sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Vida de Luís Carlos Prestes: o Cavaleiro da Esperança - Jorge Amado

Editora: Record
ISBN: 978-85-0106-258-1
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 400
Sinopse: Jorge Amado decidiu escrever a biografia de Prestes em 1941, como forma de pressionar pela libertação do líder revolucionário, preso desde 1936. Viajou então ao Uruguai e à Argentina, onde Prestes havia se exilado anos antes. Escrito em Buenos Aires, o livro foi publicado em 1942, em espanhol – e os primeiros exemplares eram negociados clandestinamente no Brasil. Até que a edição argentina também foi proibida e queimada por ordem do governo de Juan Domingo Perón. A primeira edição brasileira saiu em 1945. Com o golpe militar de 1964, o livro voltou a sumir das livrarias, e só reapareceu em 1979.
Movido por esse espírito engajado, Jorge Amado narra os momentos mais dramáticos da trajetória de Prestes: a épica coluna que atravessou o Brasil entre 1924-27, o exílio, a tentativa frustrada de levante contra Getúlio Vargas em 1935, a prisão na solitária, a entrega de Olga Benário – grávida de Anita Leocadia – ao governo nazista, a campanha internacional de Leocadia, mãe de Prestes, pela libertação do filho e de Olga, e pela guarda da filhinha do casal.

“Certa vez – era noite de chuva e vento – íamos pela rua pobre de uma cidade distante. Íamos curvados, teu corpo bem junto ao meu. Do escuro de uma sala, através da madeira das janelas, o rumor de vozes de homens em uma prática amarga chegava até nós. E, de súbito, na sala alguém disse um nome. E desapareceu a amargura e o desespero, ficou só a esperança. Também sobre nós, sobre a chuva e o vento, brilhou na rua pobre uma estrela. Houve uma alegria de primavera na noite chuvosa de inverno. Outra vez nós vimos os homens que iam presos. Sorriam, não eram ladrões, nem assassinos, não exploravam mulheres, nem vendiam tóxicos. Os que os levavam eram ladrões, assassinos, exploravam mulheres e vendiam tóxicos e eram a polícia. Os presos sorriam, as mulheres que os viam passar choravam, os homens apertavam os punhos. Alguém murmurou um nome, o nome de outro preso. E a esperança brilhou no sorriso dos que iam presos, nas lágrimas das mulheres, nos punhos cerrados dos que ficavam. Luz de uma estrela que empalideceu os assassinos, ladrões, cáftens, cocainômanos que eram a polícia.”


“Te contarei a história do Herói, amiga, e então não terás jamais em teu coração um único momento de desânimo. Como naquelas noites em que o seu nome, balbuciado por vezes a medo, afastava a amargura e o terror, agora eu falarei dele pra que tu e o povo do cais que me ouve saibam que podem confiar e que a noite não é eterna. Eterna no mundo, amiga, só o povo e a memória dos seus Heróis e dos seus Poetas. É curto o tempo dos tiranos, é curta a noite da escravidão. E tão bela é a manhã da liberdade que vale a pena morrer por ela, dar a vida pela certeza de que ela vem, que chegará para os homens. Mas, ah!, amiga, morrer é fácil, seja por uma mulher, seja pela liberdade! Difícil é viver uma vida de sofrimento e de luta, sem desanimar e sem desistir, sem se vender, sem se curvar. Mais que a morte, a liberdade pede a vida de cada um, todos os seus momentos, todas as suas forças.”


“Nunca é caro, amiga, o preço da liberdade, mesmo quando é mais que a morte, é a vida no exilo ou na prisão.”


“Por maior que possa ser a sujeira sob a ditadura, a dignidade de Prestes, por si só, é suficiente para lançar uma luz sobre esse charco, uma luz de esperança.”


“Esse rapaz lhes mostrava todos os dias que ninguém pode viver somente para si existindo os homens lá fora, estrangulados pela fome de pão de liberdade e de cultura. Aprendia para que todos aprendessem. Com Luís Carlos Prestes, amiga, toda uma geração de cadetes estudou em função do povo.”


“Esse povo do Brasil, negra, é um povo heroico. Eu queria ser dono dos adjetivos do mundo para te falar sobre ele. Queria saber as palavras mais doces, as mais ternas e as mais humanas e as mais heroicas para te dizer da coragem e da confiança que latejam no coração da gente brasileira. Pisado e acorrentado, ignorado e desprezado, de mãos atadas, de boca cerrada, comendo o indispensável para não morrer, traído e insultado, o povo do Brasil não desespera e não se tranca numa indiferença suicida. Luta, clama, grita, brada e cria do seu sangue os seus líderes e os seus heróis. Heroico povo esse, resistente e digno, esperança sem fim nas suas canções, esperança nos seus gritos, esperança nos dias de desgraça que nada mais são que a véspera do dia da liberdade. Tremem os donos do dinheiro e do poder porque nunca serão donos da vontade desse povo, nunca conquistarão seu libertário coração rebelde. Nunca esse povo se desesperou nem nos momentos mais angustiosos. Clamou sempre, numa luta de todos os minutos para rebentar as cadeias que prendem os seus pulsos. Gritou com Tiradentes e com os poetas mineiros na aurora da liberdade, nos dias da Inconfidência. Na voz de Alvarenga e Gonzaga, no martírio e na nobreza do alferes esquartejado. Gritou nos dias da Independência, a voz enorme de José Bonifácio. Gritou com Zumbi, nas selvas dos palmares, gritou com os negros nas selvas do Cubatão, gritou na Bahia na revolta do alufá Licutã na frente dos negros malês. Gritou nas ruas do Recife, gritou pela boca de Frei Caneca sorridente diante do pelotão de fuzilamento. Pela boca dos gaúchos na revolta do Sul. Com Benjamim nos dias da república. Com a maior das suas vozes, clamor de beleza na voz de Castro Alves, construindo liberdade. Gritou com a serena força de Floriano Peixoto consolidando a república e defendendo a integridade da Pátria. E seu clamor continuava, subterrâneo, insistente, cada vez mais poderoso. Heroico povo esse, amiga! No seu sofrimento gerava dolorosa mas tenazmente o seu Herói, sua voz e sua espada. Humanização desses gritos, o povo concebia Luís Carlos Prestes. Nascido do sangue de Tiradentes e da voz de Castro Alves. Do coração do povo. Sua voz e sua espada.”


