terça-feira, 18 de maio de 2021

O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital (Parte V), de Karl Marx

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-548-0

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★★★

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Páginas: 894

Sinopse: Ver Parte I



Vimos como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do capital é produzido mais-valor e do mais-valor se obtém mais capital. Porém, a acumulação do capital pressupõe o mais-valor, o mais-valor, a produção capitalista, e esta, por sua vez, a existência de massas relativamente grandes de capital e de força de trabalho nas mãos de produtores de mercadorias. Todo esse movimento parece, portanto, girar num círculo vicioso, do qual só podemos escapar supondo uma acumulação “primitiva” (“previous accumulation”, em Adam Smith), prévia à acumulação capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida.

Essa acumulação primitiva desempenha na economia política aproximadamente o mesmo papel do pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e, com isso, o pecado se abateu sobre o gênero humano. Sua origem nos é explicada com uma anedota do passado. Numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais. De fato, a legenda do pecado original teológico nos conta como o homem foi condenado a comer seu pão com o suor de seu rosto; mas é a história do pecado original econômico que nos revela como pode haver gente que não tem nenhuma necessidade disso. Seja como for. Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram sem ter nada para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado original datam a pobreza da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo seu trabalho, continua a não possuir nada para vender a não ser a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham deixado de trabalhar. (...) Mas tão logo entra em jogo a questão da propriedade, torna-se dever sagrado sustentar o ponto de vista da cartilha infantil como o único válido para todas as faixas etárias e graus de desenvolvimento. Na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência. Já na economia política, tão branda, imperou sempre o idílio. Direito e “trabalho” foram, desde tempos imemoriais, os únicos meios de enriquecimento, excetuando-se sempre, é claro, “este ano”. Na realidade, os métodos da acumulação primitiva podem ser qualquer coisa, menos idílicos.

Num primeiro momento, dinheiro e mercadoria são tão pouco capital quanto os meios de produção e de subsistência. Eles precisam ser transformados em capital. Mas essa transformação só pode operar-se em determinadas circunstâncias, que contribuem para a mesma finalidade: é preciso que duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias se defrontem e estabeleçam contato; de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que buscam valorizar a quantia de valor de que dispõem por meio da compra de força de trabalho alheia; de outro, trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, por conseguinte, vendedores de trabalho. Trabalhadores livres no duplo sentido de que nem integram diretamente os meios de produção, como os escravos, servos etc., nem lhes pertencem os meios de produção, como no caso, por exemplo, do camponês que trabalha por sua própria conta etc., mas estão, antes, livres e desvinculados desses meios de produção. Com essa polarização do mercado estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista. A relação capitalista pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho. Tão logo a produção capitalista esteja de pé, ela não apenas conserva essa separação, mas a reproduz em escala cada vez maior. O processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A assim chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte, mais do que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ela aparece como “primitiva” porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde.

A estrutura econômica da sociedade capitalista surgiu da estrutura econômica da sociedade feudal. A dissolução desta última liberou os elementos daquela.

O produtor direto, o trabalhador, só pôde dispor de sua pessoa depois que deixou de estar acorrentado à gleba e de ser servo ou vassalo de outra pessoa. Para converter-se em livre vendedor de força de trabalho, que leva sua mercadoria a qualquer lugar onde haja mercado para ela, ele tinha, além disso, de emancipar-se do jugo das corporações, de seus regulamentos relativos a aprendizes e oficiais e das prescrições restritivas do trabalho. Com isso, o movimento histórico que transforma os produtores em trabalhadores assalariados aparece, por um lado, como a libertação desses trabalhadores da servidão e da coação corporativa, e esse é único aspecto que existe para nossos historiadores burgueses. Por outro lado, no entanto, esses recém-libertados só se convertem em vendedores de si mesmos depois de lhes terem sido roubados todos os seus meios de produção, assim como todas as garantias de sua existência que as velhas instituições feudais lhes ofereciam. E a história dessa expropriação está gravada nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo.

Os capitalistas industriais, esses novos potentados, tiveram, por sua vez, de deslocar não apenas os mestres-artesãos corporativos, mas também os senhores feudais, que detinham as fontes de riquezas. Sob esse aspecto, sua ascensão se apresenta como o fruto de uma luta vitoriosa contra o poder feudal e seus privilégios revoltantes, assim como contra as corporações e os entraves que estas colocavam ao livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem. Mas se os cavaleiros da indústria desalojaram os cavaleiros da espada, isso só foi possível porque os primeiros exploraram acontecimentos nos quais eles não tinham a menor culpa. Sua ascensão se deu por meios tão vis quanto os que outrora permitiram ao liberto romano converter-se em senhor de seu patronus [patrono].

O ponto de partida do desenvolvimento que deu origem tanto ao trabalhador assalariado como ao capitalista foi a subjugação do trabalhador. O estágio seguinte consistiu numa mudança de forma dessa subjugação, na transformação da exploração feudal em exploração capitalista. Para compreendermos sua marcha, não precisamos remontar a um passado tão remoto. Embora os primórdios da produção capitalista já se nos apresentem esporadicamente, nos séculos XIV e XV, em algumas cidades do Mediterrâneo, a era capitalista só tem início no século XVI. Nos lugares onde ela surge, a supressão da servidão já está há muito consumada, e o aspecto mais brilhante da Idade Média, a existência de cidades soberanas, há muito já empalideceu.

Na história da acumulação primitiva, o que faz época são todos os revolucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em formação, mas, acima de tudo, os momentos em que grandes massas humanas são despojadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários absolutamente livres. A expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural, ao camponês, constitui a base de todo o processo. Sua história assume tonalidades distintas nos diversos países e percorre as várias fases em sucessão diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal expropriação se apresenta em sua forma clássicab 189.

 

2. Expropriação da terra pertencente à população rural

Na Inglaterra, a servidão havia praticamente desaparecido na segunda metade do século XIV. A maioria da população190 consistia naquela época, e mais ainda no século XV, em camponeses livres, economicamente autônomos, qualquer que fosse o rótulo feudal a encobrir sua propriedade. Nos domínios senhoriais maiores, o arrendatário livre tomara o lugar do bailiff (bailio), ele mesmo servo em outras épocas. Os assalariados agrícolas consistiam, em parte, em camponeses que empregavam seu tempo livre trabalhando para os grandes proprietários, em parte, numa classe de trabalhadores assalariados propriamente ditos, classe essa independente e pouco numerosa, tanto em termos relativos como absolutos. Ao mesmo tempo, também estes últimos eram, de fato, camponeses economicamente autônomos, pois, além de seu salário, recebiam terras de 4 ou mais acres para o cultivo, além de cottages. Ademais, junto com os camponeses propriamente ditos, desfrutavam das terras comunais, sobre as quais pastava seu gado e que lhes forneciam também combustíveis, como lenha, turfa etc.191 Em todos os países da Europa, a produção feudal se caracteriza pela partilha do solo entre o maior número possível de vassalos. O poder de um senhor feudal, como o de todo soberano, não se baseava na extensão de seu registro de rendas, mas no número de seus súditos, e este dependia da quantidade de camponeses economicamente autônomos192. Isso explica por que o solo inglês, que depois da conquista normanda se dividiu em gigantescos baronatos, um único dos quais costumava incluir 900 dos antigos senhorios anglo-saxônicos, era entremeado de pequenas propriedades camponesas, apenas aqui e ali interrompidas por domínios senhoriais maiores. Tais condições, somadas ao florescimento simultâneo das cidades, que caracteriza o século XV, permitiam aquela riqueza popular que o chanceler Fortescue descreve com tanta eloquência em seu Laudibus Legum Angliae, mas excluíam a riqueza capitalista.

O prelúdio da revolução que criou as bases do modo de produção capitalista ocorreu no último terço do século XV e nas primeiras décadas do século XVI. Uma massa de proletários absolutamente livres foi lançada no mercado de trabalho pela dissolução dos séquitos feudais, que, como observou corretamente sir James Steuart, “por toda parte lotavam inutilmente casas e castelos”c. Embora o poder real, ele mesmo um produto do desenvolvimento burguês, em sua ânsia pela conquista da soberania absoluta tenha acelerado violentamente a dissolução desses séquitos, ele não foi, de modo algum, a causa exclusiva dessa dissolução. Ao contrário, foi o grande senhor feudal que, na mais tenaz oposição à Coroa e ao Parlamento, criou um proletariado incomparavelmente maior tanto ao expulsar brutalmente os camponeses das terras onde viviam e sobre as quais possuíam os mesmos títulos jurídicos feudais que ele quanto ao usurpar-lhes as terras comunais. O impulso imediato para essas ações foi dado, na Inglaterra, particularmente pelo florescimento da manufatura flamenga de lã e o consequente aumento dos preços da lã. A velha nobreza feudal fora aniquilada pelas grandes guerras feudais; a nova nobreza era uma filha de sua época, para a qual o dinheiro era o poder de todos os poderes. Sua divisa era, por isso, transformar as terras de lavoura em pastagens de ovelhas. Em sua Description of England. Prefixed to Holinshed’s Chronicles, Harrison descreve como a expropriação dos pequenos camponeses significa a ruína do campo. “What care our great incroachers!” (Mas o que isso importa a nossos grandes usurpadores?) As habitações dos camponeses e os cottages dos trabalhadores foram violentamente demolidos ou abandonados à ruína.

“Se consultamos” – diz Harrison – “os inventários mais antigos de cada domínio senhorial, vemos que inúmeras casas e pequenas propriedades camponesas desapareceram, que o campo alimenta muito menos gente, que muitas cidades estão arruinadas, embora algumas novas floresçam [...]. Eu teria algo a contar sobre cidades e aldeias que foram destruídas para ceder lugar a pastagens de ovelhas e onde só restaram as casas dos antigos senhores.”

As queixas dessas velhas crônicas são invariavelmente exageradas, mas ilustram exatamente a impressão que a revolução nas condições de produção provocou nos homens daquela época. Uma comparação dos escritos do chanceler Fortescue com os de Thomas More evidencia o abismo entre os séculos XV e XVI. De sua idade de ouro, como diz Thornton corretamente, a classe trabalhadora inglesa decaiu, sem qualquer fase de transição, à idade de ferro.

A legislação se aterrorizou com esse revolucionamento. Ela ainda não havia alcançado aquele ápice civilizacional em que a “wealth of the nation”, isto é, a formação do capital e a exploração e empobrecimento inescrupulosos das massas populares são considerados a última Thule de toda a sabedoria de Estado. Em sua história de Henrique VII, diz Bacon:

“Naquele tempo” (1489) “aumentaram as queixas sobre a transformação de terras de lavoura em pastagens” (para criação de ovelhas etc.), “fáceis de vigiar com poucos pastores; e as propriedades arrendadas temporária, vitalícia ou anualmente (dos quais vivia grande parte dos yeomend) foram transformados em domínios senhoriais. Isso provocou uma decadência do povo e, em decorrência, uma decadência das cidades, igrejas, dízimos [...]. Na cura desse mal, foi admirável, naquela época, a sabedoria do rei e do Parlamento [...]. Adotaram medidas contra essa usurpação que despovoava os domínios comunais (depopulating inclosures) e o despovoador regime de pastagens (depopulating pasture) que o acompanhava.”

Uma lei de Henrique VII, de 1489, c. 19e, proibiu a destruição de toda casa camponesa que tivesse pelo menos 20 acres de terra. Numa lei 25f, de Henrique VIII, confirma-se a disposição legal anterior. Diz-se, entre outras coisas, que

“muitos arrendamentos e grandes rebanhos de gado, especialmente de ovelhas, concentram-se em poucas mãos, provocando um aumento considerável das rendas fundiárias e, ao mesmo tempo, uma grande diminuição das lavouras (tillage) e a demolição de igrejas e casas, de maneira que enormes massas populares se veem impossibilitadas de sustentar a si mesmas e a suas famílias.”

A lei ordena, por isso, a reconstrução das propriedades rurais arruinadas, determina a proporção entre campos de cereais e pastagens etc. Um decreto de 1533 se queixa de que um número considerável de proprietários possuíam 24 mil ovelhas e restringe seu número a 2 mil193. As queixas populares e a legislação, que desde Henrique VII, e durante 150 anos, condenou a expropriação dos pequenos arrendatários e camponeses, foram igualmente infrutíferas. (...)

O que o sistema capitalista exigia, ao contrário, era uma posição servil das massas populares, a transformação destas em trabalhadores mercenários e a de seus meios de trabalho em capital. (...)

Um novo e terrível impulso ao processo de expropriação violenta das massas populares foi dado, no século XVI, pela Reforma e, em consequência dela, pelo roubo colossal dos bens da Igreja. Na época da Reforma, a Igreja católica era a proprietária feudal de grande parte do solo inglês. A supressão dos monastérios etc. lançou seus moradores no proletariado. Os próprios bens eclesiásticos foram, em grande parte, presenteados aos rapaces favoritos do rei ou vendidos por um preço irrisório a especuladores, sejam arrendatários ou habitantes urbanos, que expulsaram em massa os antigos vassalos hereditários e açambarcaram suas propriedades. A propriedade, garantida por lei aos camponeses empobrecidos, de uma parte dos dízimos da Igreja foi tacitamente confiscada195. Pauper ubique jacetg, exclamou a rainha Elizabeth após um giro pela Inglaterra. No 43º ano de seu reinado não havia mais como impedir o reconhecimento oficial do pauperismo, mediante a introdução dos impostos de beneficência. (...)

