terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica (Parte II), de José Chasin

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-146-8

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 256

Sinopse: Ver Parte I

 

“Ao postular a atividade do pensamento de rigor como reprodução teórica da lógica intrínseca ao objeto investigado, Marx apenas deu início – com inflexão decisiva e emblemática, é verdade – à composição de sua plataforma científica. Por certo, definiu a tarefa do sujeito e assinalou o locus da verdade. No entanto, essa fórmula sintetiza, acima de tudo, sua ruptura antitética com o pensamento especulativo, a qual, resumida a si, é somente um passo unilateral, na medida em que a meta cognitiva do sujeito é replasmada por inteiro, sem que, todavia, o próprio sujeito seja redeterminado, ao passo que, em relação aos objetos, é feita uma grande e certeira alusão – são reconhecidos como a malha sólida de suas próprias lógicas. Contudo, a natureza dos mesmos não é, conceitualmente, recomposta ou esclarecida. Em realidade, nesse momento inicial, sujeito e objeto, porquanto sejam reivindicados em sua terrenalidade, não são ainda distinguidos, positiva e especificamente, das acepções correntes ou tradicionais, parecendo se facear como simples exterioridades. Pela carência de elaboração são categorialmente indeterminados, apesar de sua referência direta a entificações concretas, sugerindo, por assim dizer, figuras substantificadas um tanto vagas em sua distinção e autonomia. O tratamento diferenciado dos mesmos só virá a emergir, de modo explícito e elaborado, nas páginas dos Manuscritos econômico-filosóficos e de A ideologia alemã. Os sujeitos, então, serão determinados como os homens ativos e os objetos enquanto atividade sensível.”

 

 

“A transitividade, pois, confirma a lógica intrínseca aos objetos, ao mesmo tempo em que põe em evidência outra dimensão da forma subjetiva enquanto momento ideal da atividade sensível – o saber. Identificado como atividade sensível, o homem é duplamente ativo – efetiva e idealiza: se é capaz de efetivação sensível, então está capacitado também a antecipar idealmente sua efetivação; e se a forma ideal é permutável em mundo sensível, então leva em conta a lógica intrínseca ao objeto moldado, ou seja, o sujeito a usa e respeita enquanto tal, o que só é possível porque a conhece. O homem se faz ou é um ser prático, então, é capaz de conhecer, ao menos, o que permite fazer, confirmar sua natureza prática. A partir disso, por conseguinte, o conhecimento também está confirmado, não sendo mais plausível a alternativa teórica de sua impossibilidade por via dos maneirismos céticos, nem o reducionismo que o derroga a simples convenção por efeito dos atos de linguagem num quadro dado de uma gramática especial, nem menos ainda sua desqualificação a mera poeira do imaginário, este mesmo simples fantasma onipresente de uma metafísica da impotência. A prática subentende, traz embutida em si, indissoluvelmente, ao contrário da negação da atividade do pensamento, a presença de dois de seus momentos exponenciais: a subjetividade proponente – teleologia, e a subjetividade receptora – capacidade cognitiva. De modo que, tal como diz Marx no manuscrito: “Pensar e ser são, portanto, certamente diferentes, mas [estão] ao mesmo tempo em unidade mútua”, razão pela qual o ser humano, por isso genérico, ou seja, social, “tem de atuar e confirmar-se tanto em seu ser quanto em seu saber”28.

Ser ativo que pensa, e como tal, capaz de conhecer, é no exercício de sua capacidade peculiar que o homem deve comprovar seu conhecimento. É o que assegura a proposição fundamental da tese II de “Ad Feuerbach”: “na prática que o homem tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza citerior [Diesseitigkeit] de seu pensamento”29. Ser efetivante pela dação de forma subjetiva, o homem avalia o conhecimento nela contido pela resultante objetiva de seus atos, que não apenas confirma ou infirma seu saber, mas junto com este seu próprio ser; ao limite, se incapaz de saber, o homem é incapaz de ser – humano: entificação autoconstituinte que elabora seu mundo próprio. Colocada em evidência, toda a questão do conhecimento é reconfigurada pela raiz. Por razões ontológicas – a impossibilidade de conhecer suprimiria a capacidade de confirmação do ser social, e um ser que não se confirma, sensivelmente, é um não-ser, isto é, um absurdo – o questionamento sobre a possibilidade do conhecimento se torna ocioso. Isso recentra a interrogação sobre o verdadeiro problema, qual seja, o do critério de verdade. E a resolução marxiana é, novamente, ontológica ou, mais precisamente, ontoprática. Tanto a parte central da tese II já transcrita como o restante da mesma o atestam. Desde a definição do caráter do problema, “A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade objetiva [gegenständliche Wahrheit] não é uma questão da teoria, mas uma questão prática”, até a finalização do aforismo, que reforça e expande, criticamente, essa determinação: “a disputa acerca da realidade ou não-realidade de um pensamento que se isola da prática é uma questão puramente escolástica”30.”

28 Ibidem, cit., p. 108 e 128.

29 Karl Marx e Friedrich Engels, “Ad Feuerbach”, cit., p. 533, tese II.

30 Idem.

 

 

“É por essa dimensão ou, antes, grandeza – constituir a si mesmo e a seu mundo, inclusive na contraditoriedade e na própria negação de si, que o homem demonstra a possibilidade e a efetividade de seu pensamento. É o que reconhece e assenta como pedra angular a fundamentação ontoprática do conhecimento. Forma de demonstração que em tudo e por tudo é muito superior, seja por seu estatuto, seja por sua resolubilidade, dada a infinitude da reiteração multiforme de suas evidências, ao formato que qualquer outra de natureza puramente especulativa poderia engendrar em sua unilateralidade congênita. Ademais, sendo uma resolução de natureza ontológica, torna possível encarar com rigor a delucidação do complexo do conhecimento, pois evita, desde logo, o escolho de pensar o conhecimento como exercício de uma subjetividade autônoma que se impõe idealmente ao objeto, uma vez que, segundo palavras de Lukács, “a ontologia trata da estrutura da realidade”33, ou melhor ainda, como diz no capítulo sobre Marx:

[...] a função da crítica ontológica [...] tem por meta despertar a consciência científica no sentido de restaurar no pensamento a realidade autêntica, existente em-si. [...] uma cientificidade que, no processo de generalização, nunca abandona esse nível, mas que, apesar disso, em toda verificação de fatos singulares, em toda reprodução ideal de uma conexão concreta, tem sempre em vista a totalidade do ser social e a utiliza como metro para avaliar a realidade e o significado de cada fenômeno singular; uma consideração ontofilosófica da realidade em-si, [...] com o único objetivo de poder captar todo ente na plena concreticidade da forma de ser que lhe é própria, que é específica precisamente dele.34

Enquanto rematização dessa natureza, a fundamentação ontoprática do conhecimento consolida a questão em sua forma inteligível e no devido lugar científico, facultando sua investigação concreta pela indicação de seus lineamentos estruturais.

A fundamentação ontoprática do conhecimento, pela autogênese do homem e o correlativo engendramento de sua própria mundaneidade, remete, de saída, à determinação social do pensamento. Outro dos aspectos muito mal entendidos do pensamento marxiano, é generalizadamente tomado no sentido básico de constrangimento social que pesa, obstaculiza e deforma, quando não impede, o processo de aquisição do saber, em razão dos vetores e valores societários e por causa de sua incorporação pelos homens em geral, incluídos os investigadores, uma vez que todos são individualidades situadas. Por estranha e profundamente ingênua que seja essa imagem do ideário marxiano, sua difusão quase não teve limites, causando estragos, de algum modo, até mesmo no que houve de melhor entre seus adeptos, para não falar daqueles que, avessos ao pensador e achando que faziam justiça, com alguma cerimônia o reduziram a membro de uma estranha confraria, o clube das filosofias da suspeita, o qual, é evidente, com tiradas de seu conhecido sarcasmo, Marx se recusaria a frequentar.

Um contorno rápido dessa questão polimorfa deve ferir, de imediato, seu ponto central e positivo: a sociabilidade como condição de possibilidade do pensamento. Três curtos parágrafos do “Terceiro manuscrito” bastam para comprovar que, já desde 1844, Marx concebia de modo afirmativo o nexo fundamental entre a consciência, suas formações ideais, e a sociedade:

Posto que também sou cientificamente ativo etc., uma atividade que raramente posso realizar em comunidade imediata com outros, então sou ativo socialmente porque [o sou] enquanto homem. Não apenas o material da minha atividade – como a própria língua na qual o pensador é ativo – me é dado como produto social, a minha própria existência é atividade social; por isso, o que faço a partir de mim, faço a partir de mim para a sociedade, e com a consciência de mim como um ser social. Minha consciência universal é apenas a figura teórica daquilo de que a coletividade real, [o] ser social, é a figura viva, ao passo que hoje em dia a consciência universal é uma abstração da vida efetiva e como tal se defronta hostilmente a ela. Por isso, também a atividade da minha consciência universal – enquanto uma tal [atividade] – é minha existência teórica enquanto ser social. [...] Como consciência genérica o homem confirma sua vida social real e apenas repete no pensar a sua existência efetiva, tal como, inversamente, o ser genérico se confirma na consciência genérica, e é, em sua universalidade como ser pensante, para si.35

O núcleo da formulação é límpido em sua determinação, e o conteúdo enquanto tal, independentemente de cogitações relativas à sua verdade ou falsidade, não é passível de leituras ou interpretações: atividade ideal é atividade social. O pensamento tem caráter social porque sua atualização é a atualização de um predicado do homem, cujo ser é, igualmente, atividade social. Na universalidade ou na individualidade de cada modo de existência teórica – cientista, pensador etc. – o pensamento é atividade social, inclusive pelos materiais e instrumentos empregados. Em síntese, consciência, saber, pensamento etc., sob qualquer tipo de formação ideal, das mais gerais às mais específicas, da mais individualizada à mais genérica, dependem do ser da atividade sensível, socialmente configurado, ao qual confirmam por sua atividade abstrata, igualmente social.”

33 Georg Lukács, Pensamento vivido (Santo André/Viçosa, Ad Hominen/UFV, 1999).

34 Idem, “Os princípios ontológicos fundamentais de Marx”, cit., p. 27.

 

 

“O corpus teórico marxiano delucida o complexo do pensamento congregando, analiticamente, sujeito e objeto – determinação social do pensamento e processo formativo ou presença histórica do objeto. Enfoca, pois, a atividade da consciência no interior da malha real em que ela se manifesta e produz, recusando e desqualificando, por ilegitimidade ontológica, cogitações relativas ao entendimento enquanto figuração isolada ou a qualquer logos desencarnado das rotas gnosiológicas postiças. Qualquer variante de razão autossustentada ou pura, não contaminada materialmente, cede lugar à altitude maior da razão interessada, atributo do homem ativo que confirma seu ser pela objetivação, a cujo processo sensível aquela está integrada de modo decisivo e indissolúvel, motivo bastante para que seja afirmada a validade e a relevância de sua investigação e esclarecimento. Ocorre, portanto, no tratamento marxiano da questão do saber, um deslocamento corretivo, que vai da rarefação das formas gnosiológicas de abordagem para a encorpada analítica da determinação social do pensamento e da entificação do objeto, ou seja, o problema é transmutado em circunscrição peculiar no universo de investigação concreta do complexo humano-societário global, delimitada e operacionalizada sobre os esteios da nova ontologia histórico-imanente constituída em fundamento. A problemática do conhecimento não é, pois, abandonada ou dissolvida, mas recaracterizada no lugar próprio e em seus devidos termos, distantes de qualquer artificialismo escolástico, como demarca e suscita a tese II de “Ad Feuerbach”. Com essa redefinição é ampliada, pois concebida em sua maior complexidade, desde seu momento protoformático – o trabalho – já que este implica a inteligibilidade da malha causal dos objetos sobre os quais atua, e também a prévia ideação do alvo a objetivar, imagem interior que responde a carências sentidas e (re)conhecidas, dado que teleologia não é vaga aspiração ou simples desejo, só guardando a identidade na medida em que comporta possibilidades efetivas de realização. A partir desse plano fundante, a conjunção cognitiva entre sujeito e objeto é reiterada de algum modo e em certa proporção por todas as formas da práxis social, por distintas e peculiares que sejam as atividades reais ou ideais em que é consubstanciada, e de maneira precípua, na forma mentis da cientificidade.

