quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O enigma do capital: e as crises do capitalismo (Parte II), de David Harvey

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-184-0

Tradução: João Alexandre Peschanski

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 238

Sinopse: Ver Parte I


“Todas essas “esferas de atividade” estão incorporadas em um conjunto de arranjos institucionais (como os direitos de propriedade privada e os contratos de mercado) e estruturas administrativas (o Estado e outros arranjos locais e multinacionais). Essas instituições também evoluem por conta própria, até mesmo quando são forçadas a adaptar-se a condições de crise (como acontece agora) e a mudanças nas relações sociais. As pessoas agem, além disso, de acordo com suas expectativas, suas crenças e sua compreensão do mundo. Os sistemas sociais dependem da confiança em especialistas, do conhecimento e da informação adequados daqueles que tomam decisões e da aceitação razoável dos arranjos sociais (hierárquicos ou igualitários), bem como da construção de padrões éticos e morais (vis-à-vis, por exemplo, nossas relações com os animais e nossas responsabilidades para com o mundo que chamamos de natureza, e também com aqueles que não são como nós). As normas culturais e os sistemas de crenças (ou seja, ideologias religiosas e políticas) são muito presentes, mas não existem independentemente das relações sociais de produção, das possibilidades de produção e consumo e das tecnologias dominantes. As inter-relações em conflito entre as necessidades de evolução técnica e social para a acumulação do capital e as estruturas de conhecimento e normas e crenças culturais compatíveis com a acumulação infinita têm desempenhado um papel fundamental na evolução do capitalismo. Para fins de simplificação, vou agrupar todos os últimos elementos sob a rubrica de “concepções mentais do mundo”.

Essa forma de pensar nos leva a sete “esferas de atividade” distintas na trajetória evolutiva do capitalismo: tecnologias e formas de organização; relações sociais; arranjos institucionais e administrativos; processos de produção e de trabalho; relações com a natureza; reprodução da vida cotidiana e da espécie; e “concepções mentais do mundo”. Nenhuma das esferas é dominante, e nenhuma é independente das outras. Mas também nenhuma delas é determinada nem mesmo coletivamente pelas outras. Cada esfera evolui por conta própria, mas sempre em interação dinâmica com as outras. As mudanças tecnológicas e organizacionais surgem por qualquer motivo (por vezes, acidentais), enquanto a relação com natureza é instável e muda perpetuamente apenas em parte por causa de mudanças induzidas pelo homem. Nossas concepções mentais do mundo, para dar outro exemplo, são geralmente instáveis, conflituosas, sujeitas a descobertas científicas assim como a caprichos, modas e crenças e desejos culturais e religiosos fortemente arraigados. Mudanças nas concepções mentais têm todos os tipos de consequências, intencionais e não intencionais, para as formas tecnológicas e organizacionais, as relações sociais, os processos de trabalho, as relações com a natureza e os arranjos institucionais aceitáveis. A dinâmica demográfica que surge da esfera da reprodução e da vida cotidiana é simultaneamente autônoma e profundamente afetada por suas relações com as outras esferas.

Todos os complexos fluxos de influência que se movem entre as esferas estão em perpétua reformulação. Além disso, essas interações não são necessariamente harmoniosas. De fato, podemos reconceitualizar a formação de crises em termos de tensões e antagonismos que surgem entre as diferentes esferas de atividade, por exemplo as novas tecnologias que levam ao desejo de novas configurações nas relações sociais ou perturbam a organização dos processos de trabalho existentes. (...)

