Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-184-0
Tradução: João Alexandre Peschanski
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 238
Sinopse: Ver Parte
I
“Todas essas
“esferas de atividade” estão incorporadas em um conjunto de arranjos
institucionais (como os direitos de propriedade privada e os contratos de
mercado) e estruturas administrativas (o Estado e outros arranjos locais e
multinacionais). Essas instituições também evoluem por conta própria, até mesmo
quando são forçadas a adaptar-se a condições de crise (como acontece agora) e a
mudanças nas relações sociais. As pessoas agem, além disso, de acordo com suas
expectativas, suas crenças e sua compreensão do mundo. Os sistemas sociais
dependem da confiança em especialistas, do conhecimento e da informação
adequados daqueles que tomam decisões e da aceitação razoável dos arranjos
sociais (hierárquicos ou igualitários), bem como da construção de padrões éticos
e morais (vis-à-vis, por exemplo, nossas relações com os animais e nossas
responsabilidades para com o mundo que chamamos de natureza, e também com
aqueles que não são como nós). As normas culturais e os sistemas de crenças (ou
seja, ideologias religiosas e políticas) são muito presentes, mas não existem
independentemente das relações sociais de produção, das possibilidades de
produção e consumo e das tecnologias dominantes. As inter-relações em conflito
entre as necessidades de evolução técnica e social para a acumulação do capital
e as estruturas de conhecimento e normas e crenças culturais compatíveis com a
acumulação infinita têm desempenhado um papel fundamental na evolução do
capitalismo. Para fins de simplificação, vou agrupar todos os últimos elementos
sob a rubrica de “concepções mentais do mundo”.
Essa forma de
pensar nos leva a sete “esferas de atividade” distintas na trajetória evolutiva
do capitalismo: tecnologias e formas de organização; relações sociais; arranjos
institucionais e administrativos; processos de produção e de trabalho; relações
com a natureza; reprodução da vida cotidiana e da espécie; e “concepções
mentais do mundo”. Nenhuma das esferas é dominante, e nenhuma é independente
das outras. Mas também nenhuma delas é determinada nem mesmo coletivamente
pelas outras. Cada esfera evolui por conta própria, mas sempre em interação
dinâmica com as outras. As mudanças tecnológicas e organizacionais surgem por
qualquer motivo (por vezes, acidentais), enquanto a relação com natureza é instável
e muda perpetuamente apenas em parte por causa de mudanças induzidas pelo
homem. Nossas concepções mentais do mundo, para dar outro exemplo, são
geralmente instáveis, conflituosas, sujeitas a descobertas científicas assim
como a caprichos, modas e crenças e desejos culturais e religiosos fortemente
arraigados. Mudanças nas concepções mentais têm todos os tipos de
consequências, intencionais e não intencionais, para as formas tecnológicas e
organizacionais, as relações sociais, os processos de trabalho, as relações com
a natureza e os arranjos institucionais aceitáveis. A dinâmica demográfica que
surge da esfera da reprodução e da vida cotidiana é simultaneamente autônoma e
profundamente afetada por suas relações com as outras esferas.
Todos os complexos
fluxos de influência que se movem entre as esferas estão em perpétua
reformulação. Além disso, essas interações não são necessariamente harmoniosas.
De fato, podemos reconceitualizar a formação de crises em termos de tensões e
antagonismos que surgem entre as diferentes esferas de atividade, por exemplo
as novas tecnologias que levam ao desejo de novas configurações nas relações
sociais ou perturbam a organização dos processos de trabalho existentes. (...)
Então me deixe
resumir. As sete esferas de atividade coevoluem na evolução histórica do
capitalismo de formas distintas. Nenhuma esfera prevalece sobre as outras,
mesmo quando existe dentro de cada uma a possibilidade de desenvolvimento
autônomo (a natureza se transforma e evolui independentemente, assim como as
concepções mentais, as relações sociais, as formas de vida diária, os arranjos
institucionais, as tecnologias etc.). Cada uma das esferas está sujeita a uma
renovação e transformação permanentes, tanto na interação com as outras quanto
por meio de uma dinâmica interna que cria de forma constante novidade nas
questões humanas. As relações entre as esferas não são causais, mas
dialeticamente interligadas pela circulação e acumulação do capital. Como tal,
toda a configuração constitui uma totalidade socioecológica. Isso não é, devo
enfatizar, uma totalidade mecânica, um motor social em que as peças estão
estritamente de acordo com os ditames do todo. É mais como um sistema ecológico
feito de muitas espécies e formas de atividade diferentes – ao que o filósofo/sociólogo
francês Henri Lefebvre se refere como um “ensemble” ou o seu compatriota, o filósofo Gilles
Deleuze, chama de “assemblagei” de elementos em relação dinâmica uns com os
outros. Nessa totalidade ecológica, as inter-relações são fluidas e abertas,
mesmo quando estão inextricavelmente interligadas umas às outras.
