os tipos de costumes sociais e práticas econômicas que afetam a distribuição de riqueza e de recompensas e penalidades econômicas, e que hoje conservamos a todo custo, por mais repugnantes e injustas que sejam, porque são tremendamente úteis à promoção da acumulação do capital.56
O fato de a riqueza humana, que deveria ter toda sorte de significados sociais, estar cada vez mais aprisionada na métrica única do poder monetário é por si só problemático.
De fato, porém, se despojada da estreita forma burguesa, o que é a riqueza senão a universalidade das necessidades, capacidades, fruições, forças produtivas etc. dos indivíduos, gerada pela troca universal? [...] [O que é senão a] elaboração absoluta de seus talentos criativos, sem qualquer outro pressuposto além do desenvolvimento histórico precedente [...]? [O que é senão um desenvolvimento] em que o ser humano não se reproduz em uma determinabilidade, mas produz sua totalidade? Em que não procura permanecer como alguma coisa que deveio, mas é no movimento absoluto do devir? Na economia burguesa — e na época de produção que lhe corresponde —, essa exteriorização total do conteúdo humano aparece como completo esvaziamento; essa objetivação universal, como estranhamento total, e a desintegração de todas as finalidades unilaterais determinadas, como sacrifício do fim em si mesmo a um fim totalmente exterior.57
É isso o que “desafia toda fantasia”. Esse é o mundo insano e profundamente preocupante em que vivemos.”
46 Karl Marx, O capital, Livro III, cit., p. 500.
47 Costas Lapavitsas e Heiner Flassbeck, Against the Troika: Crisis and Austerity in the Eurozone (Londres, Verso, 2015).
48 David Harvey, Para entender O Capital: Livros II e III cit.
49 Karl Marx, O capital, Livro III, cit., p. 547.
50 David Harvey, 17 contradições e o fim do capitalismo, cit.
51 Karl Marx, O capital, Livro III, cit., p. 416.
52 Ibidem, p. 396 e 535.
53 Ibidem, d. 496.
54 Ibidem, p. 449.
55 Johan Wolfgang von Goethe, Fausto, citado em Karl Marx. Grundrisse, cit., p. 587.
56 John Maynard Keynes, Essays in Persuasion (Nova York, Classic House Books, 2009), p. 199.
57 Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 399-400.

A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI (Parte III) — David Harvey

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-4430-374-0
Tradução: Artur Renzo
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 224
Sinopse: Ver Parte I

“Apesar de circunscrita em termos de enfoque, a análise que Marx faz da tecnologia está ligada a uma abordagem ampla de seu papel na trajetória evolutiva do capital. “A tecnologia”, escreve Marx em uma importante nota de rodapé d’O capital, “desvela a atitude ativa do homem em relação à natureza, o processo imediato de produção de sua vida e, com isso, também de suas condições sociais de vida e das concepções espirituais que delas decorrem.”4 “Desvelar” não significa “determinar”. Marx não era um “determinista tecnológico”. A visão disseminada, comum a muitos de seus detratores e defensores, de que ele considerava as transformações nas forças produtivas o principal motor da mudança histórica é incorreta. Sem dúvida, as relações contraditórias entre o dinamismo tecnológico e as relações sociais do capitalismo desempenharam um papel importante e frequentemente desestabilizador na história do capital, mas essa não foi a única contradição nessa história5. Da mesma maneira, a história pode até ser a história das lutas de classes, mas está longe de ser apenas isso. Muitas dessas frases de efeito de Marx podem induzir a erro. Deve-se sempre verificá-las no trabalho substancial de Marx para precisar de que maneira se deve interpretá-las. Por exemplo, por que ele escreveu o Livro II d’O capital sob a assunção da mudança tecnológica nula e não fez sequer uma menção à luta de classes? Certamente o conteúdo do Livro II é relevante para a evolução do capital, não? A grande discussão sobre serem as forças produtivas ou as relações sociais o primeiro motor do desenvolvimento capitalista acaba perdendo o ponto essencial. Ela não situa o estudo de Marx sobre a tecnologia no contexto da totalidade das relações que constituem uma formação social capitalista. Também assume, sem nenhum bom motivo, que deve haver um motor principal.