Então me deixe resumir. As sete esferas de atividade coevoluem na evolução histórica do capitalismo de formas distintas. Nenhuma esfera prevalece sobre as outras, mesmo quando existe dentro de cada uma a possibilidade de desenvolvimento autônomo (a natureza se transforma e evolui independentemente, assim como as concepções mentais, as relações sociais, as formas de vida diária, os arranjos institucionais, as tecnologias etc.). Cada uma das esferas está sujeita a uma renovação e transformação permanentes, tanto na interação com as outras quanto por meio de uma dinâmica interna que cria de forma constante novidade nas questões humanas. As relações entre as esferas não são causais, mas dialeticamente interligadas pela circulação e acumulação do capital. Como tal, toda a configuração constitui uma totalidade socioecológica. Isso não é, devo enfatizar, uma totalidade mecânica, um motor social em que as peças estão estritamente de acordo com os ditames do todo. É mais como um sistema ecológico feito de muitas espécies e formas de atividade diferentes – ao que o filósofo/sociólogo francês Henri Lefebvre se refere como um “ensemble” ou o seu compatriota, o filósofo Gilles Deleuze, chama de “assemblagei” de elementos em relação dinâmica uns com os outros. Nessa totalidade ecológica, as inter-relações são fluidas e abertas, mesmo quando estão inextricavelmente interligadas umas às outras.

O desenvolvimento desigual entre as esferas e no conjunto delas produz contingências, bem como tensões e contradições (de forma bastante parecida com as mutações imprevisíveis que produzem contingências na teoria darwiniana). Além disso, é totalmente possível que desenvolvimentos explosivos em uma esfera, em um determinado tempo e lugar, assumam um papel de vanguarda. O súbito desenvolvimento de novos agentes patogênicos (por exemplo, o HIV/Aids, a gripe aviária ou a SRAS), a ascensão social de algum movimento forte por direitos trabalhistas, civis ou das mulheres, uma explosão de inovação tecnológica como no recente aumento da eletrônica e das tecnologias baseadas em chips de computador ou uma explosão estonteante de política utópica têm todos em várias épocas e lugares estado à frente do processo coevolutivo, colocando imensa pressão sobre as outras esferas, seja para levá-las a um nivelamento, seja para formar centros de recalcitrância ou resistência ativa. Uma vez que a tecnologia se tornou um negócio em seu próprio direito (como ocorreu cada vez mais a partir de meados do século XIX), às vezes uma necessidade social tinha de ser criada para que a nova tecnologia fosse usada, e não o contrário. Na indústria farmacêutica vemos nos últimos tempos a criação de novos diagnósticos de todos os tipos mentais e físicos para corresponder aos novos medicamentos (o Prozac é o clássico exemplo). A existência de uma crença dominante na classe capitalista e na ordem social de modo mais geral de que há uma solução tecnológica para cada problema e um comprimido para cada doença tem todos os tipos de consequências. O “fetiche da tecnologia”, portanto, tem um papel indubitavelmente importante na condução da história burguesa, definindo tanto suas realizações surpreendentes quanto suas catástrofes autoinfligidas. Os problemas na relação com a natureza têm de ser resolvidos por novas tecnologias em vez de revoluções na reprodução social e na vida cotidiana! Historicamente, é como se houvesse períodos em que algumas das esferas se colocam radicalmente em contradição umas com as outras. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde a busca da ciência e tecnologia parece ser suprema, parece estranho que tantas pessoas não acreditem na teoria da evolução. Por mais que a ciência da mudança climática global esteja bem estabelecida, muitos estão convencidos de que é uma farsa. Como compreender melhor a relação com a natureza em face das esmagadoras convicções religiosas ou políticas que não dão crédito à ciência? Situações desse tipo geralmente levam tanto a fases de estagnação quanto à reconstrução radical. As crises geralmente acentuam a ocorrência dessas fases. Aqui, também, as tendências de crise do capitalismo não são resolvidas, mas apenas contornadas.”

 

 

