Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-146-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 256
Sinopse: Em Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica, J. Chasin, um dos grandes filósofos
brasileiros, faz uma reflexão apurada sobre as conexões entre forma e conteúdo.
A partir do legado marxiano, o autor busca reproduzir – pelo seu próprio
interior – o trançado determinativo desses escritos, ao modo como o próprio Karl
Marx os concebeu e expressou.
A obra surgiu originalmente
como um posfácio ao livro de Francisco José Soares Teixeira, Pensando com Marx, mas ganhou autonomia enquanto uma apurada e
inovadora tentativa de apontar para a insuficiência das interpretações usuais
do tecido teórico em Marx e também, como consequência inexorável, em Georg
Lukács, a quem Chasin dedica todo um capítulo na obra. O livro busca desnudar o
aspecto constitutivo desses autores para vislumbrar seu legado e as
perspectivas transformadoras inerentes às suas teorias. Para Chasin, a
ontologia marxiana não é um sistema de verdades absolutas e abstratas, mas,
antes de tudo, um estatuto teórico. É a aplicação da dialética materialista ao
próprio Marx.
Nas palavras de Ester Vaisman
e Antônio José Lopes Alves, que assinam a apresentação da obra, ‘Chasin dedicou
sua vida ao programa de renascimento do marxismo e, assim, como no caso do
filósofo húngaro [Georg Lukács], não se tratou nunca de um projeto intelectual
como um fim em si mesmo, encerrado em seus limites hoje tão estreitos!
Tratava-se, acima de tudo, de fazer a obra de Marx objeto de estudo rigoroso,
com miras reais bem estabelecidas: compreender o mundo e visualizar as
possíveis vias de sua transformação’.
“A unilateralidade do entendimento político
está vinculada à posição de conferir prioridade à subjetividade, quando do
processo do entendimento das relações da sociedade civil. Não há como negar: o
entendimento político é fortemente vinculado à subjetividade – à vontade, vale
dizer, é o entendimento unilateralizado pela vontade, o olhar cego do interesse
particular, e nessa unilateralidade base de todo oportunismo, desde o “espiritualismo”
dos bem alimentados à voracidade de qualquer arrivismo. É, em suma, e de modo
direto, promessa de realização do céu na terra pelo encantamento da manada de
desvalidos. Base suposta dos grandes valores, é, em verdade, a plataforma do
cinismo do desvalor, da esperteza egóica mascarada de generosidade ideológica.
A hipóstase da subjetividade é a sagração do indivíduo isolado, reduzido à
mesquinhez de seus próprios limites, incapaz de ver o outro a não ser como meio
de realização de sua própria pequenez, incapaz de reconhecer os outros como
forças sociais a integrar a si mesmos como forças pessoais, aos quais,
reciprocamente, são disponibilizadas as forças pessoais a serem tomadas por
eles, do mesmo modo, como forças igualmente sociais.
De outra parte, na posição ontológica, o
vínculo do entendimento é a objetividade, que se orienta e objetiva pela
escavação do objeto real. Nessa posição o Estado deixa de ser o lugar e o meio
de realização da vontade – tudo isso meramente um suposto da vontade, mesmo que
racional – para se revelar como expressão das contradições do conjunto da
sociabilidade, da contradição configurada entre sociedade política e sociedade
civil, e assim porque a própria sociedade civil é a pletora das contradições
entre os interesses particulares. O Estado é, pois, a expressão da miséria
humano-societária na verdade de sua impotência, isto é, expressão de sua incapacidade
de autorregulação.”
(Ester Vaisman e Antônio José Lopes Alves)
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“Segundo Kautsky, cada um dos três
pensamentos que integram o amálgama é uma formação parcial, quando no interior
da malha nacional de positividades e negatividades que o origina. Enquanto
produtos isolados – a matéria econômica inglesa, o conteúdo político francês e
o método alemão – são carentes uns dos outros, como que destinados a um ménage
à trois que os liberaria da hipertrofia originária. De fato, só perdem a
unilateralidade graças às suas mútuas junções, pretendidamente operadas por
Marx, cujo mérito intelectual, altamente enfatizado, então não passaria da
habilidade para aglutinar ideias e procedimentos preexistentes. Ainda mais
estranha é a via kautskysta de perfilamento do “método”, dito dialético.