No Livro I, Marx nos convida a considerar como todos os diferentes “momentos” listados acima (aos quais acrescentei arranjos institucionais dos tipos descritos no segundo capítulo do Livro I para completar a lista) interagem e se relacionam uns com os outros. Nossas concepções espirituais dependem, por exemplo, de nossa habilidade de ver, medir, calibrar; hoje, temos telescópios e microscópios, raios-x, tomografias computadorizadas etc. que nos ajudam a compreender como o cosmo e o corpo humano funcionam. Mas, isso posto, devemos considerar por que alguém em determinado lugar concebeu algo como o telescópio ou o microscópio e quem descobriu os cortadores de lentes e artesãos para fabricá-los, além de um mecenas para usá-los (em geral em situação de antagonismo e oposição). O resultado foi o desenvolvimento de novas maneiras de ver, novas concepções do mundo da natureza e de nosso lugar nele por intermédio desses novos instrumentos. Como o poeta William Blake disse certa vez: “What now is proved was once only imagin’d[Aquilo que hoje está comprovado não foi outrora senão imaginado].
Todos os sete momentos — tecnologias, relação com a natureza, relações sociais, modo de produção material, vida cotidiana, concepções espirituais e estruturas institucionais — se relacionam no interior da totalidade do capitalismo em um processo de evolução contínua, movido pela circulação contínua de capital, que opera, por assim dizer, como o motor da totalidade. Desenvolvimentos em todos os sete momentos — todos autônomos e independentes, mas ao mesmo tempo sobrepostos e vinculados uns aos outros — podem conduzir a totalidade em uma ou outra direção. Pelo mesmo motivo, recalcitrância ou imobilidade em torno de qualquer um dos momentos podem atravancar transformações em processos que estão ocorrendo nos outros. Inovações tecnológicas na forma-dinheiro não levam a lugar algum, como vimos anteriormente, se não forem acompanhadas de no mínimo transformações paralelas nas relações sociais, nas concepções espirituais e nos arranjos institucionais. Novas tecnologias (como a internet e as mídias sociais) prometem um futuro socialista utópico, mas, na ausência de outras formas de ação, acabam cooptadas pelo capital e transformadas em novas formas e modos de exploração e acumulação. Mas, pelo mesmo motivo, mudanças autônomas em um dos momentos podem provocar transformações dramáticas em todo o conjunto. O surgimento repentino de novos patógenos, como HIV/Aids, ebola ou zika, exige rápida adaptação ao longo de todos os sete momentos. A dificuldade de nos organizarmos para lidar com a mudança climática é que isso exige mudanças drásticas em todos os sete momentos. O fato de algumas pessoas negarem o problema (concepções espirituais) ou acreditarem ingenuamente que há uma solução tecnológica única (capitalismo verde) que, como uma bala de prata, pode ser implementada sem mudar mais nada (como, por exemplo, as relações sociais dominantes e a vida cotidiana) faz com que as iniciativas sejam fadadas ao fracasso.
Boa parte da literatura nas ciências sociais favorece algum tipo de teoria unicausal da transformação social. Institucionalistas favorecem as inovações institucionais, deterministas econômicos privilegiam as novas tecnologias de produção, socialistas e anarquistas priorizam a luta de classes, idealistas preferem a mudança das concepções espirituais, teóricos culturais se concentram nas transformações da vida cotidiana, e assim por diante. Marx não pode nem deve ser lido como um teórico unicausal, ainda que diversas representações de sua obra o vejam assim. O Livro I d’O capital, em particular, não pode ser analisado dessa maneira, embora o texto dê muita ênfase aos impactos das adaptações e do dinamismo tecnológicos. Na obra substancial de Marx, não há um primeiro motor, mas um emaranhado de movimentos frequentemente contraditórios pelos diferentes momentos e entre eles que precisam ser identificados e destrinchados.
Isso não significa que em certos lugares e tempos um ou outro desses sete momentos não possa assumir um papel predominante na disrupção das configurações existentes ou na resistência obstinada a mudança. Assim, quando falamos de revoluções tecnológicas, revoluções culturais, revoluções políticas, revolução informacional ou revoluções nas concepções espirituais, além de contrarrevoluções em qualquer um desses campos, estamos reconhecendo a maneira contingente com que a história do capital se desenrola em geral por esses diferentes momentos e ao longo deles. Marx, é claro, almejava algum tipo de revolução socialista ou comunista (e em diversos momentos adotou uma visão um tanto teleológica do progresso inevitável rumo ao comunismo). Mas nunca foi capaz de especificar qual configuração desses sete momentos poderia suscitar tais transformações. O fracasso do comunismo soviético pode ser atribuído em larga medida à forma como a interação entre os sete momentos foi ignorada, em benefício de uma teoria unicausal segundo a qual o caminho correto para o comunismo eram as revoluções nas forças produtivas.
Em estudos históricos mais detalhados, assim como no próprio O capital, Marx ilustra a contingência disso tudo. O que constitui uma revolução não é um movimento político ou um evento disruptivo como a tomada do Palácio de Inverno. A revolução é um processo contínuo de movimentos que percorre cada um dos diferentes momentos. O capital é inerentemente revolucionário, de acordo com Marx, porque é valor em movimento sob condições de contínuo crescimento e contínua inovação tecnológica. Transformações perpétuas na tecnologia da valorização tem reverberações em toda parte. Mas a revolução neoliberal foi tanto uma revolução nas concepções espirituais populares quanto uma revolução institucional e tecnológica6. A mudança revolucionária consciente, por outro lado, implica uma redefinição e um redirecionamento de movimentos existentes em todos os momentos. As pessoas podem até mudar suas concepções espirituais, mas isso não significa nada, se elas não estiverem dispostas a mudar suas relações sociais, sua vida cotidiana, sua relação com a natureza, seu modo de produção e suas estruturas institucionais.
Mas, se é verdade que as formas organizacionais e as modalidades de operação são tão importantes quanto o hardware e o software é se a incorporação das relações sociais, do conhecimento, das habilidades e mentalités em forma de hardware é inelutável, então toda a questão do significado e do impacto da tecnologia na vida social e em nossa relação com a natureza, bem como em nossas relações sociais, torna-se muito mais complexa e difusa. Essa é, em meu entender, a grande importância do comentário de Marx numa nota de rodapé importante do capítulo 13 do Livro I. No entanto, eliminar as certezas que vem associadas a um reducionismo estreito (tecnológico, no sentido estrito de hardware, neste caso) tem a desvantagem do confronto com um mundo em que tudo está relacionado com tudo. Daí o anseio, ao qual devemos resistir, de designar um primeiro motor. Daí também a tendência a fetichizar a mudança tecnológica, não apenas como primeiro motor, mas também como resposta a todos os males.
Na medida em que tudo isso configura uma visão da obra de Marx um tanto diferente daquela que costuma ser propagada tanto por marxistas quanto por críticos de Marx, devo fornecer brevemente a evidência que a sustenta. Essa evidência é mais bem representada pela estrutura e pelo argumento do Livro I d’O capital. O capital não poderia ter surgido sem que certas condições preexistentes já estivessem estabelecidas. A troca mercantil, um sistema monetário apropriado, um mercado de trabalho em funcionamento, arranjos institucionais mínimos (como o indivíduo jurídico, as leis e a propriedade privada) e um mercado de consumo para absorver as mercadorias produzidas, todos esses elementos eram requisitos mínimos. Também um certo nível de produtividade e qualificação do trabalhador, bem como a disponibilidade de certos meios de produção básicos (como terra, ferramentas e outros instrumentos de trabalho, além de infraestrutura física, como transporte). Marx reconheceu que a produtividade inicial do trabalho dependia também de condições naturais (fertilidade e dádivas gratuitas da natureza, tais como cachoeiras, recursos minerais, processos biológicos de crescimento e reprodução de plantas e animais etc.), assim como de histórias e conquistas culturais (acumulação de habilidades, conhecimentos, concepções espirituais, relações sociais habituais, disciplina temporal etc.) de diferentes povos. As dádivas gratuitas da natureza e da história cultural da natureza humana são a base para a acumulação do capital começar. Essas dádivas gratuitas continuam a ser de grande importância, uma vez que o capital busca cada vez mais cercá-las e privatizá-las para extrair renda (por exemplo, impondo um preço sobre o conhecimento, que não possui valor).
Leia o Livro I d’O capital com cuidado e você verá com que frequência Marx reitera esses pontos. No capítulo 24 do Livro I, ele descreve quantas dessas precondições foram produzidas através dos processos de acumulação primitiva. A chave para o capital propriamente dito está, entretanto, na passagem da fabricação dos produtos (alguns dos quais podem ser trocados no mercado) à produção de mais-valor pela produção sistemática de mercadorias para o mercado. Esta última constitui o objetivo exclusivo dos produtores diretos. Tais produtores são definidos como capitalistas.
O capital se apropria dos processos e condições existentes e os transforma em algo perfeitamente ajustado aos requisitos de um modo de produção capitalista. O mesmo vale para as técnicas. Ele se apropria de antigas capacidades de cooperação (como aquelas demonstradas na construção das pirâmides do Egito) e as combina em uma forma organizacional adequada à reprodução de uma classe capitalista que procura colher para si todos os ganhos de produtividade advindos da cooperação e das crescentes economias de escala. Com isso, transforma as relações sociais entre o capital e o trabalho (com capatazes e administradores entre eles) no interior do processo de trabalho (ver capítulo 11 do Livro I). Da mesma maneira, apropria-se das divisões de trabalho preexistentes e separa cada uma delas em divisões planejadas de trabalho no interior da forma capitalista e em divisões de trabalho na sociedade coordenadas por indicadores do mercado. Cria novas hierarquias no processo de trabalho e sujeita tanto o capital quanto o trabalho à disciplina do capital na produção e à indisciplina dos processos anárquicos de mercado (ver o capítulo 12 do Livro I). Radicaliza técnicas antigas em larga medida por meio de transformações na escala da produção e na complexidade dos diferentes ofícios reunidos sob o comando do capital. Subdivide as divisões de trabalho existentes em divisões cada vez mais especializadas, formando partes de um todo muito maior. Por fim, chega-se a um ponto em que o capital precisa controlar o próprio processo de trabalho pela criação do sistema fabril. Marx caracteriza esse ponto como a passagem de uma subsunção formal (coordenações por intermédio de mecanismos de mercado) a uma subsunção real (sob a supervisão direta do capital) do trabalho no capital7. A tecnologia é organizada de maneira puramente capitalista pela instalação de uma fonte de energia externa situada para além da força manual do trabalhador.
O ponto alto vem com a produção de máquinas por máquinas (um insight espantoso de Marx, que somente agora, com o advento da inteligência artificial, está sendo plenamente elaborado). Repare que a construção de forças produtivas adaptadas a um modo de produção capitalista surge no fim dessa sequência, de modo que é muito difícil ver como as forças produtivas poderiam constituir a força motriz da transformação histórica, dada a narrativa construída por Marx8. Elas são efetivamente o resultado histórico desse processo. Seria típico de Marx tornar a defender que o que em determinada etapa é um resultado pode num momento posterior se tornar um agente motriz fundamental (algo que é provavelmente mais verdadeiro para a tecnologia e a forma organizacional de hoje do que para a do século XVIII).
Mas, ao estudar essas transições, Marx descreve cuidadosamente as outras transformações que precisam ocorrer para que esse movimento revolucionário seja efetivamente completado. Ele argumenta, por exemplo, que a produção, que antigamente era considerada uma arte repleta de mistérios, aprendidos por certa dinâmica de aprendizagem, deve se tornar uma ciência que, quando combinada com o controle capitalista do processo de trabalho, efetivamente define a tecnologia como uma esfera distinta de ação, própria do capital9. Sociedades pré-capitalistas possuíam techné, mas o capitalismo possui uma tecnologia que não admite mistérios, que disseca cientificamente a natureza a fim de exercer controle. Isso implica uma mudança de mentalidade não apenas em relação à produção em si mas também no que diz respeito à natureza, que tem de ser construída como um objeto morto (em vez de fecundo e vivo) aberto à dominação e manipulação humana (Marx cita Descartes aqui)10.
Enquanto isso, o trabalhador se torna um “indivíduo parcial”, preso em uma função particular da divisão do trabalho, sob o domínio da máquina — em vez de uma pessoa inteira, controlando seu próprio processo de trabalho11. A forma organizacional da fábrica e o sistema fabril constituem uma ruptura radical, como vimos, em relação à produção artesanal. A destruição desta última e sua transformação em trabalho fabril muda a natureza das relações sociais, assim como o emprego de mulheres e crianças e a reconfiguração da vida familiar e do trabalho no interior das classes trabalhadoras. Cria-se um novo fundamento econômico para uma forma superior da família12. A flexibilidade e a fluidez exigidas do trabalhador impõem:
a substituição dessa realidade monstruosa, na qual uma miserável população trabalhadora é mantida como reserva, pronta a satisfazer as necessidades mutáveis de exploração que experimenta o capital, pela disponibilidade absoluta do homem para cumprir as exigências variáveis do trabalho; a substituição do indivíduo parcial, mero portador de uma função social de detalhe, pelo indivíduo plenamente desenvolvido, para o qual as diversas funções sociais são modos alternantes de atividade.13
A regulação estatal se torna importante no que diz respeito à jornada de trabalho e às leis trabalhistas; ao mesmo tempo, o Estado determina a educação compulsória para garantir uma força de trabalho letrada e prontamente adaptável às necessidades cambiantes dos processos de trabalho em evolução do capital. Todas essas mudanças são mencionadas no capítulo 13 do Livro I.
Marx também assinala que:
O revolucionamento do modo de produção numa esfera da indústria condiciona seu revolucionamento em outra. [...] Assim, a fiação mecanizada tornou necessário mecanizar a tecelagem, e ambas tornaram necessária a revolução mecânico-química no branqueamento, na estampagem e no tingimento. Por outro lado, a revolução na fiação do algodão provocou a invenção da gin para separar a fibra do algodão da semente, o que finalmente possibilitou a produção de algodão na larga escala agora exigida. Mas a revolução no modo de produção da indústria e da agricultura provocou também uma revolução nas condições gerais do processo de produção social, isto é, nos meios de comunicação e transporte [...] o sistema de comunicação e transporte foi gradualmente ajustado ao modo de produção da grande indústria por meio de um sistema de navios fluviais, transatlânticos a vapor, ferrovias e telégrafos.14
Em determinado momento, entretanto, “a grande indústria teve [...] de se apoderar de seu meio característico de produção, a própria máquina, e produzir máquinas por meio de máquinas. Somente assim ela criou sua base técnica adequada e se firmou sobre seus próprios pés”15. É nesse ponto de O capital que Marx mapeia os efeitos da externalidade pelos quais se consolidou e se completou aquilo que ele denominava a “revolução industrial”.
Por fim, e possivelmente mais importante de tudo, a própria tecnologia se torna um negócio16. Com a invenção da máquina a vapor, surgiu uma inovação que teve múltiplas aplicações no campo dos transportes, da mineração, da lavoura e da moagem, sem falar das fábricas e seus teares mecânicos. É precisa aqui a analogia com os computadores nos dias de hoje e suas inúmeras aplicações. Uma vez que se torna um negócio, a tecnologia produz uma mercadoria — novas tecnologias ou formas organizacionais — que precisa encontrar ou até mesmo criar um novo mercado. Não estamos mais diante do empreendedor individual que tenta encontrar maneiras de aprimorar a produtividade por meio de invenções e inovações em seu próprio estabelecimento de produção, e sim de um vasto setor da indústria especializado em inovação e dedicado a vender inovações para os demais (tanto produtores quanto consumidores). A mercearia ou a loja de ferragens da esquina é instigada, persuadida e eventualmente forçada (pelas autoridades tributárias) a adotar uma sofisticada máquina de negócios para gerir seu estoque e controlar vendas, compras e impostos. O custo dessa tecnologia pode excluir do setor os pequenos negócios em benefício de grandes lojas e centros atacadistas, favorecendo, portanto, a crescente centralização de capital. A adoção de muitas dessas inovações depende de sua capacidade de disciplinar e desempoderar os trabalhadores, elevar a produtividade da mão de obra e aumentar a eficiência e a velocidade da rotação do capital tanto na produção quanto na circulação. Com isso, o capitalismo como um todo cai de amores pela transformação tecnológica e pela certeza do progresso econômico. A crença fetichista nas soluções e inovações tecnológicas como resposta a todos os problemas enraíza-se ainda mais, bem como a falsa ideia de que deve haver um primeiro motor. Essa crença fetichista é alimentada por aquele segmento do capital que transforma inovação e tecnologia em um grande negócio, com consultores especializados em formas organizacionais vendendo receitas para melhorar a gestão, empresas farmacêuticas criando remédios para doenças que não existem e peritos em informática insistindo em sistemas de automação que ninguém, além de uns poucos iniciados, consegue compreender. Empreendedores e corporações capitalistas não adotam inovações porque querem, mas porque são persuadidos a fazê-lo ou porque precisam fazê-lo a fim de obter ou manter sua fatia de mercado e assim garantir sua reprodução enquanto capitalistas.
Não é preciso aceitar o aparato conceitual de Marx para ver a coerência de seus argumentos a respeito das origens do fetichismo tecnológico. O fetichismo não é puramente imaginário, ele possui uma base muito real. A produtividade aparece como a grande chave para a estabilidade e o crescimento capitalista, e a taxa de lucro é crucialmente determinada por ela. Quando Alan Greenspan mostra que a questão dos ganhos de produtividade é colocada como o centro da dinâmica do capitalismo estadunidense, ele não está embarcando em divagações fictícias. O perigo, como vimos na recente conturbação dos mercados de capital, é atribuir aos ganhos de produtividade um papel que simplesmente não podem cumprir. Os ganhos de produtividade contribuíram para produzir a mazela da instabilidade e da volatilidade. Da mesma maneira, descompassos na produtividade produzem sérios problemas para a espiral de acumulação infindável17. Seria, portanto, completamente equivocado (e fetichista) procurar uma solução tecnológica para os dilemas atuais da instabilidade econômica. A resposta, com quase toda a certeza, terá de ser encontrada na transformação das relações sociais e políticas, bem como nas concepções espirituais, nos sistemas de produção e em todos os demais momentos do processo evolutivo, em combinação com as transformações tecnológicas e organizacionais que forem apropriadas para determinados fins sociais.