O desenvolvimento
desigual entre as esferas e no conjunto delas produz contingências, bem como
tensões e contradições (de forma bastante parecida com as mutações
imprevisíveis que produzem contingências na teoria darwiniana). Além disso, é
totalmente possível que desenvolvimentos explosivos em uma esfera, em um
determinado tempo e lugar, assumam um papel de vanguarda. O súbito
desenvolvimento de novos agentes patogênicos (por exemplo, o HIV/Aids, a gripe
aviária ou a SRAS), a ascensão social de algum movimento forte por direitos
trabalhistas, civis ou das mulheres, uma explosão de inovação tecnológica como
no recente aumento da eletrônica e das tecnologias baseadas em chips de
computador ou uma explosão estonteante de política utópica têm todos em várias
épocas e lugares estado à frente do processo coevolutivo, colocando imensa
pressão sobre as outras esferas, seja para levá-las a um nivelamento, seja para
formar centros de recalcitrância ou resistência ativa. Uma vez que a tecnologia
se tornou um negócio em seu próprio direito (como ocorreu cada vez mais a
partir de meados do século XIX), às vezes uma necessidade social tinha de ser
criada para que a nova tecnologia fosse usada, e não o contrário. Na indústria
farmacêutica vemos nos últimos tempos a criação de novos diagnósticos de todos
os tipos mentais e físicos para corresponder aos novos medicamentos (o Prozac é
o clássico exemplo). A existência de uma crença dominante na classe capitalista
e na ordem social de modo mais geral de que há uma solução tecnológica para
cada problema e um comprimido para cada doença tem todos os tipos de
consequências. O “fetiche da tecnologia”, portanto, tem um papel
indubitavelmente importante na condução da história burguesa, definindo tanto
suas realizações surpreendentes quanto suas catástrofes autoinfligidas. Os
problemas na relação com a natureza têm de ser resolvidos por novas tecnologias
em vez de revoluções na reprodução social e na vida cotidiana! Historicamente,
é como se houvesse períodos em que algumas das esferas se colocam radicalmente
em contradição umas com as outras. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde a
busca da ciência e tecnologia parece ser suprema, parece estranho que tantas
pessoas não acreditem na teoria da evolução. Por mais que a ciência da mudança
climática global esteja bem estabelecida, muitos estão convencidos de que é uma
farsa. Como compreender melhor a relação com a natureza em face das esmagadoras
convicções religiosas ou políticas que não dão crédito à ciência? Situações
desse tipo geralmente levam tanto a fases de estagnação quanto à reconstrução
radical. As crises geralmente acentuam a ocorrência dessas fases. Aqui, também,
as tendências de crise do capitalismo não são resolvidas, mas apenas
contornadas.”
“Considere ao que
essa ideia de equilíbrio pontuado se parece quando olhamos para trás, para a
última fase principal da reconstrução capitalista, que ocorreu durante a crise
de 1973 a 1982. Em meu livro de 2005, A Brief History of Neoliberalism [O neoliberalismo: história e implicações], tentei fazer um
relato da reestruturação capitalista, que começou nesses anos. Por todo o mundo
capitalista, mas particularmente nos Estados Unidos (o poder dominante
indiscutível da época), o poder da classe capitalista se enfraqueceu em relação
aos movimentos de trabalhadores e outros movimentos sociais, e a acumulação do
capital perdeu velocidade. Os chefes das principais corporações, juntamente com
os barões da mídia e as pessoas mais ricas, muitos dos quais, como os irmãos
Rockefellers, eram descendentes da classe capitalista, foram para o
contra-ataque. Iniciaram um movimento de reconstrução radical do nexo
Estado-finanças (a desregulamentação nacional e internacional das operações
financeiras, a liberação do financiamento da dívida, a abertura do mundo para a
competição internacional intensificada e o reposicionamento do aparelho do
Estado em relação à previdência social). O capital foi reempoderado em relação
ao trabalho pela produção de desemprego e desindustrialização, imigração,
deslocalização e toda sorte de mudanças tecnológicas e organizacionais (a
subcontratação, por exemplo). Mais tarde foi ligado a um ataque ideológico e
político sobre todas as formas de organização do trabalho nos anos de
Reagan/Thatcher, e o efeito foi resolver a crise do declínio de rentabilidade e
riqueza por meio da repressão salarial e da redução de prestações sociais pelo
Estado. As concepções mentais do mundo foram reformuladas, na medida do
possível, com o recurso aos princípios neoliberais da liberdade individual,
necessariamente incorporados no livre-mercado e no livre-comércio. Isso exigiu
a regressão do Estado de bem-estar social e o sucateamento progressivo do
quadro regulatório que tinha sido construído no início dos anos 1970 (como a
proteção ambiental). Novas formas de nicho de consumo e estilos de vida
individualizados também apareceram de repente, construídos em torno de um
estilo pós-moderno de urbanização (a Disneyficação dos centros das cidades e a
gentrificação), além do surgimento de movimentos sociais em torno de uma
mistura de individualismo egocêntrico, política de identidade,
multiculturalismo e preferência sexual.