Mencionando aleatoriamente Schiller, Goethe, Kant, Fichte e Hegel, sem nada
dizer a respeito de suas contribuições, de repente, falando também de passagem
sobre a benéfica “influência do espírito francês” na Alemanha, Kautsky surpreende,
de vez, ao anunciar que “Heinrich Heine e Ferdinand Lassale uniram o pensamento
francês revolucionário ao método filosófico alemão”22, ressalvando, no
entanto, que “o resultado foi mais importante ainda quando esta união se
completou com a ciência econômica inglesa. É esta síntese que devemos aos
trabalhos de Engels e de Marx”23. É fantástico e acabrunhante, o
tríplice amálgama originário do pensamento marxiano não é sequer de sua inteira
responsabilidade – já encontra pronta a união do material político francês com
o nervo metódico alemão.
Não fosse o século XX, em suas brilhantes
conquistas materiais, simultaneamente uma usina multifacética de produção da
falsidade ideal socialmente necessária, o amálgama kautskysta teria se esgotado
no perímetro acanhado de um erro teórico pessoal. Mas, engrenado ao
desconhecimento generalizado da obra marxiana e impelido por outras urgências,
o núcleo da fórmula pôde subsistir, propagado por muitos, e sob o prestígio do
aval de Lenin. (...)
De fato, o tríplice amálgama é, a rigor,
impensável, a não ser como vaga alusão metafórica às doutrinas mais notáveis do
universo intelectual ao qual Marx pertencia, e às quais ele teve o discernimento
de se voltar, preferencialmente, a partir de certo instante de seu próprio
desenvolvimento. Como as faceou, de que modo lidou com elas e de que maneira
foram proveitosas na instauração de seu próprio pensamento são, estas sim,
questões válidas, que só a direta interrogação de seus escritos – necessariamente
de seus escritos – pode legitimamente dirimir.”
22 Karl Kautsky, As três fontes do
marxismo (São Paulo, Centauro, 2004), p. 43.
23 Idem.
“No mesmo diapasão, já nas partes mais adiantadas
do escrito, ao denunciar Strauss e Bauer por subsunção à lógica hegeliana, Marx
garante que Feuerbach demoliu “tanto em suas Teses, nos Anecdotis,
quanto, pormenorizadamente, na Filosofia do futuro [...] o embrião da
velha dialética e da velha filosofia”. Defende ainda que “Feuerbach é o
único que tem para com a dialética hegeliana um comportamento sério, crítico,
e [o único] que fez verdadeiras descobertas nesse domínio, [ele é] em geral o
verdadeiro triunfador [Überwinder] da velha filosofia”53.
A declaração, enfática e cristalina, tributa
a Feuerbach o mérito da ruptura com o pensamento hegeliano, numa extensão que
implica o reconhecimento dos contornos de uma nova posição filosófica.
Aliás, Marx faz isso explicitamente, na sequência do mesmo texto, ao resumir “o
grande feito” de Feuerbach em três pontos:
• denúncia e condenação da filosofia
especulativa como forma ou modo de existência do estranhamento do ser humano;
• fundação do verdadeiro materialismo
e da ciência real, ao tornar “a relação social de ‘homem a homem’
o princípio fundamental da teoria”;
• resgate e reconhecimento do positivo
que repousa sobre si mesmo, que se funda positivamente em si, que é ponto de
partida da certeza sensível, em oposição ao roteiro hegeliano da negação da negação,
criticamente evidenciada tão somente como “a expressão abstrata, lógica,
especulativa para o movimento da história, a história ainda não efetiva
do homem enquanto um sujeito pressuposto”54.
A adesão aos novos referenciais, nítida e
franca, abrange igualmente três dimensões: descarte da especulação, ou seja, do
logicismo e da abstratividade próprios aos volteios da razão autossustentada;
reconhecimento do caráter fundante da positividade ou objetividade
autopostas, determinação ontológica mais geral que subjaz ao perfilamento,
igualmente ontológico, do homem em sua autoefetividade material; identificação
da sociabilidade como base da inteligibilidade (não importa, aqui, o equívoco
de Marx, pouco depois ultrapassado, em conferir caráter social à relação
feuerbachiana de “homem a homem”). (...)
