Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-146-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 256
Sinopse: Ver Parte
I
“Ao postular a
atividade do pensamento de rigor como reprodução teórica da lógica intrínseca
ao objeto investigado, Marx apenas deu início – com inflexão decisiva e
emblemática, é verdade – à composição de sua plataforma científica. Por certo,
definiu a tarefa do sujeito e assinalou o locus da verdade. No entanto, essa
fórmula sintetiza, acima de tudo, sua ruptura antitética com o pensamento especulativo,
a qual, resumida a si, é somente um passo unilateral, na medida em que a meta
cognitiva do sujeito é replasmada por inteiro, sem que, todavia, o próprio sujeito
seja redeterminado, ao passo que, em relação aos objetos, é feita uma grande e
certeira alusão – são reconhecidos como a malha sólida de suas próprias lógicas.
Contudo, a natureza dos mesmos não é, conceitualmente, recomposta ou
esclarecida. Em realidade, nesse momento inicial, sujeito e objeto, porquanto sejam
reivindicados em sua terrenalidade, não são ainda distinguidos, positiva e especificamente,
das acepções correntes ou tradicionais, parecendo se facear como simples
exterioridades. Pela carência de elaboração são categorialmente indeterminados,
apesar de sua referência direta a entificações concretas, sugerindo, por assim
dizer, figuras substantificadas um tanto vagas em sua distinção e autonomia. O
tratamento diferenciado dos mesmos só virá a emergir, de modo explícito e elaborado,
nas páginas dos Manuscritos econômico-filosóficos e de A ideologia alemã. Os sujeitos, então, serão determinados como
os homens ativos e os objetos enquanto atividade sensível.”
“A transitividade, pois, confirma a lógica
intrínseca aos objetos, ao mesmo tempo em que põe em evidência outra dimensão
da forma subjetiva enquanto momento ideal da atividade sensível – o saber.
Identificado como atividade sensível, o homem é duplamente ativo – efetiva
e idealiza: se é capaz de efetivação sensível, então está capacitado também
a antecipar idealmente sua efetivação; e se a forma ideal é permutável em mundo
sensível, então leva em conta a lógica intrínseca ao objeto moldado, ou seja, o
sujeito a usa e respeita enquanto tal, o que só é possível porque a conhece. O
homem se faz ou é um ser prático, então, é capaz de conhecer,
ao menos, o que permite fazer, confirmar sua natureza prática. A partir
disso, por conseguinte, o conhecimento também está confirmado, não sendo mais
plausível a alternativa teórica de sua impossibilidade por via dos maneirismos
céticos, nem o reducionismo que o derroga a simples convenção por efeito dos
atos de linguagem num quadro dado de uma gramática especial, nem menos ainda
sua desqualificação a mera poeira do imaginário, este mesmo simples fantasma
onipresente de uma metafísica da impotência. A prática subentende, traz
embutida em si, indissoluvelmente, ao contrário da negação da atividade do
pensamento, a presença de dois de seus momentos exponenciais: a subjetividade
proponente – teleologia, e a subjetividade receptora – capacidade cognitiva. De
modo que, tal como diz Marx no manuscrito: “Pensar e ser são, portanto,
certamente diferentes, mas [estão] ao mesmo tempo em unidade mútua”,
razão pela qual o ser humano, por isso genérico, ou seja, social,
“tem de atuar e confirmar-se tanto em seu ser quanto em seu saber”28.