“Na Academia Brasileira de Letras, amiga, um homem do país dos rios falava da Grécia. Coelho Neto era de um dos três estados amazônicos, Amazonas, Pará, Maranhão, seus destinos ligados ao grande rio. Havia o cearense, o português, o sírio, o índio, o homem rico e o homem pobre, não havia mulheres, havia a selva, a tragédia, o drama, o inferno em vida. A Amazônia era milhares de romances, de artigos, de poemas. Coelho Neto era símbolo e o chefe de toda uma literatura. Dos homens que haviam substituído na prosa a geração de Aluísio Azevedo, de Raul Pompéia, de Machado de Assis, de Euclides da Cunha e na poesia a geração de Castro Alves. Coelho Neto, Príncipe dos Escritores Brasileiros, considerado o maior de todos os que escreviam no país naquele momento, a literatura dando-lhe um lugar na Câmara, outro lugar na direção de um clube de futebol, dando-lhe empregos. Publicou duzentos livros. Sua letra bonita encheu milhares de folhas de papel, frases, adjetivos, verbos, substantivos, imagens trabalhadas, períodos estudados, os problemas da língua portuguesa de Lisboa caprichosamente analisados. Nem uma linha nesses milhões de linhas sobre os homens lutando na Amazônia, nem uma linha, nem um desaforo, nem um xingamento, contra os que vendiam a Amazônia. A literatura de toda essa geração sem fibra, sem nervos, toda uma geração vendida por migalhas, é a mais sórdida, inútil e falsa literatura do mundo. Mulatos do nordeste e do norte, mestiços do sul, imigrantes de São Paulo, falando todos eles na Grécia. São Luís do Maranhão não é uma cidade do Norte do Brasil: é a Atenas Brasileira, se orgulhando de falar português puro.
A política vendia o país, contraía empréstimos, girava em torno de um produto, ora a borracha, ora o café, ora o açúcar, os literatos ignoravam o país. O povo ignorava os literatos e estes vendiam seus livros em Portugal, quando os vendiam. Para essa geração de sensibilidade de moça-da-cidade-pequena o Brasil não existiu. A literatura era escada para empregos, o livro e o artigo matéria para brilho social. Foi essa geração, amiga, quem pariu num aborto cretino a célebre frase: a literatura é um sorriso da sociedade. A sociedade bailava nos salões pagando com ouro estrangeiro a orquestra, pagando com dólar, libra, com marco, com franco, os vestidos, os sapatos, os sorrisos das mulheres, os sorrisos dos literatos. A tradição de luta e de brasileirismo da literatura nacional se perdia nesses desfibrados, maus escritores além de tudo, reles imitadores de quanta porcaria se publicava na Europa. Comprados por míseros empregos, respondendo à sensibilidade de uma burguesia que não a possuía, preocupados com ridículas questiúnculas gramaticais, trancados numa torre que não era de cristal porque não era de um vidro fosco e opaco, esses mulatos pernósticos do Maranhão, de Pernambuco e da Bahia, esses filhos de imigrantes de São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que falavam em Grécia e Paris. Traíam a sua missão de escritor, desconheciam seu povo, empregavam sua voz apenas em cantar ditirambos aos vendedores da pátria. Resultavam da classe que enriquecia à base da entrega do Brasil aos imperialismos. Por isso mesmo tinham de ser neutros, apolíticos e medíocres.”


“Nas noites longas de estrelas sobre os rios, a água parada, os homens lembram, para os meninos sertanejos condutores de cegos e guias para cangaceiros, o tropel numeroso e épico da Coluna. Vinham mil homens, mil e quinhentos, por vezes eram só oitocentos, vinha a liberdade com eles. Antes eram as tropas do governo, o ódio ao povo, os desatinos contra o povo. Depois, quando longe estivesse a Coluna redentora, seriam de novo a injustiça e a opressão do governo. Mas, no rastro da Coluna, ficava a esperança. Um dia ela voltará para sempre e com ela a liberdade. E com ela a justiça e o amor e a alegria.”


“Não é apenas a coragem nos combates, o arriscar a vida a cada momento. É também, e principalmente, o conceber os planos vitoriosos, a percepção do momento perigoso e de como sair dele. É a arte da guerra que um rapaz de vinte e seis anos conhece como o mais experimentado dos generais. Nem o mais empedernido jogador nem o mais sábio dos generais apostaria um tostão em que a Coluna seria capaz de realizar sequer uma marcha de 100 quilômetros. Forças infinitamente maiores contra ela. E a natureza bravia, a fome, as doenças, os animais da selva, os rios intransitáveis, as montanhas jamais escaladas, a mata, a caatinga, nenhuma estrada. Prestes marchou com a sua coluna vinte e seis mil quilômetros.”


“Esse país inexplorado de Mato Grosso e Goiás, terras que nunca acabam, fazendas como nações, tudo primário, bárbaro e desconhecido. Até aqui não chegaram as leis, amiga, nem mesmo essas leis já agora tão deficientes para as capitais e os estados mais civilizados do litoral. Aqui, os senhores feudais criaram as suas leis próprias, as mais bárbaras, as mais brutais. Nestas terras a abolição nunca se deu, a gente continua escrava de uns poucos homens donos da terra. Em cada uma destas fazendas, negra, poderias pôr uma nação da Europa e sobraria terra.
Aqui são os tempos da Colônia ainda, amiga. Esses latifúndios da Mate Laranjeira, esses latifúndios dos senhores feudais, os homens como os mais miseráveis escravos, sem nenhum direito, sem uma lei que os proteja, são uma visão dantesca.”


“Deram aos soldados do povo todos os nomes: Coluna da Morte, Coluna Fênix, Coluna Invicta, Coluna Prestes. E dizendo Coluna Prestes o povo dizia Coluna da Esperança. Na sua frente o Cavaleiro da Esperança, Luís Carlos Prestes, suas barbas crescidas, seus olhos ardentes, sua face tranquila, seu sorriso triste mas confiante. Cavaleiro do povo.”


“Lampião se havia oferecido a Prestes, o general recusara sua adesão. Lampião foi dono desses estados do Nordeste durante muitos anos. Partira da injustiça dos donos da terra, das leis bárbaras contra os pobres para a vingança do cangaço. A revolta virando banditismo, saque, estupro e morte. O governo contrata Lampião para combater a Coluna. Ele é feito capitão num insulto ao exército, mais um insulto da tirania da época. E como ele, quanto cangaceiro existia no nordeste, o governo arrebanhou para lançar contra Prestes. Foram os homens do padre Cícero, taumaturgo do Ceará. Na esperança dos seus milagres, da sua intimidade com a Virgem, se dependuravam as populações nordestinas. Viajam léguas e léguas para tomarem a benção ao padre Cícero. Juazeiro do Ceará, sua cidade e sua fortaleza, era o reduto onde os cangaceiros se homiziavam. Padrinho de Lampião, prometendo a toda gente desgraçada um milagre caído do céu, do manto estrelado da Virgem, que um dia melhorasse as suas vidas. O padre Cícero não aceitou tomar parte na luta contra Prestes. Talvez que, na sua loucura religiosa, na sua bondade atrapalhada, querendo ajudar os sertanejos, não tendo para lhes dar senão os milagres, desconhecendo os caminhos que poderiam levar os homens a uma vida melhor, talvez ele tenha sentido que com Prestes vinha a palavra verdadeira de libertação para os seus sertanejos infelizes. Não aceitou luta contra ele, mas todos os Floros Bartolomeus, que exploravam o seu prestígio de santo supersticioso junto aos nordestinos, aceitaram de bom grado o dinheiro e os postos militares, armaram os cangaceiros e saquearam cidades e vilas, povoados e fazendas, já que não conseguiram vencer a Coluna.
É que, amiga, se tornava cada vez mais difícil ao governo formar os batalhões de voluntários. Esses voluntários eram caçados a laço pelos senhores feudais, os donos dos latifúndios de Mato Grosso e Goiás. Os seus escravos que eram lançados contra a Coluna, aparecendo nos jornais de Bernardes, sob a censura carola de Jackson de Figueiredo, como patriotas que se alistavam para defender a boa causa. Os feitos da Coluna, os militares e os sociais, a distribuição de justiça, impossibilitaram, no nordeste, a caça desses voluntários pelos chefes políticos. As populações desertavam para não formarem contra Prestes. O governo teve de recorrer aos cangaceiros, bandidos de profissão, terror dos sertões, para formar tropas contra a Coluna. Foi assim, amiga, que Virgulino, o que foi decapitado anos depois nas margens do São Francisco foi feito capitão. O capitão Virgulino Ferreira Lampião, homem de Bernardes contra Prestes. Rezavam os governistas por Lampião, o que deflorava virgens, matava inocentes, capava gente, roubava ricos e pobres. Por ele o padre-nosso e a ave-maria.
Luís Carlos Prestes vencera o impaludismo, o sol, as florestas e os rios. Vencia os cangaceiros também. Seu nome, como uma chicotada nas faces dos inimigos do povo, ressoava sob os céus do país. Nos lares pobres, nas choças, nos mocambos, nas senzalas do país, as mulheres de faces cavadas, as crianças doentes, os homens escravizados imploravam aos céus, aos seus deuses misturados, brancos, índios, negros, deuses mesclados de religiões e superstições, imploravam pela vitória do Cavaleiro da Esperança. Também da caatinga sobem preces para os céus, amiga.”