O capital não
criou esses movimentos, mas descobriu formas de explorá-los e manipulá-los,
tanto para fraturar as até então importantes solidariedades de classe quanto
para mercantilizar e canalizar as demandas afetivas e efetivas associadas a
esses movimentos em nichos de mercado. As novas tecnologias eletrônicas com
amplas aplicações na produção e no consumo tiveram um enorme impacto nos processos
de trabalho e na condução da vida diária para a massa da população (laptops,
celulares e iPods estão por toda parte). A ideia de que as novas tecnologias
eletrônicas eram a resposta aos problemas do mundo se tornou o mantra
fetichista da década de 1990. E tudo isso pressagiou uma mudança tão grande nas
concepções mentais do mundo com o advento de um individualismo possessivo ainda
mais intenso, juntamente com a lógica do fazer dinheiro, o endividamento, a
especulação financeira, a privatização de ativos do governo e a ampla aceitação
da responsabilidade pessoal como norma cultural em todas as classes sociais.
Estudos preliminares das pessoas apanhadas na onda de execuções hipotecárias
indicam, por exemplo, que muitas delas culpam a si mesmas em vez de às
condições sistêmicas por não serem capazes, por qualquer motivo, de viver de
acordo com a responsabilidade pessoal implicada na casa própria. A visão do
papel apropriado do Estado e do poder estatal se deslocou dramaticamente
durante os anos neoliberais, e só agora está sendo desafiada na medida em que o
Estado foi obrigado a intervir, após a falência do Lehman Brothers em setembro
de 2008, com um apoio financeiro maciço para resgatar um sistema bancário à
beira do fracasso.”
“Cada posição
nesse panteão de possibilidades tem algo de importante, embora unidimensional,
a dizer sobre o dinamismo socioecológico do capitalismo e da potencialidade
para construir alternativas. Os problemas surgem, entretanto, quando uma ou
outra dessas perspectivas é vista exclusiva e dogmaticamente como a única fonte
e, portanto, o principal ponto de pressão política para a mudança. Tem sido uma
história infeliz dentro da teoria social o favorecimento de algumas esferas de
atividade em relação às outras. Às vezes, isso reflete uma situação em que um
ou outro dos domínios – como a luta de classes ou o dinamismo tecnológico –
parece estar na vanguarda das transformações que ocorrem em dado momento. Em
tal situação seria grosseiro não reconhecer as forças que estão na vanguarda do
desenvolvimento da mudança socioecológica nesse tempo e lugar. O argumento não
é, portanto, que se deve sempre atribuir o mesmo peso às sete esferas, mas que
a tensão dialética no seu desenvolvimento desigual deve sempre ser levada em
conta.
O que parece menor
em uma época ou em um lugar pode se tornar importante na próxima. As lutas do
trabalho não estão agora na vanguarda da dinâmica política, como foram nos anos
1960 e início dos anos 1970. Muito mais atenção está focada agora na relação
com a natureza do que anteriormente. O interesse contemporâneo em saber como a
política do cotidiano se desenrola tem de ser bem recebido simplesmente porque
não teve a atenção que deveria no passado. Agora é provável que precisemos de
outra exposição sobre os impactos sociais das novas tecnologias e formas
organizacionais, que no passado foram muitas vezes impensadamente priorizadas.