A propriedade da Igreja constituía o baluarte religioso das antigas relações de propriedade da terra. Com a ruína daquela, estas não podiam se manter198.

Ainda nas últimas décadas do século XVII, a yeomanry, uma classe de camponeses independentes, era mais numerosa que a classe dos arrendatários. Ela constituíra a força principal de Cromwell e, como reconhece o próprio Macaulay, era superior aos sórdidos fidalgos bêbados e seus lacaios, os curas rurais, obrigados a desposar a “criada favorita” do senhor. Os assalariados rurais ainda eram coproprietários da propriedade comunal. Em torno de 1750, a yeomanry havia desaparecido199 e, nas últimas décadas do século XVIII, o último resquício de propriedade comunal dos lavradores. Abstraímos aqui as forças motrizes puramente econômicas da revolução agrícola. O que procuramos são os meios violentos por ela empregados.

Sob a restauração dos Stuarts, os proprietários fundiários instituíram legalmente uma usurpação, que em todo o continente também foi realizada sem formalidades legais. Eles aboliram o regime feudal da propriedade da terra, isto é, liberaram esta última de seus encargos estatais, “indenizaram” o Estado por meio de impostos sobre os camponeses e o restante da massa do povo, reivindicaram a moderna propriedade privada de bens, sobre os quais só possuíam títulos feudais, e, por fim, outorgaram essas leis de assentamento (laws of settlement), que, mutatis mutandis, tiveram sobre os lavradores ingleses os mesmos efeitos que o édito do tártaro Boris Godunov sobre os camponeses russosi.

A “Glorious Revolution” (Revolução Gloriosa)j conduziu ao poder, com Guilherme III de Orange200, os extratores de mais-valor, tanto proprietários fundiários como capitalistas. Estes inauguraram a nova era praticando em escala colossal o roubo de domínios estatais que, até então, era realizado apenas em proporções modestas. Tais terras foram presenteadas, vendidas a preços irrisórios ou, por meio de usurpação direta, anexadas a domínios privados201. Tudo isso ocorreu sem a mínima observância da etiqueta legal. O patrimônio do Estado, apropriado desse modo fraudulento, somado ao roubo das terras da Igreja – quando estas já não haviam sido tomadas durante a revolução republicana –, constituem a base dos atuais domínios principescos da oligarquia inglesa202. Os capitalistas burgueses favoreceram a operação, entre outros motivos, para transformar o solo em artigo puramente comercial, ampliar a superfície da grande exploração agrícola, aumentar a oferta de proletários absolutamente livres, provenientes do campo etc. Além disso, a nova aristocracia fundiária era aliada natural da nova bancocracia, das altas finanças recém-saídas do ovo e dos grandes manufatureiros, que então se apoiavam sobre tarifas protecionistas. A burguesia inglesa atuava em defesa de seus interesses tão acertadamente quanto os burgueses suecos, que, ao contrário, em aliança com seu baluarte econômico, o campesinato, apoiaram os reis na retomada violenta das terras da Coroa em mãos da oligarquia (desde 1604, mais tarde nos reinados de Carlos X e Carlos XI).

A propriedade comunal – absolutamente distinta da propriedade estatal anteriormente considerada – era uma antiga instituição germânica, que subsistiu sob o manto do feudalismo. Vimos como a violenta usurpação dessa propriedade comunal, em geral acompanhada da transformação das terras de lavoura em pastagens, tem início no final do século XV e prossegue durante o século XVI. Nessa época, porém, o processo se efetua por meio de atos individuais de violência, contra os quais a legislação lutou, em vão, durante 150 anos. O progresso alcançado no século XVIII está em que a própria lei se torna, agora, o veículo do roubo das terras do povo, embora os grandes arrendatários também empreguem paralelamente seus pequenos e independentes métodos privados203. (...)

O roubo sistemático da propriedade comunal, ao lado do roubo dos domínios estatais, ajudou especialmente a inchar aqueles grandes arrendamentos, que, no século XVIII, eram chamados de fazendas de capital205 ou arrendamentos de mercador206, e a “liberar” a população rural para a indústria, como proletariado. (...)

O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Tais métodos conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente livre.”

b Na edição francesa, no lugar das três últimas frases, lê-se: “Essa expropriação só se realizou de maneira radical na Inglaterra: por isso, esse país desempenhará o papel principal em nosso esboço. Mas todos os outros países da Europa ocidental percorreram o mesmo caminho, ainda que, segundo o meio, ele mude de coloração local, ou se restrinja a um círculo mais estreito, ou apresente um caráter menos pronunciado, ou siga uma ordem de sucessão diferente”, Karl Marx, Le Capital, cit., p. 315. (N. T.)

189 A Itália, onde a produção capitalista se desenvolveu mais cedo, foi também o primeiro país a manifestar a dissolução das relações de servidão. O servo se emancipa, aqui, antes de ter garantido para si, por prescrição, qualquer direito à terra. Assim, sua emancipação o transforma imediatamente num proletário absolutamente livre, que, no entanto, já encontra seus novos senhores nas cidades, em sua maior parte originárias da época romana. Quando, no final do século XV, a revolução do mercado mundial acabou com a supremacia comercial do norte da Itália, surgiu um movimento em sentido contrário. Os trabalhadores urbanos foram massivamente expulsos para o campo e lá deram um impulso inédito à pequena agricultura, exercida sob a forma da horticultura. [Revolução do mercado mundial: Marx refere-se aqui às consequências econômicas das grandes descobertas geográficas do fim do século XV. A descoberta do caminho marítimo para a Índia, das ilhas das Índias Ocidentais e do continente americano provocou uma enorme expansão no comércio mundial. As cidades comerciais do norte da Itália (Gênova, Veneza, entre outras) perderam sua predominância. Em contrapartida, o papel principal no comércio mundial passou a ser exercido por Portugal, Holanda, Espanha e Inglaterra, países favorecidos por sua localização geográfica, com acesso direto ao Oceano Atlântico. (N. E. A. MEW)]

190 “Os pequenos proprietários, que cultivavam suas próprias terras com as próprias mãos e desfrutavam de um modesto bem-estar [...] constituíam então uma parte muito mais importante da nação do que em nossos dias [...]. Não menos que 160 mil proprietários, que, com suas famílias, deviam constituir mais de 1/7 da população total, viviam do cultivo de suas pequenas parcelas freehold” (freehold significa propriedade plenamente livre). “O rendimento médio desses pequenos proprietários fundiários [...] é avaliado entre £60 e £70. Calculou-se que o número daqueles que cultivavam sua própria terra era maior que o dos arrendatários que trabalhavam terras alheias”, Macaulay, Hist. of England (10. ed., Londres, 1854), v. I, p. 333-4. Ainda no último terço do século XVII, 4/5 da população inglesa era formada de agricultores (ibidem, p. 413). – Cito Macaulay porque, como falsificador sistemático da história, ele “poda” tais fatos o máximo que consegue.

191 Não se deve esquecer jamais que o próprio servo era não apenas proprietário, ainda que sujeito a tributos, da parcela de terra pertencente a sua casa, como também coproprietário das terras comunais. “Le paysan y [...] est serf” [“Lá” (na Silésia) “o camponês é servo”]. Não obstante, esses serfs [servos] possuíam bens comunais. “Até agora não se conseguiu induzir os silesianos à partilha das terras comunais, enquanto no Novo Margraviato [Neumark] não há praticamente nenhuma aldeia em que essa partilha não se tenha efetuado com enorme êxito”, Mirabeau, De la Monarchie Prussienne (Londres, 1788), t. II, p. 125-6.

192 O Japão, com sua organização puramente feudal da propriedade fundiária e sua desenvolvida economia de pequena agricultura, fornece um quadro muito mais fiel da Idade Média europeia que todos os nossos livros de História, ditados em sua maior parte por preconceitos burgueses. É realmente muito cômodo ser “liberal” à custa da Idade Média.

c James Steuart, An Inquiry into the Principles of Political Economy, cit., p. 52. (N. E. A. MEW)

d Yeomen, yeomanry, assim se chamava um extrato de pequenos camponeses ingleses, não sujeitos a prestações feudais, que desapareceram aproximadamente em meados do século XVIII, dando lugar aos pequenos proprietários fundiários. Arqueiros habilidosos, os yeomen formavam o núcleo do exército inglês antes da introdução das armas de fogo. Marx escreveu que, durante a revolução inglesa do século XVII, os yeomen constituíam a principal força militar de Oliver Cromwell. Na versão francesa d’O capital, Marx identifica a yeomanry com o “orgulhoso campesinato de Shakespeare”, numa provável referência às palavras de Ricardo III a seu exército: “À luta, cavalheiros da Inglaterra! À luta, bravos yeomen!”. Shakespeare, A tragédia do rei Ricardo III, ato V, cena 3. (N. T.)

e A 19ª lei promulgada naquele ano. (N. E. A. MEW)

f Uma lei promulgada no 25º ano do reinado de Henrique VIII. (N. E. A. MEW)

193 Em sua Utopia, Thomas More fala de um estranho país, onde “as ovelhas devoram os homens” (trad. Robinson, Arber, Londres, 1869, p. 41).

195 “O direito dos pobres a participar nos dízimos da Igreja é estabelecido pelos antigos estatutos”. Tuckett, A History of the Past and Present State of the Labouring Population, cit., v. II, p. 804-5.

g “O pobre está por toda parte subjugado.” A citação da rainha Elizabeth I refere-se ao verso de Ovídio, em Fastos, I, 218: “Hoje em dia nada importa, a não ser o dinheiro; a riqueza gera honras, amizades; o pobre está por toda parte subjugado”. (N. T.)

198 O sr. Rogers, embora fosse então professor de economia política na Universidade de Oxford, sede da ortodoxia protestante, chama a atenção, em seu prefácio à History of Agriculture, para a pauperização da massa do povo pela Reforma.

199 A Letter to Sir T. C. Bunbury, Baronet: on the High Price of Provisions, by a Suffolk Gentleman (Ipswich, 1795), p. 4. Até mesmo o fanático defensor do sistema de grandes arrendamentos, o autor [J. Arbuthnot] de Inquiry into the Connection of Large Farms etc. (Londres, 1773), p. 139, diz: “O que mais deploro é a perda de nossa yeomanry, esse conjunto de homens que, na realidade, sustentava a independência desta nação, e lamento ver agora suas terras nas mãos de lords monopolizadores, sendo arrendadas a pequenos fazendeiros, que obtêm seus arrendamentos sob tais condições que são pouco mais que vassalos prontos a serem convocados em qualquer situação adversa”.

i Em 1597, sob o domínio de Fiódor Ivanovitch (1584-1598), mas sendo Bóris Godunov o governante de fato da Rússia, foi promulgado um édito de acordo com o qual os camponeses fugitivos seriam procurados por 5 anos e, depois de recapturados, seriam devolvidos a seus antigos senhores. (N. E. A. MEW)

j Assim é chamado golpe de Estado que, em 1689, derrubou o rei James II e o substituiu por Guilherme III de Orange, consolidando, assim, a monarquia constitucional. (N. T.)

200 Sobre a moral privada desse herói burguês, veja-se, entre outras coisas: “A grande concessão de terras a lady Orkney, na Irlanda, em 1695, é um exemplo público da afeição do rei e da influência da referida lady [...]. Os inestimáveis serviços de lady Orkney consistiram supostamente em – foeda labiorum ministeria [obscenos serviços labiais]”, em Sloane Manuscript Collection, conservada no Museu Britânico, n. 4.224. O manuscrito é intitulado: The Charakter and Behaviour of King William, Sunderland etc. as Represented in Original Letters to the Duke of Shrewsbury from Somers, Halifax, Oxford, Secretary Vermon etc. Repleto de curiosidades.

201 “A alienação ilegal dos bens da Coroa, em parte por venda, em parte por doação, constitui um capítulo escandaloso da história inglesa [...] uma fraude gigantesca contra a nação (gigantic fraud on the nation)”, F. W. Newman, Lectures on Political Economy (Londres, 1851), p. 129-30. {Pode-se ver detalhadamente como os atuais latifundiários tomaram posse de suas terras em [N. H. Evans] Our Old Nobility. By Noblesse Oblige (Londres, 1879). (F. E.)}

202 Leia-se, por exemplo, o panfleto de E. Burke sobre a casa ducal de Bedford, cujo rebento é lord John Russell “the tomtit of liberalism” [o rouxinol do liberalismo].

203 “Os arrendatários proíbem os inquilinos de casebres de manter qualquer ser vivo além deles mesmos, sob o pretexto de que a posse de gado ou aves os levaria a furtar ração dos celeiros. Dizem também: mantende os cottagers na pobreza e os conservareis laboriosos. A realidade, porém, é que assim os arrendatários usurpam integralmente os direitos sobre as terras comunais”, A Political Enquiry into the Consequences of Enclosing Waste Lands (Londres, 1785), p. 75.

205 “Capital farms”, Two Letters on the Flour Trade and the Dearness of Corn. By a Person in Business (Londres, 1767), p. 19-20.

206 “Merchant-farms”, An Inquiry into the Present High Prices of Provision (Londres, 1767), p. 111, nota. Esse belo escrito, publicado anonimamente, é de autoria do reverendo Nathaniel Forster.