“As lendas ficavam na rabada da Coluna, amiga, marchavam também na sua frente. Nesta terra de superstições e história, de bandoleiros e profetas, nessa terra agreste do sertão, as lendas surgem a cada instante acerca de cada coisa. Os fantasmas habitam todo o interior do Brasil, milhares de assombrações morando nas matas, a poesia como em ondas na boca dos cegos violeiros, dos pretos narradores, das negras velhas que embalaram o sono das crianças brancas e mulatas. Nestas terras, amiga, os poetas transformados em heróis de aventuras, nunca ninguém soube onde ficam os limites da realidade e da imaginação. Lendas dos negros, lendas que vieram da África para as costas da Bahia e de Pernambuco. Lendas dos índios nas selvas de Goiás e Mato Grosso. Por entre elas atravessava a Coluna Prestes. E dela, desse punhado de soldados destemidos, nasciam igualmente as lendas. A Coluna conduzia o heroísmo e a justiça, conduzia a poesia também, amiga. No seu rastro as lendas, as lendas na sua frente.
Já te disse que, na voz dos sertanejos, os soldados da Coluna só comiam as partes dianteiras dos animais, para assim adquirirem aquela espantosa rapidez de movimentos que caracterizou a Grande Marcha. As patas dianteiras arrastam para frente, as patas de trás são as que querem ficar. Nas patas dianteiras está o segredo das marchas velozes. Assim o contam os sertanejos, amiga, assombrados ante a ligeireza dos movimentos da Coluna.
Nasciam as lendas das potreadas audaciosas, nasciam das vivandeiras valentes, nasciam do heroísmo dos oficiais, do gênio de Prestes. Para o interior a Coluna era o inédito, o nunca visto e o nunca esperado. As populações estavam acostumadas com os cangaceiros roubando, queimando, destruindo, violando, propriedades e mulheres, com a polícia que perseguia os cangaceiros e que em nada se diferenciava deles. Um grupo de homens armados representava sempre para o camponês do interior uma ameaça à sua vida, à sua família, aos seus parcos bens. Era sempre um aumento das suas desgraças, no bando vinham novas leis ainda mais terríveis que as escravizadoras leis dominantes. A lei do cangaço, a lei da polícia que perseguia o cangaço. Junto com as enchentes, os rios transbordando, levando as plantações e o gado, junto com as secas, o sol comendo as safras, sugando o sangue dos animais até matá-los, os cangaceiros e a polícia eram o tráfico cotidiano do sertão. No seu folclore tão sofrido, conduzido através do país nas violas dos cegos esmoladores, essas eram as personagens das lendas, dos cânticos, das histórias e dos ABCs.
A Coluna era diferente. Aqueles homens armados, lutando todos os dias, barbados, cabeludos, sujos e esfarrapados, vestidos de couro como os cangaceiros, como os vaqueiros tocadores de gado, ardendo em febre nas caminhadas, a maleita agarrada neles, não traziam a morte, o roubo, o crime, a violação no lombo dos seus cavalos, no rastro dos seus pés andarilhos. Traziam algo que o sertão desconhecia, algo que nunca estivera presente nos júris, nas administrações, nos impostos, nas contas com que os coronéis liquidavam com os trabalhadores: a Coluna trazia a justiça, amiga, era impossível de crer!”


“Essas populações aprenderam a respeitar os padres, houve um tempo em que o clero pobre defendeu os seus interesses. Depois uma grande parte dos padres ficou com os ricos, seus instrumentos de escravidão. Mas a lembrança dos padres bons restara no pensamento do sertão. E quando a Coluna chegava, os camponeses beijavam, por vezes, a mão de Miguel Costa e o tratavam de Bispo, como quem lhe dava um nome bom. Como confundiam uma vivandeira com a princesa Isabel, a que ficara na memória dos pobres porque assinara o decreto de libertação dos negros. Mas Prestes era um mistério maior: nos seus olhos ardentes os sertanejos viram o dom de adivinhar. Adivinhava o pensamento de todos, ninguém lhe podia esconder nada. Para ele não havia segredos, nem os homens, nem os animais, nem a natureza bravia podiam com ele. Era maior que todos, era um adivinho.”


“Nesse momento da entrada na Bahia, a Coluna contava com um total de mil e duzentos homens. A cerca de trinta mil homens subia o número das tropas governistas espalhadas entre a Bahia, Pernambuco e Minas. Três ou quatro vezes maior ainda era o total de soldados que o governo aliciara por todo o país para perseguir os mil homens de Prestes. Dezoito generais, vários coronéis são derrotados durante a Grande Marcha. O governo empregou todos os seus recursos militares na tentativa de derrotar a Coluna. Sem resultado. Prestes brincou com essas forças contrarrevolucionárias, fez delas o que quis, fê-las andar para a frente e para trás, se juntarem num estado quando ele queria entrar noutro, lutarem entre si, fugirem inúmeras vezes, se desorientarem sempre. Na sua visão genial, o adivinho dos sertanejos previa com um acerto absoluto os movimentos do inimigo, não lhe dava tempo a surpresas. Oferecia-lhe combate quando o achava necessário, enganava os bernardistas todas as vezes que desejava.”


“O São Francisco, amiga, é como a veia arterial do Brasil. Seus problemas, suas riquezas, seus dramas são o cerne dos problemas, das riquezas e dos dramas do Brasil. Existe toda uma literatura sobre esta região. Fortunas se edificaram aqui, aqui a escravidão é um drama banal. Prestes vai estudar estes problemas, como estudou os demais problemas do Brasil, em carne viva. Marchando através deles, vivendo-os.”