É também no “Prefácio“ de 1859 que se encontra a súmula, muito conhecida, da resultante
proporcionada pela revisão da filosofia política de Hegel:
Minha investigação desembocou no seguinte resultado: relações jurídicas,
tais como formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si
mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano,
mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais da vida, cuja
totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de “sociedade civil”, seguindo os
ingleses e franceses do século XVIII; a anatomia da bürgerliche Gesellschaft
[sociedade civil ou burguesa] deve ser procurada na economia política.55
Esse testemunho de Marx é decisivo, dado que
aponta o caráter e o momento preciso da inflexão intelectual a partir da qual
passa a elaborar seu próprio pensamento. Trata-se de uma viragem ontológica que
a leitura de Crítica da filosofia
direito de Hegel comprova indubitavelmente, se dela o leitor
se aproximar sem preconceitos gnosiológicos, não importa quanto o texto seja
inacabado e lacunar, por vezes impreciso e até mesmo obscuro, visto não ter
jamais ultrapassado a condição de glosas para o autoesclarecimento do autor. É
o início do traçado de uma nova posição ontológica que os textos subsequentes –
de Sobre a questão judaica (1843) às “Glosas marginais ao ‘Tratado de
economia política’ de Adolf Wagner” (1880) – confirmam, reiteram e desenvolvem
num largo e complexo processo de elaboração.
Importa, aqui, a feição precisa do passo
inicial da caminhada: em contraste radical com a concepção do Estado como
demiurgo racional da sociabilidade, isto é, da universalidade humana, que
transpassa a tese doutoral e os artigos da Gazeta Renana, irrompe e
domina agora, para não mais ceder lugar, a “sociedade civil” – o campo da
interatividade contraditória dos agentes privados, a esfera do metabolismo
social – como demiurgo real que alinha o Estado e as relações jurídicas. Inverte-se,
portanto, a relação determinativa: os complexos reais envolvidos aparecem
diametralmente reposicionados um em face do outro. Mostram-se invertidos na
ordem da determinação pela força e peso da lógica imanente a seus próprios
nexos, não em consequência formal e linear de algum pretensioso volteio especial
nos arranjos metodológicos, isto é, não como resultante de uma simples e mera
reorganização da subjetividade do pesquisador, mas por efeito de uma trama reflexiva
muito mais complexa, que refunde o próprio caráter da análise, elevando o
procedimento cognitivo à analítica do reconhecimento do ser-precisamente-assim.
Nesta, o direito unilateral da razão especulativa interrogar o mundo é
superado pela via de mão dupla de um patamar de racionalidade em que o mundo
também interroga a razão, e o faz na condição de raiz, de condição de
possibilidade da própria inteligibilidade, como foi visto há pouco a respeito
da apropriação marxiana dos indicativos feuerbachianos.
Essa reflexibilidade fundante do mundo sobre
a ideação promove a crítica de natureza ontológica, organiza a subjetividade
teórica e assim faculta operar respaldado em critérios objetivos de verdade,
uma vez que, sob tal influxo da objetividade, o ser é chamado a
parametrar o conhecer, ou, dito a partir do sujeito: sob a consistente
modalidade do rigor ontológico, a consciência ativa procura exercer os atos
cognitivos na deliberada subsunção, criticamente modulada, aos complexos efetivos,
às coisas reais e ideais da mundaneidade. É o trânsito da especulação à
reflexão, a transmigração do âmbito rarefeito e adstringente, porque genérico, de
uma razão tautológica, pois autossustentada – e nisso se esgota a impostação imperial
da mesma, para a potência múltipla de uma racionalidade flexionante, que pulsa
e ondula, se expande ou se diferencia no esforço de reproduzir seus alvos, empenho
que ao mesmo tempo entifica e reentifica a ela própria, no contato dinâmico com
as “coisas” do mundo. Racionalidade, não mais como simples rotação sobre si
mesma de uma faculdade abstrata em sua autonomia e rígida em sua conaturalidade
absoluta, porém, como produto efetivo da relação, reciprocamente determinante,
entre a força abstrativa da consciência e o multiverso sobre o qual incide a
atividade, sensível e ideal, dos sujeitos concretos.
Marx ao revisitar a filosofia política
hegeliana, sob a pressão da dúvida e a influência das mais recentes conquistas
feuerbachianas, percorre exatamente as vias da interrogação recíproca entre
teoria e mundo, o que lhe proporcionou identificar a conexão efetiva entre
sociabilidade e politicidade, que fez emergir, polemicamente, como o inverso do
formato hegeliano, implicando com isso a virtualidade de um novo universo
ontológico.”