 

 

“Expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela expropriação violenta e intermitente de suas terras, esse proletariado inteiramente livre não podia ser absorvido pela manufatura emergente com a mesma rapidez com que fora trazido ao mundo. Por outro lado, os que foram repentinamente arrancados de seu modo de vida costumeiro tampouco conseguiam se ajustar à disciplina da nova situação. Converteram-se massivamente em mendigos, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição, mas na maioria dos casos por força das circunstâncias. Isso explica o surgimento, em toda a Europa ocidental, no final do século XV e ao longo do século XVI, de uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais da atual classe trabalhadora foram inicialmente castigados por sua metamorfose, que lhes fora imposta, em vagabundos e paupers. A legislação os tratava como delinquentes “voluntários” e supunha depender de sua boa vontade que eles continuassem a trabalhar sob as velhas condições, já inexistentes. (...)

Assim, a população rural, depois de ter sua terra violentamente expropriada, sendo dela expulsa e entregue à vagabundagem, viu-se obrigada a se submeter, por meio de leis grotescas e terroristas, e por força de açoites, ferros em brasa e torturas, a uma disciplina necessária ao sistema de trabalho assalariado.

Não basta que as condições de trabalho apareçam num polo como capital e no outro como pessoas que não têm nada para vender, a não ser sua força de trabalho. Tampouco basta obrigá-las a se venderem voluntariamente. No evolver da produção capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas. A organização do processo capitalista de produção desenvolvido quebra toda a resistência; a constante geração de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho, e, portanto, o salário, nos trilhos convenientes às necessidades de valorização do capital; a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador. A violência extraeconômica, direta, continua, é claro, a ser empregada, mas apenas excepcionalmente. Para o curso usual das coisas, é possível confiar o trabalhador às “leis naturais da produção”, isto é, à dependência em que ele mesmo se encontra em relação ao capital, dependência que tem origem nas próprias condições de produção e que por elas é garantida e perpetuada. Diferente era a situação durante a gênese histórica da produção capitalista. A burguesia emergente requer e usa a força do Estado para “regular” o salário, isto é, para comprimi-lo dentro dos limites favoráveis à produção de mais-valor, a fim de prolongar a jornada de trabalho e manter o próprio trabalhador num grau normal de dependência. Esse é um momento essencial da assim chamada acumulação primitiva.”

 

 

“Em todas as esferas da vida social, a parte do leão cabe ao intermediário. Na área econômica, por exemplo, quem fica com a nata dos negócios são os financistas, operadores da Bolsa, negociantes e pequenos comerciantes; nos pleitos civis, o advogado depena as partes; na política, o representante vale mais que os eleitores, o ministro mais que o soberano; na religião, Deus é empurrado para o segundo plano pelo “mediador”, e este, por sua vez, é deixado para trás pelos padres, que são, por sua vez, os intermediários imprescindíveis entre o bom pastor e suas ovelhas.”

 

 

A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva. A eles se segue imediatamente a guerra comercial entre as nações europeias, tendo o globo terrestre como palco. Ela é inaugurada pelo levante dos Países Baixos contra a dominação espanhola, assume proporções gigantescas na guerra antijacobina inglesa e prossegue ainda hoje nas guerras do ópio contra a China etc.

Os diferentes momentos da acumulação primitiva repartem-se, agora, numa sequência mais ou menos cronológica, principalmente entre Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Na Inglaterra, no fim do século XVII, esses momentos foram combinados de modo sistêmico, dando origem ao sistema colonial, ao sistema da dívida pública, ao moderno sistema tributário e ao sistema protecionista. Tais métodos, como, por exemplo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte, na violência mais brutal. Todos eles, porém, lançaram mão do poder do Estado, da violência concentrada e organizada da sociedade, para impulsionar artificialmente o processo de transformação do modo de produção feudal em capitalista e abreviar a transição de um para o outro. A violência é a parteira de toda sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência econômica.

Sobre o sistema colonial cristão, afirma W. Howitt, um homem que faz do cristianismo uma especialidade:

“As barbaridades e as iníquas crueldades perpetradas pelas assim chamadas raças cristãs, em todas as regiões do mundo e contra todos os povos que conseguiram subjugar, não encontram paralelo em nenhuma era da história universal e em nenhuma raça, por mais selvagem e inculta, por mais desapiedada e inescrupulosa que fosse.”241

241 William Howitt, Colonization and Christianity. A Popular History of the Treatment of the Natives by the Europeans in all their Colonies (Londres, 1838), p. 9. Sobre o tratamento dado aos escravos, uma boa compilação encontra-se em Charles Comte, Traité de la législation (3. ed., Bruxelas, 1837). É preciso estudar essa questão em detalhe, para ver o que o burguês faz de si mesmo e do trabalhador lá onde tem plena liberdade para moldar o mundo segundo sua própria imagem.

 

 

Hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a supremacia comercial. No período manufatureiro propriamente dito, ao contrário, é a supremacia comercial que gera o predomínio industrial. Daí o papel preponderante que o sistema colonial desempenhava nessa época. Ele era o “deus estranho” que se colocou sobre o altar, ao lado dos velhos ídolos da Europa, e que, um belo dia, lançou-os por terra com um só golpe. Tal sistema proclamou a produção de mais-valor como finalidade última e única da humanidade.”

 

 

“Por que”, exclama Mirabeau, “procurar tão longe a causa do fulgor manufatureiro da Saxônia antes da Guerra dos Sete Anos? 180 milhões de dívidas públicas!”244

Sistema colonial, dívidas públicas, impostos escorchantes, protecionismo, guerras comerciais etc., esses rebentos do período manufatureiro propriamente dito cresceram gigantescamente durante a infância da grande indústria. O nascimento desta última é celebrado pelo grande rapto herodiano dos inocentes. Como a marinha real, as fábricas recrutam por meio da coerção. Sir F. M. Eden, tão impassível diante dos horrores da expropriação da população rural, que se viu despojada de suas terras desde o último terço do século XV até a época desse autor, isto é, o final do século XVIII, e que tão vaidosamente se regozija com esse processo, por ele considerado “necessário” para “estabelecer” a agricultura capitalista e “a proporção devida entre lavoura e pastagem”, não dá provas, no entanto, da mesma compreensão econômica no que diz respeito à necessidade do roubo de crianças e da escravidão infantil para a transformação da empresa manufatureira em empresa fabril e o estabelecimento da devida proporção entre capital e força de trabalho. Diz ele:

“Talvez mereça a atenção do público a questão de se uma manufatura, que, para ser operada de modo eficaz, tem de saquear cottages e workhouses em busca de crianças pobres, que serão divididas em turmas, esfalfadas durante a maior parte da noite e terão seu descanso roubado; uma manufatura que, além disso, amontoa uma multidão de pessoas de ambos os sexos, de diferentes idades e inclinações, de tal modo que a contaminação do exemplo tem necessariamente de levar à depravação e à licenciosidade, se tal manufatura pode aumentar a soma da felicidade nacional e individual.”245

“Em Derbyshire, Nottinghamshire e especialmente em Lancashire” – diz Fielden – “a maquinaria recém-inventada foi empregada em grandes fábricas, instaladas junto a correntezas capazes de girar a roda-d’água. Nesses lugares, afastados das cidades, requeriam-se subitamente milhares de braços, e principalmente Lancashire, até então comparativamente pouco povoado e infértil, agora necessitava, antes de mais nada, de uma população. O que mais se requisitava eram dedos pequenos e ágeis. Logo surgiu o costume de buscar aprendizes” (!) “nas diferentes workhouses paroquiais de Londres, Birmingham e outros lugares. E assim muitos, muitos milhares dessas pequenas criaturas desamparadas, entre os 7 e os 13 ou 14 anos, foram despachadas para o norte. Era habitual que o patrão” (isto é, o ladrão de crianças) “vestisse, alimentasse e alojasse seus aprendizes numa casa de aprendizes, próxima à fábrica. Capatazes eram designados para vigiar o trabalho. O interesse desses feitores de escravos era sobrecarregar as crianças de trabalho, pois a remuneração dos primeiros era proporcional à quantidade de produto que se conseguia extrair da criança. A consequência natural foi a crueldade [...]. Em muitos distritos fabris, especialmente de Lancashire, essas criaturas inocentes e desvalidas, consignadas aos senhores de fábricas, foram submetidas às torturas mais pungentes. Foram acossadas até a morte por excesso de trabalho [...] foram açoitadas, acorrentadas e torturadas com os maiores requintes de crueldade; em muitos casos, foram esfomeadas até restar-lhes só pele e ossos, enquanto o chicote as mantinha no trabalho. Sim, em alguns casos, foram levadas ao suicídio! [...] Os belos e românticos vales de Derbyshire, Nottinghamshire e Lancashire, ocultos ao olhar do público, converteram-se em lúgubres ermos de tortura e, com frequência, de assassinato! [...] Os lucros dos fabricantes eram enormes. Mas isso só aguçava mais sua voracidade de lobisomem. Implementaram o trabalho noturno, isto é, depois de terem esgotado um grupo de operários pelo trabalho diurno, já dispunham de outro grupo pronto para o trabalho noturno; o grupo diurno ocupava as camas que o grupo noturno acabara de deixar, e vice-versa. Em Lancashire, dizia a tradição popular que as camas nunca esfriavam.246

Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período manufatureiro, a opinião pública europeia perdeu o que ainda lhe restava de pudor e consciência. As nações se jactavam cinicamente de toda infâmia que constituísse um meio para a acumulação de capital. Leia-se, por exemplo, os ingênuos anais comerciais do ínclito A. Anderson. Neles é trombeteado como triunfo da sabedoria política inglesa o fato de que, na paz de Utrecht, a Inglaterra arrancara dos espanhóis, pelo Tratado de Asientoab, o privilégio de explorar também entre a África e a América espanhola o tráfico de negros, que até então ela só explorava entre a África e as Índias Ocidentais inglesas. A Inglaterra obteve o direito de guarnecer a América espanhola, até 1743, com 4.800 negros por ano. Isso proporcionava, ao mesmo tempo, uma cobertura oficial para o contrabando britânico. Liverpool teve um crescimento considerável graças ao tráfico de escravos. Esse foi seu método de acumulação primitiva, e até hoje a “respeitabilidade” de Liverpool é o Píndaro do tráfico de escravos, que – cf. o escrito citado do dr. Aikin, de 1795 – “eleva até a paixão o espírito de empreendimento comercial, forma navegantes afamados e rende quantias enormes de dinheiro”ac. Em 1730, Liverpool empregava 15 navios no tráfico de escravos; em 1751, 53; em 1760, 74; em 1770, 96; e, em 1792, 132.

Enquanto introduzia a escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da economia escravista dos Estados Unidos, antes mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de exploração. Em geral, a escravidão disfarçada dos assalariados na Europa necessitava, como pedestal, da escravidão sans phrase do Novo Mundo247.

Tantae molis erat [tanto esforço se fazia necessário]ad para trazer à luz as “eternas leis naturais” do modo de produção capitalista, para consumar o processo de cisão entre trabalhadores e condições de trabalho, transformando, num dos polos, os meios sociais de produção e subsistência em capital, e, no polo oposto, a massa do povo em trabalhadores assalariados, em “pobres laboriosos” livres, esse produto artificial da história moderna248. Se o dinheiro, segundo Augier, “vem ao mundo com manchas naturais de sangue numa de suas faces”249, o capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés250.”

244 Mirabeau, De la monarchie prussienne, cit., t. VI, p. 101.

245 Eden, The State of the Poor, or an History of the Labouring Classes in England etc., cit., livro II, c. I, p. 421.

246 John Fielden, The Curse of the Factory System, cit., p. 5-6. Sobre as infâmias do sistema fabril em suas origens, cf. dr. Aikin, Description of the Country from 30 to 40 miles round Manchester, cit., 1795, p. 219, e Gisborne, Enquiry into the Duties of Men (1795), v. II. Uma vez que a máquina a vapor transplantou as fábricas antes construídas no campo, próximas às quedas-d’águas, para o centro das cidades, o extrator de mais-valor, sempre “disposto à renúncia”, encontrou à mão o material infantil, sem a necessidade das remessas forçadas de escravos das workhouses. – Quando sir R. Peel (pai do “ministro da plausibilidade”) apresentou em 1815 sua bill em proteção das crianças, F. Horner (luminar do Bullion Committe e amigo íntimo de Ricardo) declarou na Câmara Baixa: “É notório que, entre os efeitos da falência de um fabricante, está o de que um bando, se me permitem essa expressão, de crianças de fábrica foi anunciado e arrematado, em leilão público, como parte da propriedade. Há dois anos” (em 1813) “apresentou-se ao King’s Bench um caso terrível. Tratava-se de certo número de rapazes. Uma paróquia de Londres os havia consignado a um fabricante, que, por sua vez, os transferiu a outrem. Finalmente, eles foram descobertos por alguns filantropos, em estado de absoluta inanição (absolute famine). Outro caso, ainda mais atroz, chegou a meu conhecimento como membro da comissão parlamentar de inquérito. Há não muitos anos, num convênio entre uma paróquia londrina e um fabricante de Lancashire, estipulou-se que o comprador, para cada vinte crianças sadias teria de aceitar uma idiota”. [Na revista Nova Gazeta Renana (maio-out. 1850), Marx escreve: “Desde 1845, Peel foi tratado como traidor pelo partido tory. O poder de Peel sobre a Câmara Baixa repousa sobre a plausibilidade de sua eloquência. Quando lemos seus mais famosos discursos, vemos que eles consistem num volumoso amontoado de lugares-comuns, entre os quais são habilmente inseridos alguns dados estatísticos”. King’s Bench (ou Queen’s Bench): suprema corte de justiça no Reino Unido. (N. T.)]

ab Denominação dos acordos pelos quais a Espanha concedia a Estados estrangeiros e pessoas privadas o direito de fornecer escravos negros africanos para seus assentamentos americanos, do século XVI até o século XVIII. (N. E. A. MEW)

ac O trecho citado diz o seguinte: “[...] [O tratado] coincidiu com esse espírito de audaz aventura que caracterizou o comércio de Liverpool e o levou rapidamente a seu estado atual de prosperidade; ocasionou um vasto emprego de barcos e marinheiros, e aumentou em grande medida a demanda pelas manufaturas do país”. (N. T.)