“Considere ao que essa ideia de equilíbrio pontuado se parece quando olhamos para trás, para a última fase principal da reconstrução capitalista, que ocorreu durante a crise de 1973 a 1982. Em meu livro de 2005, A Brief History of Neoliberalism [O neoliberalismo: história e implicações], tentei fazer um relato da reestruturação capitalista, que começou nesses anos. Por todo o mundo capitalista, mas particularmente nos Estados Unidos (o poder dominante indiscutível da época), o poder da classe capitalista se enfraqueceu em relação aos movimentos de trabalhadores e outros movimentos sociais, e a acumulação do capital perdeu velocidade. Os chefes das principais corporações, juntamente com os barões da mídia e as pessoas mais ricas, muitos dos quais, como os irmãos Rockefellers, eram descendentes da classe capitalista, foram para o contra-ataque. Iniciaram um movimento de reconstrução radical do nexo Estado-finanças (a desregulamentação nacional e internacional das operações financeiras, a liberação do financiamento da dívida, a abertura do mundo para a competição internacional intensificada e o reposicionamento do aparelho do Estado em relação à previdência social). O capital foi reempoderado em relação ao trabalho pela produção de desemprego e desindustrialização, imigração, deslocalização e toda sorte de mudanças tecnológicas e organizacionais (a subcontratação, por exemplo). Mais tarde foi ligado a um ataque ideológico e político sobre todas as formas de organização do trabalho nos anos de Reagan/Thatcher, e o efeito foi resolver a crise do declínio de rentabilidade e riqueza por meio da repressão salarial e da redução de prestações sociais pelo Estado. As concepções mentais do mundo foram reformuladas, na medida do possível, com o recurso aos princípios neoliberais da liberdade individual, necessariamente incorporados no livre-mercado e no livre-comércio. Isso exigiu a regressão do Estado de bem-estar social e o sucateamento progressivo do quadro regulatório que tinha sido construído no início dos anos 1970 (como a proteção ambiental). Novas formas de nicho de consumo e estilos de vida individualizados também apareceram de repente, construídos em torno de um estilo pós-moderno de urbanização (a Disneyficação dos centros das cidades e a gentrificação), além do surgimento de movimentos sociais em torno de uma mistura de individualismo egocêntrico, política de identidade, multiculturalismo e preferência sexual.

O capital não criou esses movimentos, mas descobriu formas de explorá-los e manipulá-los, tanto para fraturar as até então importantes solidariedades de classe quanto para mercantilizar e canalizar as demandas afetivas e efetivas associadas a esses movimentos em nichos de mercado. As novas tecnologias eletrônicas com amplas aplicações na produção e no consumo tiveram um enorme impacto nos processos de trabalho e na condução da vida diária para a massa da população (laptops, celulares e iPods estão por toda parte). A ideia de que as novas tecnologias eletrônicas eram a resposta aos problemas do mundo se tornou o mantra fetichista da década de 1990. E tudo isso pressagiou uma mudança tão grande nas concepções mentais do mundo com o advento de um individualismo possessivo ainda mais intenso, juntamente com a lógica do fazer dinheiro, o endividamento, a especulação financeira, a privatização de ativos do governo e a ampla aceitação da responsabilidade pessoal como norma cultural em todas as classes sociais. Estudos preliminares das pessoas apanhadas na onda de execuções hipotecárias indicam, por exemplo, que muitas delas culpam a si mesmas em vez de às condições sistêmicas por não serem capazes, por qualquer motivo, de viver de acordo com a responsabilidade pessoal implicada na casa própria. A visão do papel apropriado do Estado e do poder estatal se deslocou dramaticamente durante os anos neoliberais, e só agora está sendo desafiada na medida em que o Estado foi obrigado a intervir, após a falência do Lehman Brothers em setembro de 2008, com um apoio financeiro maciço para resgatar um sistema bancário à beira do fracasso.”

 

 

“Cada posição nesse panteão de possibilidades tem algo de importante, embora unidimensional, a dizer sobre o dinamismo socioecológico do capitalismo e da potencialidade para construir alternativas. Os problemas surgem, entretanto, quando uma ou outra dessas perspectivas é vista exclusiva e dogmaticamente como a única fonte e, portanto, o principal ponto de pressão política para a mudança. Tem sido uma história infeliz dentro da teoria social o favorecimento de algumas esferas de atividade em relação às outras. Às vezes, isso reflete uma situação em que um ou outro dos domínios – como a luta de classes ou o dinamismo tecnológico – parece estar na vanguarda das transformações que ocorrem em dado momento. Em tal situação seria grosseiro não reconhecer as forças que estão na vanguarda do desenvolvimento da mudança socioecológica nesse tempo e lugar. O argumento não é, portanto, que se deve sempre atribuir o mesmo peso às sete esferas, mas que a tensão dialética no seu desenvolvimento desigual deve sempre ser levada em conta.