Ser ativo que
pensa, e como tal, capaz de conhecer, é no exercício de sua capacidade peculiar
que o homem deve comprovar seu conhecimento. É o que assegura a proposição
fundamental da tese II de “Ad Feuerbach”: “na prática que o homem tem de provar
a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza citerior [Diesseitigkeit]
de seu pensamento”29. Ser efetivante pela dação de forma subjetiva,
o homem avalia o conhecimento nela contido pela resultante objetiva de seus
atos, que não apenas confirma ou infirma seu saber, mas junto com este seu
próprio ser; ao limite, se incapaz de saber, o homem é incapaz de ser – humano:
entificação autoconstituinte que elabora seu mundo próprio. Colocada em
evidência, toda a questão do conhecimento é reconfigurada pela raiz. Por razões
ontológicas – a impossibilidade de conhecer suprimiria a capacidade de confirmação
do ser social, e um ser que não se confirma, sensivelmente, é um não-ser, isto
é, um absurdo – o questionamento sobre a possibilidade do conhecimento
se torna ocioso. Isso recentra a interrogação sobre o verdadeiro problema, qual
seja, o do critério de verdade. E a resolução marxiana é, novamente, ontológica
ou, mais precisamente, ontoprática. Tanto a parte central da tese II já
transcrita como o restante da mesma o atestam. Desde a definição do caráter do
problema, “A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade objetiva
[gegenständliche Wahrheit] não é uma questão da teoria, mas uma questão prática”,
até a finalização do aforismo, que reforça e expande, criticamente, essa determinação:
“a disputa acerca da realidade ou não-realidade de um pensamento que se isola
da prática é uma questão puramente escolástica”30.”
28 Ibidem, cit., p. 108 e 128.
29 Karl Marx e Friedrich Engels, “Ad Feuerbach”, cit., p. 533, tese II.
30 Idem.
“É por essa dimensão ou, antes, grandeza – constituir
a si mesmo e a seu mundo, inclusive na contraditoriedade e na própria negação
de si, que o homem demonstra a possibilidade e a efetividade de seu pensamento.
É o que reconhece e assenta como pedra angular a fundamentação ontoprática do
conhecimento. Forma de demonstração que em tudo e por tudo é muito superior,
seja por seu estatuto, seja por sua resolubilidade, dada a infinitude da
reiteração multiforme de suas evidências, ao formato que qualquer outra de
natureza puramente especulativa poderia engendrar em sua unilateralidade
congênita. Ademais, sendo uma resolução de natureza ontológica, torna possível
encarar com rigor a delucidação do complexo do conhecimento, pois evita, desde
logo, o escolho de pensar o conhecimento como exercício de uma subjetividade
autônoma que se impõe idealmente ao objeto, uma vez que, segundo palavras de
Lukács, “a ontologia trata da estrutura da realidade”33, ou melhor
ainda, como diz no capítulo sobre Marx:
[...] a função da crítica ontológica [...] tem por meta despertar a
consciência científica no sentido de restaurar no pensamento a realidade
autêntica, existente em-si. [...] uma cientificidade que, no processo de
generalização, nunca abandona esse nível, mas que, apesar disso, em toda
verificação de fatos singulares, em toda reprodução ideal de uma conexão
concreta, tem sempre em vista a totalidade do ser social e a utiliza como metro
para avaliar a realidade e o significado de cada fenômeno singular; uma
consideração ontofilosófica da realidade em-si, [...] com o único objetivo de
poder captar todo ente na plena concreticidade da forma de ser que lhe é
própria, que é específica precisamente dele.34
Enquanto rematização dessa natureza, a
fundamentação ontoprática do conhecimento consolida a questão em sua forma
inteligível e no devido lugar científico, facultando sua investigação concreta
pela indicação de seus lineamentos estruturais.
A fundamentação ontoprática do conhecimento,
pela autogênese do homem e o correlativo engendramento de sua própria
mundaneidade, remete, de saída, à determinação social do pensamento.
Outro dos aspectos muito mal entendidos do pensamento marxiano, é
generalizadamente tomado no sentido básico de constrangimento social que pesa,
obstaculiza e deforma, quando não impede, o processo de aquisição do saber, em
razão dos vetores e valores societários e por causa de sua incorporação pelos
homens em geral, incluídos os investigadores, uma vez que todos são
individualidades situadas. Por estranha e profundamente ingênua que seja
essa imagem do ideário marxiano, sua difusão quase não teve limites, causando estragos,
de algum modo, até mesmo no que houve de melhor entre seus adeptos, para não
falar daqueles que, avessos ao pensador e achando que faziam justiça, com alguma
cerimônia o reduziram a membro de uma estranha confraria, o clube das filosofias
da suspeita, o qual, é evidente, com tiradas de seu conhecido sarcasmo, Marx
se recusaria a frequentar.