247 Em 1790, as Índias Ocidentais inglesas contavam com 10 escravos para 1 homem livre, nas francesas, 14 para 1, nas holandesas, 23 para 1. Henry Brougham, An Inquiry into the Colonial Policy of the European Powers (Edimburgo, 1803), v. II, p. 74.

ad Virgílio, Eneida, I, 33, onde se lê: “Tanto esforço para fundar o povo romano”]. (N. E. A. MEW)

248 A expressão “labouring poor” [pobres laboriosos] é encontrada nas leis inglesas desde o momento que a classe dos assalariados se torna digna de atenção. Os “labouring poor” encontram-se em oposição, por um lado, aos “idle poor” [pobres ociosos], mendigos etc.; por outro, aos trabalhadores que ainda não se tornaram galinhas depenadas, mas permanecem proprietários de seus meios de trabalho. Da lei, a expressão “labouring poor” passou à economia política, desde Culpeper, J. Child etc., até A. Smith e Eden. A partir disso, pode-se julgar a bonne foi [boa fé] do “execrable political cantmonger” [execrável traficante de hipocrisia política] Edmund Burke, quando declara a expressão “labouring poor” como uma “execrable political cant” [execrável hipocrisia política]. Esse sicofanta, que a soldo da oligarquia inglesa desempenhou o papel de romântico contra a Revolução Francesa, exatamente como antes, nos primeiros momentos das agitações na América, atuara como liberal, a soldo das colônias norte-americanas, contra a oligarquia inglesa, não era senão um burguês ordinário: “As leis do comércio são as leis da natureza e, por conseguinte, as leis de Deus”, E. Burke, Thoughts and Details on Scarcity, Originally Presented to the Rt. Hon. W. Pitt in the Month of November 1795, cit., p. 31-2. Não é de admirar que ele, fiel às leis de Deus e da natureza, tenha sempre vendido a si mesmo a quem pagasse melhor! Nos escritos do reverendo Tucker – apesar de pároco e tory, Tucker era, quanto ao mais, um homem correto e competente economista político – encontramos uma boa caracterização desse Edmund Burke durante seu período liberal. Diante da infame falta de caráter que hoje em dia impera e da crença mais devota nas “leis do comércio”, é um dever estigmatizar repetidamente os Burkes, que se distinguem de seus sucessores por uma única coisa: talento!

249 Marie Augier, Du crédit public (Paris, 1842), p. 265.

250 “O Capital”, diz o Quarterly Reviewer, “foge do tumulto e da contenda, e é tímido por natureza. Isso é muito certo, porém não é toda a verdade. O capital abomina a ausência do lucro, ou ao lucro muito pequeno, assim como a natureza o vácuo. Com um lucro adequado, o capital torna-se audaz. Com 10%, ele está seguro, e é possível aplicá-lo em qualquer parte; com 20%, torna-se impulsivo; com 50%, positivamente temerário; com 100%, pisoteará todas as leis humanas; com 300%, não há crime que não arrisque, mesmo sob o perigo da forca. Se tumulto e contenda trouxerem lucro, ele encorajará a ambos. A prova disso é o contrabando e o tráfico de escravos”, T. J. Dunning, Trade’s Unions and Strikes, cit., p. 35-6.

 

 

7. Tendência histórica da acumulação capitalista

No que resulta a acumulação primitiva do capital, isto é, sua gênese histórica? Na medida em que não é transformação direta de escravos e servos em trabalhadores assalariados, ou seja, mera mudança de forma, ela não significa mais do que a expropriação dos produtores diretos, isto é, a dissolução da propriedade privada fundada no próprio trabalho.

A propriedade privada, como antítese da propriedade social, coletiva, só existe onde os meios e as condições externas do trabalho pertencem a pessoas privadas. Mas, conforme essas pessoas sejam os trabalhadores ou os não trabalhadores, a propriedade privada tem também outro caráter. Os infinitos matizes que ela exibe à primeira vista refletem apenas os estágios intermediários que existem entre esses dois extremos.

A propriedade privada do trabalhador sobre seus meios de produção é o fundamento da pequena empresa, e esta última é uma condição necessária para o desenvolvimento da produção social e da livre individualidade do próprio trabalhador. É verdade que esse modo de produção existe também no interior da escravidão, da servidão e de outras relações de dependência, mas ele só floresce, só libera toda a sua energia, só conquista a forma clássica adequada onde o trabalhador é livre proprietário privado de suas condições de trabalho, manejadas por ele mesmo: o camponês, da terra que cultiva; o artesão, dos instrumentos que manuseia como um virtuoso.

Esse modo de produção pressupõe o parcelamento do solo e dos demais meios de produção. Assim como a concentração destes últimos, ele também exclui a cooperação, a divisão do trabalho no interior dos mesmos processos de produção, a dominação e a regulação sociais da natureza, o livre desenvolvimento das forças produtivas sociais. Ele só é compatível com os estreitos limites, naturais-espontâneos, da produção e da sociedade. Querer eternizá-lo significaria, como diz Pecqueur com razão, “decretar a mediocridade geral”ae. Ao atingir certo nível de desenvolvimento, ele engendra os meios materiais de sua própria destruição. A partir desse momento, agitam-se no seio da sociedade forças e paixões que se sentem travadas por esse modo de produção. Ele tem de ser destruído, e é destruído. Sua destruição, a transformação dos meios de produção individuais e dispersos em meios de produção socialmente concentrados e, por conseguinte, a transformação da propriedade nanica de muitos em propriedade gigantesca de poucos, portanto, a expropriação que despoja grande massa da população de sua própria terra e de seus próprios meios de subsistência e instrumentos de trabalho, essa terrível e dificultosa expropriação das massas populares, tudo isso constitui a pré-história do capital. Esta compreende uma série de métodos violentos, dos quais passamos em revista somente aqueles que marcaram época como métodos da acumulação primitiva do capital. A expropriação dos produtores diretos é consumada com o mais implacável vandalismo e sob o impulso das paixões mais infames, abjetas e mesquinhamente execráveis. A propriedade privada constituída por meio do trabalho próprio, fundada, por assim dizer, na fusão do indivíduo trabalhador isolado, independente, com suas condições de trabalho, cede lugar à propriedade privada capitalista, que repousa na exploração de trabalho alheio, mas formalmente livre251.

Tão logo esse processo de transformação tenha decomposto suficientemente, em profundidade e extensão, a velha sociedade; tão logo os trabalhadores se tenham convertido em proletários, e suas condições de trabalho em capital; tão logo o modo de produção capitalista tenha condições de caminhar com suas próprias pernas, a socialização ulterior do trabalho e a transformação ulterior da terra e de outros meios de produção em meios de produção socialmente explorados – e, por conseguinte, em meios de produção coletivos –, assim como a expropriação ulterior dos proprietários privados assumem uma nova forma. Quem será expropriado, agora, não é mais o trabalhador que trabalha para si próprio, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores.

Essa expropriação se consuma por meio do jogo das leis imanentes da própria produção capitalista, por meio da centralização dos capitais. Cada capitalista liquida muitos outros. Paralelamente a essa centralização, ou à expropriação de muitos capitalistas por poucos, desenvolve-se a forma cooperativa do processo de trabalho em escala cada vez maior, a aplicação técnica consciente da ciência, a exploração planejada da terra, a transformação dos meios de trabalho em meios de trabalho que só podem ser utilizados coletivamente, a economia de todos os meios de produção graças a seu uso como meios de produção do trabalho social e combinado, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista. Com a diminuição constante do número de magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta a massa da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da exploração, mas também a revolta da classe trabalhadora, que, cada vez mais numerosa, é instruída, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital se converte num entrave para o modo de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem um grau em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. O entrave é arrebentado. Soa a hora derradeira da propriedade privada capitalista, e os expropriadores são expropriados.

O modo de apropriação capitalista, que deriva do modo de produção capitalista, ou seja, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação da propriedade privada individual, fundada no trabalho próprio. Todavia, a produção capitalista produz, com a mesma necessidade de um processo natural, sua própria negação. É a negação da negação. Ela não restabelece a propriedade privada, mas a propriedade individual sobre a base daquilo que foi conquistado na era capitalista, isto é, sobre a base da cooperação e da posse comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio trabalho.

A transformação da propriedade privada fragmentária, baseada no trabalho próprio dos indivíduos, em propriedade capitalista, é, naturalmente, um processo incomparavelmente mais prolongado, duro e dificultoso do que a transformação da propriedade capitalista – já fundada, de fato, na organização social da produção – em propriedade social. Lá, tratava-se da expropriação da massa do povo por poucos usurpadores; aqui, trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo252.”

ae Constantin Pecqueur, Théorie nouvelle d’économie sociale et politique (Paris, 1842), p. 435. (N. E. A. MEW)

251 “Encontramo-nos [...] numa condição totalmente nova da sociedade [...] tendemos a separar [...] toda espécie de propriedade de toda espécie de trabalho”. Sismondi, Nouveaux principes de l’économie politique, cit., t. II, p. 434.

252 “O progresso da indústria, de que a burguesia é agente passivo e involuntário, substitui o isolamento dos operários, resultante da competição, por sua união revolucionária resultante da associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria retira dos pés da burguesia a própria base sobre a qual ela assentou o seu regime de produção e de apropriação dos produtos. A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis [...]. De todas as classes que hoje em dia se opõem à burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é seu produto mais autêntico. [...] As camadas médias – pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses – combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como camadas médias [...] são reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás a roda da História”, K. Marx e F. Engels, Manifesto Comunista, cit., p. 51, 49).

O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital (Parte IV), de Karl Marx

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-548-0

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★★★

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Páginas: 894

Sinopse: Ver Parte I




“De nada adianta deduzir essa troca de mais trabalho por menos trabalho da diferença formal, que nos esclarece que, num caso, ele é trabalho objetivado, e, no outro, é trabalho vivo24. Isso é tanto mais absurdo pelo valor de uma mercadoria não ser determinado pela quantidade de trabalho realmente objetivado nela, mas pela quantidade de trabalho vivo necessário para sua produção. Digamos que uma mercadoria represente 6 horas de trabalho. Caso surjam invenções que permitam produzi-la em 3 horas, o valor da mercadoria já produzida também se reduzirá pela metade. Ela representa, agora, 3 horas de trabalho social necessário, em vez das 6 horas de antes. O que determina sua grandeza de valor é, portanto, a quantidade de trabalho requerido para sua produção, e não sua forma objetivada.

No mercado, o que se contrapõe diretamente ao possuidor de dinheiro não é, na realidade, o trabalho, mas o trabalhador. O que este último vende é sua força de trabalho. Mal seu trabalho tem início efetivamente e a força de trabalho já deixou de lhe pertencer, não podendo mais, portanto, ser vendida por ele. O trabalho é a substância e a medida imanente dos valores, mas ele mesmo não tem valor nenhum25.

Na expressão “valor do trabalho”, o conceito de valor não só se apagou por completo, mas converteu-se em seu contrário. É uma expressão imaginária, como valor da terra. Essas expressões imaginárias surgem, no entanto, das próprias relações de produção. São categorias para as formas em que se manifestam relações essenciais. Que em sua manifestação as coisas frequentemente se apresentem invertidas é algo conhecido em quase todas as ciências, menos na economia política.26

A economia política clássica tomou emprestada à vida cotidiana, de modo acrítico, a categoria “preço do trabalho”, para, em seguida, perguntar-se: como esse preço é determinado? Ela logo reconheceu que a variação na relação entre oferta e demanda nada esclarece acerca do preço do trabalho, assim como de que qualquer outra mercadoria, além de sua variação, isto é, a oscilação dos preços de mercado abaixo ou acima de certa grandeza. Se oferta e demanda coincidem, cessa, mantendo-se iguais as demais circunstâncias, a oscilação de preço. Mas, então, oferta e demanda cessam também de explicar qualquer coisa. Quando oferta e demanda coincidem, o preço do trabalho é determinado independentemente da relação entre procura e oferta, quer dizer, é seu preço natural, que, desse modo, tornou-se o objeto que realmente se deveria analisar. Ou ela tomou um período mais longo de oscilações do preço de mercado, por exemplo, um ano, e verificou que suas altas e baixas se compensavam numa grandeza média, uma grandeza constante. Esta última tinha, naturalmente, de ser determinada de outro modo que não por suas próprias oscilações, que se compensam umas às outras. Esse preço que predomina sobre os preços acidentais obtidos pelo trabalho no mercado e os regula, o “preço necessário” (fisiocratas) ou “preço natural” do trabalho (Adam Smith), só podia ser, como no caso das outras mercadorias, seu valor expresso em dinheiro. E assim, por meio dos preços acidentais do trabalho, a economia política acreditou poder penetrar em seu valor. Como no caso das demais mercadorias, esse valor continuou a ser determinado pelos custos de produção. Mas em que consistem os custos de produção – do trabalhador, isto é, os custos para produzir ou reproduzir o próprio trabalhador? Inconscientemente, essa questão assumiu, para a economia política, o lugar da questão original, já que, no que diz respeito aos custos de produção do trabalho enquanto tais, ela girava num círculo vicioso e não progredia um passo sequer. Portanto, o que ela chama de valor do trabalho (value of labour) é, na verdade, o valor da força de trabalho, que existe na personalidade do trabalhador e é tão diferente de sua função, o trabalho, quanto uma máquina de suas operações. Ocupada com a diferença entre os preços de mercado do trabalho e seu assim chamado valor, com a relação entre esse valor e a taxa de lucro, e entre ele e os valores-mercadoria produzidos mediante o trabalho etc., a economia política nunca descobriu que o curso da análise não só tinha evoluído dos preços do trabalho no mercado a seu valor presumido, mas chegara a dissolver novamente esse mesmo valor do trabalho no valor da força de trabalho. A inconsciência acerca desse resultado de sua própria análise, a aceitação acrítica das categorias “valor do trabalho”, “preço natural do trabalho” etc. como expressões adequadas e últimas da relação de valor considerada, enredou a economia política clássica, como veremos mais adiante, em confusões e contradições insolúveis, ao mesmo tempo que ofereceu à economia vulgar uma base segura de operações para sua superficialidade, fundada no princípio do culto das aparências. (...)”