O que parece menor em uma época ou em um lugar pode se tornar importante na próxima. As lutas do trabalho não estão agora na vanguarda da dinâmica política, como foram nos anos 1960 e início dos anos 1970. Muito mais atenção está focada agora na relação com a natureza do que anteriormente. O interesse contemporâneo em saber como a política do cotidiano se desenrola tem de ser bem recebido simplesmente porque não teve a atenção que deveria no passado. Agora é provável que precisemos de outra exposição sobre os impactos sociais das novas tecnologias e formas organizacionais, que no passado foram muitas vezes impensadamente priorizadas.

Todo o relato de Marx sobre o surgimento do capitalismo a partir do feudalismo pode na verdade ser reconstruído e lido em termos de um movimento coevolucionário, através e entre as sete diferentes esferas de atividade aqui identificadas. O capitalismo não suplantou o feudalismo por algum tipo de transformação revolucionária pura, repousando sobre as forças mobilizadas em apenas uma dessas esferas. Teve de crescer nos interstícios da velha sociedade e suplantá-la pouco a pouco, às vezes com força, violência, depredação e apreensão de bens, mas em outros momentos com malícia e astúcia. E, muitas vezes, perdeu batalhas contra a velha ordem, ao mesmo tempo que ganhou a guerra. Na medida em que conquistou um pouco de poder, no entanto, uma classe capitalista emergente teve de construir sua forma social alternativa inicialmente com base em tecnologias, relações sociais, sistemas administrativos, concepções mentais, sistemas de produção, relações com a natureza e padrões de vida diária como estes tinham sido constituídos na ordem feudal anterior. Foram precisos uma coevolução e um desenvolvimento desigual nas diferentes esferas para o capitalismo encontrar não apenas sua base tecnológica própria e única, mas também seus sistemas de crença e concepções mentais, suas configurações das relações sociais instáveis, mas claramente de classe, seus ritmos espaço-temporais curiosos e sua forma de vida cotidiana igualmente especial, para não falar de seus processos de produção e sua estrutura institucional e administrativa, sem os quais não era possível dizer que se tratava realmente de capitalismo.

Mesmo ao fazê-lo, carregou dentro de si várias marcas das condições diferenciais nas quais a transformação do capitalismo foi forjada. Embora muito provavelmente tenha se feito caso demais dos diferenciais entre as tradições protestantes, católicas e confucionistas em demarcar diferenças significativas na forma como o capitalismo funciona em diferentes partes do mundo, seria temerário sugerir que essas influências são irrelevantes ou mesmo insignificantes. Além disso, a partir do momento em que o capitalismo se manteve firme, envolveu-se em um movimento revolucionário perpétuo em todas as esferas para acomodar as inevitáveis tensões da acumulação do capital sem fim a uma taxa composta de crescimento. Os hábitos diários e concepções mentais das classes trabalhadoras que surgiram na década de 1990 (juntamente com uma redefinição do que constitui a relação social “classe trabalhadora”, em primeiro lugar) tiveram pouco a ver com os hábitos e gostos da classe trabalhadora da Grã-Bretanha da década de 1950 e 1960. O processo de coevolução que o capitalismo põe em movimento tem sido permanente.

Talvez um dos maiores fracassos das tentativas anteriores de construir o socialismo tem sido a relutância em se envolver politicamente em todas essas esferas e deixar a dialética entre elas abrir possibilidades, em vez de fechá-las. O comunismo revolucionário, particularmente o tipo soviético – em especial após o período de experimentação revolucionária da década de 1920 ser encerrado por Stalin – muitas vezes reduziu a dialética das relações entre as esferas a um programa de via única em que as forças produtivas (tecnologias) foram colocadas na vanguarda da mudança. Essa abordagem inevitavelmente falhou. Isso levou à paralisia, a arranjos administrativos e institucionais estagnados, transformou a vida diária em monotonia e congelou a possibilidade de explorar novas relações sociais ou concepções mentais. Não prestou atenção à relação com a natureza, com consequências desastrosas. Lenin, claro, não tinha opção, a não ser se esforçar para criar o comunismo com base na configuração dada pela ordem anterior (parte feudal e parte capitalista), e desse ponto de vista sua aceitação da fábrica, tecnologias e formas de organização fordista como um passo necessário na transição para o comunismo é compreensível. Ele argumentou de modo plausível que, se a transição para o socialismo e em seguida para o comunismo tinha de dar certo, tinha de ser, inicialmente, com base nas tecnologias e formas de organização mais avançadas que o capitalismo tinha produzido. Mas não houve nenhuma tentativa consciente, em particular após Stalin assumir, de avançar para a construção de tecnologias e formas de organização verdadeiramente socialistas, muito menos comunistas (embora tenha feito grandes avanços na robotização e no planejamento matemático da produção otimizada e dos sistemas de agendamento, que poderiam ter aliviado a carga de trabalho e aumentado a eficiência se tivessem sido aplicados corretamente).

O imenso sentido dialético de Mao de como as contradições funcionam, bem como seu reconhecimento, em princípio pelo menos, de que uma revolução tem de ser permanente ou nada, levou-o conscientemente a priorizar a transformação revolucionária em esferas de atividade diferentes em variadas fases históricas. O “Grande Salto Adiante” enfatizou a produção e a mudança tecnológica e organizacional. Ele falhou em seus objetivos imediatos e produziu uma fome descomunal, mas certamente teve um impacto enorme nas concepções mentais. A Revolução Cultural procurou reconfigurar de forma radical e direta as relações sociais e as concepções mentais do mundo. Embora seja hoje sabido que Mao falhou miseravelmente nos dois empreendimentos, há em muitos aspectos a suspeita de que o surpreendente desempenho econômico e a transformação revolucionária que têm caracterizado a China desde as reformas institucionais e administrativas iniciadas no fim dos anos 1970 repousam solidamente sobre os resultados reais do período maoísta (em particular a ruptura com muitas concepções mentais e relações sociais “tradicionais” nas massas na medida em que o Partido aprofundou seu controle sobre a vida diária). Mao reorganizou completamente a saúde na década de 1960, por exemplo, com o envio de um exército de “médicos descalços” a regiões rurais até então negligenciadas e empobrecidas para ensinar a base da medicina preventiva, medidas de saúde pública e cuidados pré-natais. A redução dramática da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida que resultaram disso permitiram produzir mão de obra excedente que alimentou o surto de crescimento da China depois de 1980. Também levou às limitações draconianas sobre a atividade reprodutiva, com a aplicação da política de uma criança por família. O fato de tudo isso abrir o caminho para certo tipo de desenvolvimento capitalista é uma consequência inesperada de enorme importância.

Como então interpretar as estratégias revolucionárias à luz da teoria coevolucionária de mudança social? Esta fornece um quadro para a investigação, que pode ter implicações práticas para pensar em tudo desde as grandiosas estratégias revolucionárias ao redesenho da urbanização e da vida na cidade. Ao mesmo tempo, sinaliza que sempre enfrentamos contingências, contradições e possibilidades autônomas, além de uma série de consequências inesperadas. Como na transição do feudalismo para o capitalismo, há uma abundância de espaços intersticiais para começar movimentos sociais alternativos anticapitalistas. Mas existem também inúmeras possibilidades de movimentos bem-intencionados serem cooptados ou falharem catastroficamente. Em contraste, desenvolvimentos aparentemente negativos (como o Grande Salto Adiante de Mao ou a Segunda Guerra Mundial, que prepararam o espaço para um rápido crescimento econômico após 1945) podem ter consequências surpreendentemente boas. Isso deve deter-nos? Na medida em que a evolução em geral e nas sociedades humanas, em particular (com ou sem o imperativo capitalista), não pode ser interrompida, então não temos outra opção a não ser participar da peça. Nossa única escolha é ser ou não consciente de como nossas intervenções atuam e estar pronto a mudar de rumo rapidamente quando as condições se colocarem ou quando as consequências não intencionais se tornarem mais aparentes. A adaptabilidade e a flexibilidade evidentes do capitalismo servem aqui de modelo.

Então, onde devemos começar nosso movimento revolucionário anticapitalista? Nas concepções mentais? Na relação com a natureza? No cotidiano e nas práticas reprodutivas? Nas relações sociais? Nas tecnologias e formas organizacionais? Nos processos de trabalho? Na tomada e transformação revolucionária das instituições? Uma sondagem do pensamento alternativo e dos movimentos sociais oposicionistas mostraria diferentes correntes de pensamento (com frequência defendidas como mutuamente exclusivas, infelizmente) sobre onde começar. Mas as implicações da teoria coevolucionária aqui é que podemos começar ali ou acolá contanto que não fiquemos no lugar de onde partimos! A revolução tem de ser um movimento em todos os sentidos da palavra. Se não puder se mover dentro, além e através das diferentes esferas, acabará não indo a lugar algum. Reconhecendo isso, torna-se imperativo vislumbrar alianças entre um conjunto de forças sociais organizadas em torno das diferentes esferas. Aquelas com um conhecimento profundo de como a relação com a natureza funciona precisam se aliar àquelas profundamente familiarizadas com como os arranjos institucionais e administrativos funcionam, como a ciência e a tecnologia podem ser mobilizadas, como a vida diária e as relações sociais podem ser mais facilmente reorganizadas, como as concepções mentais podem ser mudadas e como a produção e o processo de trabalho podem ser reconfigurados.”

 

 

“A produção do espaço em geral e da urbanização em particular tornou-se um grande negócio no capitalismo. É um dos principais meios de absorver o excesso de capital. Uma proporção significativa da força de trabalho total global é empregada na construção e manutenção do ambiente edificado. Grandes quantidades de capitais associados, geralmente mobilizados sob a forma de empréstimos a longo prazo, são postos em movimento no processo de desenvolvimento urbano. Esses investimentos, muitas vezes alimentados pelo endividamento, tornaram-se o epicentro de formação de crises. As conexões entre a urbanização, a acumulação do capital e a formação de crises merecem análise cuidadosa. Desde seus primórdios as cidades dependeram da disponibilidade de alimentos e trabalho excedentes. Tais excedentes foram mobilizados e extraídos de algum lugar e de alguém (geralmente de uma população rural explorada ou de servos e escravos). O controle sobre o uso e a distribuição do excedente normalmente era mantido em poucas mãos (uma oligarquia religiosa ou um líder militar carismático). Urbanização e formação de classe, portanto, sempre andaram juntas. A relação geral persiste no capitalismo, mas há uma dinâmica diferente. O capitalismo é uma sociedade de classe que se destina à produção perpétua de excedentes. Isso significa que está sempre produzindo as condições necessárias para a urbanização ocorrer. Na medida em que a absorção dos excedentes de capital e o crescimento das populações são um problema, a urbanização oferece uma maneira crucial para absorver as duas coisas. Daí surge uma conexão interna entre a produção de excedente, o crescimento populacional e a urbanização.”

 

 

“Como em todas as fases anteriores, a reconstrução da geografia urbana levou a transformações no estilo de vida. Nos Estados Unidos, essas transformações foram, em grande parte, ditadas pela necessidade de atenuar os descontentes suburbanos dos anos 1960. A qualidade de vida urbana tornou-se uma mercadoria para aqueles com dinheiro, assim como a própria cidade, num mundo onde o turismo, o consumismo, o marketing de nicho, as indústrias culturais e de conhecimento, e também a perpétua dependência em relação à economia do espetáculo, tornaram-se os principais aspectos da economia política do desenvolvimento urbano. Com uma economia que agora depende mais e mais do consumismo e do sentimento do consumidor como força motriz (é responsável por 70% da economia dos EUA contemporâneos, em comparação com 20% no século XIX), a organização do consumo pela urbanização tornou-se absolutamente central à dinâmica do capitalismo.

A tendência pós-moderna para a formação de nichos de mercado – nas escolhas de estilo de vida urbana, hábitos de consumo e normas culturais – permeia a experiência urbana contemporânea, com uma aura de liberdade de escolha, desde que se tenha o dinheiro. Centros comerciais, cinemas multiplex e megastores proliferam (a produção de cada um deles tornou-se um grande negócio), assim como as áreas de fast food e lojas de artesanato, a cultura das butiques, os cafés e outros. E isso não acontece só nos países capitalistas avançados – esse estilo de urbanização encontra-se em Buenos Aires, São Paulo e Mumbai, bem como em quase todas as cidades da Ásia nas quais se possa pensar. Mesmo o desenvolvimento suburbano incoerente, sem alma e monótono que continua a preponderar em muitas partes do mundo começa agora a ser revisto como um movimento de “novo urbanismo”, que apregoa a venda da comunidade (supostamente íntima e segura, assim como muitas vezes fechada) e um suposto estilo de vida butique “sustentável” como um meio de cumprir os sonhos urbanos.

Os impactos sobre a subjetividade política têm sido enormes. Trata-se de um mundo em que a ética neoliberal do individualismo possessivo intenso e do oportunismo financeiro se tornou o modelo para a socialização da personalidade humana. É um mundo que se tornou cada vez mais caracterizado por uma cultura hedonista do excesso consumista. Destruiu o mito (embora não a ideologia) de que a família nuclear é a base sociológica sólida para o capitalismo e abraçou, mesmo que tardiamente e de forma incompleta, os direitos do multiculturalismo, da mulher e da igualdade da preferência sexual. O impacto é o maior isolamento individualista, ansiedade, visão de curto prazo e neurose no meio de uma das maiores realizações materiais urbanas já construídas na história humana.”

 

 

“A formação do Estado e a concorrência interterritorial preparam o palco para conflitos de todos os tipos, com a guerra como o último recurso. O capital, por assim dizer, cria algumas das condições necessárias para as formas modernas da guerra, mas as condições suficientes estão em outro lugar, dentro do aparato do Estado e nos interesses que procuram utilizar o poder do Estado em benefício próprio (incluindo, naturalmente, o “complexo militar-industrial” que sobrevive em grande parte pela promoção do medo do conflito, se não pelo conflito em si).”

 

 

Desde o início (e depois de alguns começos em falso), os Estados Unidos deixaram de lado as práticas clássicas europeias (e depois japonesas) de imperialismo e colonialismo, baseadas na ocupação territorial, e adotaram a hegemonia global. Os EUA não abandonaram de todo os objetivos de controle territorial, mas procuraram exercê-lo por meio de formas de governança local que nominalmente preservaram a independência, mas que informal ou formalmente, em alguns casos (como na Coreia do Sul e Taiwan), aceitaram a hegemonia dos EUA no mundo. Isso às vezes necessitou de violência encoberta por parte dos Estados Unidos e, certamente, produziu um conjunto de redes de relações neocoloniais, com os Estados mais fracos e em geral menores que operavam sob a dominação dos EUA.

Mas uma das consequências da enorme explosão de atividade financeira e das mudanças globais na atividade produtiva que ocorreram ao longo dos últimos trinta anos tem sido a de tornar a língua do imperialismo e do colonialismo menos relevante do que a luta pela hegemonia. O novo imperialismo se dá pela luta por hegemonia – hegemonia financeira, em particular, mas a dimensão militar continua a ser de grande importância –, e não mais pelo controle direto sobre o território.”

 

 

“Em tempos de crise, a irracionalidade do capitalismo se torna evidente para todos. Capital e mão de obra excedentes existem lado a lado sem haver aparentemente uma forma de uni-los no meio de um imenso sofrimento humano e necessidades não realizadas. No meio do verão de 2009, um terço do equipamento de capital dos Estados Unidos esteve parado, enquanto 17% da força de trabalho estavam ou desempregados, forçados a trabalhar meio período ou “sem ânimo”. O que poderia ser mais irracional do que isso?