Todo o relato de
Marx sobre o surgimento do capitalismo a partir do feudalismo pode na verdade
ser reconstruído e lido em termos de um movimento coevolucionário, através e
entre as sete diferentes esferas de atividade aqui identificadas. O capitalismo
não suplantou o feudalismo por algum tipo de transformação revolucionária pura,
repousando sobre as forças mobilizadas em apenas uma dessas esferas. Teve de
crescer nos interstícios da velha sociedade e suplantá-la pouco a pouco, às
vezes com força, violência, depredação e apreensão de bens, mas em outros
momentos com malícia e astúcia. E, muitas vezes, perdeu batalhas contra a velha
ordem, ao mesmo tempo que ganhou a guerra. Na medida em que conquistou um pouco
de poder, no entanto, uma classe capitalista emergente teve de construir sua
forma social alternativa inicialmente com base em tecnologias, relações
sociais, sistemas administrativos, concepções mentais, sistemas de produção,
relações com a natureza e padrões de vida diária como estes tinham sido
constituídos na ordem feudal anterior. Foram precisos uma coevolução e um
desenvolvimento desigual nas diferentes esferas para o capitalismo encontrar
não apenas sua base tecnológica própria e única, mas também seus sistemas de
crença e concepções mentais, suas configurações das relações sociais instáveis,
mas claramente de classe, seus ritmos espaço-temporais curiosos e sua forma de
vida cotidiana igualmente especial, para não falar de seus processos de
produção e sua estrutura institucional e administrativa, sem os quais não era
possível dizer que se tratava realmente de capitalismo.
Mesmo ao fazê-lo,
carregou dentro de si várias marcas das condições diferenciais nas quais a
transformação do capitalismo foi forjada. Embora muito provavelmente tenha se
feito caso demais dos diferenciais entre as tradições protestantes, católicas e
confucionistas em demarcar diferenças significativas na forma como o
capitalismo funciona em diferentes partes do mundo, seria temerário sugerir que
essas influências são irrelevantes ou mesmo insignificantes. Além disso, a
partir do momento em que o capitalismo se manteve firme, envolveu-se em um
movimento revolucionário perpétuo em todas as esferas para acomodar as
inevitáveis tensões da acumulação do capital sem fim a uma taxa composta de
crescimento. Os hábitos diários e concepções mentais das classes trabalhadoras
que surgiram na década de 1990 (juntamente com uma redefinição do que constitui
a relação social “classe trabalhadora”, em primeiro lugar) tiveram pouco a ver
com os hábitos e gostos da classe trabalhadora da Grã-Bretanha da década de
1950 e 1960. O processo de coevolução que o capitalismo põe em movimento tem
sido permanente.
Talvez um dos
maiores fracassos das tentativas anteriores de construir o socialismo tem sido
a relutância em se envolver politicamente em todas essas esferas e deixar a
dialética entre elas abrir possibilidades, em vez de fechá-las. O comunismo
revolucionário, particularmente o tipo soviético – em especial após o período
de experimentação revolucionária da década de 1920 ser encerrado por Stalin –
muitas vezes reduziu a dialética das relações entre as esferas a um programa de
via única em que as forças produtivas (tecnologias) foram colocadas na
vanguarda da mudança. Essa abordagem inevitavelmente falhou. Isso levou à
paralisia, a arranjos administrativos e institucionais estagnados, transformou
a vida diária em monotonia e congelou a possibilidade de explorar novas
relações sociais ou concepções mentais. Não prestou atenção à relação com a
natureza, com consequências desastrosas. Lenin, claro, não tinha opção, a não
ser se esforçar para criar o comunismo com base na configuração dada pela ordem
anterior (parte feudal e parte capitalista), e desse ponto de vista sua
aceitação da fábrica, tecnologias e formas de organização fordista como um
passo necessário na transição para o comunismo é compreensível. Ele argumentou
de modo plausível que, se a transição para o socialismo e em seguida para o
comunismo tinha de dar certo, tinha de ser, inicialmente, com base nas
tecnologias e formas de organização mais avançadas que o capitalismo tinha
produzido. Mas não houve nenhuma tentativa consciente, em particular após
Stalin assumir, de avançar para a construção de tecnologias e formas de
organização verdadeiramente socialistas, muito menos comunistas (embora tenha
feito grandes avanços na robotização e no planejamento matemático da produção
otimizada e dos sistemas de agendamento, que poderiam ter aliviado a carga de
trabalho e aumentado a eficiência se tivessem sido aplicados corretamente).
O imenso sentido
dialético de Mao de como as contradições funcionam, bem como seu
reconhecimento, em princípio pelo menos, de que uma revolução tem de ser
permanente ou nada, levou-o conscientemente a priorizar a transformação
revolucionária em esferas de atividade diferentes em variadas fases históricas.