24 “Seria necessário chegar a um acordo” (mais uma versão do contrat social [contrato social]) “de modo que ele sempre trocasse trabalho realizado por trabalho a realizar, o último” (o capitalista) “teria de receber um valor maior que o primeiro” (o trabalhador)], Sismondi, De la richesse commerciale (Genebra, 1803), t. I, p. 37.

25 “O trabalho, medida exclusiva do valor [...] o criador de toda riqueza, não é uma mercadoria”, T. Hodgskin, Popul. Polit. Econ., cit., p. 186.

26 Ao contrário, explicar tais expressões como mera licentia poetica [licença poética] apenas revela a impotência da análise. Contra a frase de Proudhon, “Diz-se que o trabalho é um valor, não como mercadoria propriamente dita, mas com vista aos valores que, segundo se supõe, nele estão contidos potencialmente. O valor do trabalho é uma expressão figurada etc.”], observei: “No trabalho-mercadoria, que é de uma realidade assustadora, ele vê apenas uma elipse gramatical. Logo, toda a sociedade atual, fundada sobre o trabalho-mercadoria, está doravante fundada sobre uma licença poética, sobre uma expressão figurada. Se a sociedade quer ‘eliminar todos os inconvenientes’ que a afligem, pois bem!, que elimine, então, as expressões malsonantes, que modifique a linguagem, e, para isso, basta que ela se dirija à Académie e lhe solicite uma nova edição de seu dicionário”, K. Marx, Miséria da filosofia, p. 34-5. Mais cômodo ainda, naturalmente, é não entender por valor absolutamente nada. Desse modo, é fácil incluir nessa categoria tudo o que se queira. Como, por exemplo, em J.-B. Say. O que é “valeur” [valor]? Resposta: “Aquilo que uma coisa vale”. E o que é “prix” [preço]? Resposta: “O valor de uma coisa expresso em dinheiro”. E por que “o trabalho da terra [...] tem um valor? Porque se lhe atribui um preço”. Portanto, valor é o que uma coisa vale, e a terra tem um “valor” porque seu valor é “expresso em dinheiro”. Esse é, em todo caso, um método muito simples de se compreender o why [porquê] e o wherefore [em razão de quê] das coisas.

 

 

No exame da “jornada de trabalho” etc., tivemos a oportunidade de mostrar que o trabalhador é frequentemente forçado a converter seu consumo individual em mero incidente do processo de produção. Nesse caso, ele se abastece de meios de subsistência para manter sua força de trabalho em funcionamento, do mesmo modo como se abastece de carvão e água a máquina a vapor e de óleo a roda. Seus meios de consumo são, então, simples meios de um meio de produção, e seu consumo individual é consumo imediatamente produtivo. Isso se mostra, no entanto, como um abuso não essencial ao processo de produção capitalista7. A questão assume outro aspecto assim que passamos a considerar não o capitalista individual e o trabalhador individual, mas a classe capitalista e a classe trabalhadora, não o processo isolado de produção da mercadoria, mas o processo de produção capitalista em seu fluxo e em sua escala social. Quando o capitalista converte parte de seu capital em força de trabalho, ele valoriza, com isso, seu capital total e mata dois coelhos de uma cajadada. Ele lucra não apenas com o que recebe do trabalhador, mas também com o que lhe dá. O capital que foi alienado em troca da força de trabalho é convertido em meios de subsistência, cujo consumo serve para reproduzir os músculos, os nervos, os ossos, o cérebro dos trabalhadores existentes e para produzir novos trabalhadores. Dentro dos limites do absolutamente necessário, portanto, o consumo individual da classe trabalhadora é a reconversão dos meios de subsistência, alienados pelo capital em troca da força de trabalho, em nova força de trabalho a ser explorada pelo capital. Tal consumo é produção e reprodução do meio de produção mais indispensável ao capitalista: o próprio trabalhador. O consumo individual do trabalhador continua a ser, assim, um momento da produção e reprodução do capital, quer se efetue dentro, quer fora da oficina, da fábrica etc., e quer se efetue dentro, quer fora do processo de trabalho, exatamente como ocorre com a limpeza da máquina, seja ela realizada durante o processo de trabalho ou em determinadas pausas deste último. O fato de o trabalhador realizar seu consumo individual por amor a si mesmo, e não ao capitalista, não altera em nada a questão. Do mesmo modo, o consumo do animal de carga não deixa de ser um elemento necessário do processo de produção pelo fato de o próprio animal se satisfazer com o que come. A manutenção e reprodução constantes da classe trabalhadora continuam a ser uma condição constante para a reprodução do capital. O capitalista pode abandonar confiadamente o preenchimento dessa condição ao impulso de autoconservação e procriação dos trabalhadores. Ele apenas se preocupa em limitar ao máximo o consumo individual dos trabalhadores, mantendo-o nos limites do necessário, e está muito longe daquela rusticidade sul-americana que obriga o trabalhador a ingerir alimentos mais nutritivos, em vez de outros menos nutritivos8.

É por isso que o capitalista e seu ideólogo, o economista político, entendem como produtiva apenas a parte do consumo individual do trabalhador exigida para a perpetuação da classe trabalhadora, isto é, aquela parte que, de fato, tem de ser consumida para que o capital consuma a força de trabalho; tudo o que, além dessa parte, o trabalhador possa consumir para seu próprio prazer é consumo improdutivo9. Se a acumulação do capital provocasse um aumento do salário e, portanto, um incremento dos meios de consumo do trabalhador sem ser acompanhada de um maior consumo de força de trabalho pelo capital, o capital adicional teria sido consumido improdutivamente10. De fato: o consumo individual do trabalhador é improdutivo para ele mesmo, posto que apenas reproduz o indivíduo necessitado, e é produtivo para o capitalista e para o Estado, pois é produção da força produtora de riqueza alheia11.

Do ponto de vista social, a classe trabalhadora, mesmo à margem do processo imediato de trabalho, é um acessório do capital tanto quanto o é o instrumento morto de trabalho. Mesmo seu consumo individual, dentro de certos limites, não é mais do que um momento do processo de reprodução do capital. Mas o processo cuida para que esses instrumentos autoconscientes de produção não se evadam, e o faz removendo constantemente o produto desses instrumentos do polo que ocupam para o polo oposto, o polo do capital. Por um lado, o consumo individual cuida de sua própria conservação e reprodução; por outro lado, mediante a destruição dos meios de subsistência, ele cuida de seu constante ressurgimento no mercado de trabalho. O escravo romano estava preso por grilhões a seu proprietário; o assalariado o está por fios invisíveis. Sua aparência de independência é mantida pela mudança constante dos patrões individuais e pela fictio juris do contrato.”

7 Rossi não declamaria tão enfaticamente sobre esse ponto se tivesse penetrado efetivamente no segredo do “productive consumption” [consumo produtivo].

8 “Os trabalhadores nas minas da América do Sul, cuja ocupação diária (talvez a mais pesada do mundo) consiste em carregar sobre os ombros, de uma profundidade de 450 pés até a superfície, uma carga de minério de 100 a 200 libras-peso, vivem apenas de pão e feijão; eles prefeririam receber apenas o pão como alimento, mas seus senhores, tendo descoberto que com pão eles não conseguiriam trabalhar com tanta força, tratam-nos como cavalos e os forçam a comer feijão; ocorre que o feijão é comparativamente muito mais rico em fosfato de cálcio que o pão”, Liebig, Die Chemie in ihrer Anwendung auf Agrikultur und Phisiologie, cit., parte I, p. 194, nota.

9 James Mill, Elements etc., cit., p. 238s.

10 “Se o preço do trabalho subisse tanto que, apesar do acréscimo de capital, não se pudesse empregar mais trabalho, então eu diria que esse incremento de capital é consumido improdutivamente”, Ricardo, The Princ. of Pol. Econ., cit., p. 163.

11 “O único consumo produtivo propriamente dito é o consumo ou a destruição de riqueza” (ele se refere ao consumo dos meios de produção) “por capitalistas com vistas à reprodução [...]. O trabalhador [...] é um consumidor produtivo para a pessoa que o emprega e para o Estado, mas não o é, em sentido estrito, para si mesmo”, Malthus, Definitions etc., cit., p. 30.

 

 

“Em seu próprio desenrolar, portanto, o processo capitalista de produção reproduz a cisão entre força de trabalho e condições de trabalho. Com isso, ele reproduz e eterniza as condições de exploração do trabalhador. Ele força continuamente o trabalhador a vender sua força de trabalho para viver e capacita continuamente o capitalista a comprá-la para se enriquecer17. Já não é mais o acaso que contrapõe o capitalista e o trabalhador no mercado, como comprador e vendedor. É o beco sem saída [Zwickmühle] característico do próprio processo que faz com que o trabalhador tenha de retornar constantemente ao mercado como vendedor de sua força de trabalho e converte seu próprio produto no meio de compra nas mãos do primeiro. Na realidade, o trabalhador pertence ao capital ainda antes de vender-se ao capitalista. Sua servidão econômica é a um só tempo mediada e escondida pela renovação periódica de sua venda de si mesmo, pela mudança de seus patrões individuais e pela oscilação do preço de mercado do trabalho19.

Assim, o processo capitalista de produção, considerado em seu conjunto ou como processo de reprodução, produz não apenas mercadorias, não apenas mais-valor, mas produz e reproduz a própria relação capitalista: de um lado, o capitalista, do outro, o trabalhador assalariado20.”

17 “O trabalhador exigia meios de subsistência para viver; o patrão exigia trabalho para lucrar”, Sismondi, Nouv. princ. d’écon. pol., cit., p. 91.

19 Lembremos que, no trabalho das crianças etc., desaparece até mesmo a formalidade da venda de si mesmo.

20 “O capital pressupõe o trabalho assalariado; o trabalho assalariado pressupõe o capital. Ambos se condicionam reciprocamente, ambos se produzem reciprocamente. Um trabalhador numa fábrica de algodão produz apenas tecidos de algodão? Não, ele produz capital. Ele produz valores que servem novamente para comandar seu trabalho e, por meio dele, criar novos valores”, Karl Marx, Trabalho assalariado e capital, em: Nova Gazeta Renana, n. 266, 7 abr. 1849. Os artigos publicados com esse título na N.Rh.Z. são fragmentos das conferências que proferi sobre o tema em 1847, na Associação dos Trabalhadores Alemães em Bruxelas e cuja impressão foi interrompida pela Revolução de Fevereiro. [A Associação dos Trabalhadores Alemães em Bruxelas, à qual pertenciam Marx e Engels, voltava-se à realização de atividades culturais e de agitação política entre os trabalhadores alemães radicados na Bélgica. Foi fundada em agosto de 1847 e dissolvida pela polícia no início de 1848. A Revolução de Fevereiro, deflagrada a 24 de fevereiro de 1848, derrubou o rei Luís Filipe e estabeleceu a Segunda República francesa. (N. T.)]

 

 

“Apenas como capital personificado o capitalista tem um valor histórico e dispõe daquele direito histórico à existência de que, como diz o espirituoso Lichnovski, nenhuma data não dispõef Somente nesse caso sua própria necessidade transitória está incluída na necessidade transitória do modo de produção capitalista. Ainda assim, porém, sua força motriz não é o valor de uso e a fruição, mas o valor de troca e seu incremento. Como fanático da valorização do valor, o capitalista força inescrupulosamente a humanidade à produção pela produção e, consequentemente, a um desenvolvimento das forças produtivas sociais e à criação de condições materiais de produção que constituem as únicas bases reais possíveis de uma forma superior de sociedade, cujo princípio fundamental seja o pleno e livre desenvolvimento de cada indivíduo. O capitalista só é respeitável como personificação do capital. Como tal, ele partilha com o entesourador o impulso absoluto de enriquecimento. Mas o que neste aparece como mania individual, no capitalista é efeito do mecanismo social, no qual ele não é mais que uma engrenagem. Além disso, o desenvolvimento da produção capitalista converte em necessidade o aumento progressivo do capital investido numa empresa industrial, e a concorrência impõe a cada capitalista individual, como leis coercitivas externas, as leis imanentes do modo de produção capitalista. Obriga-o a ampliar continuamente seu capital a fim de conservá-lo, e ele não pode ampliá-lo senão por meio da acumulação progressiva.