55 Karl Marx, “Prefácio para contribuição
da crítica à economia política“ (1859), em Karl
Marx (São Paulo, Abril Cultural, 1974, Coleção Os Pensadores, v. 35), p. 135.
“Texto primígeno, a “Introdução“ também já sustenta, em plena concordância com a determinação
ontológica que desvelara o Estado pela lógica da sociedade civil, que “a
relação da indústria, do mundo da riqueza em geral, com o mundo político, é um
dos problemas fundamentais dos tempos modernos”64. Mundo político, intrinsecamente
imperfeito e carente de solidez, que é configurado como patamar inferior no evolver
histórico, resumo do “nível oficial das nações modernas”, ao qual é contraposto
o patamar superior do “nível humano”, altitude apontada como o “futuro imediato”65
a ser atingido pelos povos que já alcançaram a modernidade política. Esse texto,
portanto, erige uma escala que inferioriza o território político, ou nos termos
de Marx, “as fases intermediárias da emancipação política”, em face da altitude
do humano, pois, “o homem é o ser supremo para o homem”, o que desloca a
politicidade para os contornos de uma entificação transitória a ser
ultrapassada; Marx alude mesmo à necessidade de “demolir as barreiras gerais da
política atual”66. É nítido, pois, desde o instante em que Marx
passa a elaborar o seu próprio pensamento, que a esfera política perde a altura
e a centralidade que ostenta ao longo de quase toda a história do pensamento
ocidental, cedendo lugar ao complexo da “emancipação humana geral”, vinculada
no texto à noção de “revolução radical”, que “organiza melhor todas as
condições da existência humana sob o pressuposto da liberdade social”, em
contraste com “revolução parcial”, identificada à “meramente política, que
deixa de pé os pilares do edifício”67. Em determinação confluente,
resguardada sua importância como grau transitório de liberdade limitada ou,
mais precisamente, de iliberdade, a revolução política, por natureza, é
apenas uma função mediadora, encarregada simplesmente das tarefas destrutivas, enquanto
a “revolução radical, a emancipação humana universal”68 compreende o
teor do grande e verdadeiro objetivo – é o télos permanente, onímodo e,
como tal, último em sua infinitude, por isso mesmo demanda sempre reiterada,
que não se esgota em qualquer instância conclusiva ou momento final, pois cada
ponto de chegada é também de partida, perfazendo no conjunto a universalidade
da sucessão contraditória e sem termo de todos os patamares de afirmação e
construção do ser humano-societário.
Em verdade, esse télos, nunca como
centro temático de uma antropologia, positiva ou negativa, pois do caráter
desse tipo de abordagem redundaria de qualquer modo o defeito capital do
isolamento e autonomização da individualidade, nem como o dever ser de um
humanismo ético qualquer, que não deixaria de soçobrar na navegação idealista
entre fato e utopia – mas como possibilidade objetiva identificada no
tratamento ontológico da mundaneidade social, constitui o núcleo propulsor das
inquietações teóricas e práticas de Marx desde o advento de seu pensamento
marxiano, e daí em diante irradiadas por toda sua obra. Ponto crucial que
recebe tratamento vibrante nas últimas páginas da “Introdução”, com o qual
ultrapassa o que havia sido sua fórmula mais avançada aos tempos da Gazeta
Renana, a revolução política pelo Estado racional a partir da “humanidade sofredora
que pensa”. Por certo, agora, a pedra angular é a “revolução radical”,
consubstanciada na “emancipação humana geral”, e seu agente passa a ser,
igualmente, uma categoria social de “cadeias radicais”, uma vez que “uma classe
da sociedade civil que não é uma classe civil”, que é a dissolução de todas as
configurações societárias, que só é universal pela universalidade de seus
sofrimentos, que não padece injustiças parciais, mas “a injustiça pura e
simples”, que, em suma, “já não pode reclamar um título histórico, mas
simplesmente o título humano”, “que é, em suma, a perda total da
humanidade, portanto, só pode redimir-se a si mesma por uma redenção total
do homem”69. Não há expressão mais precisa e eloquente do que essa
para pôr em evidência que a revolução radical ou emancipação global
passa a ser, desde a emergência do pensamento marxiano, o complexo entificador
da universalidade e da racionalidade humanas, da efetiva e autêntica realização
do homem, e não mais uma forma qualquer de Estado ou de prática política, por
mais perfeitas que estas possam ser, pragmática ou piedosamente, imaginadas. Ou
seja, a emancipação humana compreende resolubilidade real e global, enquanto
virtualidade engendrada pelas “determinações existentes” na concreta esfera
humano-societária, passível de reconhecimento pelo entendimento a partir do
instante em que nas Glosas de 1843, segundo os corretos e incisivos
termos de Maximilien Rubel, “Marx rompe definitivamente com a ideia de Estado
como instituição racional”70.