O “Grande Salto Adiante” enfatizou a produção e a mudança tecnológica e
organizacional. Ele falhou em seus objetivos imediatos e produziu uma fome
descomunal, mas certamente teve um impacto enorme nas concepções mentais. A
Revolução Cultural procurou reconfigurar de forma radical e direta as relações
sociais e as concepções mentais do mundo. Embora seja hoje sabido que Mao
falhou miseravelmente nos dois empreendimentos, há em muitos aspectos a
suspeita de que o surpreendente desempenho econômico e a transformação
revolucionária que têm caracterizado a China desde as reformas institucionais e
administrativas iniciadas no fim dos anos 1970 repousam solidamente sobre os
resultados reais do período maoísta (em particular a ruptura com muitas
concepções mentais e relações sociais “tradicionais” nas massas na medida em que
o Partido aprofundou seu controle sobre a vida diária). Mao reorganizou
completamente a saúde na década de 1960, por exemplo, com o envio de um
exército de “médicos descalços” a regiões rurais até então negligenciadas e
empobrecidas para ensinar a base da medicina preventiva, medidas de saúde
pública e cuidados pré-natais. A redução dramática da mortalidade infantil e o
aumento da expectativa de vida que resultaram disso permitiram produzir mão de
obra excedente que alimentou o surto de crescimento da China depois de 1980.
Também levou às limitações draconianas sobre a atividade reprodutiva, com a
aplicação da política de uma criança por família. O fato de tudo isso abrir o
caminho para certo tipo de desenvolvimento capitalista é uma consequência
inesperada de enorme importância.
Como então
interpretar as estratégias revolucionárias à luz da teoria coevolucionária de
mudança social? Esta fornece um quadro para a investigação, que pode ter
implicações práticas para pensar em tudo desde as grandiosas estratégias
revolucionárias ao redesenho da urbanização e da vida na cidade. Ao mesmo
tempo, sinaliza que sempre enfrentamos contingências, contradições e
possibilidades autônomas, além de uma série de consequências inesperadas. Como
na transição do feudalismo para o capitalismo, há uma abundância de espaços
intersticiais para começar movimentos sociais alternativos anticapitalistas.
Mas existem também inúmeras possibilidades de movimentos bem-intencionados
serem cooptados ou falharem catastroficamente. Em contraste, desenvolvimentos
aparentemente negativos (como o Grande Salto Adiante de Mao ou a Segunda Guerra
Mundial, que prepararam o espaço para um rápido crescimento econômico após
1945) podem ter consequências surpreendentemente boas. Isso deve deter-nos? Na
medida em que a evolução em geral e nas sociedades humanas, em particular (com
ou sem o imperativo capitalista), não pode ser interrompida, então não temos
outra opção a não ser participar da peça. Nossa única escolha é ser ou não
consciente de como nossas intervenções atuam e estar pronto a mudar de rumo
rapidamente quando as condições se colocarem ou quando as consequências não
intencionais se tornarem mais aparentes. A adaptabilidade e a flexibilidade
evidentes do capitalismo servem aqui de modelo.
Então, onde
devemos começar nosso movimento revolucionário anticapitalista? Nas concepções
mentais? Na relação com a natureza? No cotidiano e nas práticas reprodutivas?
Nas relações sociais? Nas tecnologias e formas organizacionais? Nos processos
de trabalho? Na tomada e transformação revolucionária das instituições? Uma
sondagem do pensamento alternativo e dos movimentos sociais oposicionistas
mostraria diferentes correntes de pensamento (com frequência defendidas como
mutuamente exclusivas, infelizmente) sobre onde começar. Mas as implicações da
teoria coevolucionária aqui é que podemos começar ali ou acolá contanto que não
fiquemos no lugar de onde partimos! A revolução tem de ser um movimento em
todos os sentidos da palavra. Se não puder se mover dentro, além e através das
diferentes esferas, acabará não indo a lugar algum. Reconhecendo isso, torna-se
imperativo vislumbrar alianças entre um conjunto de forças sociais organizadas
em torno das diferentes esferas. Aquelas com um conhecimento profundo de como a
relação com a natureza funciona precisam se aliar àquelas profundamente
familiarizadas com como os arranjos institucionais e administrativos funcionam,
como a ciência e a tecnologia podem ser mobilizadas, como a vida diária e as
relações sociais podem ser mais facilmente reorganizadas, como as concepções
mentais podem ser mudadas e como a produção e o processo de trabalho podem ser
reconfigurados.”
“A produção do
espaço em geral e da urbanização em particular tornou-se um grande negócio no capitalismo.