Um contorno rápido dessa questão polimorfa
deve ferir, de imediato, seu ponto central e positivo: a sociabilidade como
condição de possibilidade do pensamento. Três curtos parágrafos do “Terceiro
manuscrito” bastam para comprovar que, já desde 1844, Marx concebia de modo
afirmativo o nexo fundamental entre a consciência, suas formações ideais, e a
sociedade:
Posto que também sou cientificamente ativo etc., uma atividade
que raramente posso realizar em comunidade imediata com outros, então sou ativo
socialmente porque [o sou] enquanto homem. Não apenas o material
da minha atividade – como a própria língua na qual o pensador é ativo – me é
dado como produto social, a minha própria existência é atividade
social; por isso, o que faço a partir de mim, faço a partir de mim para a
sociedade, e com a consciência de mim como um ser social. Minha consciência universal
é apenas a figura teórica daquilo de que a coletividade real, [o]
ser social, é a figura viva, ao passo que hoje em dia a consciência universal
é uma abstração da vida efetiva e como tal se defronta hostilmente a ela. Por
isso, também a atividade da minha consciência universal – enquanto uma
tal [atividade] – é minha existência teórica enquanto ser social. [...]
Como consciência genérica o homem confirma sua vida social real e
apenas repete no pensar a sua existência efetiva, tal como, inversamente, o ser
genérico se confirma na consciência genérica, e é, em sua universalidade como
ser pensante, para si.35
O núcleo da formulação é límpido em sua
determinação, e o conteúdo enquanto tal, independentemente de cogitações
relativas à sua verdade ou falsidade, não é passível de leituras ou
interpretações: atividade ideal é atividade social. O pensamento tem
caráter social porque sua atualização é a atualização de um predicado do homem,
cujo ser é, igualmente, atividade social. Na universalidade ou na
individualidade de cada modo de existência teórica – cientista, pensador etc. –
o pensamento é atividade social, inclusive pelos materiais e instrumentos empregados.
Em síntese, consciência, saber, pensamento etc., sob qualquer tipo de formação
ideal, das mais gerais às mais específicas, da mais individualizada à mais genérica,
dependem do ser da atividade sensível, socialmente configurado, ao qual
confirmam por sua atividade abstrata, igualmente social.”
33 Georg Lukács, Pensamento vivido
(Santo André/Viçosa, Ad Hominen/UFV, 1999).
34 Idem, “Os princípios ontológicos
fundamentais de Marx”, cit., p. 27.
“O corpus teórico marxiano delucida o
complexo do pensamento congregando, analiticamente, sujeito e objeto – determinação
social do pensamento e processo formativo ou presença histórica do objeto.
Enfoca, pois, a atividade da consciência no interior da malha real em que ela
se manifesta e produz, recusando e desqualificando, por ilegitimidade
ontológica, cogitações relativas ao entendimento enquanto figuração isolada ou
a qualquer logos desencarnado das rotas gnosiológicas postiças.