Em síntese, a redefinição teórica de Marx,
naquela oportunidade, é de tal envergadura que só pode ser facultada e ter
explicação por uma cabal revolução ontológica. O salto extremo, que vai da
sustentação ardorosa do Estado racional como demiurgo da universalidade humana
à negação radical de sua possibilidade, consubstanciado pela emergência de um
complexo determinativo que se lastreia como reprodução ideal do efetivamente
real, transcende as condicionantes mais próximas – dúvidas e influências – e dá
início à instauração de uma nova posição filosófico-científica e à sua
correlata postura prática.”
62 Idem.
63 Idem.
64 Ibidem, p. 149.
65 Ibidem, p. 151.
66 Ibidem, p. 153.
67 Ibidem, p. 154.
68 Idem.
69 Ibidem, p. 156.
70 Maximilien Rubel, Crônica de Marx
(São Paulo, Ensaio, 1991), p. 25.
“Para evitar objeções indolentes, velhos
mal-entendidos ou precipitações irrefletidas, que, desatentas à complexa
problemática da teoria marxiana da determinação ontonegativa da politicidade,
cedam à cavilosa tentação reducionista de a emparelhar ao mero lema anarquista
da extinção do Estado, uma sinalização de alerta.
Tratando-se de uma configuração de natureza
ontológica, o propósito essencial dessa teoria é identificar o caráter da
política, esclarecer sua origem e configurar sua peculiaridade na constelação
dos predicados do ser social. Donde, é ontonegativa, precisamente,
porque exclui o atributo da política da essência do ser social, só o
admitindo como extrínseco e contingente ao mesmo, isto é, na condição de historicamente
circunstancial; numa expressão mais enfática, enquanto predicado típico do ser
social, apenas e justamente, na particularidade do longo curso de sua pré-história.
É no interior da intrincada trajetória dessa pré-história que a
politicidade adquire sua fisionomia plena e perfeita, sob a forma de poder
político centralizado, ou seja, do Estado moderno:
A máquina que por meio de órgãos complexos e ubíquos enreda, como uma
jiboia, a sociedade civil viva [trata-se, pois, do] poder de Estado ordenado e
dotado de uma divisão do trabalho sistemática e hierarquizada, que expande seu
raio de ação e independência em relação à sociedade real e o controle
sobrenatural sobre ela [de modo que é uma] excrescência parasitária sobre a
sociedade civil, fingindo ser sua contrapartida ideal.71
Esse traçado marxiano é o oposto, sem dúvida,
de qualquer expressão própria ao âmbito secularmente predominante da
determinação ontopositiva da política, para a qual o atributo da
politicidade não só integra o que há de mais fundamental do ser
humano-societário – é intrínseco a ele – mas tende a ser considerado como sua propriedade
por excelência, a mais elevada, espiritualmente, ou a mais indispensável,
pragmaticamente; tanto que conduz à indissolubilidade entre política e
sociedade, a ponto de tornar quase impossível, até mesmo para a simples imaginação,
um formato social que independa de qualquer forma de poder político.
Ao identificar a natureza da força política
como força social pervertida e usurpada, socialmente ativada como
estranhamento por debilidades e carências intrínsecas às formações sociais
contraditórias, pois ainda insuficientemente desenvolvidas e, por consequência,
incapazes de autorregulação puramente social, nas quais, pela fieira dos sucessivos
sistemas sociais, quanto mais o Estado se entifica real e verdadeiramente, tanto
mais é contraditório em relação à sociedade civil e ao desenvolvimento das individualidades
que a integram, Marx assinala, categoricamente, que a emancipação é na essência
a reintegração ou recuperação humano-societária dessas forças sociais alienadas
à política, ou seja, que ela só pode se realizar como reabsorção de energias próprias
despidas da forma política, depuradas, exatamente, da crosta política sob a
qual haviam se autoaprisionado e perdido. (...)