É um dos principais meios de absorver o excesso de capital. Uma proporção
significativa da força de trabalho total global é empregada na construção e
manutenção do ambiente edificado. Grandes quantidades de capitais associados,
geralmente mobilizados sob a forma de empréstimos a longo prazo, são postos em
movimento no processo de desenvolvimento urbano. Esses investimentos, muitas
vezes alimentados pelo endividamento, tornaram-se o epicentro de formação de
crises. As conexões entre a urbanização, a acumulação do capital e a formação
de crises merecem análise cuidadosa. Desde seus primórdios as cidades
dependeram da disponibilidade de alimentos e trabalho excedentes. Tais
excedentes foram mobilizados e extraídos de algum lugar e de alguém (geralmente
de uma população rural explorada ou de servos e escravos). O controle sobre o
uso e a distribuição do excedente normalmente era mantido em poucas mãos (uma
oligarquia religiosa ou um líder militar carismático). Urbanização e formação
de classe, portanto, sempre andaram juntas. A relação geral persiste no
capitalismo, mas há uma dinâmica diferente. O capitalismo é uma sociedade de
classe que se destina à produção perpétua de excedentes. Isso significa que
está sempre produzindo as condições necessárias para a urbanização ocorrer. Na
medida em que a absorção dos excedentes de capital e o crescimento das
populações são um problema, a urbanização oferece uma maneira crucial para
absorver as duas coisas. Daí surge uma conexão interna entre a produção de excedente,
o crescimento populacional e a urbanização.”
“Como em todas as
fases anteriores, a reconstrução da geografia urbana levou a transformações no
estilo de vida. Nos Estados Unidos, essas transformações foram, em grande
parte, ditadas pela necessidade de atenuar os descontentes suburbanos dos anos
1960. A qualidade de vida urbana tornou-se uma mercadoria para aqueles com
dinheiro, assim como a própria cidade, num mundo onde o turismo, o consumismo,
o marketing de nicho, as indústrias culturais e de conhecimento, e também a
perpétua dependência em relação à economia do espetáculo, tornaram-se os
principais aspectos da economia política do desenvolvimento urbano. Com uma
economia que agora depende mais e mais do consumismo e do sentimento do
consumidor como força motriz (é responsável por 70% da economia dos EUA
contemporâneos, em comparação com 20% no século XIX), a organização do consumo
pela urbanização tornou-se absolutamente central à dinâmica do capitalismo.
A tendência
pós-moderna para a formação de nichos de mercado – nas escolhas de estilo de
vida urbana, hábitos de consumo e normas culturais – permeia a experiência
urbana contemporânea, com uma aura de liberdade de escolha, desde que se tenha
o dinheiro. Centros comerciais, cinemas multiplex e megastores proliferam (a
produção de cada um deles tornou-se um grande negócio), assim como as áreas de
fast food e lojas de artesanato, a cultura das butiques, os cafés e outros. E
isso não acontece só nos países capitalistas avançados – esse estilo de
urbanização encontra-se em Buenos Aires, São Paulo e Mumbai, bem como em quase
todas as cidades da Ásia nas quais se possa pensar. Mesmo o desenvolvimento
suburbano incoerente, sem alma e monótono que continua a preponderar em muitas
partes do mundo começa agora a ser revisto como um movimento de “novo
urbanismo”, que apregoa a venda da comunidade (supostamente íntima e segura,
assim como muitas vezes fechada) e um suposto estilo de vida butique
“sustentável” como um meio de cumprir os sonhos urbanos.
Os impactos sobre
a subjetividade política têm sido enormes. Trata-se de um mundo em que a ética
neoliberal do individualismo possessivo intenso e do oportunismo financeiro se
tornou o modelo para a socialização da personalidade humana. É um mundo que se
tornou cada vez mais caracterizado por uma cultura hedonista do excesso
consumista. Destruiu o mito (embora não a ideologia) de que a família nuclear é
a base sociológica sólida para o capitalismo e abraçou, mesmo que tardiamente e
de forma incompleta, os direitos do multiculturalismo, da mulher e da igualdade
da preferência sexual. O impacto é o maior isolamento individualista,
ansiedade, visão de curto prazo e neurose no meio de uma das maiores
realizações materiais urbanas já construídas na história humana.”
“A formação do
Estado e a concorrência interterritorial preparam o palco para conflitos de
todos os tipos, com a guerra como o último recurso. O capital, por assim dizer,
cria algumas das condições necessárias para as formas modernas da guerra, mas
as condições suficientes estão em outro lugar, dentro do aparato do Estado e
nos interesses que procuram utilizar o poder do Estado em benefício próprio
(incluindo, naturalmente, o “complexo militar-industrial” que sobrevive em
grande parte pela promoção do medo do conflito, se não pelo conflito em si).”