Qualquer variante de razão autossustentada ou pura, não contaminada materialmente,
cede lugar à altitude maior da razão interessada, atributo do homem ativo
que confirma seu ser pela objetivação, a cujo processo sensível aquela está integrada
de modo decisivo e indissolúvel, motivo bastante para que seja afirmada a
validade e a relevância de sua investigação e esclarecimento. Ocorre, portanto,
no tratamento marxiano da questão do saber, um deslocamento corretivo, que vai
da rarefação das formas gnosiológicas de abordagem para a encorpada analítica
da determinação social do pensamento e da entificação do objeto, ou seja, o problema
é transmutado em circunscrição peculiar no universo de investigação concreta do
complexo humano-societário global, delimitada e operacionalizada sobre os
esteios da nova ontologia histórico-imanente constituída em fundamento. A
problemática do conhecimento não é, pois, abandonada ou dissolvida, mas recaracterizada
no lugar próprio e em seus devidos termos, distantes de qualquer artificialismo
escolástico, como demarca e suscita a tese II de “Ad Feuerbach”. Com essa
redefinição é ampliada, pois concebida em sua maior complexidade, desde seu momento
protoformático – o trabalho – já que este implica a inteligibilidade da malha
causal dos objetos sobre os quais atua, e também a prévia ideação do alvo a objetivar,
imagem interior que responde a carências sentidas e (re)conhecidas, dado que
teleologia não é vaga aspiração ou simples desejo, só guardando a identidade na
medida em que comporta possibilidades efetivas de realização. A partir desse plano
fundante, a conjunção cognitiva entre sujeito e objeto é reiterada de algum modo
e em certa proporção por todas as formas da práxis social, por distintas e peculiares
que sejam as atividades reais ou ideais em que é consubstanciada, e de maneira
precípua, na forma mentis da cientificidade.
A universalidade do quadro emergente é, pois,
a do sujeito ativo situado em face de objetos mutantes, de individualidades
cognoscitivas, geradas em tempos e lugares sociais, diante da processualidade
entificadora das coisas materiais e espirituais, igualmente societárias.
Em decorrência, a conjunção cognitiva ideal depende do encontro entre um
sujeito plasmado em posição adequada à objetivação científica, ou seja,
portador de ótica social em condição subjetiva de isenção, e de um
objeto desenvolvido, isto é, perfilado na energeia de seu complexo
categorial estruturalmente arrematado. Resta saber de que modo específico atua,
no encontro intrincado dessa dupla processualidade, o sujeito cientificamente
interessado. Entre as dificuldades que se opõem ao trabalho científico, Marx,
referindo-se à análise das formas econômicas (mas a observação, obviamente,
pode ser generalizada para todo o âmbito das formas humano-societárias), inclui
o fato de que nessas investigações “não podem servir nem o microscópio nem
reagentes químicos”71. Afirmação desdobrada por Lukács em termos de
que “é da maior evidência que, no ser social, graças à sua essência, os
experimentos no sentido das ciências naturais são ontologicamente impossíveis
por princípio, dado o específico predomínio do elemento histórico enquanto base
e forma de movimento do ser social”72. Seja por princípio, seja por
mera impraticabilidade, excluídos os métodos experimentais, Marx assegura categoricamente
que, nessa esfera, “a força da abstração [Abstraktionskraft] deve
substituir ambos”73. É, então, com essa aludida capacidade mental de
escavar e garimpar as coisas que o sujeito opera cognitivamente, por meio dela
é que “a pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias
formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse
trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real74.
Ferramenta única e decisiva da investigação, há que se deter com mais vagar e
profundidade sobre a atividade peculiar da força da abstração, anunciada
com toda simplicidade, mas também com toda energia, pelo discurso marxiano.”
69 Karl Marx, “Prefácio”, em O capital,
cit., p. 12.
70 Georg Lukács, “Os princípios ontológicos
fundamentais de Marx”, cit., p. 118-9.
71 Karl Marx, “Prefácio”, em O capital,
cit., p. 12.
72 Georg Lukács, “Os princípios ontológicos
fundamentais de Marx”, cit., p. 118.