São mais do que taxativas as palavras de Marx
a esse respeito. Ao fazer, por exemplo, uma avaliação de conjunto dos processos
revolucionários do passado, critica: “as revoluções apenas aperfeiçoaram a
máquina do Estado, em vez de se desfazerem dela, desse pesadelo asfixiante”.
E, a propósito da Comuna de Paris, explica e aprova:
Todas as revoluções anteriores só haviam transferido o poder organizado
– essa forma organizada da escravidão do trabalho – de uma mão para outra. A
Comuna não foi uma revolução contra esta ou aquela forma de poder de Estado – legitimista,
constitucional, republicana ou imperial. Foi uma revolução contra o próprio
Estado, esse aborto prodigioso da sociedade; foi a retomada pelo povo, para o
povo, de sua própria vida social. Não transferiu essa máquina terrível de
dominação de classe de uma fração das classes dominantes para outra, mas uma
revolução que demoliu a própria máquina. [...] A Comuna foi a negação clara da
usurpação estatal, por isso (foi) o início da revolução social do século XIX.
[...] Só os trabalhadores, inflamados pelo cumprimento de uma tarefa social
nova para toda a sociedade – acabar com todas as classes, com toda a dominação de
classe – eram os homens que podiam quebrar o instrumento dessa dominação – o Estado,
o poder governamental centralizado e organizado, que, usurpador, se pretende senhor
e não servidor da sociedade. [...] A Comuna é a reabsorção do poder de Estado pela
sociedade, que constitui suas próprias forças vivas, em lugar de forças que a
controlem e subjuguem.73
71 Karl
Marx, La guerre civile en France – 1871 (Paris, Éditions Sociales,
1972), p. 210. [Ed. port.: A guerra civil em França,
Lisboa, Avante!, 1984. Disponível em
<http://www.dorl.pcp.pt/images/classicos/ guerracivil. pdf>.
73 Ibidem, p. 211-2.
“Em síntese, para o Marx pré-marxiano, crítica
era uma exercitação do intelecto que, nos fulcros básicos, acompanhava o criticismo
neo-hegeliano, cuja trama operativa característica – avaliar pelo metro de
essências especulativas as formas de existência – dissolvia objetos em
consciência, no suposto de recusar e demolir o mundo estabelecido e
deixar limpo o terreno para a edificação do Estado racional.
Para desenhar a feição da nova crítica,
é preciso realudir a uma passagem conclusiva das Glosas de 1843, já
enfatizada anteriormente, que faz parte de menções apresentadas por Lukács como
“os momentos de maior destaque da argumentação” de Marx, quando este, “partindo
do ponto central da metodologia hegeliana, trata desse conjunto de questões em
termos de concreticidarle”81. Motivo pelo qual importa retracejar o
contorno da nascente abordagem marxiana, no interior da qual se destaca a nova
concepção de crítica. Logo nas primeiras páginas do manuscrito, ao
comentar a tematização hegeliana das relações entre família, sociedade civil e
Estado, pondo em evidência que “a assim chamada ‘ideia real’ (o espírito como
espírito infinito, real) é representada como se agisse segundo um princípio
determinado e por uma intenção determinada”, Marx objeta caracteristicamente: “Aqui
aparece claramente o misticismo lógico, panteísta”81. Pouco mais
adiante, tratando ainda das mesmas relações, explicita a objeção de modo mais
geral e detalhado:
Mas a condição torna-se o condicionado, o determinante torna-se o
determinado, o produtor é posto como o produto de seu produto. [...] A especulação
enuncia esse fato como um ato da Ideia [...]. A realidade empírica é, portanto,
tomada tal como é; ela é, também, enunciada como racional; porém, ela não é
racional devido à sua própria razão, mas sim porque o fato empírico, em sua
existência empírica, possui um outro significado diferente dele mesmo. O fato,
saído da existência empírica, não é apreendido como tal, mas como resultado
místico. O real torna-se fenômeno; porém, a Ideia não tem outro conteúdo a não
ser esse fenômeno. Também não possui a Ideia outra finalidade a não ser a finalidade
lógica: “ser espírito real para si infinito”. Nesse parágrafo, encontra-se
resumido todo o mistério da filosofia do direito e da filosofia hegeliana em
geral.83
Essa linha de raciocínio, parágrafos à frente,
leva Marx a dizer, condenando a supressão das essências específicas das
entificações:
É exatamente a mesma passagem que se realiza, na lógica, da esfera da
Essência à esfera do Conceito. A mesma passagem é feita, na filosofia da
natureza, da natureza inorgânica à vida. São sempre as mesmas categorias que
animam ora essas, ora aquelas esferas. Trata-se apenas de encontrar, para
determinações singulares concretas, as determinações abstratas correspondentes.84
São esses os contornos que levam à conclusão
marxiana, já citada, que, para Hegel, “O momento filosófico não é a lógica da
coisa, mas a coisa da lógica”85.