Por conseguinte, na medida em que suas ações são apenas uma função do capital que nele está dotado de vontade e consciência, seu próprio consumo privado apresenta-se a ele como um roubo contra a acumulação de seu capital, assim como na contabilidade italiana os gastos privados figuram na coluna daquilo que o capitalista “deve” ao capital. A acumulação é a conquista do mundo da riqueza social. Juntamente com a massa de material humano explorado, ela amplia o domínio direto e indireto do capitalista34.

Mas o pecado original age em toda parte. Com o desenvolvimento do modo de produção capitalista e o aumento da acumulação e da riqueza, o capitalista deixa de ser mera encarnação do capital. Ele sente uma “comoção humana”g por seu próprio Adãoh e se civiliza ao ponto de ridicularizar a paixão pela ascese como preconceito do entesourador arcaico. Enquanto o capitalista clássico estigmatizava o consumo individual como pecado contra sua função e como uma “abstinência” da acumulação, o capitalista moderno está em condições de conceber a acumulação como “renúncia” ao seu impulso de fruição. “Vivem-lhe duas almas, ah!, no seio,/ Querem trilhar em tudo opostas sendas.”i

Nos primórdios da história do modo de produção capitalista, e todo neófito capitalista percorre individualmente esse estágio histórico, o impulso de enriquecimento e a avareza predominam como paixões absolutas. Entretanto, o progresso da produção capitalista não cria apenas um mundo de desfrutes. Ele abre, com a especulação e o sistema de crédito, milhares de fontes de enriquecimento repentino. A certa altura do desenvolvimento, o “desventurado” capitalista deve praticar, até mesmo como uma necessidade do negócio, um determinado grau convencional de esbanjamento, que é, ao mesmo tempo, ostentação de riqueza e, por isso, meio de crédito. O luxo entra nos custos de representação do capital. Além disso, o capitalista não enriquece como o fazia o entesourador, em proporção ao seu trabalho e não-consumo [Nichtkonsum] pessoais, mas quando suga força de trabalho alheia e obriga o trabalhador a renunciar a todos os desfrutes da vida. Por isso, embora o esbanjamento do capitalista não tenha jamais o caráter de bona fide [boa-fé] do esbanjamento do pródigo senhor feudal, nele subjazendo, antes, a mais sórdida avareza e o cálculo mais angustioso, sua prodigalidade aumenta, contudo, a par de sua acumulação, sem que uma tenha de prejudicar a outra. Com isso, ao mesmo tempo se desenvolve, no coração do capitalista, um conflito fáustico entre os impulsos da acumulação e do desfrute. (...)

Acumulai, acumulai! Eis Moisés e os profetas!j “A indústria provê o material que a poupança acumula.”36 Portanto, poupai, poupai, isto é, reconvertei em capital a maior parte possível do mais-valor ou do mais-produto! A acumulação pela acumulação, a produção pela produção: nessa fórmula, a economia clássica expressou a vocação histórica do período burguês. Em nenhum instante ela se enganou sobre as dores de parto da riqueza37, mas de que adianta lamentar-se diante da necessidade histórica? Se para a economia clássica o proletário não era mais que uma máquina para a produção de mais-valor, também o capitalista, para ela, era apenas uma máquina para a transformação desse mais-valor em mais-capital. Ela leva rigorosamente a sério a função histórica do capitalista.”

f A 31 de agosto de 1848, na Assembleia Nacional de Frankfurt, o latifundiário silesiano Lichnovski pronunciou-se – num alemão que provocou risos nos ouvintes – contra o direito histórico da Polônia à existência autônoma, direito de que, disse, “nenhuma data não dispõe”. Segundo Lichnovski, uma data anterior de ocupação do território polonês sempre “poderia reivindicar” um “direito maior”, como era o caso dos alemães. Esse discurso foi comentado à época por Marx e Engels, na Nova Gazeta Renana, numa série de artigos intitulada “Die Polendebatte in Frankfurt” [O debate sobre a Polônia em Frankfurt] (N. E. A. MEW)

34 Na forma arcaica, ainda que constantemente renovada, do capitalista, ou seja, no usurário, Lutero ilustra muito corretamente o afã de poder como elemento do impulso de enriquecimento. “Pela razão, os pagãos puderam deduzir que um usurário é um ladrão e assassino elevado à quarta potência. Mas nós cristãos o honramos a tal ponto que quase o adoramos por seu dinheiro [...]. Quem suga, rouba ou subtrai o alimento de outrem comete um assassinato tão grande (no que lhe diz respeito) como aquele que o deixa morrer de fome ou o arruína por completo. Mas é isso que faz um usurário, sentado com toda a segurança em sua cadeira quando deveria estar dependurado numa forca e ser devorado por tantos corvos quantos fossem os florins que ele furtou, se fosse possível que houvesse carne suficiente para que tantos corvos pudessem despedaçá-la e reparti-la entre si. Enquanto isso, enforcam-se os pequenos ladrões [...]. Pequenos ladrões vão para o cadafalso, ladrões grandes se pavoneiam cobertos de ouro e seda. [...] De maneira, portanto, que não há sobre a Terra maior inimigo do homem (depois do Diabo) do que um avarento e usurário, pois ele quer ser Deus sobre todos os homens. Turcos, guerreiros e tiranos são também homens maus, mas se veem obrigados a deixar as pessoas viverem e a confessar que são maus e inimigos. E eventualmente podem, e inclusive devem, apiedar-se de algumas delas. Mas um usurário e avarento desejaria que todo mundo morresse de fome e sede, de tristeza e miséria, no que dependesse dele, pois assim teria tudo para si, e que todos recebessem dele como de um Deus e se tornassem eternamente seus servos. Vestir mantos, portar correntes de ouro, anéis, limpar o focinho e fazer-se reverenciar como homens virtuosos e piedosos [...]. A usura é um monstro grande e descomunal, qual um lobisomem que tudo devasta, mais do que qualquer Caco, Gerião ou Anteu. E, no entanto, enfeita-se e se faz de mansa, para que ninguém possa ver onde foram parar os bois que ela faz andar para trás até sua cova. Mas Hércules há de ouvir os bramidos dos bois e dos prisioneiros e buscará Caco entre as rochas e escolhos e libertará os bois do maligno. Pois Caco é o nome de um vilão, um usurário hipócrita que furta, rouba, devora tudo. Finge não ter feito nada e pretende que ninguém o descubra, porque os bois puxados para trás para seu antro deixam rastros e pegadas como se ele os tivesse soltado. Portanto, o usurário também quer enganar o mundo, como se ele fosse útil e desse bois ao mundo, quando na verdade os toma só para si e os devora. [...]. E, do mesmo modo como os assaltantes de estrada, os assassinos e bandidos são submetidos ao suplício da roda e decapitados, com muito mais razão deveriam todos os usurários ser supliciados e mortos [...] banidos, amaldiçoados e decapitados”, Martinho Lutero, An die Pfarrherrn, wider den Wucher zu predigen, cit.

g Schiller, Die Bürgschaft. (N. E. A. MEW)

h Isto é, “ele mesmo”. Na versão francesa, a expressão aparece seguida de “sua carne”. (N. T.)

i J. W. Goethe, Fausto, cit., p. 64. (N. T.)

j A expressão tem aqui o sentido de: “Isto é o fundamental! É isto que importa!”. (N. T.)

36 A. Smith, Wealth of Nations, cit., livro II, c. III, p. 367.

37 O próprio J. B. Say diz: “As poupanças dos ricos se fazem à custa dos pobres”, J. B. Say, Traité d’économie politique, cit., v. 1, p. 130-1. “O proletariado romano vivia quase exclusivamente à custa da sociedade [...]. Poder-se-ia dizer que a sociedade moderna vive à custa dos proletários, da parte que ela desconta da remuneração de seu trabalho”, Sismondi, Études, cit., t. I, p. 24.

 

 

“(...) Eden deveria ter perguntado: e as “as instituições burguesas”, são criaturas de quem? Sob o ângulo da ilusão jurídica, ele não enxerga a lei como produto das relações materiais de produção, mas, ao contrário, as relações de produção como produto da lei. Linguet demoliu numa frase o ilusório Esprit des Lois, de Montesquieu: “L’esprit des lois, c’est la propriété”. [S.-N.-H. Linguet, Théorie des loix civiles, ou principes fondamentaux de la société (Londres, 1767), v. 1, p. 236. (N. E. A. MEW)]”

 

 

“Além disso, ainda que o progresso da acumulação diminua a grandeza relativa da parte variável do capital, ele não exclui de modo algum, com isso, o aumento de sua grandeza absoluta. Suponha que o valor de um capital se decomponha, inicialmente, em 50% de capital constante e 50% de variável, e, posteriormente, em 80% de capital constante e 20% de variável. Se, nesse ínterim, o capital original, digamos £6 mil, aumentou para £18 mil, seu componente variável também terá aumentado 1/5. De suas £3 mil anteriores ela chega, agora, a £3.600. Mas se antes teria bastado um crescimento de 20% de capital para aumentar a demanda de trabalho em 20%, agora isso requer a triplicação do capital original.

Na seção IV mostramos como o desenvolvimento da força produtiva social do trabalho pressupõe a cooperação em larga escala, e como apenas partindo desse pressuposto se podem organizar a divisão e a combinação do trabalho, poupar meios de produção mediante sua concentração massiva, criar materialmente meios de trabalho utilizáveis apenas coletivamente, como o sistema de maquinaria etc., pôr a serviço da produção forças colossais da natureza e consumar a transformação do processo de produção na aplicação tecnológica da ciência. Sobre o fundamento da produção de mercadorias, na qual os meios de produção são propriedade privada de indivíduos e o trabalhador manual, por conseguinte, ou produz mercadorias de maneira isolada e autônoma, ou vende sua força de trabalho como mercadoria porque lhe faltam os meios para produzir por sua própria conta, aquele pressuposto só se realiza mediante o aumento dos capitais individuais ou na medida em que os meios sociais de produção e subsistência se transformam em propriedade privada de capitalistas. O solo da produção de mercadorias só tolera a produção em larga escala na forma capitalista. Certa acumulação de capital nas mãos de produtores individuais de mercadorias constitui, por isso, o pressuposto do modo específico de produção capitalista, razão pela qual tivemos de pressupô-la na passagem do artesanato para a produção capitalista. Podemos chamá-la de acumulação primitiva, pois, em vez de resultado, ela é o fundamento histórico da produção especificamente capitalista. De que modo ela surge é algo que ainda não precisamos examinar aqui. Basta dizer que ela constitui o ponto de partida. Devemos assinalar, no entanto, que todos os métodos para aumentar a força produtiva social do trabalho surgidos sobre esse fundamento são, ao mesmo tempo, métodos para aumentar a produção de mais-valor ou mais-produto, que, por sua vez, forma o elemento constitutivo da acumulação. Portanto, tais métodos servem, ao mesmo tempo, para produzir capital mediante capital ou para sua acumulação acelerada. A contínua reconversão de mais-valor em capital apresenta-se como grandeza crescente do capital que entra no processo de produção. Este se torna, por sua vez, o fundamento de uma escala ampliada da produção, dos métodos nela empregados para o aumento da força produtiva do trabalho e a aceleração da produção de mais-valor. Se, portanto, certo grau da acumulação do capital aparece como condição do modo de produção especificamente capitalista, este último provoca, em reação, uma acumulação acelerada do capital. Com a acumulação do capital desenvolve-se, assim, o modo de produção especificamente capitalista e, com ele, a acumulação do capital. Esses dois fatores econômicos provocam, de acordo com a conjugação dos estímulos que eles exercem um sobre o outro, a mudança na composição técnica do capital, o que faz com que a seu componente variável se torne cada vez menor em comparação ao componente constante.

Cada capital individual é uma concentração maior ou menor de meios de produção e dotada de comando correspondente sobre um exército maior ou menor de trabalhadores. Cada acumulação se torna meio de uma nova acumulação. Juntamente com a massa multiplicada da riqueza que funciona como capital, ela amplia sua concentração nas mãos de capitalistas individuais e, portanto, a base da produção em larga escala e dos métodos de produção especificamente capitalistas. O crescimento do capital social se consuma no crescimento de muitos capitais individuais. Pressupondo-se inalteradas as demais circunstâncias, crescem os capitais individuais e, com eles, a concentração dos meios de produção na proporção em que constituem partes alíquotas do capital social total. Ao mesmo tempo, partes dos capitais originais se descolam e passam a funcionar como novos capitais independentes. Nisso desempenha um grande papel, com outros fatores, a divisão do patrimônio das famílias capitalistas. Portanto, com a acumulação do capital aumenta, em maior ou menor proporção, o número dos capitalistas. Dois pontos caracterizam esse tipo de concentração, que repousa diretamente sobre a acumulação ou, antes, é idêntica a ela. Primeiro: a concentração crescente dos meios sociais de produção nas mãos de capitalistas individuais é, mantendo-se inalteradas as demais circunstâncias, limitada pelo grau de crescimento da riqueza social. Segundo: a parte do capital social localizada em cada esfera particular da produção está repartida entre muitos capitalistas, que se confrontam como produtores de mercadorias autônomos e mutuamente concorrentes. Portanto, a acumulação e a concentração que a acompanha estão não apenas fragmentadas em muitos pontos, mas o crescimento dos capitais em funcionamento é atravessado pela formação de novos capitais e pela cisão de capitais antigos, de maneira que, se a acumulação se apresenta, por um lado, como concentração crescente dos meios de produção e do comando sobre o trabalho, ela aparece, por outro lado, como repulsão mútua entre muitos capitais individuais.