73 Karl Marx, “Prefácio”, cit., p. 12.
74 Ibidem, p. 20.
“É a respeito dessa demanda teórica bem
específica que se desenrola a explicação marxiana; assim, é arguido que
partindo do todo imediato, manifesto por seus complexos parciais (cidade,
campo, produção, população, classes etc.), desemboca-se numa “representação
caótica do todo”, pois a totalidade ou cada parte abordada redunda em simples
abstração, se desconsiderados os vetores que a integram, por exemplo, a
população sem as classes. Essas, por sua vez,
[...] são uma palavra vazia de sentido se ignorarmos os elementos em que
repousam: o trabalho assalariado, o capital etc. Estes supõem a troca, a
divisão do trabalho, os preços etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho
assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc., não é nada.91
A resultante é uma representação caótica do
todo porque mero ajuntamento de abstrações esvaziadas de textura e privadas de
ordenamento. Contudo, essa dissolução teórica do concreto não deve ser
cristalizada, unilateralmente, em sua face negativa. Marx, nesse sentido,
tomando por ilustração a nascente economia do século XVII, aponta que seus
cultores “começavam sempre pelo todo vivo: a população, a nação, o Estado,
vários Estados etc.”, mas ressaltando que também “terminavam sempre por
descobrir, por meio da análise, certo número de relações gerais abstratas que
são determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor etc.”92.
Ou seja, partindo do todo vivo, porém sem se deter na representação caótica: “através
de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a
conceitos cada vez mais simples; do concreto idealizado passaríamos a
abstrações cada vez mais tênues até atingirmos determinações as mais simples”93.
Por meio desse aprofundamento analítico das abstrações, vale dizer, da
determinação mais precisa de elementos da representação caótica, é que se
atinge, a certo custo e demora, a configuração de abstrações relativamente bem
recortadas, chamadas por Lukács de abstrações isoladoras, que são
fundamentais, pois, como estabelece o texto marxiano, “esses elementos
isolados, uma vez mais ou menos fixados e abstraídos, dão origem aos sistemas
econômicos, que se elevam do simples, tal como trabalho, divisão do trabalho,
necessidade, valor de troca, até o Estado, a troca entre as nações e o mercado
mundial”94.
Essas abstrações depuradas, a verdadeira face
das abstrações razoáveis, são, portanto, o ponto de partida da elaboração
teórica, uma vez que, “chegados a esse ponto, teríamos que voltar a fazer a
viagem de modo inverso, até dar de novo com a população, mas dessa vez não com
uma representação caótica de um todo, porém com uma rica totalidade de
determinações e relações diversas”. Viagem essa de retorno das abstrações ao
concreto que “ é manifestamente o método cientificamente exato”95.
Donde a perfeita distinção dos métodos considerados e o completo esclarecimento
da questão relativa ao ponto de partida, para a qual as abstrações razoáveis
são a própria resposta:
No primeiro método, a representação plena volatiliza-se em determinações
abstratas, no segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do
concreto por meio do pensamento. [...] o método que consiste em se elevar do
abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento
para se apropriar do concreto, para o reproduzir como concreto pensado.96
Importa grifar, nessa última passagem, em
mais uma alusão à força de abstração como puro atributo do sujeito
pensante – isto é, capacidade peculiar de apropriação do real –, que o método
científico não é mais do que a maneira de proceder do pensamento.
Maneira ou razão pela qual “o concreto aparece no pensamento como o processo de
síntese, como resultado, não como ponto de partida”, de modo que “o todo, tal
como aparece no cérebro, como um todo de pensamentos, é um produto do cérebro
pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, modo que
difere do modo artístico, religioso e prático-mental de se apropriar dele”97.
Delineada a abstração razoável como
ponto de partida do “método científico exato” e apontado o concreto como resultado
ou “um todo de pensamentos” a ser alcançado, há que assinalar que toda a
travessia de um a outro desses polos permanece ainda inteiramente submersa na
obscuridade. Mesmo porque, no estágio em que se encontra a exposição, a teoria
das abstrações parece conduzir a uma espécie de indeterminação ou até mesmo de
antinomia. De um lado, tem-se o alvo – reproduzir o concreto como concreto
pensado, sob o famoso preceito de que “o concreto é concreto porque é a síntese
de muitas determinações, isto é, unidade do diverso”98, sem que o
referido “processo de síntese” tenha sido esclarecido, mas que subentende o
deperecimento da abstratividade; de outro, a irremediável condição de abstratividade
das abstrações razoáveis, pois as “determinações comuns [...] apreendidas pelo
pensamento como gerais [...] não são outra coisa senão esses momentos
abstratos, os quais não apreendem nenhum grau histórico efetivo”99
dos complexos reais, mas que não podem ser dispensadas, uma vez que, como já
foi citado, sem elas não se poderia conceber nenhum destes.