“Os soldados, amiga, olham uns para os outros, murmuram entre si frases de assombro. Não é mesmo um homem aquele general, é um feiticeiro, aquela Coluna é mesmo mal-assombrada, aparece e desaparece, onde ela está que ninguém sabe? Os soldados do governo nessas perseguições sem resultados, no mar de notícias contraditórias que arrancavam das populações sertanejas, afogados em lendas sobre a Coluna e o seu chefe, terminam tomados de terror diante do sobrenatural que para eles era a Coluna Prestes. Se nem os próprios generais do exército sabiam e podiam explicar os movimentos audaciosos, os súbitos desaparecimentos, os aparecimentos ainda mais súbitos, as vitórias consecutivas da Coluna, como não haveriam os soldados supersticiosos de imaginar mil coisas, de tremer todas as vezes que tinham que se lançar no rastro da coluna?”


“Assim havia de marchar duzentas léguas por terrenos como este. A flora inimiga, a fauna inimiga também, negra. Nessas terras do sem fim, não resistem outros animais que as cobras e os lagartos, os répteis mais imundos, mais traiçoeiros e mais venenosos. Aparecem na margem da picada, o seu silvo aterrador, o seu beijo da morte. As folhas secas estalam sob as passagens das cobras, dos lagartos ficados do princípio do mundo, animais de outras eras distantes que ainda viviam naquelas terras, terras que pareciam elas também de um passado remoto. De entre as coroas-de-frade e as unhas-de-gato, a cascavel e a jaracuçu, as grandes cobras da mata, espiam a marcha da Coluna Prestes. Os homens vão com sede, vão com fome. Silvam as cobras, a cabeça-de-platona, a pico-de-jaca. Estremecem os homens no horror do animal venenoso, mas seguem. Na frente vai Prestes, quem pode ter medo quando o acompanha?”


“Para que o leitor tenha uma ideia da confiança que os oficiais e os soldados da Coluna depositavam em Prestes, cito as seguintes frases de Moreira Lima: O meu estado de espírito era tal, nessa campanha, que se Prestes resolvesse ir ao Inferno, eu o acompanharia...
O mesmo Moreira lima nos conta dessa saborosa frase de um homem da Coluna sobre Prestes: O general Prestes é muito homem para vadear o mar-oceano e virar a Oropa em frege.


“Aqui lutaram os sertanejos, Antonio Conselheiro à sua frente. Anos depois lutaram de novo, era Prestes que os conduzia. E com eles volverão à luta uma, duas, mil vezes se assim for necessário, amiga. Um dia essas terras serão somente da fartura, a desgraça terá fugido delas. Quando a Coluna voltar, negra.”


“Prestes terminava a sua campanha da Bahia, onde marchou cinco mil e vinte e dois quilômetros, atravessou trinta e três rios, perseguido por trinta mil soldados, pela fome, pela sede, pela febre, pela agreste natureza, pelos répteis traiçoeiros. Duzentos homens da Coluna haviam ficado nos campos e nas caatingas da Bahia, feridos, desaparecidos ou mortos. O inimigo fora vencido várias vezes, e agora, após os últimos feitos militares de Prestes, nem mesmo os generais de Bernardes acreditavam possível derrotá-lo. Quando eles telegrafavam para o Rio de Janeiro dizendo que a Coluna estava cercada e desta vez seria fatalmente destruída, eles já o faziam por hábito, amiga, nem mesmo eles acreditavam nesses telegramas. Agora, negra, até os generais se haviam inoculado da superstição dos cangaceiros. Também eles pensavam que se tratava de algo sobrenatural: era-lhes impossível medir o gênio de Prestes. Para eles era o Demônio da guerra, dono de todos os caminhos daqueles infernos das caatingas. Para os sertanejos era uma estrela cortando a noite da Bahia.”


“No dia 24 a Coluna toma o rumo do oeste, indo combater a 28 na ponte sobre o rio Mando, contra o 6º B.C., o qual derrota, tomando-lhe munições. O Ano-Novo encontra a Coluna na fazenda Rafael, de partida, sob chuva torrencial. Sob essa mesma chuva é comemorado entre os soldados o vigésimo nono aniversário de Prestes, o terceiro que ele passava marchando através do Brasil, o primeiro dos três que passava sem combater. Aos 26 anos era, amiga, um capitão de engenheiros que se havia distinguido na escola, que não pudera permanecer no posto de engenheiro-fiscal porque sua honestidade o fizera protestar violentamente contra escandalosos desvios de verba. Um homem que parecia indicado para trabalhos de gabinete, um matemático antes de tudo, construtor de estradas, de usinas elétricas, longe estavam, aqueles que o conheciam, de imaginá-lo general, traçando planos de combates, de ataques e retiradas. Fora um aluno de estratégia militar em luta com seu professor, tirando notas discretas, dando palpites que pareciam inteiramente errados ao mestre. Agora, três anos depois, era o general mais celebrado da América Latina, tendo realizado o maior raid de cavalaria do mundo, tendo derrotado 18 generais de renome, tendo percorrido trinta mil quilômetros, um gênio militar como antes não houvera notícias nessa parte do mundo. A marcha da sua Coluna era agora estudada com assombro não só pelos mestres que duvidaram antes das suas qualidades de estrategista, como pelos mais autorizados estados-maiores dos demais países da América e da Europa. Batera todos os recordes de marcha de infantaria na travessia de Tabuleiro Alto a Sento Sé. Com mil e quinhentos homens, que haviam se reduzido aos quinhentos que comandava agora, atravessara cem mil inimigos bem armados, bem municiados, bem pagos. Lutara contra o exército, contra as diversas polícias estaduais, contra os cangaceiros organizados em tropas de combate. Vencera todos, como vencera a natureza bravia, como vencera as febres e os animais da selva e da caatinga. Sua derrota fora anunciada, pelos generais governistas, vinte ou trinta vezes. Sua cabeça a prêmio, marchando e combatendo com trinta e nove graus de febre. Sua Coluna cercada várias vezes. Rompeu os cercos, transformou derrotas certas em vitórias conquistadas a rasgos de gênio. Nunca sentiu a febre, entrando pelos atoleiros, dando seu cavalo a um soldado ferido, a um soldado cansado. Levando por um imenso país desgraçado e angustiado a esperança de um futuro melhor. Levantando as gentes, negra, traçando os caminhos da liberdade no Brasil.”