“Desde o início (e depois de alguns começos em falso), os Estados Unidos
deixaram de lado as práticas clássicas europeias (e depois japonesas) de
imperialismo e colonialismo, baseadas na ocupação territorial, e adotaram a
hegemonia global. Os EUA não abandonaram de todo os objetivos de controle
territorial, mas procuraram exercê-lo por meio de formas de governança local
que nominalmente preservaram a independência, mas que informal ou formalmente,
em alguns casos (como na Coreia do Sul e Taiwan), aceitaram a hegemonia dos EUA
no mundo. Isso às vezes necessitou de violência encoberta por parte dos Estados
Unidos e, certamente, produziu um conjunto de redes de relações neocoloniais,
com os Estados mais fracos e em geral menores que operavam sob a dominação dos
EUA.
Mas uma das consequências da enorme explosão de atividade financeira e
das mudanças globais na atividade produtiva que ocorreram ao longo dos últimos
trinta anos tem sido a de tornar a língua do imperialismo e do colonialismo
menos relevante do que a luta pela hegemonia. O novo imperialismo se dá pela
luta por hegemonia – hegemonia financeira, em particular, mas a dimensão
militar continua a ser de grande importância –, e não mais pelo controle direto
sobre o território.”
Para que a acumulação do
capital volte a 3% de crescimento composto será necessária uma nova base para
lucrar e absorver o capital. A forma irracional de fazê-lo, no passado, foi com
a destruição dos êxitos de eras precedentes por meio de guerra, desvalorização
de bens, degradação da capacidade produtiva, abandono e outras formas de
“destruição criativa”. Os efeitos são sentidos não apenas no mundo da produção
e comércio de mercadorias. Vidas humanas são afetadas e até fisicamente
destruídas, carreiras inteiras e sucessos de uma vida ficam sob risco, crenças
profundas são postas em questão, mentes são feridas e o respeito pela dignidade
humana fica de lado. A destruição criativa detona o bom, o belo, o mau e o feio
do mesmo modo. Crises, pode-se concluir, são os racionalizadores irracionais de
um sistema irracional.”
“No entanto, parece haver pouco apetite para tal discussão, mesmo entre
a esquerda. Em vez disso, continuamos a ouvir os mantras convencionais de
sempre sobre o potencial de perfeição da humanidade com a ajuda dos mercados
livres e do livre-comércio, da propriedade privada e da responsabilidade
pessoal, dos impostos baixos e do envolvimento minimalista do Estado nas políticas
sociais, ainda que tudo isso soe cada vez mais vazio. Uma crise de legitimidade
se avizinha. Mas as crises de legitimação normalmente se desdobram em um ritmo
diferente do dos mercados de ações. Passaram-se, por exemplo, três ou quatro
anos antes que o crash da bolsa em 1929 produzisse o movimento social de
massa (tanto progressista quanto fascista) depois de 1932. A intensidade da
atual busca do poder político por meios para sair da crise pode ter algo a ver
com o medo político de iminente ilegitimidade. (...)
A ideia de que a crise tem origens sistêmicas é pouco debatida na
grande mídia. A maioria dos movimentos governamentais para conter a crise na
América do Norte e Europa levou à perpetuação da situação de sempre que se
traduz em apoio à classe capitalista. O “risco moral” que foi o estopim para os
fracassos financeiros está ultrapassando novos limites nos resgates a bancos.
As práticas efetivas do neoliberalismo (ao contrário de sua teoria utópica)
sempre implicaram claro apoio para o capital financeiro e para as elites capitalistas
(geralmente com base na teoria de que as instituições financeiras devem ser
protegidas a todo custo e que é dever do poder do Estado criar um ambiente
agradável para os negócios, o que resultaria em mais lucro). Fundamentalmente,
nada mudou. Tais práticas são justificadas pelo apelo à proposição duvidosa de
que uma “maré crescente” do empreendimento capitalista “levantaria todos os
barcos”, ou seja, que os benefícios do crescimento composto trariam, como em um
passe de mágica, benefícios a toda população (o que nunca acontece, exceto sob
a forma de algumas migalhas caídas das mesas dos mais abastados).
Em boa parte do mundo capitalista, passamos por um período
surpreendente em que a política foi despolitizada e mercantilizada. Apenas
agora em que o Estado entra em cena para socorrer os financistas ficou claro
para todos que Estado e capital estão mais ligados um ao outro do que nunca,
tanto institucional quanto pessoalmente. Vê-se agora claramente a classe
dominante, mais do que a classe política que age como sua subordinada,
dominando.