O quadro e a natureza dessa refutação do
método especulativo conduzem à nova concepção da crítica. Grife-se,
apesar da obviedade, que o fundamental da recusa marxiana à especulação não é
algo circunscrito à sua fisionomia técnica ou, menos ainda, restrito a
defeitos ou insuficiências particulares da mesma, os quais, inadvertidos no
seio originário, uma vez retificados, pudessem levar à retomada do paradigma a
que pertencem. Ao inverso, trata-se de uma rejeição de fundo, porque de caráter
ontológico. Em poucas palavras, o que Marx impugna, entendendo que seja o
defeito capital da especulação, é o próprio fundamento das operações hegelianas:
a ideia como origem ou princípio de entificação do multiverso sensível, ou,
como foi estampado mais acima, “o fato como realização da ideia”, pois esse como
tal é um mero “resultado místico”, um produto do “misticismo lógico” ao operar
simplesmente no plano da “relação universal entre necessidade e liberdade”86,
que enforma a inversão entre determinante e determinado, desconsiderando as essências
específicas das distintas entificações efetivamente existentes,
constituindo uma ruptura ontológica com a especulação em nome e pelo resgate,
precisamente, da “lógica da coisa”.
O perfil e a estrutura da nova concepção de
crítica são organizados, é nítido, pelo propósito de desvendar os nexos
imanentes aos “objetos reais”. A certa altura do parágrafo 304, ao consignar, a
propósito da “antinomia entre Estado político e sociedade civil”,
que “o erro principal de Hegel consiste em assumir a contradição do fenômeno
como unidade no ser, na ideia, quando essa contradição tem
sua razão de ser em algo mais profundo, isto é, em uma contradição
substancial”, e distinguir o equívoco hegeliano do erro inverso, em que
recai aquela que chama de “crítica vulgar”, Marx oferece os elementos
constitutivos da “verdadeira crítica”. Convém transcrever a passagem por
inteiro:
A crítica vulgar cai em um erro dogmático oposto. Assim ela
critica, por exemplo, a constituição. Ela chama a atenção para a oposição entre
os poderes etc. Ela encontra contradições por toda parte. Isso é, ainda,
crítica dogmática, que luta contra seu objeto, do mesmo modo como,
antigamente, o dogma da santíssima trindade era eliminado por meio da
contradição entre um e três. A verdadeira crítica, em vez disso, mostra a gênese
interna da santíssima trindade no cérebro humano. Descreve seu ato de
nascimento. Com isso, a crítica verdadeiramente filosófica da atual
constituição do Estado não indica somente contradições existentes; ela esclarece
essas contradições, compreende sua gênese, sua necessidade. Ela as apreende em
seu significado específico. Mas esse compreender não consiste,
como pensa Hegel, em reconhecer por toda parte as determinações do Conceito lógico,
mas em apreender a lógica específica do objeto específico.87
Vale aditar que, em verdade, a condenação da ideia,
da ideia pura, da ideia abstrata, da ideia lógica, da ideia
como sujeito, que, por mais sutis e elaborados que sejam os seus volteios,
é incapaz de reproduzir a peculiaridade concreta dos objetos reais, bem como a
exigência de que o conhecimento seja exatamente essa força reprodutora das entidades
efetivas, é constante e taxativa por toda a “Crítica de Kreuznach”. A título de
confirmação, leia-se um trecho de um dos primeiros parágrafos:
Mas uma explicação que não dá a differentia specifica não é uma
explicação. O único interesse é, pura e simplesmente, reencontrar “a Ideia”, a “Ideia
lógica” em cada elemento, seja o do Estado, seja o da natureza, e os sujeitos
reais, como aqui a “constituição política”, convertem-se em seus simples nomes,
de modo que há apenas a aparência de um conhecimento real, pois esses sujeitos
reais permanecem incompreendidos, visto que não são determinações apreendidas