“E em direção à Bolívia, penetra nesse dia nos pântanos que se estendem até a fronteira. É o trecho mais assustador da marcha, se algo pode assustar esses homens de aço. Os animais já não existiam. Dos mil e quinhentos homens que haviam partido das margens do Paraná, apenas quinhentos estão reunidos em torno de seu chefe, dois terços da Coluna ficaram pelo Brasil, corpos e sangue em catorze estados, esperança sobre toda uma pátria. São quinhentos e, desses quinhentos, muitos não podem combater. São feridos, são doentes, são mulheres, são velhos, são meninos. Não há quase munições, não há quase armas, não há o que comer, não há cavalos sobre os quais viajar, vão montados nos poucos bois que levam, e essa montaria diminui a cada dia porque os bois são abatidos para comida. Além da carne magra desses raros bois cansados, tudo que resta é o palmito de quando em vez encontrado na estrada difícil. Todos marcham descalços, não há mais sapatos, não há roupa tampouco. Vestem farrapos, de cor indefinida, bordados de lama, da lama dos pantanais. Alguns levam apenas uma tanga sobre o sexo, feita com os restos de um cobertor. Outros vestem recordações do que fora antes calças ou cuecas. Os mosquitos, trazendo todas as febres nos seus ferrões aguçados, cobrem as noites da Coluna. Não resta nenhum tempero para cozinhar. A pouca carne é comida sem sal, chamuscada no fogo difícil de acender no lamaçal sem fim. Para descansar os homens têm que subir nos galhos mais altos das árvores, como um imenso bando de macacos.”


“Eles olham: é a fronteira da Bolívia na frente. Os olhos se voltam para trás, ali ficava o Brasil. Esses soldados, amiga, não têm, perfeita ideia do que realizaram. Sabem que acompanharam a Prestes, que lutavam pela liberdade e por uma vida melhor. Mas talvez nem saibam que plantaram nas terras do Brasil a revolução para todo o sempre.
Marchavam devagar. Esses homens nunca choraram, amiga. Mas agora, quando a Pátria fica para trás, os soldados da Coluna, curtidos de mil combates, deixam que as lágrimas rolem sobre os farrapos, sobre as barbas crescidas, sobre os peitos nus. E, como o faziam sempre que algo os perturbava, procuram com os olhos o general Luís Carlos Prestes. Olham para a frente, ele sempre vai na frente. Não, desta vez, amiga, ele marcha na retaguarda, é o último a deixar as terras do Brasil. Seu rosto sereno, sua face tranquila, seu olhar ardente. Um soldado o fita e o compreende. Grita para os outros, sua voz alegre como um toque de clarim:
– Um dia a gente volta...
Sua voz em direção do Brasil que fica, última mensagem de esperança da Coluna Prestes.
Agora é o exílio, amiga.”


“O povo foi uma bandeira para estes homens e o chamado do povo é poderoso como nenhum chamado.”


“Como heróis do povo do Brasil são esses mil e quinhentos homens da Coluna. Mais de oitenta por cento da tropa ferida, quase sempre mais de uma vez. Vinte e seis mil quilômetros atravessados em quase três anos de uma marcha cujo descanso maior foi de quarenta e oito horas. Seiscentos soldados que morreram, misturando seu sangue com o de setenta oficiais. Cem mil cavalos utilizados na maior marcha de calaria do mundo. Trinta mil bois abatidos nos dias em que havia bois a abater. Cinquenta e três combates de importância, milhares de tiroteios menores.”


“Pires foi ferido quatorze vezes. Fez toda a Coluna até a Bolívia, onde chegou capitão. Agrícola Batista recebeu três balas na mesma perna. Não se amedrontou, fazia pilhéria, falava em cortar aquela perna que trazia urucubaca. Assim eram eles, amiga, esses soldados da Coluna.”


“O que tínhamos em vista – disse Prestes se referindo à Coluna – principalmente, era despertar as populações do interior, sacudindo-as da apatia em que viviam mergulhadas, indiferentes à sorte do país, desesperançadas de qualquer remédio para os seus males e sofrimentos. Isso ele o havia conseguido realizar. Essa foi uma face da Coluna, um dos seus trabalhos.
     Havia a outra face, os líderes do povo aprendendo os sofrimentos do povo, vendo o superficial daquelas plataformas revolucionárias que haviam acompanhado os movimentos de 22 e 24. É o momento em que o pensamento tenentista começa a evoluir para o pensamento nacional-libertador.”


“Ao fazer o retrato da Coluna, vendo-a desde o exílio, Prestes fala sobre esta outra face e marca a evolução rápida que estava tendo o tenentismo:
Não há solução possível para os problemas brasileiros dentro dos quadros legais vigentes. A questão não é de homens, mas é de fatos, isto é, de sistema e de regime. Nenhum governo, mesmo animado das melhores intenções desse mundo, poderá, nos limites da legalidade normal, resolver os problemas nacionais em equação. A solução tem de vir de uma transformação radical em tudo, não apenas na superfície política, é preciso reorganizar o país sobre bases novas. É preciso criar novas bases econômicas e sociais de relações entre os homens que habitam e trabalham nesta grande terra. É preciso quebrar, resolutamente, as cadeias que oprimem o Brasil e impedem seu desenvolvimento ulterior, sua expansão fecunda e gloriosa.
Isso ele aprendera com a Coluna, durante a marcha. Não fora apenas a Coluna quem dera algo. Também o povo dera aos homens da grande marcha uma nova visão da vida e do Brasil. O povo acabara de criar o seu líder à sua feição, marcara-o com o fogo dos seus problemas. Nesse momento Prestes fala em retalhar os latifúndios. Prestes se levanta, depois da Coluna, contra o imperialismo, sua voz clama para todos os países da América Latina no sentido de se unirem contra o inimigo comum: o imperialismo. O líder do povo do Brasil começa a sua carreira de grande líder de toda a América. Porque viveu no interior da sua pátria os problemas semelhantes de todos os países latino-americanos.”


“A coluna, linha do coração traçada na mão do Brasil, como disse o poeta, amiga, revela o país para Luís Carlos Prestes, dá-lhe a responsabilidade de Herói de um povo. Nunca trairá a Coluna. Mesmo hoje, amiga, na prisão mais infecta, ele está continuando a Grande Marcha, os problemas na mão direita, na mão esquerda as soluções. Como naqueles distantes anos, o povo o espera. Mais que qualquer outra, sua voz vai concorrer para que terminem os dias de fome e de escravidão. Desta vez para sempre.”


“Todos esses revolucionários sul-americanos, que haviam tomado parte em golpes armados nos seus países, que haviam fracassado, não pensam noutra coisa senão em novos golpes. Prestes, não. Ele pensa em problemas para os quais é necessário encontrar solução. Ele pensa em encontrar a fórmula que possa solucionar aquela equação de novo tipo. Por que fracassaram estas revoluções? Por que sendo tamanhos os problemas são tão reduzidos os programas e as consignas? Por que, se uma revolução é vitoriosa, meses depois nada distingue os revolucionários no poder dos políticos derrubados do poder? Que há por detrás disso tudo? Que filosofia de vida, que doutrina pode responder a todas essas perguntas? Qual poderá solucionar os problemas do povo?”