A universalidade do quadro emergente é, pois, a do sujeito ativo situado em face de objetos mutantes, de individualidades cognoscitivas, geradas em tempos e lugares sociais, diante da processualidade entificadora das coisas materiais e espirituais, igualmente societárias. Em decorrência, a conjunção cognitiva ideal depende do encontro entre um sujeito plasmado em posição adequada à objetivação científica, ou seja, portador de ótica social em condição subjetiva de isenção, e de um objeto desenvolvido, isto é, perfilado na energeia de seu complexo categorial estruturalmente arrematado. Resta saber de que modo específico atua, no encontro intrincado dessa dupla processualidade, o sujeito cientificamente interessado. Entre as dificuldades que se opõem ao trabalho científico, Marx, referindo-se à análise das formas econômicas (mas a observação, obviamente, pode ser generalizada para todo o âmbito das formas humano-societárias), inclui o fato de que nessas investigações “não podem servir nem o microscópio nem reagentes químicos”71. Afirmação desdobrada por Lukács em termos de que “é da maior evidência que, no ser social, graças à sua essência, os experimentos no sentido das ciências naturais são ontologicamente impossíveis por princípio, dado o específico predomínio do elemento histórico enquanto base e forma de movimento do ser social”72. Seja por princípio, seja por mera impraticabilidade, excluídos os métodos experimentais, Marx assegura categoricamente que, nessa esfera, “a força da abstração [Abstraktionskraft] deve substituir ambos”73. É, então, com essa aludida capacidade mental de escavar e garimpar as coisas que o sujeito opera cognitivamente, por meio dela é que “a pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real74. Ferramenta única e decisiva da investigação, há que se deter com mais vagar e profundidade sobre a atividade peculiar da força da abstração, anunciada com toda simplicidade, mas também com toda energia, pelo discurso marxiano.”

69 Karl Marx, “Prefácio”, em O capital, cit., p. 12.

70 Georg Lukács, “Os princípios ontológicos fundamentais de Marx”, cit., p. 118-9.

71 Karl Marx, “Prefácio”, em O capital, cit., p. 12.

72 Georg Lukács, “Os princípios ontológicos fundamentais de Marx”, cit., p. 118.

73 Karl Marx, “Prefácio”, cit., p. 12.

74 Ibidem, p. 20.

 

 

“É a respeito dessa demanda teórica bem específica que se desenrola a explicação marxiana; assim, é arguido que partindo do todo imediato, manifesto por seus complexos parciais (cidade, campo, produção, população, classes etc.), desemboca-se numa “representação caótica do todo”, pois a totalidade ou cada parte abordada redunda em simples abstração, se desconsiderados os vetores que a integram, por exemplo, a população sem as classes. Essas, por sua vez,

[...] são uma palavra vazia de sentido se ignorarmos os elementos em que repousam: o trabalho assalariado, o capital etc. Estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc., não é nada.91

A resultante é uma representação caótica do todo porque mero ajuntamento de abstrações esvaziadas de textura e privadas de ordenamento. Contudo, essa dissolução teórica do concreto não deve ser cristalizada, unilateralmente, em sua face negativa. Marx, nesse sentido, tomando por ilustração a nascente economia do século XVII, aponta que seus cultores “começavam sempre pelo todo vivo: a população, a nação, o Estado, vários Estados etc.”, mas ressaltando que também “terminavam sempre por descobrir, por meio da análise, certo número de relações gerais abstratas que são determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor etc.”92. Ou seja, partindo do todo vivo, porém sem se deter na representação caótica: “através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto idealizado passaríamos a abstrações cada vez mais tênues até atingirmos determinações as mais simples”93. Por meio desse aprofundamento analítico das abstrações, vale dizer, da determinação mais precisa de elementos da representação caótica, é que se atinge, a certo custo e demora, a configuração de abstrações relativamente bem recortadas, chamadas por Lukács de abstrações isoladoras, que são fundamentais, pois, como estabelece o texto marxiano, “esses elementos isolados, uma vez mais ou menos fixados e abstraídos, dão origem aos sistemas econômicos, que se elevam do simples, tal como trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, a troca entre as nações e o mercado mundial”94.

Essas abstrações depuradas, a verdadeira face das abstrações razoáveis, são, portanto, o ponto de partida da elaboração teórica, uma vez que, “chegados a esse ponto, teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a população, mas dessa vez não com uma representação caótica de um todo, porém com uma rica totalidade de determinações e relações diversas”. Viagem essa de retorno das abstrações ao concreto que “ é manifestamente o método cientificamente exato”95. Donde a perfeita distinção dos métodos considerados e o completo esclarecimento da questão relativa ao ponto de partida, para a qual as abstrações razoáveis são a própria resposta:

No primeiro método, a representação plena volatiliza-se em determinações abstratas, no segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento. [...] o método que consiste em se elevar do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para o reproduzir como concreto pensado.96

Importa grifar, nessa última passagem, em mais uma alusão à força de abstração como puro atributo do sujeito pensante – isto é, capacidade peculiar de apropriação do real –, que o método científico não é mais do que a maneira de proceder do pensamento. Maneira ou razão pela qual “o concreto aparece no pensamento como o processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida”, de modo que “o todo, tal como aparece no cérebro, como um todo de pensamentos, é um produto do cérebro pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, modo que difere do modo artístico, religioso e prático-mental de se apropriar dele”97.

Delineada a abstração razoável como ponto de partida do “método científico exato” e apontado o concreto como resultado ou “um todo de pensamentos” a ser alcançado, há que assinalar que toda a travessia de um a outro desses polos permanece ainda inteiramente submersa na obscuridade. Mesmo porque, no estágio em que se encontra a exposição, a teoria das abstrações parece conduzir a uma espécie de indeterminação ou até mesmo de antinomia. De um lado, tem-se o alvo – reproduzir o concreto como concreto pensado, sob o famoso preceito de que “o concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso”98, sem que o referido “processo de síntese” tenha sido esclarecido, mas que subentende o deperecimento da abstratividade; de outro, a irremediável condição de abstratividade das abstrações razoáveis, pois as “determinações comuns [...] apreendidas pelo pensamento como gerais [...] não são outra coisa senão esses momentos abstratos, os quais não apreendem nenhum grau histórico efetivo”99 dos complexos reais, mas que não podem ser dispensadas, uma vez que, como já foi citado, sem elas não se poderia conceber nenhum destes.

Em verdade não há qualquer aporia: os pontos de partida e chegada não se repelem pelos conteúdos nem estão incompatibilizados pela forma; ao revés, no andamento da síntese operam mediações aglutinadoras que os aproximam e fundem, para o sucesso das quais são imprescindíveis a universalidade das abstrações razoáveis, pontos de partida e retentoras da igualdade ou continuidade dos processos, bem como os conteúdos das diferenças, representativas das mudanças ou desenvolvimentos. Em suma, o processo de síntese se deixa entrever como um trabalho das abstrações, que poderia ser referido, cedendo a algum coquetismo, como a dialética das abstrações razoáveis e das diferenças essenciais, sobre a qual a teoria das abstrações tem ainda palavras importantes a dizer.

As abstrações razoáveis, relações gerais ou as mais simples das categorias – pontos de partida da autêntica démarche científica – “são determinantes” ou, em outras palavras, “sem elas não se poderia conceber nenhuma” formação concreta; todavia, elas não determinam nenhum objeto real, isto é, “não explicam nenhum grau histórico efetivo” de existência. Mesmo assim, “o curso do pensamento abstrato se eleva do mais simples ao complexo”, ou seja, “as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento”, e nesse itinerário é que se realiza “o método que consiste em se elevar do abstrato ao concreto”. Realização metodológica que subentende, pois, uma complexa metamorfose das abstrações razoáveis, pela qual, mantendo a condição de pensamentos, isto é, de abstrações, deixam de prevalecer como momentos abstratos, para se converter em momentos concretos da apreensão ou reprodução dos graus históricos efetivos dos objetos concretamente existentes.