Então, como a classe capitalista sairá da crise atual e em quanto
tempo? O recuo dos valores nas bolsas de Xangai e Tóquio a Frankfurt, Londres e
Nova York é um bom sinal, dizem-nos, mesmo que o desemprego por toda parte
continue a aumentar. Mas notem o viés de classe dessa medida. Somos intimados a
regozijar-nos com a recuperação dos valores das ações para os capitalistas,
porque esta sempre precede, dizem, uma repercussão na “economia real”, em que
os postos de trabalho são criados e os salários, pagos. O fato de que a
recuperação do último recuo das ações nos Estados Unidos após 2002 revelou-se
uma “recuperação de desemprego” parece já ter sido esquecido. O público
anglo-saxão, em particular, parece ser seriamente atingido por essa amnésia.
Ele esquece e perdoa com grande facilidade as transgressões da classe
capitalista e os desastres periódicos que suas ações precipitam. A mídia
capitalista tem o prazer de promover essa amnésia.
Enquanto isso, os jovens tubarões financeiros receberam seus bônus do
passado e começaram a comprar coletivamente instituições financeiras para
cercar Wall Street e a City de Londres, vasculhando nos detritos dos gigantes
financeiros de ontem para resgatar os pedaços ainda bons e começar tudo de
novo. Os bancos de investimento que continuam nos EUA – Goldman Sachs e J. P.
Morgan –, apesar de reencarnados em empresas que possuem bancos, ganharam
isenção dos requisitos regulatórios (graças ao Federal Reserve) e estão tendo
lucros enormes em especulações perigosas (e deixando de lado dinheiro para
grandes bônus) com o dinheiro do contribuinte em mercados de derivativos sem
regulação e ainda em alta. O mecanismo que nos levou à crise recomeçou
claramente como se nada tivesse acontecido. Inovações nas finanças estão a
caminho na medida em que novas formas de empacotar e vender dívidas de capital
fictício são inventadas e oferecidas a instituições como fundos de pensão,
desesperadas para desembocar o excedente de capital. As ficções estão de volta!
Consórcios estão comprando propriedades em que houve despejos recentes,
seja na expectativa de o mercado voltar a ser rentável, seja para ter terra
valiosa para um momento de novo desenvolvimento ativo futuro. Pessoas ricas,
corporações e entidades apoiadas pelo Estado (no caso da China) estão comprando
várias parcelas de terra de modo surpreendente na África e América Latina,
buscando consolidar seu poder e garantir uma segurança futura. Ou trata-se de
uma nova fronteira especulativa que cedo ou tarde acabará em lágrimas? Os
bancos normais estão estocando dinheiro, boa parte colhida em cofres públicos,
também com a intenção de voltar ao pagamento de bônus compatíveis com o estilo
de vida que levavam anteriormente, enquanto um conjunto de empresários paira ao
seu redor à espera do momento oportuno de destruição criativa, apoiados por uma
enxurrada de dinheiro público.
Enquanto isso, o poder do dinheiro exercido por poucos prejudica todas
as formas de governança democrática. Os lobbies farmacêutico, de seguro
de saúde e de hospitais, por exemplo, gastaram mais de 133 milhões de dólares
no primeiro trimestre de 2009 para se certificar de que as coisas sairiam como
eles querem na reforma da saúde nos Estados Unidos. Max Baucus, chefe do Comitê
de Finanças do Senado, que formulou o projeto de lei referente aos serviços de
saúde, recebeu 1,5 milhão de dólares por um projeto de lei que oferece um vasto
número de novos clientes para as companhias de seguros, sem nenhuma proteção
contra a exploração cruel e o lucro excessivo (Wall Street está encantada).
Outro ciclo eleitoral, legalmente corrompido pelo imenso poder do dinheiro,
logo se avizinhará. Nos Estados Unidos, os partidos da “Rua K” e de Wall Street
serão devidamente reeleitos enquanto trabalhadores norte-americanos são
exortados a encontrar uma saída para a confusão que a classe dominante criou.
Já estivemos em situação igualmente precária antes, somos lembrados, e em todas
as vezes os trabalhadores norte-americanos arregaçaram as mangas, apertaram os
cintos e salvaram o sistema de algum mecanismo misterioso de autodestruição,
pelo qual a classe dominante se exime de qualquer responsabilidade. Responsabilidade
pessoal é, afinal, para os trabalhadores e não para os capitalistas.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário