sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O Quarteto de Alexandria: Clea, de Lawrence Durrell

Editora: Ediouro

ISBN: 978-85-0001-759-9

Tradução: Daniel Pellizzari

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 244

Sinopse: Intriga, mistério e sensualidade na cosmopolita e poliglota cidade de Alexandria no tempo da Segunda Guerra Mundial. Os quatro romances que compõem O Quarteto de Alexandria Justine, Balthazar, Mountolive e Clea – exploram a sociedade daquela cidade poliglota e cosmopolita, repleta de intrigas, mistério e sensualidade, retomando genericamente uma mesma história sob diferentes pontos de vista, acrescentando e refazendo pormenores e situações.

O regresso do escritor – Darley – é o fio condutor de Clea, o último volume desta série exuberante.



““Reformular a realidade”, escrevi anteriormente; palavras temerárias e presunçosas, sem dúvida – pois é a realidade que nos formula e reformula no decorrer de sua marcha lenta.”

 

 

“Não escrevo para quem nunca se perguntou em que ponto se inicia a vida real.”

 

 

“Aprenda: se uma garota não gosta de dançar ou nadar, nunca será capaz de fazer amor.”

 

 

“Aquela guerra havia chegado de mansinho até nós, cruzando o oceano; gradualmente, como nuvens que se amontoam silenciosas até encobrirem todo o horizonte. Ainda não estourara, porém. Era apenas um rumor, envolvendo corações com esperanças e medos conflitantes. De início, parecia anunciar o suposto fim do mundo civilizado, mas essa esperança logo se mostrou vã. Não. Como sempre, seria apenas o final da gentileza, da segurança e da moderação; o fim das esperanças dos artistas, da tranquilidade, da alegria. Afora isso, todas as outras características humanas seriam confirmadas, enfatizadas; talvez até mesmo alguma verdade despontasse por trás das aparências, pois a morte amplia todas as tensões e impede que continuemos usando as mesmas desculpas para continuar vivendo.”

 

 

“– Darley, você mudou bastante. – Não consegui discernir se o tom era de reprovação ou elogio. Sim, ele tinha razão: sorri ao enxergar o arco em ruínas, lembrando-me de um beijo pré-histórico em meus dedos. Lembrei-me da ligeira hesitação naqueles olhos negros enquanto ela dizia a verdade corajosa e triste: “Nada aprendemos com quem corresponde ao nosso amor.” Palavras que arderam como álcool cirúrgico sobre uma ferida aberta, mas que, como todas as verdades, tinha propriedades antissépticas.”

 

 

“Crescer demora uma vida inteira.”

 

 

“– Como você pode não sentir rancor algum? Perdoar uma traição como essa tão facilmente. Ora, parece falta de hombridade. Odiar um vampiro seria natural! Tampouco poderia entender minha humilhação como amante por não ser capaz de regalá-lo, sim, regalá-lo, querido, com os tesouros de minha intimidade. E sim, admito que na verdade gostei de enganá-lo, não vou negar. Mas também sentia remorso ao oferecer-lhe apenas o simulacro patético de um amor (rá! essa palavra novamente), um amor minado por mentiras. Imagino que isso traia a infinita vaidade feminina: desejar o pior de dois mundos, de ambas as palavras: amor e mentira. E ainda assim é estranho, pois agora que você sabe a verdade e estou livre para oferecer meu afeto, tudo o que sinto é um desdém ainda maior por mim mesma. Talvez eu seja mulher o bastante para sentir que o verdadeiro pecado contra o Espírito Santo é a desonestidade no amor. Que tolice pretensiosa. Por sua própria natureza, o amor não comporta honestidade alguma.”

 

 

“– Afinal de contas, somos totalmente ignorantes daqueles que nos rodeiam, tudo o que exibimos uns aos outros não passam de seletas ficções! Suponho que todos se veem assim, à luz da mais completa ignorância.”

 

 

““Por mais difícil que seja o caminho, ao final, todos são obrigados a ajustar as contas com a verdade”, escreveu Pursewarden. Sim, mas de uma forma inesperada eu descobria que a verdade podia me nutrir – uma onda gelada que me carregava cada vez mais para perto da plenitude. Agora percebia que minha Justine havia sido realmente a criação de um ilusionista, sustentada por uma estrutura defeituosa composta de palavras, ações e gestos mal interpretados. Ninguém era culpado; o verdadeiro responsável era meu amor, que inventara uma imagem da qual se alimentar. Também não era uma questão de desonestidade, pois a pintura ganhou suas cores de acordo com as necessidades desse amor. Amantes são como médicos, disfarçam o amargor de um remédio para torná-lo mais palatável! Não, aquilo não poderia ter sido diferente, isso estava claro.