Em verdade não há qualquer aporia: os pontos
de partida e chegada não se repelem pelos conteúdos nem estão incompatibilizados
pela forma; ao revés, no andamento da síntese operam mediações aglutinadoras
que os aproximam e fundem, para o sucesso das quais são imprescindíveis a
universalidade das abstrações razoáveis, pontos de partida e retentoras
da igualdade ou continuidade dos processos, bem como os conteúdos das
diferenças, representativas das mudanças ou desenvolvimentos. Em suma, o
processo de síntese se deixa entrever como um trabalho das abstrações,
que poderia ser referido, cedendo a algum coquetismo, como a dialética das
abstrações razoáveis e das diferenças essenciais, sobre a qual a teoria das
abstrações tem ainda palavras importantes a dizer.
As abstrações razoáveis, relações gerais ou
as mais simples das categorias – pontos de partida da autêntica démarche
científica – “são determinantes” ou, em outras palavras, “sem elas não se
poderia conceber nenhuma” formação concreta; todavia, elas não determinam
nenhum objeto real, isto é, “não explicam nenhum grau histórico efetivo” de
existência. Mesmo assim, “o curso do pensamento abstrato se eleva do mais
simples ao complexo”, ou seja, “as determinações abstratas conduzem à
reprodução do concreto por meio do pensamento”, e nesse itinerário é que se
realiza “o método que consiste em se elevar do abstrato ao concreto”. Realização
metodológica que subentende, pois, uma complexa metamorfose das abstrações
razoáveis, pela qual, mantendo a condição de pensamentos, isto é, de abstrações,
deixam de prevalecer como momentos abstratos, para se converter em momentos
concretos da apreensão ou reprodução dos graus históricos efetivos dos objetos
concretamente existentes.
Um dos aspectos fundamentais dessa
transformação compreende a intensificação da razoabilidade dessas
categorias simples, ou seja, a atualização das virtualidades de sua natureza
ontológica enquanto forma de apropriação ideal dos objetos reais. O que é
operado pela exata aproximação e comparação delas aos traços efetivos, portanto,
determinados e delimitados dos objetos, de modo que sejam medidas por
eles e, consequentemente, ajustadas aos mesmos, de forma que sua capacidade de
os reproduzir se torne mais precisa e, por isso mesmo, maior. Em termos bem sintéticos,
na rota que vai do simples ao complexo, do abstrato ao concreto, as abstrações razoáveis
devem perder generalidade por especificação, adquirindo os perfis da
particularidade e da singularização, ou seja, a fisionomia de abstrações
razoáveis delimitadas. Toda vez que o discurso marxiano assegura que “a
população é uma abstração, se desprezarmos, por exemplo, as classes que a
compõem” e que essas “são uma palavra vazia de sentido se ignorarmos os
elementos em que repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital etc.”,
esses mesmos supondo “a troca, a divisão do trabalho, os preços etc.”, de modo
que “o capital, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o
dinheiro, sem o preço etc. não é nada”100, ou sempre que endossa
considerações a respeito de seu método, pelas quais é reconhecido que seu valor
científico “reside no estabelecimento das leis específicas que regulam
nascimento, existência, desenvolvimento e morte de dado organismo social e a
sua substituição por outro”, de maneira que as leis abstratas ou gerais são negadas,
só sendo admitido, “pelo contrário, que cada período histórico possui suas
próprias leis”101, e tais reiterações não são casuais, a
investigação marxiana está remetendo à multilateralidade determinativa de toda
conformação fenomênica, ou seja, referindo que todo objeto, intrínseca e
extrinsecamente, é e se manifesta como um feixe entrelaçado de inúmeras
determinações, para cuja adequada reprodução teórica são indispensáveis a delimitação
e a articulação das abstrações razoáveis. Desde logo porque a
articulação, fase conclusiva do processo analítico, é também uma exigência de
delimitação, levando em conta que as abstrações razoáveis, umas em face das
outras, têm de ser compatibilizadas entre si, o que implica recíprocas determinações
delimitadoras, pelas quais são estabelecidas as proporções com que integram a
reprodução final do objeto investigado. Proporções, é evidente, que não dizem
respeito, simples e essencialmente, ao tamanho ou à extensão conceitual com que
são incorporadas à síntese, mas às qualidades com que participam da mesma, pois
as abstrações razoáveis, sob a intensificação ontológica que as delimita, não apenas
continuam a ser “um conjunto de determinações diferentes e divergentes”, mas, a
rigor, têm sua diversidade acentuada por especificação, mesmo porque ajustadas
à coabitação, harmônica ou contraditória, com as diferenças essenciais,
de modo a se tornarem capazes de reproduzir o concreto do
ser-precisamente-assim, o que significa aproximação e tradução máximas
possíveis da profusa malha de determinações interconexas do mesmo.
Todavia, a exigência de delimitação
promovida pela articulação é apenas um efeito de sua natureza. Ponto
de chegada da analítica marxiana, momento culminante da produção do “concreto
de pensamentos”, hora conclusiva da investigação, de acordo com as próprias
palavras de Marx – “A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar
as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de
concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real”102.
Por isso mesmo, como o estágio mais desenvolvido do próprio método, que integra
e proporciona a plena realização de seus momentos anteriores, a articulação,
além de sua relevância intrínseca, confirma e explica os passos antecedentes e,
por extensão, o método em seu todo.”
91 Karl Marx, “Introdução de 1857”, cit., p.
122.
92 Idem.
93 Idem.
94 Idem.
95 Idem.
96 Idem.
97 Ibidem, p. 123.
98 Ibidem, p. 122.
99 Ibidem, p. 112.
100 Ibidem, p. 122.
101 Karl Marx, “Posfácio”, em O capital,
cit., p. 19-20.
102 Ibidem, p. 20.
“Grife-se em conclusão, para além do
enunciado fragmentário da teoria das abstrações na obra marxiana, que seus
lineamentos gerais proporcionam – é o que importa, de fato – um quadro de
traços marcantes e consistentes, cujo estatuto ontológico se manifesta em todos
os módulos nela imbricados. Vale sumariar, para ressalto da unidade,
principiando pela referência à determinação da força de abstração como
órgão peculiar da individualidade na apropriação ideal dos objetos, passando a
seguir pelo caráter ontológico das abstrações razoáveis, ponto de partida
do “método científico exato”, cuja delimitação é operada por
intensificação de igual natureza, para alcançar a articulação, que
ratifica o estatuto ontológico do conjunto pela absorção da lógica das
coisas, e concluindo pela menção ao momento preponderante enquanto
tônica categorial igualmente ontológica, caráter que também pertence às determinações
reflexivas, uma vez que, marxianamente, essas são sempre configurações de
pares ou conjuntos reais, interações concretas. De imediato esse contorno
presta um grande serviço, esclarecendo de modo definitivo que, na reflexão
marxiana, a tomada da realidade concreta como ponto de partida do conhecimento
não implica nenhum empirismo, mas “caminhos objetivo-ontológicos” (Lukács), que
tornam de maneira translúcida que qualquer roteiro analítico especulativo ou
centrilógico é, para ela, totalmente inadmissível, seja pelo seu fundamento,
seja porque suas exigências de rigor ultrapassam de longe o que podem oferecer
os critérios lógico-formais em sua natureza homogeneizante. Por conseguinte, a
teoria das abstrações se mostra como o arcabouço dos procedimentos cognitivos
marxianos e, a rigor, está colada à base do que pode ser chamado de seu método
científico.”
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