Essa fragmentação do capital social total em muitos capitais individuais ou a repulsão mútua entre seus fragmentos é contraposta por sua atração. Essa já não é a concentração simples, idêntica à acumulação, de meios de produção e de comando sobre o trabalho. É concentração de capitais já constituídos, supressão [Aufhebung] de sua independência individual, expropriação de capitalista por capitalista, conversão de muitos capitais menores em poucos capitais maiores. Esse processo se distingue do primeiro pelo fato de pressupor apenas a repartição alterada dos capitais já existentes e em funcionamento, sem que, portanto, seu terreno de ação esteja limitado pelo crescimento absoluto da riqueza social ou pelos limites absolutos da acumulação. Se aqui o capital cresce nas mãos de um homem até atingir grandes massas, é porque acolá ele se perde nas mãos de muitos outros homens. Trata-se da centralização propriamente dita, que se distingue da acumulação e da concentração.

As leis dessa centralização dos capitais ou da atração do capital pelo capital não podem ser desenvolvidas aqui. Bastará uma breve indicação dos fatos. A luta concorrencial é travada por meio do barateamento das mercadorias. O baixo preço das mercadorias depende, caeteris paribus, da produtividade do trabalho, mas esta, por sua vez, depende da escala da produção. Os capitais maiores derrotam, portanto, os menores. Recordemos, ademais, que com o desenvolvimento do modo de produção capitalista cresce o volume mínimo de capital individual requerido para conduzir um negócio sob condições normais. Os capitais menores buscam, por isso, as esferas da produção das quais a grande indústria se apoderou apenas esporádica ou incompletamente. A concorrência aflora ali na proporção direta da quantidade e na proporção inversa do tamanho dos capitais rivais. Ela termina sempre com a ruína de muitos capitalistas menores, cujos capitais em parte passam às mãos do vencedor, em parte se perdem. Abstraindo desse fato, podemos dizer que, com a produção capitalista, constitui-se uma potência inteiramente nova: o sistema de crédito, que em seus primórdios insinua-se sorrateiramente como modesto auxílio da acumulação e, por meio de fios invisíveis, conduz às mãos de capitalistas individuais e associados recursos monetários que se encontram dispersos pela superfície da sociedade em massas maiores ou menores, mas logo se converte numa arma nova e temível na luta concorrencial e, por fim, num gigantesco mecanismo social para a centralização dos capitais.

Na mesma medida em que se desenvolvem a produção e a acumulação capitalistas, desenvolvem-se também a concorrência e o crédito, as duas alavancas mais poderosas da centralização. Paralelamente, o progresso da acumulação aumenta o material centralizável, isto é, os capitais individuais, ao mesmo tempo que a ampliação da produção capitalista cria aqui a necessidade social, acolá os meios técnicos daqueles poderosos empreendimentos industriais cuja realização está vinculada a uma centralização prévia do capital. Hoje, portanto, a força de atração mútua dos capitais individuais e a tendência à centralização são mais fortes do que qualquer época anterior. Mas mesmo que a expansão relativa e a energia do movimento centralizador sejam determinadas até certo ponto pelo volume já alcançado pela riqueza capitalista e pela superioridade do mecanismo econômico, de modo nenhum o progresso da centralização depende do crescimento positivo do volume do capital social. E é especialmente isso que distingue a centralização da concentração, que não é mais do que outra expressão para a reprodução em escala ampliada. A centralização é possível por meio da mera alteração na distribuição de capitais já existentes, da simples modificação do agrupamento quantitativo dos componentes do capital social. Se aqui o capital pode crescer nas mãos de um homem até formar massas grandiosas é porque acolá ele é retirado das mãos de muitos outros homens. Num dado ramo de negócios, a centralização teria alcançado seu limite último quando todos os capitais aí aplicados fossem fundidos num único capital individual77b. Numa dada sociedade, esse limite seria alcançado no instante em que o capital social total estivesse reunido nas mãos, seja de um único capitalista, seja de uma única sociedade de capitalistas.

A centralização complementa a obra da acumulação, colocando os capitalistas industriais em condições de ampliar a escala de suas operações. Se esse último resultado é uma consequência da acumulação ou da centralização; se a centralização se dá pelo caminho violento da anexação – quando certos capitais se convertem em centros de gravitação tão dominantes para outros que rompem a coesão individual destes últimos e atraem para si seus fragmentos isolados –; ou se a fusão ocorre a partir de uma multidão de capitais já formados ou em vias de formação, mediante o simples procedimento da formação de sociedades por ações –; o efeito econômico permanece o mesmo. A extensão aumentada de estabelecimentos industriais constitui por toda parte o ponto de partida para uma organização mais abrangente do trabalho coletivo, para um desenvolvimento mais amplo de suas forças motrizes materiais, isto é, para a transformação progressiva de processos de produção isolados e fixados pelo costume em processos de produção socialmente combinados e cientificamente ordenados.

Mas é evidente que a acumulação, o aumento gradual do capital por meio da reprodução que passa da forma circular para a espiral, é um procedimento extremamente lento se comparado com a centralização, que só precisa alterar o agrupamento quantitativo dos componentes do capital social. O mundo ainda careceria de ferrovias se tivesse de ter esperado até que a acumulação possibilitasse a alguns capitais individuais a construção de uma estrada de ferro. Mas a centralização, por meio das sociedades por ações, concluiu essas construções num piscar de olhos. E enquanto reforça e acelera desse modo os efeitos da acumulação, a centralização amplia e acelera, ao mesmo tempo, as revoluções na composição técnica do capital, que aumentam a parte constante deste último à custa de sua parte variável, reduzindo, com isso, a demanda relativa de trabalho.

As massas de capital fundidas entre si da noite para o dia por obra da centralização se reproduzem e multiplicam como as outras, só que mais rapidamente, convertendo-se, com isso, em novas e poderosas alavancas da acumulação social. Por isso, quando se fala do progresso da acumulação social, nisso se incluem – hoje – tacitamente os efeitos da centralização.

Os capitais adicionais formados no decorrer da acumulação normal (ver capítulo 22, item 1) servem preferencialmente como veículos para a exploração de novos inventos e descobertas, ou aperfeiçoamentos industriais em geral. Com o tempo, porém, também o velho capital chega ao momento em que se renova da cabeça aos pés, troca de pele e renasce na configuração técnica aperfeiçoada, em que uma massa menor de trabalho basta para pôr em movimento uma massa maior de maquinaria e matérias-primas. Evidentemente, o decréscimo absoluto da demanda de trabalho, que decorre necessariamente daí, torna-se tanto maior quanto mais já estejam acumulados, graças ao movimento centralizador, os capitais submetidos a esse processo de renovação.

Por um lado, o capital adicional formado no decorrer da acumulação atrai, proporcionalmente a seu volume, cada vez menos trabalhadores. Por outro lado, o velho capital, reproduzido periodicamente numa nova composição, repele cada vez mais trabalhadores que ele anteriormente ocupava.”

77b Nota à quarta edição: Os mais recentes “trusts” ingleses e americanos já apontam para esse objetivo, procurando unificar numa grande sociedade por ações, dotada de um monopólio efetivo, ao menos todas as grandes empresas ativas num ramo de negócios. (F. E.)

 

 

“O modo de produção especificamente capitalista, o desenvolvimento a ele correspondente da força produtiva do trabalho e a alteração que esse desenvolvimento ocasiona na composição orgânica do capital não apenas acompanham o ritmo do progresso da acumulação ou o crescimento da riqueza social. Avançam com rapidez incomparavelmente maior, porque a acumulação simples ou a ampliação absoluta do capital total é acompanhada pela centralização de seus elementos individuais, e a revolução técnica do capital adicional é acompanhada pela revolução técnica do capital original. Com o avanço da acumulação modifica-se, portanto, a proporção entre as partes constante e variável do capital; se originalmente era de 1:1, agora ela passa a 2:1, 3:1, 4:1, 5:1, 7:1 etc., de modo que, à medida que cresce o capital, em vez de 1/2 de seu valor total, convertem-se em força de trabalho, progressivamente, apenas 1/3, 1/4, 1/5, 1/6, 1/8 etc., ao passo que se convertem em meios de produção 2/3, 3/4, 4/5, 5/6, 7/8 etc. Como a demanda de trabalho não é determinada pelo volume do capital total, mas por seu componente variável, ela decresce progressivamente com o crescimento do capital total, em vez de, como pressupomos anteriormente, crescer na mesma proporção dele. Essa demanda diminui em relação à grandeza do capital total e em progressão acelerada com o crescimento dessa grandeza. Ao aumentar o capital global, também aumenta, na verdade, seu componente variável, ou seja, a força de trabalho nele incorporada, porém em proporção cada vez menor. Os períodos em que a acumulação atua como mera ampliação da produção sobre uma base técnica dada tornam-se mais curtos. Para absorver um número adicional de trabalhadores de uma dada grandeza, ou mesmo por causa da metamorfose constante que o capital antigo sofre a fim de manter ocupados os trabalhadores já em funcionamento, requer-se não apenas uma acumulação acelerada do capital total em progressão crescente. Essa acumulação e centralização crescentes, por sua vez, convertem-se numa fonte de novas variações na composição do capital ou promovem a diminuição novamente acelerada de seu componente variável em comparação com o componente constante. Por outro lado, essa diminuição relativa de seu componente variável, acelerada pelo crescimento do capital total, e numa proporção maior que o próprio crescimento deste último, aparece, inversamente, como um aumento absoluto da população trabalhadora, aumento que é sempre mais rápido do que o do capital variável ou dos meios que este possui para ocupar aquela. A acumulação capitalista produz constantemente, e na proporção de sua energia e seu volume, uma população trabalhadora adicional relativamente excedente, isto é, excessiva para as necessidades médias de valorização do capital e, portanto, supérflua.

Se consideramos o capital social total, ora o movimento de sua acumulação provoca uma variação periódica, ora seus elementos se distribuem simultaneamente entre as diferentes esferas da produção. Em algumas dessas esferas ocorre, em decorrência da mera concentração, uma variação na composição do capital sem crescimento de sua grandeza absoluta; em outras, o crescimento absoluto do capital está vinculado ao decréscimo absoluto de seu componente variável ou da força de trabalho por ele absorvida; em outras, ora o capital continua a crescer sobre sua base técnica dada e atrai força de trabalho suplementar em proporção ao seu próprio crescimento, ora ocorre uma mudança orgânica e seu componente variável se contrai; em todas as esferas, o crescimento da parte variável do capital e, portanto, do número de trabalhadores ocupados, vincula-se sempre a violentas flutuações e à produção transitória de uma superpopulação, quer esta adote agora a forma mais notória da repulsão de trabalhadores já ocupados anteriormente, quer a forma menos evidente, mas não menos eficaz, de uma absorção mais dificultosa da população trabalhadora suplementar mediante os canais habituais. Juntamente com a grandeza do capital social já em funcionamento e com o grau de seu crescimento, com a ampliação da escala de produção e da massa dos trabalhadores postos em movimento, com o desenvolvimento da força produtiva de seu trabalho, com o fluxo mais amplo e mais pleno de todos os mananciais da riqueza, amplia-se também a escala em que uma maior atração dos trabalhadores pelo capital está vinculada a uma maior repulsão desses mesmos trabalhadores, aumenta a velocidade das mudanças na composição orgânica do capital e em sua forma técnica, e dilata-se o âmbito das esferas da produção que são atingidas por essas mudanças, ora simultânea, ora alternadamente. Assim, com a acumulação do capital produzida por ela mesma, a população trabalhadora produz, em volume crescente, os meios que a tornam relativamente supranumerária. Essa lei de população é peculiar ao modo de produção capitalista, tal como, de fato, cada modo de produção particular na história tem suas leis de população particulares, historicamente válidas. Uma lei abstrata de população só é válida para as plantas e os animais e, ainda assim, apenas enquanto o ser humano não interfere historicamente nesses domínios.

Mas se uma população trabalhadora excedente é um produto necessário da acumulação ou do desenvolvimento da riqueza com base capitalista, essa superpopulação se converte, em contrapartida, em alavanca da acumulação capitalista, e até mesmo numa condição de existência do modo de produção capitalista. Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta como se ele o tivesse criado por sua própria conta. Ela fornece a suas necessidades variáveis de valorização o material humano sempre pronto para ser explorado, independentemente dos limites do verdadeiro aumento populacional. Com a acumulação e o consequente desenvolvimento da força produtiva do trabalho aumenta a súbita força de expansão do capital, e não só porque aumentam a elasticidade do capital em funcionamento e a riqueza absoluta, da qual o capital não constitui mais do que uma parte elástica, não só porque o crédito, sob todo tipo de estímulos particulares, e num abrir e fechar de olhos, põe à disposição da produção, como capital adicional, uma parte extraordinária dessa riqueza, mas porque as condições técnicas do próprio processo de produção, a maquinaria, os meios de transporte etc. possibilitam, em maior escala, a transformação mais rápida de mais-produto em meios de produção suplementares. A massa da riqueza social, superabundante e transformável em capital adicional graças ao progresso da acumulação, precipita-se freneticamente sobre os velhos ramos da produção, cujo mercado se amplia repentinamente, ou em ramos recém-abertos, como o das ferrovias etc., cuja necessidade decorre do desenvolvimento dos ramos passados. Em todos esses casos, é preciso que grandes massas humanas estejam disponíveis para serem subitamente alocadas nos pontos decisivos, sem que, com isso, ocorra uma quebra na escala de produção alcançada em outras esferas. A superpopulação provê essas massas. O curso vital característico da indústria moderna, a forma de um ciclo decenal interrompido por oscilações menores de períodos de vitalidade média, produção a todo vapor, crise e estagnação, repousa sobre a formação constante, sobre a maior ou menor absorção e sobre a reconstituição do exército industrial de reserva ou superpopulação. Por sua vez, as oscilações do ciclo industrial conduzem ao recrutamento da superpopulação e, com isso, convertem-se num dos mais enérgicos agentes de sua reprodução.