Um dos aspectos fundamentais dessa transformação compreende a intensificação da razoabilidade dessas categorias simples, ou seja, a atualização das virtualidades de sua natureza ontológica enquanto forma de apropriação ideal dos objetos reais. O que é operado pela exata aproximação e comparação delas aos traços efetivos, portanto, determinados e delimitados dos objetos, de modo que sejam medidas por eles e, consequentemente, ajustadas aos mesmos, de forma que sua capacidade de os reproduzir se torne mais precisa e, por isso mesmo, maior. Em termos bem sintéticos, na rota que vai do simples ao complexo, do abstrato ao concreto, as abstrações razoáveis devem perder generalidade por especificação, adquirindo os perfis da particularidade e da singularização, ou seja, a fisionomia de abstrações razoáveis delimitadas. Toda vez que o discurso marxiano assegura que “a população é uma abstração, se desprezarmos, por exemplo, as classes que a compõem” e que essas “são uma palavra vazia de sentido se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital etc.”, esses mesmos supondo “a troca, a divisão do trabalho, os preços etc.”, de modo que “o capital, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc. não é nada”100, ou sempre que endossa considerações a respeito de seu método, pelas quais é reconhecido que seu valor científico “reside no estabelecimento das leis específicas que regulam nascimento, existência, desenvolvimento e morte de dado organismo social e a sua substituição por outro”, de maneira que as leis abstratas ou gerais são negadas, só sendo admitido, “pelo contrário, que cada período histórico possui suas próprias leis”101, e tais reiterações não são casuais, a investigação marxiana está remetendo à multilateralidade determinativa de toda conformação fenomênica, ou seja, referindo que todo objeto, intrínseca e extrinsecamente, é e se manifesta como um feixe entrelaçado de inúmeras determinações, para cuja adequada reprodução teórica são indispensáveis a delimitação e a articulação das abstrações razoáveis. Desde logo porque a articulação, fase conclusiva do processo analítico, é também uma exigência de delimitação, levando em conta que as abstrações razoáveis, umas em face das outras, têm de ser compatibilizadas entre si, o que implica recíprocas determinações delimitadoras, pelas quais são estabelecidas as proporções com que integram a reprodução final do objeto investigado. Proporções, é evidente, que não dizem respeito, simples e essencialmente, ao tamanho ou à extensão conceitual com que são incorporadas à síntese, mas às qualidades com que participam da mesma, pois as abstrações razoáveis, sob a intensificação ontológica que as delimita, não apenas continuam a ser “um conjunto de determinações diferentes e divergentes”, mas, a rigor, têm sua diversidade acentuada por especificação, mesmo porque ajustadas à coabitação, harmônica ou contraditória, com as diferenças essenciais, de modo a se tornarem capazes de reproduzir o concreto do ser-precisamente-assim, o que significa aproximação e tradução máximas possíveis da profusa malha de determinações interconexas do mesmo.

Todavia, a exigência de delimitação promovida pela articulação é apenas um efeito de sua natureza. Ponto de chegada da analítica marxiana, momento culminante da produção do “concreto de pensamentos”, hora conclusiva da investigação, de acordo com as próprias palavras de Marx – “A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real”102. Por isso mesmo, como o estágio mais desenvolvido do próprio método, que integra e proporciona a plena realização de seus momentos anteriores, a articulação, além de sua relevância intrínseca, confirma e explica os passos antecedentes e, por extensão, o método em seu todo.”

91 Karl Marx, “Introdução de 1857”, cit., p. 122.

92 Idem.

93 Idem.

94 Idem.

95 Idem.

96 Idem.

97 Ibidem, p. 123.

98 Ibidem, p. 122.

99 Ibidem, p. 112.

100 Ibidem, p. 122.

101 Karl Marx, “Posfácio”, em O capital, cit., p. 19-20.

102 Ibidem, p. 20.

 

 

“Grife-se em conclusão, para além do enunciado fragmentário da teoria das abstrações na obra marxiana, que seus lineamentos gerais proporcionam – é o que importa, de fato – um quadro de traços marcantes e consistentes, cujo estatuto ontológico se manifesta em todos os módulos nela imbricados. Vale sumariar, para ressalto da unidade, principiando pela referência à determinação da força de abstração como órgão peculiar da individualidade na apropriação ideal dos objetos, passando a seguir pelo caráter ontológico das abstrações razoáveis, ponto de partida do “método científico exato”, cuja delimitação é operada por intensificação de igual natureza, para alcançar a articulação, que ratifica o estatuto ontológico do conjunto pela absorção da lógica das coisas, e concluindo pela menção ao momento preponderante enquanto tônica categorial igualmente ontológica, caráter que também pertence às determinações reflexivas, uma vez que, marxianamente, essas são sempre configurações de pares ou conjuntos reais, interações concretas. De imediato esse contorno presta um grande serviço, esclarecendo de modo definitivo que, na reflexão marxiana, a tomada da realidade concreta como ponto de partida do conhecimento não implica nenhum empirismo, mas “caminhos objetivo-ontológicos” (Lukács), que tornam de maneira translúcida que qualquer roteiro analítico especulativo ou centrilógico é, para ela, totalmente inadmissível, seja pelo seu fundamento, seja porque suas exigências de rigor ultrapassam de longe o que podem oferecer os critérios lógico-formais em sua natureza homogeneizante. Por conseguinte, a teoria das abstrações se mostra como o arcabouço dos procedimentos cognitivos marxianos e, a rigor, está colada à base do que pode ser chamado de seu método científico.”

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