E algo mais, igualmente estimulante: percebi também que amante e amado, observador e observado, irradiam campos um sobre o outro (“A percepção tem a forma de um abraço – e com ele penetra o veneno”, como escreveu Pursewarden). Então deduzem as proporções de seu amor, fazendo cálculos a partir desse campo estreito com margens imensas de incógnitas (“a refração”), recorrendo em seguida a um conceito generalizado, constante em suas qualidades e universal em sua operação. Que lição valiosa, tanto para a vida quanto para a arte! Em tudo o que eu havia escrito, meramente atestara o poder de uma imagem criada involuntariamente pela mera visão de Justine. Não questionava se era verdadeira ou falsa. Ninfa? Deusa? Vampira? Sim, ela era todas e nada disso. Como toda mulher, era tudo que a mente de um homem (vamos definir “homem” como um poeta em eterna conspiração contra si mesmo) – que a mente do homem pudesse imaginar. Estivera sempre ali e nunca havia existido! Sob todas essas máscaras existia apenas outra mulher, todas as mulheres, um manequim desnudo à espera de ser vestido pelo poeta que lhe insuflaria o alento. Compreendendo tudo isso pela primeira vez, percebi admirado o enorme poder reflexivo da mulher – a passividade fecunda que, como a lua, toma emprestado o brilho do sol masculino. Como eu poderia sentir outra coisa além de gratidão por informações tão vitais? Que importavam as mentiras, os enganos, as loucuras, quando comparadas àquela verdade?”

 

 

“Um artista que carrega uma mulher nas costas é como um cão com uma pulga na orelha; coça, sangra, não tem descanso.”

 

 

“Caminhando de novo pelas ruas da capital de verão, caminhando à luz da primavera, ao longo de um mar azul sob céu sem nuvens – dormindo acordado –, sentia-me como o Adão das lendas medievais: um homem cujo corpo é feito do mundo, tendo o solo como carne, as pedras como ossos, a água como sangue, a relva como cabelo, a luz do sol como visão, a brisa como alento e nuvens como pensamentos. Sem peso, como após uma longa doença, flutuava nas águas rasas do Maerotis com suas velhas marcas de apetites e desejos restituídos à história do lugar: uma cidade antiga, de crueldades intactas, erigida entre um deserto e um lago. Caminhando por ruas nunca esquecidas, que se irradiam como os braços de uma estrela-do-mar a partir da tumba do fundador. Pegadas ecoando nas memórias, cenas e conversas esquecidas ressurgindo furtivas de muros, mesas de cafés, quartos de colinas cerradas, tetos cobertos de rachaduras. Alexandria, princesa e meretriz. Cidade real e anus mundi. Jamais mudará enquanto as raças nela continuarem a fervilhar como mosto num barril; enquanto as ruas e praças seguirem borbulhando com a fermentação de paixões e rancores diversos, fúrias e serenidades inesperadas. Um deserto fecundo de amores humanos, coberto pelos ossos brancos dos desterrados. Palmeiras altas e minaretes em conjunção celeste. Colmeias de mansões brancas flanqueando ruas estreitas e abandonadas, sem pavimentação, onde todas as noites ouvem-se a música árabe e os gritos das jovens que com tanta facilidade entregam o fardo de seus corpos (seu tormento) e oferecem à noite beijos apaixonados cujo sabor nem o dinheiro é capaz de arruinar. A tristeza e a beatitude dessa combinação humana que se perpetua rumo à eternidade, num ciclo interminável de renascimentos e aniquilações capaz de ensinar e reabilitar com seu poder destrutivo. (“Fazemos amor apenas para confirmar nossa solidão”, disse Pursewarden, e certa vez Justine completou: “Uma mulher sempre escreve suas melhores cartas de amor ao homem que está traindo”).”

 

 

“A música foi inventada para confirmar a solidão humana.”

 

 

““Isso, claro, teve um fim; como acontece com tudo, supostamente até mesmo com a vida! Não há mérito algum em sofrer como sofri, mudo como um animal de carga atormentado por feridas insuportáveis que não consegue alcançar com a língua. Foi então que me lembrei de um comentário em seu manuscrito, a respeito da feiura de minhas mãos. Por que não cortá-las e jogá-las no mar, como você sugeriu, tão atencioso? Foi a pergunta que surgiu em minha mente. Vivia tão entorpecido por drogas e álcool que imaginei não ser possível sentir alguma dor. Cheguei a tentar, mas é bem mais difícil do que você imagina. Tanta cartilagem! Agi como os tolos que tentam cortar a garganta e atingem o esôfago. Sempre sobrevivem. Quando desisti, tomado de dor, pensei em outro escritor, Petrônio. (O papel da literatura em nossas vidas!) Afundei-me numa banheira de água quente. Mas o sangue não escorria. Era como se nada mais restasse. Consegui forçar algumas gotas, escuras como betume. Estava pronto a experimentar outras maneiras de aliviar a dor quando Amaril apareceu. Ficou muito irritado. Deu-me um sedativo cujo efeito durou vinte horas, durante as quais ele deixou meu cadáver e meu quarto num estado apresentável. Então fiquei muito doente, creio que de vergonha. Sim, sem dúvida adoeci de vergonha, embora naturalmente estivesse muito enfraquecido por conta de todos aqueles excessos. (...) Meus amigos foram muito gentis e sempre visitavam-me, trazendo presentes, entabulando conversas que me davam dor de cabeça. Assim, gradualmente, voltei à superfície com uma lentidão infinita. Disse a mim mesmo: ‘Nossa mestra é a vida. Vivemos em discordância com nosso intelecto. Aprendemos com a resistência ao sofrimento.’ Aprendi algo, mas a que custo!”

 

 

“– Talvez a mais terna, a mais trágica das ilusões seja acreditar que nossas ações são capazes de adicionar ou subtrair qualquer coisa à soma de bem e mal nesse mundo.”

 

 

“Arte não é arte ao menos que ameace a sua existência.

 

Toda obra de arte é uma indiscrição – mas uma indiscrição calculada.

 

A morte é uma metáfora; ninguém morre para si mesmo.

 

É preciso manter uma réstia de esperança se pretendemos aproveitar plenamente nosso desespero; sim, e jamais esqueça: onde existe fé, existe dúvida.

 

A arte é tão supérflua quanto as atividades bancárias, a menos que nasça de um espírito livre – neste caso, é realmente uma atividade bancária.”

 

 

“Não há fé, caridade ou ternura suficientes para dotar este mundo de um único raio de esperança. Ainda assim, enquanto soarem no mundo as dores de parto de um artista, esse grito estranho e triste, nada estará perdido!”

 

 

“A religião não passa de arte degenerada até se tornar irreconhecível.”

 

 

“A arte ocorre no instante em que um espírito desperto honra uma forma qualquer com sinceridade.”

 

 

“Por séculos a fio, nossos testículos foram espremidos pela Lei Mosaica; é a origem do ar triste e mutilado de nossos jovens, a origem da afetação descarada de adultos condenados a uma adolescência perpétua!”

 

 

“Quando Balthazar me repreendeu por ser ambíguo, respondi sem nenhuma reflexão consciente: “Sendo as palavras o que são, sendo as pessoas o que são, talvez seja melhor sempre dizer o oposto daquilo que pensamos.”

 

 

“A melhor coisa a fazer com uma grande verdade, como descobriu Rabelais, é enterrá-la sob uma montanha de tolices, onde pode aguardar confortavelmente pelas pás e picaretas dos eleitos.”

 

 

“Para um artista, o suicídio é o mais importante dos atos.”

 

 

“A memória tem tantos esconderijos.”

 

 

“Ah! Estou buscando metáforas capazes de transmitir um pouco da felicidade avassaladora tão raramente concedida aos amantes; mas as palavras, inventadas para combater o desespero, são cruas demais para refletir as propriedades de algo tão sereno, tão íntegro.”

 

 

“Se deseja esconder alguma coisa, esconde-a no centro do sol.” (Provérbio árabe)

 

 

“Uma cidade torna-se um mundo quando amamos um de seus habitantes.”

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Meditações – Marco Aurélio

Editora: Nova Cultura
ISBN: 978-85-7302-308-4
Traduções e notas: Jaime Bruna
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 60
Sinopse: Reflexões morais do imperador-filósofo, adepto do estoicismo.



“Rebaixa-te, minha alma, rebaixa-te! Não terás mais ocasião de honrar a ti mesma, que breve é a vida de cada um, a tua está prestes a terminar e tu, em vez de respeitares a ti mesma, colocas nas almas dos outros a tua felicidade.”


“Em todos os teus atos, ditos e pensamentos, procede como se houvesses de deixar a vida dentro de pouco.
Se os deuses existem, nada há de temeroso em partir dentre os homens; eles não te haveriam de precipitar numa desgraça; mas se eles não existem ou não se importam com os assuntos humanos, que me interessa viver num mundo vazio de deuses ou vazio de providência?
Existem, porém, importam-se com os assuntos humanos e deixaram na inteira dependência do homem evitar cair nos verdadeiros males; e se houver algum outro além desses, teriam também providenciado para que dependesse de cada qual não lhe acontecer.”


“Mesmo se houveres de viver três mil anos ou dez mil vezes esse tempo, lembra-te de que ninguém perde outra vida senão aquela que está vivendo, nem vive outra senão a que perde. Assim, a mais longa e a mais curta vêm a dar no mesmo.
O presente, por sinal, é o mesmo para todos; o perdido, portanto, é igual e assim o que se está perdendo se revela infinitamente pequeno. De fato, não podemos perder o passado nem o futuro; como nos poderiam tirar o que não temos?
Lembra-te, pois, sempre destas duas máximas: primeira, que tudo, desde todo o sempre, tem o mesmo aspecto e se renova em ciclos; nenhuma diferença faz verem-se os mesmos fatos por cem anos ou por duzentos, ou eternamente; segunda, que a perda é igual tanto para o de vida mais longa como para quem morre cedo, porquanto o presente é a única coisa de que será desapossado, pois só tem este e não perde o que não tem.”


“Da vida humana, a duração é um ponto; a substância, fluida; a sensação, apagada; a composição de todo o corpo, putrescível; a alma, inquieta; a sorte, imprevisível; a fama, incerta.
Em suma, tudo que é do corpo é um rio; o que é da alma, sonho e névoa; a vida, uma guerra, um desterro; a fama póstuma, olvido.
O que, pois, pode servir-nos de guia? Só e única a Filosofia. Consiste ela em guardar o nume interior livre de insolências e danos, mais forte que os prazeres e mágoas, nada fazendo com leviandade, engano e dissimulação, nem precisando que outrem faça ou deixe de fazer nada, acatando, ainda, os eventos e quinhões que lhe tocam, como vindos da mesma origem qualquer donde vem ele próprio; sobretudo, aguardando de boa mente a morte, qual mera dissolução dos elementos de que se compõe cada um dos viventes.
Se os elementos mesmos nada têm a recear da contínua transformação de cada um em outro, por que havemos de temer a transformação e dissolução do todo? Ela é conforme com a natureza e não existe nenhum mal conforme com a natureza.”


“Não devemos ter em conta somente que, dia a dia, se vai consumindo nossa vida e restando uma parte menor, mas computar também que, se alguém houver de viver mais tempo, não se sabe se ainda terá inteligência bastante ampla para a compreensão das questões e da teoria que aspira ao conhecimento dos assuntos divinos e humanos.
Se entrar em senilidade, não lhe faltará a respiração, o nutrimento, a imaginação, os instintos e mais funções congêneres; porém o dispor de si próprio, o acertar na conta das obrigações, o analisar as aparências e, a seu próprio respeito, o examinar seja não será tempo de retirar-se e demais cogitações análogas, que requerem um raciocínio absolutamente exercitado, apagam-se antes.
É mister, portanto, apressar-se, não só por estar a morte cada vez mais próxima, mas também por cessarem, antes dela, a percepção e acompanhamento dos fatos.”


“De fato, não te é lícito, ao bem segundo a razão e os interesses do Estado, opor seja o que for de natureza diversa, como o louvor da multidão, o poder, a riqueza, o gozo dos prazeres. Todos esses objetivos, embora pareçam, por algum tempo, quadrar a tua natureza, costumam assumir de repente o domínio e desencaminhar.
Tu, repito, escolhe franca e livremente o mais valioso e apega-te a ele.
— Mas o mais valioso é o que dá proveito.
— Se tiras proveito como ser racional, adota-o; se como ser animal, confessa-o e guarda modestamente o teu juízo; apenas, cuidado para não te enganares no exame.”


“Lembra, ainda, que cada um vive apenas o presente momento infinitamente breve. O mais da vida, ou já se viveu ou está na incerteza.
Exíguo, pois, é o que cada um vive; exíguo, o cantinho de terra onde vive; exígua até a mais longa memória na posteridade, essa mesma transmitida por uma sucessão de homúnculos morrediços, que nem a si próprios conhecem, quanto menos a alguém falecido há muito.”


“A gente procura para si retiros nas casas de campo, na beira-mar, nas serras; tu também costumas anelar vivamente por isolamentos desse gênero. Tudo isso, porém, é o que há de mais estulto, quando podes retirar-te em ti mesmo à hora que o desejes.
A lugar nenhum se recolhe uma pessoa com mais tranquilidade e mais ócios do que na própria alma, sobretudo quando tem no íntimo aqueles dons sobre os quais basta inclinar-se para gozar, num instante, de completo conforto; por conforto não quero dizer senão completa ordem.
Proporciona a ti mesmo constantemente esse retiro e refaze-te; mas haja nele aquelas máximas breves e elementares que, apenas deparadas, bastarão para fechá-lo a todo sofrimento e devolver-te livre de irritação contra o ambiente aonde regressas.
Com efeito, com o que te irritas? Com a maldade humana? Reaviva o juízo de que os viventes racionais nasceram uns para os outros; que a paciência é uma parte da justiça; que não pecam por querer; que tantos já, após ódios ferrenhos, suspeitas, rancores, jazem transpassados pela lança e reduzidos a cinza; e sossega, enfim.
Porém estás irritado também com os quinhões do todo que te couberam? Recorda a disjuntiva ou uma providência, ou os átomos e todas as provas de que o mundo é como uma cidade.
Porém ainda te afetarão os interesses do corpo? Considera que a inteligência não se imiscui nas agitações, suaves ou violentas, do alento, uma vez que, recolhida, haja compreendido o seu poder próprio; recorda, enfim, tudo quanto ouviste e admitiste sobre a dor e o prazer.
Porém a gloríola te fascinará? Volta a atenção para a rapidez com que tudo se esquece, para a extensão do tempo infinito num sentido e no outro, para o vazio da repercussão, para a volubilidade e falta de critério dos aparentes aplausos e na estreiteza do espaço onde se circunscrevem.
A terra toda não passa de um ponto, e que diminuto cantinho dela é realmente a parte habitada! E ali quantos são e quem são os que te hão de louvar?
Por fim, lembra-te de teu retiro para dentro dessa nesga de terra tua e, antes de tudo, nada de tormentos e contensões; sê livre e encara as coisas como um varão, como um ser humano, como um cidadão, como um vivente mortal.
Entre as noções mais à mão, sobre as quais te inclinarás, estejam estas duas: primeira, que as coisas não atingem a alma; param fora, quietas, e os embaraços vêm exclusivamente dos pensamentos de dentro; segunda, que tudo quanto estás vendo se transformará dentro de instantes e deixará de existir. Pensa constantemente em quantas transformações tu mesmo presenciaste.
O mundo é mudança; a vida, opinião*.”
Em suma, lembra-te disto: dentro de brevíssimo tempo estareis mortos tu e ele, e logo mais de vós não restará nem o nome.”
*: O aforismo é de Demócrito.


“Ocupa-te de pouco para viveres satisfeito.” (Demócrito)


“Se eliminarmos a maior parte de nossas palavras e ações, não farão falta, e nos sobrarão mais lazeres e sossego. Deves, por isso, de cada vez, lembrar a ti mesmo: Não será isto uma das coisas dispensáveis?
Aliás, devemos eliminar não só os atos mas também os pensamentos desnecessários, pois assim tampouco os seguirão os atos que acarretam.”


“És uma almazinha carregando um cadáver.” (Epicteto)


“Nada acontece a ninguém que sua natureza não suporte. Acontecem as mesmas coisas a outrem e, seja por ignorar que elas acontecem, seja por ostentação de altivez, mantém-se firme e permanece ileso.”


“A morte é o descanso das repercussões sensórias, do titerear dos impulsos, das divagações do intelecto e dos serviços à carne.”


“O que não convém ao enxame não convém tampouco à abelha.”


“Perto estás de esquecer tudo e de ser esquecido de todos.”


“Na maioria dos sofrimentos, ademais, acuda-te a máxima de Epicuro: a dor não é insuportável nem eterna, se te lembrares dos seus limites e não a ampliares com a imaginação.”


“A alegria do homem consiste em fazer o que é próprio de homem. Próprio de homem é querer bem ao seu semelhante, desprezar as comoções dos sentidos, distinguir as ideias fidedignas, contemplar a natureza do universo e os acontecimentos conformes com ela.”


“Concede a ti mesmo este momento presente. Quem aspira de preferência à celebridade no futuro não leva em conta que os homens de então hão de ser tais quais os de agora, que mal suporta; aqueles também serão mortais.
Que te importa, em suma, que eles façam eco a tais ou quais vozes ou tenham tal ou qual opinião a teu respeito?”


“O pecado de outrem cumpre deixá-lo onde está.”


“Sinceridade deliberada é cutelo.”


“Admira-me muitas vezes como cada um, embora ame a si mesmo acima de todos, dá menos valor à sua opinião a seu respeito que à dos outros.”


“Nada é mais insuportável que o orgulho impando sob a capa da modéstia.”

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Portões de Fogo – Steven Pressfield

Editora: Objetiva
ISBN: 978-85-7302-308-4
Tradução: Ana Luiza Dantas Borges
Opinião★★★★☆
Páginas: 394
“Eu estava profundamente consciente de meus irmãos guerreiros que haviam caído comigo. Um vínculo cem vezes mais forte do que aquele que experimentara em vida me unia a eles. Senti um alívio inexprimível e percebi que tinha temido, mais do que a morte, a separação deles. Compreendi o tormento cruciante do sobrevivente da guerra, a sensação de traição e covardia experimentada por aqueles que ainda se agarram à vida quando seus camaradas já dela se soltaram. O estado que chamamos de vida se encerrara. Eu estava morto.”


“Sua Majestade presenciou a pilhagem de inúmeras cidades e não precisa escutar o relato da semana que se seguiu. Vou acrescentar apenas a observação, da perspectiva dos anos que se passaram desde então, de que foi a primeira vez que meus olhos tiveram tal visão que a experiência ensina ser comum a todas as batalhas e todos os massacres.
Aprendi então: sempre há fogo.
Uma bruma acre paira no ar dia e noite, e a fumaça sulfurosa asfixia as narinas. O sol fica da cor de cinza e pedras pretas espalham-se pela estrada, fumegando. Para onde quer que olhemos, um objeto está em chamas. Madeira, pedra, a própria terra. As roupas queimam nos cadáveres; o cabelo queima, e a carne. Até mesmo a água queima. A impiedade da chama reforça o senso da ira dos deuses, do destino, desforra, façanhas realizadas e muitos problemas.
Tudo é o oposto do que deveria ser.
Caem coisas que deveriam ficar em pé. Soltam-se coisas que deveriam ficar presas, e são presas as que deveriam se soltar. Coisas que haviam sido acumuladas em segredo agora se revelam abertamente, e aqueles que as haviam reservado observam com os olhos opacos e deixam que se vão. Meninos se tornaram homens, e homens, meninos. Escravos se libertaram e homens livres foram escravizados. A infância se foi.”


“— Você será como eles — disse ela —, quando crescer.
Referia-se aos soldados que a tinham desonrado.
— Não serei.
— Será um homem. Não terá como ser diferente.”


“— Nunca se esqueça, Alexandros, de que esta carne, este corpo, não nos pertence. Graças a Deus não. Se eu achasse que fosse meu, não conseguiria avançar um passo para enfrentar o inimigo. Não é nosso, meu amigo. Pertence aos deuses e aos nossos filhos, a nossos pais e mães e, daqui a cem, mil anos, aos lacedemônios que ainda não nasceram. Pertence à cidade que nos dá tudo e não exige menos de nós.”


“O capitão Ptammitechus havia claramente se afeiçoado ao meu senhor e ao polemarch Olympieus, pai de Alexandros. Chamou-os à parte, declarando que queria lhes mostrar uma coisa. Conduziu-os à tenda do comandante, erigida ali, na praia, e retirou da arca desse oficial uma maravilha, que os espartanos, e eu, é claro, nunca tínhamos visto.
Era um mapa.
Uma representação geográfica, não meramente da Hélade e das ilhas do Egeu, mas do mundo inteiro.
A sua largura era de aproximadamente dois metros, com detalhes completos, realizado com muita perícia sobre o papiro do Nilo, material tão extraordinário que, embora quando seguro contra a luz pudéssemos ver através dele, nem as mãos do homem mais forte conseguiria rasgá-lo, a não ser usando a ponta de uma lâmina.
O capitão desenrolou o mapa sobre a mesa do comandante da esquadra. Mostrou aos espartanos sua terra, no coração do Peloponeso, com Atenas a 225 quilômetros ao norte e este. Tebas e Tessália exatamente ao norte dali, e os Montes Ossa e Olimpo na extremidade norte da Grécia. A oeste, o realizador do mapa havia retratado todas as léguas de mar e terra, até os Pilares de Hércules — e, ainda assim, o grosso da carta mal começara a ser desenrolado.
— Só quis que vissem, para o seu próprio bem, cavalheiros — Ptammitechus dirigiu-se aos espartanos através de seu intérprete —, a importância da escala do império de Sua Majestade, e dos recursos de que ele dispõe contra vocês, para que decidam resistir ou não baseados em fatos e não em fantasias.
Desenrolou o papiro na direção este. Sob a luz surgiram as ilhas do Egeu, depois a Macedônia, Ilíria, Trácia e Sythia, o Helesponto, Lídia, Karia, Cilícia, Fenícia e as cidades jônicas da Ásia Menor.
— Todas essas nações são controladas pelo Grande Rei. Ele fez com que elas, todas elas, o servissem. Tudo isso se oporá a vocês. Mas essa é a Pérsia? Não, ainda não atingimos o centro do Império...
Mais léguas de terra, o mapa parecia que se desenrolaria infinitamente. A mão do egípcio passou pelos contornos da Etiópia, Líbia, Arábia, Egito, Assíria, Babilônia, Suméria, depois Capadócia, Armênia e o trans-Cáucaso. A fama de cada um desses reinos foi mencionada, ele citou o número de guerreiros e a força e os armamentos que possuíam.
— Um homem viajando rapidamente pode atravessar todo o Peloponeso em quatro dias. Vejam, meus amigos. Para ir de Tiro a Sardis, a capital do Grande Rei, são três meses de marcha rápida. E toda essa terra, todos esses homens e riqueza, pertencem a Xerxes. Tampouco suas nações brigam entre si, como vocês helenos gostam tanto de fazer, nem se dividem em alianças que se desentendem. Quando o Rei diz unir, seus exércitos se unem. Quando ele diz em marcha, eles se põem em marcha. E ainda — disse ele — nem chegamos a Persépolis e ao coração da Pérsia.
Desenrolou ainda mais o mapa.
Surgiram mais terras cobrindo ainda mais léguas e com nomes ainda mais curiosos. O egípcio desfiou mais números. Duzentos mil dessa satrapia, trezentos mil daquela. A Grécia, a oeste, parecia cada vez mais miúda. Dava a impressão de estar se atrofiando em um microcosmo, em comparação à massa interminável do Império Persa. Os egípcios agora falaram de feras bizarras e quimeras. Camelos e elefantes, asnos selvagens do tamanho de cavalos de tração. Esboçou as terras da Pérsia, depois da Média, Báctria, Partia, Cáspia, Ária, Sogdiana e Índia, nações cujos nomes e existência eram desconhecidos dos que os ouviam.
— Dessas vastas terras, Sua Majestade atrai inúmeros guerreiros, homens que cresceram sob o sol causticante do leste, habituados às intempéries mais inconcebíveis, munidos de armas das quais vocês não têm experiência e financiados com uma soma incalculável de ouro e outras riquezas. Cada produto agrícola, cada fruta, grão, porco, carneiro, vaca, cavalo, a produção de cada mina, fazenda, floresta e vinha pertencem a Sua Majestade. E tudo isso ele investiu na composição desse exército que marcha para escravizá-los.
“Ouçam bem, irmãos. A raça egípcia é antiga, contando as gerações de seus pais desde a antiguidade. Vimos impérios se erguerem e caírem. Governamos e fomos governados. Mesmo agora, somos um povo tecnicamente conquistado. Servimos aos persas. Vejam minha situação, amigos. Pareço pobre? A minha conduta é desonrosa? Espiem minha bolsa. Com todo respeito, camaradas, eu poderia comprá-los e vendê-los e tudo que possuem somente com essa bolsa.”
Nesse ponto, Olympieus pediu que o egípcio fosse direto ao ponto.
— Aonde quero chegar é: Sua Majestade honrará vocês espartanos não menos do que nós, egípcios, ou qualquer outro grande povo guerreiro, se forem sensatos e se alistarem voluntariamente para lutar sob sua bandeira. No Oriente, soubemos que vocês gregos não o fizeram. A roda gira, e o homem deve girar com ela. Resistir não é simplesmente insensatez, mas loucura.
Observei os olhos de meu senhor. Ele percebeu claramente a intenção do egípcio como genuína e suas palavras proferidas por amizade e consideração. Porém, não conseguiu impedir que a raiva aflorasse em seu rosto.
— Vocês nunca experimentaram a liberdade, amigo — disse Dienekes —, ou saberiam que não é comprada com ouro, mas com a espada. — Conteve a ira imediatamente, batendo no ombro do egípcio como um amigo e encontrando o seu olhar com um sorriso. — E quanto à roda que mencionou — concluiu o meu senhor —, ela gira nas duas direções.”


““Qual a diferença entre um rei espartano e um soldado?” Um homem lançaria essa pergunta a seu companheiro enquanto preparam a cama ao ar livre, sob uma chuva fria. Seu amigo, afetando preocupação, refletiria por um instante. “O Rei dorme naquela fossa ali adiante”, responde, “e nós dormimos nessa aqui”.”


“— Dienekes diz que a mente é como uma casa com muitos quartos — disse ele. — Há quartos em que não se deve entrar.”


“Os homens escutaram atentos, em silêncio e solenes. Leônidas estava com cinquenta e cinco anos. Havia combatido em mais de quarenta batalhas, desde os vinte anos; ferimentos tão antigos quanto de há trinta anos subsistiam, vividos em seus ombros e panturrilhas, em seu pescoço e em sua barba prateada.
— Que misericórdia desconhecida o poupou nesse dia? Que clemência do divino desviou a lança do inimigo para um palmo de distância da nossa garganta e dirigiu-a fatalmente para o peito do querido camarada, ao nosso lado? Por que continuamos aqui sobre a terra, nós que não somos melhores, nem mais corajosos, que não reverenciamos mais o céu do que os nossos irmãos que os deuses escolheram mandar ao inferno? (...) O que mais um homem pode sentir nesse momento a não ser a gratidão mais solene e profunda em relação aos deuses que, por razões que ignora, pouparam sua vida nesse dia? Amanhã, seu capricho pode se alterar. Na semana seguinte, no próximo ano. Mas nesse dia o sol ainda brilha sobre ele, ele sente o seu calor sobre os seus ombros, ele contempla, à sua volta, os rostos de seus camaradas, que ele ama, e exulta com a salvação deles tanto quanto com a sua própria.”


“— A humanidade, como é constituída — disse Polynikes —, é um tumor e um cancro. Observe os espécimes em qualquer outra região que não a Lacedemônia. O homem é fraco, ganancioso, libidinoso, presa para todas as espécies de vício e depravação. Mente, rouba, trapaceia, assassina, funde as estátuas dos deuses e cunha o ouro como dinheiro para prostitutas. Isso é o homem. Essa é sua natureza, como atestam todos os poetas. Felizmente, Deus em sua misericórdia proveio um contrapeso para a depravação inata de nossa espécie. Essa dádiva, meu jovem amigo, é a guerra. A guerra, não a paz, produz a virtude. A guerra, não a paz, purga o vício. A guerra, e a preparação para a guerra, suscita tudo que é nobre e digno em um homem. Une-o a seus irmãos e os liga em um amor altruísta, erradicando no cadinho da necessidade tudo que é vil e ignóbil. Ali, no moinho sagrado do assassínio, o homem mais vil pode buscar e encontrar essa parte de si mesmo, oculta sob a corrupção, que reluz intensa e virtuosa, digna de honra diante dos deuses. Não despreze a guerra, efebo, nem imagine que a misericórdia e a compaixão sejam virtudes superiores a andreia, à bravura viril”.”


“Outras cidades produzem monumentos e poesias, Esparta produz homens.”


“— Os deuses fazem com que amemos quem não amaremos e se vingam de quem amaremos. Matam os que deviam viver e poupa os que merecem morrer. Dão com uma das mãos e tiram com a outra, prestando contas somente às suas leis, incognoscíveis.”


“— Atestem a lição: que nada de bom na vida acontece sem um preço. A liberdade é o mais encantador de tudo. Nós a escolhemos e pagaremos um preço por ela.”


“— Cães em uma matilha encontram coragem para atacar um leão. Cada cão sabe o seu lugar. Ele teme o cachorro acima e se alimenta do medo do cachorro abaixo. O medo vence o medo. É assim que os espartanos fazem, contrabalançando ao medo da morte um medo maior: o da desonra. Da exclusão da matilha.”


“— O que é mais natural para um homem do que lutar, ou para uma mulher do que amar?”


“— E, se me permitem perguntar, aonde se dirige esse magnífico exército? — perguntou um mercador de Halicarnasso, Elephantinos de nome.
— À morte — respondeu alguém.
— Que encantador!”


“Eu nunca tinha visto uma expressão de malignidade como a que estampava a face do meu senhor. Ele apontou para um baixio na terra, a seu lado, sob a luz da fogueira.
— Tenho observado essas criaturinhas. Na terra, uma guerra violenta de formigas.
— Veja esses heróis — Dienekes indicou os batalhões compactos de insetos se engalfinhando com uma bravura incrível em cima de uma pilha de formas de seus próprios companheiros caídos, combatendo sobre o cadáver ressecado de um besouro.
— Esta aqui seria Aquiles. E ali. Aquela deve ser Heitor. A nossa coragem não é nada se comparada à delas. Está vendo? Nem mesmo retiram do campo os corpos de suas companheiras, como nós fazemos.
Sua voz estava carregada de repulsa e exalando ironia.
— Acha que os deuses nos desprezam, como desprezamos esses insetos? Será que os imortais lamentam nossas mortes tão intensamente quanto sentimos a perda desses insetos?”


“Pedi que ela me dissesse como estava. De verdade.
Ela riu.
— Mudei, não foi? Não sou mais o chamariz-de-marido que você sempre me considerou. Eu também era tola. Pensava tão alto em meus projetos. Mas este não é o mundo da mulher, primo. Nunca foi nem nunca será.”


“— Há uma deusa em meu país chamada Naan — o scythiano rompeu o silêncio. — Minha mãe era uma sacerdotisa desse culto, se é que tal título possa ser aplicado a uma camponesa analfabeta que passou toda a sua vida na parte de trás de uma carroça. A minha mente recordou-se disso ao conhecer o nosso amigo mercador e a carroça que ele chamava de sua casa.
Isso foi o máximo que eu, e todos os outros, havíamos escutado Suicídio expressar. Todos esperaram que ele parasse ali. Para espanto geral, ele prosseguiu.
Sua mãe sacerdotisa ensinou-o, disse ele, que nada sob o sol é real. A terra e tudo sobre ela não passam de uma encarnação material de uma realidade mais profunda e mais pura que existe imediatamente atrás, invisível aos sentidos mortais. Tudo que chamamos de real é sustentado por esse fundamento mais sutil que lhe é subjacente, indestrutível, que não pode ser vislumbrado além da cortina.
— A religião da minha mãe prega que só essas coisas são reais, as que não podem ser percebidas pelos sentidos. A alma. O amor de mãe. Coragem. Estão mais próximos de Deus, ela ensinou, porque são os mesmos dos dois lados da morte, na frente e atrás da cortina.
“Quando cheguei a Lacedemônia e vi a falange — prosseguiu Suicídio —, achei-a a forma mais ridícula de guerra que eu já vira. No meu país, combatemos montados em cavalos. Para mim, essa era a única maneira, digna e gloriosa, um espetáculo que instiga a alma. A falange me pareceu uma piada. Mas admirei os homens, sua virtude que era tão claramente superior à de qualquer outra nação que eu havia observado e analisado. Era um enigma para mim.”
— Lembra-se, Dienekes, de quando combatemos os tebanos em Oinoe? Quando foram derrotados e fugiram? Foi a primeira debandada que presenciei. Fiquei estarrecido. Existirá uma visão mais vil, mais degradante sob o sol do que uma falange debandando de medo? Sente-se vergonha de ser mortal ao se ver tal indignidade, mesmo no inimigo. Viola as leis supremas de Deus. — A face de Suicídio, que até então era um esgar de desdém, agora refulgia de um modo mais jovial. — Ah, mas é o contrário: uma linha que resiste! O que pode ser mais grandioso, mais nobre?
Foi Medon, diziam, que havia lhe dado o apelido, quando ele, culpado de um assassinato em seu país, tinha fugido para Esparta, onde pedira várias vezes para morrer.
— Quando cheguei na Lacedemônia e me deram o nome de “Suicídio”, eu o odiei. Mas com o tempo passei a perceber sua sabedoria, por menos intencional que fosse. Pois o que pode ser mais nobre do que se matar? Não literalmente. Não com uma espada nas tripas. Mas extinguir o ego egoísta interior, essa parte que só se preocupa com a própria preservação, em salvar a própria pele. Essa, percebi, era a vitória que vocês espartanos haviam obtido sobre si mesmos. Essa era a cola. Era o que tinham aprendido, e isso me fez ficar, para aprender também.
“Quando um guerreiro luta não por si mesmo, mas por seus irmãos, quando a meta buscada com mais paixão não é nem a glória nem a preservação da sua própria vida, mas gastar sua substância por eles, seus camaradas, não abandoná-los, mostrar-se digno deles, então o seu coração realmente desacata a morte e, assim, transcende a si mesmo, e suas ações alcançam o sublime. Por isso, o verdadeiro guerreiro não pode falar de batalha a não ser para os seus irmãos que combateram com ele. Essa verdade é venerável demais, sagrada demais para ser expressa por palavras. Eu mesmo não ousaria expressá-la, a não ser aqui e agora, com vocês”.”


“— Comam um bom desjejum, homens — Leônidas sorriu largo —, pois estaremos todos partilhando o jantar no inferno.”


“Sobre a lousa do túmulo dos espartanos, o capitão relembrou, estavam gravados versos compostos pelo poeta grego Simonides, que estava presente nesse dia.
— Consegue lembrar-se das palavras gravadas na laje? —perguntei. — Ou os versos eram muito extensos para se guardar de memória?
— Não, de jeito nenhum — replicou o capitão. — Foram compostos no estilo espartano. Breve. Nenhum desperdício.
Traduzo-os da melhor maneira que posso:
Digam aos espartanos, estranhos que passam,
Que aqui, obedientes às suas leis, jazemos.”