Isso não significa que o ímpeto geral da evolução tecnológica seja arbitrário e sem direção. A crença fetichista em soluções tecnológicas sustenta a visão naturalista segundo a qual o progresso tecnológico é ao mesmo tempo inevitável e bom, e não há nenhuma maneira de podermos ou até mesmo tentarmos controlá-lo ou redirecioná-lo coletivamente, muito menos circunscrevê-lo. Mas é característico dos construtos fetichistas tornar a ação social sujeita a crenças míticas. Embora tenham um fundo material, essas crenças escapam das restrições materiais para, uma vez aplicadas, acarretar consequências materiais muito claras.
Considere, por exemplo, o controle sobre o processo de trabalho, algo que sempre foi central para a valorização. A fantasia de que o trabalhador pode ser transformado em mero apêndice da circulação do capital entranha-se nesse processo. Muitos inovadores industriais adotam essa fantasia como sua principal meta. Um industrial francês, renomado por suas inovações na indústria de máquinas-ferramenta, proclamou abertamente que seus três objetivos eram estes: aumentar a precisão, aumentar a produtividade e desempoderar o trabalhador18. O sistema fabril, o taylorismo, a automação, a robotização e a derradeira eliminação do trabalho vivo por meio da inteligência artificial (IA) respondem a esse desejo. Robôs (exceto na ficção científica) não reclamam, não respondem, não processam, não adoecem, não fazem operação tartaruga, não perdem o foco, não entram em greve, não exigem salários melhores, não se preocupam com as condições de trabalho, não exigem pausas para o café e muito menos deixam de comparecer ao trabalho19. A fantasia fetichista de controle total sobre o trabalhador e da derradeira substituição deste por meio da tecnologia tem suas raízes no imperativo de aumentar a produtividade por qualquer meio possível.
No mercado de trabalho, o desemprego tecnologicamente induzido enfraquece o poder de barganha dos trabalhadores. Expedientes de desqualificação [deskilling] e homogeneização do processo de trabalho eliminam os poderes monopólicos que derivam de habilidades de trabalho não replicáveis. John Stuart Mili considerava “questionável que todas as invenções mecânicas já feitas tenham servido para aliviar a faina diária de algum ser humano”. Para Marx, isso era mais do que evidente, pois em seu entendimento o objetivo da maquinaria nunca foi aliviar a carga de trabalho, e sim elevar a extração de lucro do trabalho20. Ocasionalmente, os capitalistas reconhecem que a fantasia de controle total sobre a força de trabalho pela tecnologia das máquinas é débil e voltam-se para formas organizacionais de cooperação, colaboração, autonomia responsável, círculos de controle de qualidade, especialização flexível etc. O capital pode incorporar qualquer forma organizacional que os próprios trabalhadores possam propor e moldá-la conforme sua própria finalidade, que é a produção de mais-valor. O sonho se torna um pesadelo. Frankenstein está à solta, HAL, o computador de 2001: uma odisseia no espaço, segue sua vontade própria, os replicantes de Blade Runner buscam o poder e a perpetuação. Os poderes sombrios do antivalor surgem das sombras para desafiar a autonomia dos trabalhadores.
Se o trabalho vivo é fonte de valor e lucro, substituí-lo por trabalho morto ou robotizado não faz sentido nem político nem econômico. Para Marx, essa é uma das contradições centrais do capitalismo. Ela mina sua capacidade de se manter em trajetória de crescimento equilibrado. Mas também produz as consequências indesejadas que Marx explicita nos Grundrisse:
à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva passa a depender menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho empregado que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que — sua poderosa efetividade —, por sua vez, não tem nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que depende, ao contrário, do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação dessa ciência a produção. (Por seu lado, o próprio desenvolvimento dessa ciência, especialmente da ciência natural e, com esta, todas as demais, está relacionado ao desenvolvimento da produção material.) [...] [O trabalhador] interpõe o processo natural, que ele converte em um processo industrial, como meio entre ele e a natureza inorgânica, da qual se assenhora. Ele se coloca ao lado do processo de produção, em lugar de ser o seu agente principal. Nessa transformação, o que aparece como a grande coluna de sustentação da produção e da riqueza não é nem o trabalho imediato que o próprio ser humano executa nem o tempo que ele trabalha, mas a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão e seu domínio da natureza por sua existência como corpo social — em suma, o desenvolvimento do indivíduo social. O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza atual se baseia, aparece como fundamento miserável em comparação com esse novo fundamento desenvolvido, criado por meio da própria grande indústria. Tão logo o trabalho na sua forma imediata deixa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem de deixar, de ser a sua medida e, em consequência, o valor de troca deixa de ser [a medida] do valor de uso. O trabalho excedente da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza geral, assim como o não trabalho dos poucos deixa de ser condição do desenvolvimento das forças gerais do cérebro humano. Com isso, desmorona a produção baseada no valor de troca [...]. O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato] de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza. [...] Por um lado, portanto, ele traz à vida todas as forças da ciência e da natureza, bem como da combinação social e do intercâmbio social, para tornar a criação da riqueza (relativamente) independente do tempo de trabalho nela empregado. Por outro lado, ele quer medir essas gigantescas forças sociais assim criadas pelo tempo de trabalho e encerrá-las nos limites requeridos para conservar o valor já criado como valor.21
Isso tem sido destacado como a contradição central da evolução do capital, uma contradição com consequências de amplo alcance.
Uma vez que se tornou um negócio, a tecnologia fez o que todo negócio procura fazer: estender seu alcance, construir novos mercados e atrair investimentos de capital portador de juros para sustentar e ampliar sua posição como próspera esfera de criação de valor e mais-valor no interior da divisão geral de trabalho. Na época em que Marx escrevia, esse negócio estava ainda em suas etapas incipientes, formativas. No entanto, ele reconheceu claramente que as indústrias de máquinas-ferramenta e de engenharia mecânica (com o motor a vapor à frente) estavam destinadas a desempenhar um papel poderoso no setor da tecnologia por meio da criação de tecnologias genéricas. Mas, na medida em que estava concentrado sobretudo no processo de valorização no Livro I de O capital, Marx não chegou a investigar a fundo as novas tecnologias e formas organizacionais que estavam se desenvolvendo na realização, no consumo e na reprodução social (incluindo a reprodução da força de trabalho). Hoje, as tecnologias utilizadas num domicílio médio dos Estados Unidos estão muito além de qualquer coisa que Marx pudesse imaginar. Ele também não examinou em detalhes a complexa arena da distribuição (embora tenha reconhecido a importância das formas de organização industrial, como a empresa de capital aberto e as inovações no mundo bancário e financeiro, assim como a florescente esfera de criação de antivalor no interior do sistema de crédito). Marx não tinha muito que dizer sobre as rápidas transformações que ocorriam no campo das infraestruturas físicas, embora, é claro, os canais, os barcos a vapor, as ferrovias, os telégrafos e a iluminação a gás, assim como o abastecimento de água, tenham sido dignos de nota em seus escritos. Mas são mencionadas as tecnologias de administração estatal, saúde pública, educação e inovação militar. Está última é há tempos um centro importante de inovação no que diz respeito à concepção de novos produtos e novos modos de organização, softwares e hardwares. Formas militarizadas de vigilância e controle, de policiamento e regulação tornaram-se amplamente disseminadas. A tecnologia como negócio não demonstrou absolutamente nenhuma inibição a se aventurar onde Marx não se arriscou. Ela colonizou com gosto todas essas áreas.
A impressão que nos fica, ao ler Marx, é a do capital circulando com as combinações tecnológicas em constante transformação, muitas vezes de maneira disruptiva, no momento da produção, enquanto o restante do processo de circulação — realização, distribuição e reinvestimento — permanece intocado. A verdade, é claro, é que as tecnologias de circulação também sofreram mudanças dramáticas. A questão é saber até que ponto os insights e os comentários prescientes de Marx resistem ao escrutínio contemporâneo, considerados seus evidentes pontos cegos.
Penso que ninguém diria que mudanças tecnológicas na esfera da valorização são irrelevantes. Na medida em que Marx demonstra, em seu estudo, que o capital tem de ser tecnologicamente dinâmico a todo custo, isso configura uma afirmação universal a respeito da natureza do capital que vale tanto para a época de Marx quanto para a nossa. A transformação tecnológica e organizacional é endógena e inerente ao capital, e não exógena e acidental (como muitos estudos frequentemente a apresentam).