“As divergências de Prestes com os demais exilados brasileiros irão em breve começar e logo se agravar. Agora todos os sábados conversa com Ghioldi e outros comunistas, apresentando os seus problemas, os problemas do Brasil, discutindo e aprendendo. Lê muito. Lê avidamente. Quando chega do trabalho – porque continua a exercer a sua profissão de engenheiro e a administrar as rendas parcas dos exilados – se joga sobre os livros, esquecendo a comida, o descanso, as diversões, na febre de aprender. E, como é de seu hábito, quer que os outros leiam. Distribui livros, cita trechos, vai palmilhando o seu caminho com a mesma precisão que o fizera um grande general e um grande engenheiro.
O movimento operário argentino é outro campo em que muito aprende. Antigo movimento esse, amiga. Ainda nos tempos da Primeira Internacional, Engels se correspondia com os líderes proletários do Prata. Os partidos Radical, Socialista e Comunista são longamente observados por Prestes, que se aprofunda no estudo da política argentina. Por outro lado, estuda a experiência soviética. Dessas conversas, dessas análises, dessas aproximações, desses estudos, resulta que Prestes compreende a importância da classe operária na revolução, o seu papel de classe organicamente revolucionária. Vê que com o proletariado está, naturalmente, a hegemonia da revolução. Que a pequena e a média burguesia, e mesmo a burguesia progressista, se querem salvar-se nesse momento do mundo, têm que cerrar fileiras ao lado da classe operária e acompanhá-la. Seu pensamento descortina novos horizontes, amiga.”


“Prestes escreve sobre o Brasil:
As condições peculiares à nossa categoria de país dominado pelos grandes senhores da terra, por um regime semifeudal de latifundiários ou da exploração das massas semi-escravizadas dos campos e ainda do país semicolonial dependendo do imperialismo, estabelecem como etapa imediata do movimento emancipador do Brasil a revolução agrária e antiimperialista. A dominação que esses latifundiários exercem sobre a ditadura política apoiados no imperialismo, na terrível opressão do capitalismo estrangeiro, torna estes pontos os mais sensíveis do nosso sistema explorador e portanto aqueles sobre os quais se têm de concentrar os seus esforços revolucionários.”


“Daí dirige uma carta circular aos seus amigos e companheiros das lutas anteriores. Esclarece seu pensamento, agora já é o marxista quem fala, sua linguagem é uma linguagem nova, esses anos de estudos, de experiências, de discussões, de erros, de busca de um caminho fizeram dele um revolucionário consciente. Agora já sabe o que o povo brasileiro precisa, já tem uma resposta para as perguntas que lhe fizerem.”


“Prestes, ao aderir ao proletariado na sua revolução, sabe que todos os ódios dos donos da vida vão acirrar-se contra ele. Mas, quando aceita o marxismo como concepção de vida, quando encontra nele a resposta às suas perguntas, não tem um minuto de vacilação. É o mesmo general Luís Carlos Prestes que atravessava por caminhos que faziam os demais estremecer. Ali está a verdade, ele a acompanhará.”


“Nunca, em todo mundo, incluindo o futurismo de Marinetti no fáscio italiano, incluindo as teorias árias do nazismo alemão, nunca se escreveu tanta idiotice, tanta cretinice, em tão má literatura, como o fez o integralismo no Brasil. Foi um momento onde maior que o ridículo só era a desonestidade. Plínio Salgado, führer de opereta, messias de teatro barato, tinha o micróbio da má literatura. Tendo fracassado nos seus plágios de Oswald de Andrade, convencido que não nascera para copiar boa literatura, plagia nesses anos o que há de pior em letra de fôrma no mundo. É a literatura mais imbecil que imaginar se possa.”


“Getúlio apoiava-se em uma trilogia trágica: Rao, Filinto e Plínio Salgado. Latifúndio, imperialismo e fascismo. O programa de um Governo Popular Nacional Revolucionário era exatamente o de combate a estes inimigos do povo.”


“Bando de torturadores, recrutados entre os criminosos mais eficientes. Dos chefes ao último tira. Dos que formaram o Tribunal de Segurança aos investigadores sem importância. Nomes que dá nojo dizer. Desonra da espécie humana, indignidade vivendo, bestas vestidas de homens, excrescência de podridões, hálito fétido de latrinas.
Lama, sujeira, lixo, miséria, chagas podres, carne leprosa, pus de feridas, vômito e escarro, podridão humana, excremento de prostíbulos! Mais vale, amiga, encher a boca de sujeira que pronunciar o nome desses vermes com corações de feras, soltos sobre o Brasil, presença envilecendo a Pátria. Os assassinos! Frios assassinos, covardes assassinos, bestiais e degenerados! Qualquer palavra suja, qualquer imundo substantivo, é doce palavra de poema lírico ao lado desses nomes podres. Leprosos por dentro, a lepra no coração infame.”


“Torturavam Prestes, era seu ódio maior, porque era seu medo maior. E torturavam Olga, a esposa de Luís, que trazia no ventre uma criança filha daquele amor. Descobriram então o maravilhoso presente, o regalo ideal, para mandar ao grande tirano Adolf. E enviaram-lhe Olga com o filho no ventre. Com certeza o grande tirano ficaria feliz. Um ser humano que levava outro dentro de si para que ele os torturasse à vontade. Assim fazes, amiga, os tiranos quando querem imitar os homens.
No cargueiro que reproduzia as viagens dantescas dos navios negreiros, Olga dormia sobre a sujeira dos vômitos, sentia dentro de si aquela vida bulindo, fruto do seu amor. No Brasil, nas mãos mesquinhas dos inimigos do povo, nas mãos desses homens que odeiam tudo que representa dignidade e beleza, ficava seu marido que era a própria dignidade e a própria beleza da vida. E ela, com um filho no ventre, ia para as mãos de um louco feroz que desgraçava sua pátria de nascimento. Um mês no porão infecto, sem ar, sem luz, como um fardo jogado sobre as sujeiras. Ouvindo os hinos hitleristas, as saudações odiosas, viajando para o próprio inferno.”


“Diante do que os integralistas saem à rua, armados de punhais, ornados com a cruz suástica, com fuzis alemães, Newton Cavalcanti é enviado para fechar as câmaras, e Vargas dá, tranquilamente, o golpe de Estado. A 10 de novembro é comunicado ao país e ao Povo que já não existe a república do Brasil, agora existe o Estado Novo corporativo, com uma constituição copiada da italiana e da portuguesa, sob os ardentes aplausos e votos de felicidade da Alemanha e da Itália.
Vão começar, amiga, os anos ainda mais desgraçados do Estado Novo. O Estado Novo se caracteriza pelo desejo de arrancar do brasileiro todas as suas qualidades de caráter. É o regime do suborno, da absoluta e cínica despreocupação pelos interesses do país e do povo, é o regime da servilidade, da bajulação e da torpeza no seu máximo. Tirania na América. Degradante e criminosa.”


“Lá está ele, amiga, na prisão. Sobre as grades de ferro dos buracos por onde penetra um pouco de ar, as telas de arame impedem que ele veja a paisagem bela da cidade. Mas nada impede que seus olhos profundos vejam o desenrolar da vida, sintam e analisem e julguem os acontecimentos, que vejam o caminho a seguir.
Quando sua voz fala, amiga, é o gênio do povo que fala por ela, condutor da sua gente, general do Brasil, Herói da América!
Lá está ele na prisão imunda. Não lhe permitem falar nem com seu advogado, não lhe permitem escrever os livros que deseja escrever, cortam sua correspondência com a família, castigam-no de todas as maneiras, desde que começou a guerra ele não sabe da sua esposa, processam-no e julgam-no à sua revelia, dão-lhe uma comida insuficiente e contraindicada para as suas enfermidades, puseram-no nas proximidades de tuberculosos para ver se o contagiavam, puseram ao seu lado o companheiro que enlouqueceu com as torturas para ver se assim o enlouqueciam também. Fizeram-lhe tudo que se pode fazer a um ser humano, a um animal para experiências de laboratórios de cientistas degenerados, tratam-no como a um cão hidrófobo. Lançaram sobre ele lama e lodo, pensando que assim afastavam dele o povo, que assim o tornariam impotente e inofensivo. Não tiveram coragem de matá-lo, temem o povo que se levantará para vingar a morte do seu Herói. Mas assassinam-no lentamente, com uma crueldade inaudita. Mantêm sua velha mãe numa tortura selvagem, mantêm ele sob regime inumano.
Não conseguiram dobrá-lo, não conseguiram afastar o povo dele. Todos os sofrimentos não diminuíram sua profunda visão do mundo e dos homens. Todas as misérias não diminuíram o amor que o povo lhe tem, a confiança que deposita nele, a certeza, que o verá novamente partir pelos campos do Brasil na batalha definitiva da liberdade.”

O sumiço da santa: um caso de feitiçaria – Jorge Amado

Editora: Record
ISBN: 978-85-0105-695-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 448
Sinopse: Às vésperas da abertura de uma grande exposição de arte sacra, chega a Salvador, vinda de Santo Amaro da Purificação, uma preciosa imagem de santa Bárbara. Assim que desembarca na capital, a santa desaparece, deixando polícia, autoridades e imprensa em polvorosa.
Publicado originalmente em 1988, O sumiço da santa narra os dois dias que se seguem ao misterioso desaparecimento da imagem. Para complicar o caos reinante, uma equipe da televisão francesa chega a Salvador para rodar um documentário sobre a cultura baiana, o que acaba suscitando um Carnaval fora de época, com direito a trio elétrico, sessão de candomblé e festival de capoeira.
Com maestria, Jorge Amado entrelaça inúmeras histórias, misturando personagens fictícios com ícones da cultura baiana – todos movendo-se freneticamente sob a égide de Iansã/santa Bárbara. O eixo narrativo, paralelamente ao sumiço da santa, é o embate entre duas mulheres notáveis: a católica e puritana Adalgisa, filha de negra com espanhol, e sua fogosa sobrinha adolescente Manela, adepta do candomblé.
Qualificado de “história de feitiçaria” por seu autor, o livro merece figurar ao lado de Os pastores da noite e Tenda dos milagres como um dos grandes libelos de exaltação do sincretismo religioso e da mestiçagem cultural.



“Na peçonha de tais insinuações, os miseráveis tentavam esconder os cadáveres apodrecendo no mangue entre guaiamuns. O padre viaja com os três mortos, sabe quem os mandou assassinar, todos sabem; de nada adianta saber, os que comandaram os pistoleiros pairam ilibados, inacessíveis, acima do bem e do mal. A terra tem donos, uns poucos, contam-se nos dedos das mãos; poucos, porém implacáveis.”


“Vestido vaporoso, de tule, estilo renascença, modelo e confecção de Maria Zilda, oferta do casal Cotrim, Lourdes e Jonas, padrinhos no religioso, véu, grinalda, flores de laranjeira em profusão atestando a virgindade da noiva – desta vez a donzelice da prometida era deveras: não estava prenha e nem sequer a ponta da cabeça da rola do nubente lhe tocara de leve o cabaço incólume. Não provara a fruta-pica, coisa rara em nossos dias progressistas, fato digno de referência e alabança.”


“A censura, a corrupção e a violência eram as regras de governo, carece recordar pois existe quem já tenha se esquecido. Tempo da ignomínia e do medo: os cárceres repletos, a tortura e os torturadores, a mentira do milagre brasileiro, as obras faraônicas e a comilança, a impostura e o venha-a-nós – há quem tenha saudade, é natural.”


“Para Dom Rudolph não cabia dúvida, e o afirmava, autoritário: o Exército de Cristo, trincheiras erguidas nos cinco continentes, tinha a missão de sustentar, como vinha fazendo através dos séculos, o direito à propriedade das classes dominantes. Abusos, se houvesse, a caridade se encarregaria de corrigi-los: para isso existe a caridade, padre Galvão, uma das três virtudes teologais. A Igreja é sustentáculo da ordem e não promotora da desordem. Exerça a caridade, padre.
Padre Abelardo, ao contrário, considerava que essa igreja da submissão e da obediência cega, a serviço dos ricos e dos poderosos – para eles os bens do mundo, para os pobres a esperança do reino dos céus –, era a negação da palavra do Messias: a Igreja devia servir à justiça e aos necessitados. O autêntico Exército de Cristo, recrutado nas favelas das cidades e na miséria dos campos do terceiro-mundo em desespero por padres e bispos portadores de uma prédica nova, devia sustentar a ação insubmissa, a resistência e a luta.”


“Está por se escrever uma boa história onde não exista sexo, explícito ou dissimulado, fator de alegria e sofrimento, fonte da vida: nem a Bíblia escapa. Muito ao contrário.”


“A esposa confidenciava às amigas íntimas que, além da partícula aristocrática – a família do Recôncavo, arruinada, descendia dos Garcia d’Ávila –, as duas qualidades maiores do marido eram a burrice e a disciplina. Tudo o mais não passava de decorrência: a maldade, a hipocrisia, a bajulação aos poderosos, a prepotência para com os subordinados e os pobres em geral, a retórica vazia, a jactância e os chifres.”


“O carro entrou em velocidade numa curva, Patrícia, sem ter onde apoiar-se, escorregou do banco. Ao levantar-se, sentou no colo do padre, tranquila da vida, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Ninguém deu importância, a não ser o próprio padre: Deus o sujeitava a uma prova atroz. Atroz, seria a palavra certa?”


“Fora Sylvia, competente esposa de juiz de menores, quem introduzira Olímpia no requinte dos adolescentes: a amiga logo a superara, convertendo-se em reputada especialista – reputada, o adjetivo diz tudo e soa bem.”


“A palavra companheiros tinha uma vibração fraterna, rompia barreiras, congregava diferenças, extinguia distâncias.”


“Gravara a cara do padreco, com certeza um sem-vergonha, um desalmado. Um desses padres ruins que não reconhecem a lei de Deus e querem tomar a terra de seus donos, sem respeitar escrituras, porteiras e demarcações. Quem sabe teria passado nos peitos uma das filhas do coronel, eram bonitas as duas, a casada então nem se fala, e esses padres de agora não brincam em serviço, vão traçando, vão comendo, tirante alguns que preferem dar a bunda. Os primeiros, Zé do Lírio não os criticava, quem encontra uma racha dando sopa e não aproveita não merece o reino dos céus, mas os dadores de cu, ele os detestava, raça daninha.”


“Quem tem amigos não passa vergonha.”

Balé Branco - Carlos Heitor Cony

Editora: Objetiva
ISBN: 978-85-7302-706-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 264
Sinopse: Uma jovem e promissora bailarina cai durante uma apresentação. Betinha, veterana, se aproxima para fazer uma barreira de proteção. Afinal, o espetáculo não pode parar. Rejane caiu por causa daquele maldito prego que há anos "mora" no palco ou foi empurrada? Os boatos confirmam o empurrão, mas ninguém sabe dizer realmente quem foi. Mas, isto não importa. Está armado o cenário de uma trama sórdida, em que a arte é um mero detalhe.
Este é um livro sonoro, repleto de movimentos cadenciados, com acordes sublimes, poéticos, pungentes. Seus personagens são dilacerados, intensos e contraditórios. O sexto romance de Cony foi publicado no conturbado ano de 1965 quando o jovem jornalista e escritor sofreu sua primeira prisão por motivos políticos.



“Simone não compreendia a melancolia das demais. Achava que tudo termina assim mesmo, no balé ou no convento, na prostituição ou na arte, há um fim e há que enfrentá-lo.”


“Ali, naquele camarim, todas já haviam beijado as tábuas do palco. Kátia escapara por ser leve e ágil. Dominava o corpo, tinha equilíbrio prodigioso, sabia como colocar-se em qualquer imprevisto. Por instinto, era uma bailarina, embora, por vocação, fosse uma puta.”


“Sou uma honesta escrava dos meus vícios.”

“Preciso de provas, provas de que Marlene existe, não é um fantasma que eu tenha criado à sua imagem e semelhança, ou à minha imagem e semelhança – o que é infinitamente pior. Eu amo Marlene, logo existo – eis a minha lógica.”


““Sou um pagão” – disse-lhe, e ele se impressionou com a minha frase. Desejou ser como eu, sem Deus, pagão bruto. Pois aí está, não tenho Deus, mas tenho Marlene, é mil vezes pior. Me obriga a um código abominável, a uma circuncisão obscena. Mas eu a adoro e a traio, embora a minha traição não seja como a dela. Ela me trai com outros. Eu a traio com a outra Marlene, a real, aquela que leciona no subúrbio e faz programas com rapazes e deita-se com eles como se deitou comigo.”


“Estudara outras coisas, lera muito, sabia que o balé era arte em decadência – gênero menor, agarrando-se às tradições para suportar e prolongar a agonia final. Sabia que a dança era eterna, fora a primeira linguagem do homem, antes de falar ou de rezar, o homem dançou. Mas o exagero da expressão, a corrupção do romantismo, o excesso de sentido, do faz-de-conta, havia estragado tudo – o balé agonizava. Ela era uma prova disso: deveria dançar nua lá embaixo, mostrar o ventre aberto, o filho comendo-lhe o sangue e começando a viver. Mas não poderia realizar esta dança. Tinha de se submeter ao espetáculo, ao sentido, ao faz-de-conta: seria uma wilis, virgem morta de amor. Não era virgem, nem morta, nem tinha amor. Por que fazer de conta?”


“– Que te custa, Tatiana? Você será ouvida logo mais, basta pintar um retrato deprimente de Kátia, e nisso você não precisará mentir. Ela vivia desorientada, se havia alguém, aqui dentro, com motivo para matar-se, era ela.
– Todos temos motivos para isto.”

Os filmes de minha Vida – Alberto Fuguet

Editora: Agir
ISBN: 978-85-2200-706-6
Tradução: Edmundo Barreiros
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 296
Sinopse: Abalado com a morte inesperada de seu avô, Beltrán Soler – um chileno de trinta e poucos anos – decide recordar cinquenta filmes assistidos na juventude. Os filmes, cujos títulos dão nome aos capítulos do livro, suscitam lembranças que levarão Soler a revistar as causas e efeitos que o transformaram no adulto que se tornou.



“Os terremotos são a maneira que a terra tem de se livrar de seus fantasmas. É preciso temê-los, respeitá-los, saber o que são. Devemos lembrar que é a massa quem morre esmagada, não os cientistas. É fundamental que as pessoas saibam que os terremotos matam e destroem. Só o medo é capaz de nos proteger. Meu objetivo é que milhares de crianças no mundo inteiro cresçam para se transformarem em sismólogos. Em uma ordem lógica, deveria haver mais estudantes de geofísica que de astronomia. Sabemos muito sobre as estrelas, mas não temos nem idéia sobre o solo em que pisamos.”


“O melhor de Paris era, sem dúvida, o instituto de Geofísica. Eu gostava de estar cercado de gente que era incapaz de se relacionar entre si ou consigo mesmo. Não há lugar mais paradisíaco que o microcosmo da ciência, e agora o da informática, para aqueles que não se atrevem a morrer, mas tampouco são capazes de viver com os demais. Em Santiago, a faculdade em Beaucheff era um templo que acolhia os chamado nerds, os tradicionais CDFs e pessoas estranham, e lhes mostrava que eles não estavam sós, que eram uma comunidade. Com o tempo, e junto com os avanços tecnológicos que a sociedade deve ao cientistas, ocorreu uma mudança sutil, mas nem por isto irrelevante.
– Aos poucos – disse-me uma vez Ricardo Mujica, que fazia cálculos estruturais – o resto das pessoas está se comportando como nós. A diferença é que não tem nada por dentro e não estão interessados em saber mais. Veja só: imagine ser como nós e não ter esta obsessão que nos toma?”


“Dominique, quando ficou sem apartamento, achou que era lógico, já que éramos meio-amigos, meio-namorados, que compartilhássemos o apartamento, a cozinha e, cada vez menos, a cama. Não foi algo prazeroso. Acho que ela já não aguentava minhas limitações, carências e manhas. Eu, ao lado dela, era uma pessoa pior. Ela, junto a mim, beirava o insuportável. Juntos nos transformamos nestes casais que os solteiros usam como exemplo para não se comprometer. O que nos unia não era amor nem paixão, mas algo talvez mais afrodisíaco: a pena, a culpa, o consolo, a incapacidade de ficarmos sozinhos. Ela, além disso, tinha uma obsessão para recolher chilenos refugiados (da ditadura de Pinochet); quando soube que eu nunca havia sido torturado, acho que nunca me perdoou.”


“Meu avô paterno era um ser amargo, alquebrado, pouco social, cheio de medos e falências. Nisto, por desgraça, somos parecidos. Mas meu avô sempre sentiu que fazia menos do que podia fazer.”


“Nunca mais vi meu avô; nunca me escreveu, nunca mais soube dele até que me avisaram que morreu e tive de controlar minha vontade de sair para comemorar.”


“Também acho que foram eles que me fecharam as portas e me fizeram descobrir que era hora de crescer, que no mundo dos adultos os que tinham muita sorte podiam sobreviver; aqueles realmente afortunados podiam até mesmo esquecer.”