em sua essência específica.88
O contraste entre as duas críticas é radical,
e por seu formato a segunda ultrapassa, num só movimento, a especulação
hegeliana e o criticismo neo-hegeliano: tanto a dogmática superior da
razão autossustentada, como a dogmática vulgar da caça às contradições,
propiciada pelo confronto entre uma suposta essência racional e a mísera
existência eivada de irracionalismo. Aliás, é oportuno fazer menção de passagem
ao parágrafo 279, em que tem lugar, a propósito da discussão sobre as diferenças
entre monarquia e democracia, uma das primeiras demolições marxianas do padrão
convencional de emprego das categorias de essência e existência e de suas
relações. Basta deixar anotado um fragmento para assinalar que elas, desde o
princípio da reflexão marxiana, perdem a rigidez e a polarização excludente dos
mitos extrassensíveis da inteligibilidade especulativa em geral, adquirindo a
plasticidade necessária que as capacita a ser veículos conceituais dúcteis,
receptivos aos conteúdos próprios dos objetos investigados, na reprodução
teórica dos complexos da mundaneidade, deixando para trás as velhas antinomias
que embaraçavam seu emprego:
A democracia é o enigma resolvido de todas as constituições.
Aqui, a constituição não é somente em si, segundo a essência, mas segundo
a existência, segundo a realidade, em seu fundamento real, o homem
real, o povo real, e posta como a obra própria deste último.
A constituição aparece como o que ela é, o produto livre do homem.89
Abandonado o criticismo das essências
abstratas contra o mundo irracional das contradições, a “crítica
verdadeira” ascende à decifração da mundaneidade imperfeita em sua realidade,
para esclarecê-la, compreendendo sua gênese e necessidade, ou seja, para
capturá-la em seu significado próprio, por meio da determinação das lógicas
específicas que atualizam os objetos de seu multiverso. É a
extraordinária passagem da tópica negatividade absoluta do criticismo
neo-hegeliano à crítica ontológica – investigação do ente
autoposto em sua imanência, seja esse uma formação real ou ideal; procedimento
teórico – “verdadeira crítica filosófica”, diz Marx – em que a tematização,
isto é, a reprodução ideal das coisas é procedida a partir delas
próprias, da malha ou do aglutinado de seus nexos constitutivos, processo analítico
pelo qual são desvendadas e determinadas em sua gênese e necessidade próprias.”
81 Idem, “A falsa e a verdadeira ontologia de
Hegel”, em Ontologia do ser social (São Paulo, Ciências Humanas, 1979),
p. 26.
82 Karl Marx, Crítica à filosofia do
direito de Hegel, cit., p. 29. (§ 262.)
83 Ibidem, p. 30- 1.
84 Ibidem, p. 32. (§ 267.)
85 Ibidem, p. 39. (§ 270, d.)
86 Ibidem, p. 32. (§ 266.)
87 Ibidem, p. 108.
88 Ibidem, p. 34. (§ 269.)
89 Ibidem, p. 50.
Um comentário:
Com efeito, como destacado na sinopse, este livro é oriundo de um posfácio desproporcionalmente longo. À época, o autor deveria não apenas ter abandonado a versão de prefácio e dado uma finalização adequada como livro, mas além disso, ainda deveria ter dividido este escrito em (pelo menos) duas outras obras. Uma, para a análise do tríplice amálgama (a suposta fusão da política francesa, da economia inglesa e da filosofia alemã) que, para Chasin, Marx não opera; bem como a questão do “corte epistemológico” operado por Althusser na obra marxiana.
Um segundo livro poderia ser decorrente especialmente do capítulo “Da teoria das abstrações à crítica de Lukács” (talvez com as páginas a mais que na página 219 ele diz não poder agregar porque o posfácio já ia muito grande).
Outros textos esparsos, além disso, poderiam ser mais bem aproveitados em outros lugares, possivelmente como artigos soltos.
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