Marx identifica uma série de fatos relacionados que merecem nossa atenção. Em primeiro lugar, as inovações em uma esfera provocam efeitos de externalidade que proliferam de tal forma que há uma consequente difusão de impulsos tecnológicos e organizacionais ao longo da totalidade de qualquer sistema capitalista. Em segundo lugar, quando a tecnologia se torna um negócio autônomo, ela deixa de responder primariamente a determinadas necessidades e passa a criar inovações que precisam encontrar e definir novos mercados. A partir desse momento, ela precisa criar ativamente novas vontades, necessidades e desejos não apenas nos produtores (pelo consumo produtivo), mas também, como todos nós testemunhamos cotidianamente a nossa volta, nos consumidores. O negócio prospera e promove ativamente a crença fetichista na existência de soluções tecnológicas para todos os problemas. Em terceiro lugar, a maneira pela qual Marx situa essas mudanças tecnológicas em relação a concepções espirituais, relações sociais, relação com a natureza, vida cotidiana, materialidade da produção de mercadorias e arranjos institucionais do Estado e da sociedade civil segue firme como um modo de pensar que precisa urgentemente ser desenvolvido e articulado. Dessa perspectiva — que me parece uma maneira brilhante de organizar nossas próprias reflexões críticas —, é possível atacar todas aquelas teorias unicausais sobre a transformação histórica, inclusive a que é indevidamente jogada nas costas de Marx.
Por fim, as indicações sombrias de Marx a respeito do pensamento e da política equivocada que derivam do fetichismo tecnológico demandam atenção. Por exemplo, é simplesmente ridícula a ideia de que a construção de cidades inteligentes, geridas por meio da mineração de vastos conjuntos de dados, possa ser a resposta para erradicar todos os males urbanos, como a pobreza, as desigualdades, as discriminações racial e de classe e a extração de riqueza por meio de despejos e outras formas de acumulação por espoliação. É contraproducente, se não contrarrevolucionária. Cria uma névoa fetichista — uma grande distração — entre o ativismo político e as realidades urbanas, os prazeres e os desafios da vida cotidiana que precisam ser enfrentados.
A crença na inevitabilidade do progresso tecnológico e organizacional é antiga. Recentemente, sofreu alguns baques e, se pudermos nos fiar na cultura popular contemporânea, vem sendo cada vez mais desafiada por imaginários distópicos. Marx nos mostra uma maneira de sair do binarismo utópico/distópico e procurar caminhos tecnológicos práticos que encaram a necessidade gritante de novas relações sociais, novas concepções espirituais, novas formas de nos relacionar com a natureza e todas as outras transformações exigidas para sairmos do atoleiro atual. A tendência de fetichizar a tecnologia é um empecilho que precisa ser eliminado e, nesse ponto, Marx é um crítico tão bom quanto qualquer outro. No entanto, também é verdade que a gama de possibilidades e de combinações tecnológicas que hoje nos cerca é maior do que nunca na história humana. Sobre esse ponto, permanece firme o insight marxista básico: o problema da política emancipatória é liberar as imensas forças produtivas de suas amarras sociais e políticas, em suma, da dominação do capital e de uma forma particularmente nefasta de certo aparato estatal de mentalidade imperial e cada vez mais autoritário. Essa tarefa não poderia ser mais clara.”
4 Ibidem, n, 89, p. 446.
5 Turan Subasat (org.), The Great Meltdown of 2008, cit.; Neil Larsen et al. (orgs.), Marxism and the Critique of Value, cit.
6 David Harvey, O neoliberalismo: história e implicações (trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Goncalves, São Paulo, Loyola, 2005).
7 Karl Marx, “The Results of the Immediate Process of Production”, cit., p. 1.019-49.
8 David Harvey, “Crisis Theory and the Falling Rate of Profit”, cit.; Karl Marx, O capital, Livro I, cit.
9 Karl Marx, O capital, Livro I, cit., p. 556.
10 Idem.
11 Ibidem, p. 558.
12 Ibidem, p. 560.
13 Ibidem, p. 558.
14 Ibidem, p. 457-8.
15 Ibidem, p. 458.
16 Idem, Grundrisse, cit., p. 654-5.
17 Robert J. Gordon, The Rise and Fall of American Growth; The U.S. Standard of Living since the Civil War (Princeton, Princeton University Press, 2016).
18 Denis Poulot, Le sublime (Paris, Maspero, 1980).
19 Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, The Second Machine Age: Work, Progress, and Prosperity in a Time of Brilliant Technologies (Nova York, Norton, 2014).
20 Karl Marx, O capital, Livro I, p. 445.
21 Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 588-9.