Esse currículo peculiar da indústria moderna, que não se encontra em nenhuma época anterior da humanidade, era também impossível na infância da produção capitalista. A composição do capital só se modificava gradualmente, e à sua acumulação correspondia, no geral, um crescimento proporcional da demanda de trabalho. Tal crescimento, tão lento quanto o progresso da acumulação do capital – se comparado com o da época moderna –, chocava-se com barreiras naturais da população trabalhadora explorável, as quais só podiam ser removidas pelos meios violentos que mencionaremos mais tarde. A expansão súbita e intermitente da escala de produção é o pressuposto de sua contração repentina; esta última, por sua vez, provoca uma nova expansão, a qual é impossível na ausência de material humano disponível, isto é, se o número dos trabalhadores não aumenta independentemente do crescimento absoluto da população. Ela é criada pelo simples processo que “libera” constantemente parte dos trabalhadores, por métodos que reduzem o número de trabalhadores ocupados em relação à produção aumentada. Toda a forma de movimento da indústria moderna deriva, portanto, da transformação constante de uma parte da população trabalhadora em mão de obra desempregada ou semiempregada. A superficialidade da economia política se mostra, entre outras coisas, no fato de ela converter a expansão e a contração do crédito, que é o mero sintoma dos períodos de mudança do ciclo industrial, em causa destes últimos. Tão logo iniciam esse movimento de expansão e contração alternadas, ocorre com a produção exatamente o mesmo que com os corpos celestes, os quais, uma vez lançados em determinado movimento, repetem-no sempre. Os efeitos, por sua vez, convertem-se em causas, e as variações de todo o processo, que reproduz continuamente suas próprias condições, assumem a forma da periodicidade. (...)

A produção de uma superpopulação relativa ou a liberação de trabalhadores avança com rapidez ainda maior do que a – já acelerada com o progresso da acumulação – revolução técnica do processo de produção e a correspondente redução proporcional da parte variável do capital em relação à parte constante. Se os meios de produção, crescendo em volume e eficiência, tornam-se meios de ocupação dos trabalhadores em menor grau, essa mesma relação é novamente modificada pelo fato de que, à medida que cresce a força produtiva do trabalho, o capital eleva mais rapidamente sua oferta de trabalho do que sua demanda de trabalhadores. O sobretrabalho da parte ocupada da classe trabalhadora engrossa as fileiras de sua reserva, ao mesmo tempo que, inversamente, esta última exerce, mediante sua concorrência, uma pressão aumentada sobre a primeira, forçando-a ao sobretrabalho e à submissão aos ditames do capital. A condenação de uma parte da classe trabalhadora à ociosidade forçada em razão do sobretrabalho da outra parte, e vice-versa, torna-se um meio de enriquecimento do capitalista individual, ao mesmo tempo que acelera a produção do exército industrial de reserva num grau correspondente ao progresso da acumulação social. A importância desse fator na formação da superpopulação relativa o demonstra, por exemplo, o caso da Inglaterra. Seus meios técnicos para “economizar” trabalho são colossais, no entanto, se amanhã o trabalho fosse reduzido, de modo geral, a uma medida racional, e fosse graduado de acordo com as diferentes camadas da classe trabalhadora, conforme a idade e o sexo, a população trabalhadora existente seria absolutamente insuficiente para conduzir adiante a produção nacional em sua escala atual. A grande maioria dos trabalhadores atualmente “improdutivos” teria de ser transformada em “produtivos”.

Grosso modo, os movimentos gerais do salário são regulados exclusivamente pela expansão e contração do exército industrial de reserva, que se regem, por sua vez, pela alternância periódica do ciclo industrial. Não se determinam, portanto, pelo movimento do número absoluto da população trabalhadora, mas pela proporção variável em que a classe trabalhadora se divide em exército ativo e exército de reserva, pelo aumento ou redução do tamanho relativo da superpopulação, pelo grau em que ela é ora absorvida, ora liberada. (...)

Entre 1849 e 1859, simultaneamente à queda dos preços dos cereais, ocorreu nos distritos agrícolas ingleses um aumento salarial que, na prática, foi apenas nominal. Em Wiltshire, por exemplo, o salário semanal aumentou de 7 para 8 xelins, em Dorsetshire de 7 ou 8 para 9 xelins etc. Isso foi uma consequência da evasão extraordinária da superpopulação agrícola, causada pela demanda bélica e pela expansão massiva das construções de ferrovias, fábricas, minas etc. Quanto menor o salário, tanto maior será a expressão percentual de qualquer elevação dele, por mais insignificante que seja. Se o salário semanal é, por exemplo, de 20 xelins e sobe para 22, ele se eleva em 10%; se, no entanto, é de apenas 7 xelins e sobe para 9, ele se eleva em 284/7%, o que parece bastante considerável. Seja como for, os arrendatários gritaram de indignação, e até o Economist84 de Londres tagarelou com absoluta seriedade sobre “a general and substantial advance” [um avanço geral e substancial] com relação a esses salários de fome. O que fizeram, então, os arrendatários? Esperaram até que os trabalhadores rurais, graças a essas remunerações esplêndidas, tivessem se multiplicado tanto que seu salário teria novamente de cair, tal como costuma ocorrer no cérebro do economista dogmático? Eles introduziram mais maquinaria e, num piscar de olhos, os trabalhadores voltaram a ser “supranumerários” numa proporção suficiente até mesmo para os arrendatários. Agora havia “mais capital” investido na agricultura do que antes, e de forma mais produtiva. Com isso, a demanda de trabalho caiu não apenas de modo relativo, mas absoluto.

Essa ficção econômica confunde as leis que regem o movimento geral do salário – ou a relação entre a classe trabalhadora, isto é, a força de trabalho em seu conjunto, e o capital total da sociedade – com as leis que distribuem a população trabalhadora entre as esferas particulares da produção. Se, por exemplo, em decorrência de uma conjuntura favorável, a acumulação é especialmente intensa numa determinada esfera da produção, fazendo com que os lucros sejam aí maiores do que os lucros médios e atraindo para ela o capital adicional, então ocorre, naturalmente, um aumento da demanda de trabalho e do salário. O salário mais alto atrai uma parte maior da população trabalhadora para a esfera favorecida, até que ela esteja saturada de força de trabalho e o salário caia novamente para o nível médio anterior ou, caso o afluxo tenha sido grande demais, para um nível abaixo dele. Nesse caso, a imigração de trabalhadores para o ramo de atividades em questão não apenas é interrompida, como dá até mesmo lugar à sua emigração. Aqui, o economista político crê vislumbrar “onde e como”, com o incremento do salário, ocorre um incremento absoluto de trabalhadores e, com o incremento absoluto de trabalhadores, uma redução do salário, mas na verdade ele só enxerga a oscilação local do mercado de trabalho de uma esfera específica da produção, nada mais do que fenômenos da distribuição da população trabalhadora nas diferentes esferas de investimento do capital, conforme suas necessidades mutáveis.

Nos períodos de estagnação e prosperidade média, o exército industrial de reserva pressiona o exército ativo de trabalhadores; nos períodos de superprodução e paroxismo, ele barra suas pretensões. A superpopulação relativa é, assim, o pano de fundo sobre o qual se move a lei da oferta e da demanda de trabalho. Ela reduz o campo de ação dessa lei a limites absolutamente condizentes com a avidez de exploração e a mania de dominação próprias do capital. (...)

Quanto maiores forem a riqueza social, o capital em funcionamento, o volume e o vigor de seu crescimento e, portanto, também a grandeza absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior será o exército industrial de reserva. A força de trabalho disponível se desenvolve pelas mesmas causas que a força expansiva do capital. A grandeza proporcional do exército industrial de reserva acompanha, pois, o aumento das potências da riqueza. Mas quanto maior for esse exército de reserva em relação ao exército ativo de trabalhadores, tanto maior será a massa da superpopulação consolidada, cuja miséria está na razão inversa do martírio de seu trabalho. Por fim, quanto maior forem as camadas lazarentas da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior será o pauperismo oficial. Essa é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista. Como todas as outras leis, ela é modificada, em sua aplicação, por múltiplas circunstâncias, cuja análise não cabe realizar aqui. (...)

A lei segundo a qual uma massa cada vez maior de meios de produção, graças ao progresso da produtividade do trabalho social, pode ser posta em movimento com um dispêndio progressivamente decrescente de força humana, é expressa no terreno capitalista – onde não é o trabalhador quem emprega os meios de trabalho, mas estes o trabalhador – da seguinte maneira: quanto maior a força produtiva do trabalho, tanto maior a pressão dos trabalhadores sobre seus meios de ocupação, e tanto mais precária, portanto, a condição de existência do assalariado, que consiste na venda da própria força com vistas ao aumento da riqueza alheia ou à autovalorização do capital. Em sentido capitalista, portanto, o crescimento dos meios de produção e da produtividade do trabalho num ritmo mais acelerado do que o da população produtiva se expressa invertidamente no fato de que a população trabalhadora sempre cresce mais rapidamente do que a necessidade de valorização do capital.

Na seção IV, ao analisarmos a produção do mais-valor relativo, vimos que, no interior do sistema capitalista, todos os métodos para aumentar a força produtiva social do trabalho aplicam-se à custa do trabalhador individual; todos os meios para o desenvolvimento da produção se convertem em meios de dominação e exploração do produtor, mutilam o trabalhador, fazendo dele um ser parcial, degradam-no à condição de um apêndice da máquina, aniquilam o conteúdo de seu trabalho ao transformá-lo num suplício, alienam ao trabalhador as potências espirituais do processo de trabalho na mesma medida em que a tal processo se incorpora a ciência como potência autônoma, desfiguram as condições nas quais ele trabalha, submetem-no, durante o processo de trabalho, ao despotismo mais mesquinho e odioso, transformam seu tempo de vida em tempo de trabalho, arrastam sua mulher e seu filho sob a roda do carro de Jagrenái do capital. Mas todos os métodos de produção do mais-valor são, ao mesmo tempo, métodos de acumulação, e toda expansão da acumulação se torna, em contrapartida, um meio para o desenvolvimento desses métodos. Segue-se, portanto, que à medida que o capital é acumulado, a situação do trabalhador, seja sua remuneração alta ou baixa, tem de piorar. Por último, a lei que mantém a superpopulação relativa ou o exército industrial de reserva em constante equilíbrio com o volume e o vigor da acumulação prende o trabalhador ao capital mais firmemente do que as correntes de Hefesto prendiam Prometeu ao rochedo. Ela ocasiona uma acumulação de miséria correspondente à acumulação de capital. Portanto, a acumulação de riqueza num polo é, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, o suplício do trabalho, a escravidão, a ignorância, a brutalização e a degradação moral no polo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como capital.

Esse caráter antagônico da acumulação capitalista88 foi expresso de diferentes formas pelos economistas políticos, embora eles o confundam com fenômenos em parte análogos, sem dúvida, porém essencialmente diferentes, que ocorrem nos modos de produção pré-capitalistas.”*

*Havia algumas notas nesse texto, que não foram trazidas para cá.

i Juggernaut (Dschagannat): uma das formas do deus Vishnu. O culto de Jagrená se caracterizava por um elevado grau de fanatismo religioso, incluindo rituais de autoflagelação e autossacrifício extremos. Em certos dias festivos, os fiéis se jogavam sob as rodas de um carro (o “carro de Jagrená”), sobre o qual se encontrava uma figura de Vishnu-Dschagannat. (N. E. A. MEW)

88 “Dia após dia, torna-se mais claro, portanto, que as relações de produção em que a burguesia se move não têm um caráter unitário, simples, mas dúplice; que nas mesmas relações em que se produz a riqueza também se produz a miséria; que nas mesmas relações em que há desenvolvimento das forças produtivas há também uma força produtiva de repressão; que essas relações só produzem a riqueza burguesa, isto é, a riqueza da classe burguesa, sob a condição do aniquilamento contínuo da riqueza dos membros integrantes dessa classe e da produção de um proletariado cada vez maior”, Karl Marx, Miséria da filosofia, cit., p. 116.

 

 

A época imediatamente anterior à revogação das leis dos cereais lançou nova luz sobre a situação dos trabalhadores rurais. Por um lado, interessava aos agitadores burgueses demonstrar quão pouco essas leis protecionistas protegiam o verdadeiro produtor de cereal. Por outro lado, a burguesia industrial espumava de raiva ante as denúncias que os aristocratas rurais faziam das condições fabris em face da simpatia que esses ociosos degenerados, frios e refinados afetavam pelos sofrimentos do trabalhador urbano e diante de seu “zelo diplomático” pela lei fabril. Um velho ditado inglês diz que quando dois ladrões se engalfinham, algo de bom sempre ocorre. E, de fato, a rumorosa e apaixonada peleja entre as duas facções da classe dominante para saber qual das duas explorava mais desavergonhadamente o trabalhador tornou-se, de um lado e de outro, a parteira da verdade.”