Para que a acumulação do capital volte a 3% de crescimento composto será necessária uma nova base para lucrar e absorver o capital. A forma irracional de fazê-lo, no passado, foi com a destruição dos êxitos de eras precedentes por meio de guerra, desvalorização de bens, degradação da capacidade produtiva, abandono e outras formas de “destruição criativa”. Os efeitos são sentidos não apenas no mundo da produção e comércio de mercadorias. Vidas humanas são afetadas e até fisicamente destruídas, carreiras inteiras e sucessos de uma vida ficam sob risco, crenças profundas são postas em questão, mentes são feridas e o respeito pela dignidade humana fica de lado. A destruição criativa detona o bom, o belo, o mau e o feio do mesmo modo. Crises, pode-se concluir, são os racionalizadores irracionais de um sistema irracional.”

 

 

“No entanto, parece haver pouco apetite para tal discussão, mesmo entre a esquerda. Em vez disso, continuamos a ouvir os mantras convencionais de sempre sobre o potencial de perfeição da humanidade com a ajuda dos mercados livres e do livre-comércio, da propriedade privada e da responsabilidade pessoal, dos impostos baixos e do envolvimento minimalista do Estado nas políticas sociais, ainda que tudo isso soe cada vez mais vazio. Uma crise de legitimidade se avizinha. Mas as crises de legitimação normalmente se desdobram em um ritmo diferente do dos mercados de ações. Passaram-se, por exemplo, três ou quatro anos antes que o crash da bolsa em 1929 produzisse o movimento social de massa (tanto progressista quanto fascista) depois de 1932. A intensidade da atual busca do poder político por meios para sair da crise pode ter algo a ver com o medo político de iminente ilegitimidade. (...)

A ideia de que a crise tem origens sistêmicas é pouco debatida na grande mídia. A maioria dos movimentos governamentais para conter a crise na América do Norte e Europa levou à perpetuação da situação de sempre que se traduz em apoio à classe capitalista. O “risco moral” que foi o estopim para os fracassos financeiros está ultrapassando novos limites nos resgates a bancos. As práticas efetivas do neoliberalismo (ao contrário de sua teoria utópica) sempre implicaram claro apoio para o capital financeiro e para as elites capitalistas (geralmente com base na teoria de que as instituições financeiras devem ser protegidas a todo custo e que é dever do poder do Estado criar um ambiente agradável para os negócios, o que resultaria em mais lucro). Fundamentalmente, nada mudou. Tais práticas são justificadas pelo apelo à proposição duvidosa de que uma “maré crescente” do empreendimento capitalista “levantaria todos os barcos”, ou seja, que os benefícios do crescimento composto trariam, como em um passe de mágica, benefícios a toda população (o que nunca acontece, exceto sob a forma de algumas migalhas caídas das mesas dos mais abastados).

Em boa parte do mundo capitalista, passamos por um período surpreendente em que a política foi despolitizada e mercantilizada. Apenas agora em que o Estado entra em cena para socorrer os financistas ficou claro para todos que Estado e capital estão mais ligados um ao outro do que nunca, tanto institucional quanto pessoalmente. Vê-se agora claramente a classe dominante, mais do que a classe política que age como sua subordinada, dominando.

Então, como a classe capitalista sairá da crise atual e em quanto tempo? O recuo dos valores nas bolsas de Xangai e Tóquio a Frankfurt, Londres e Nova York é um bom sinal, dizem-nos, mesmo que o desemprego por toda parte continue a aumentar. Mas notem o viés de classe dessa medida. Somos intimados a regozijar-nos com a recuperação dos valores das ações para os capitalistas, porque esta sempre precede, dizem, uma repercussão na “economia real”, em que os postos de trabalho são criados e os salários, pagos. O fato de que a recuperação do último recuo das ações nos Estados Unidos após 2002 revelou-se uma “recuperação de desemprego” parece já ter sido esquecido. O público anglo-saxão, em particular, parece ser seriamente atingido por essa amnésia. Ele esquece e perdoa com grande facilidade as transgressões da classe capitalista e os desastres periódicos que suas ações precipitam. A mídia capitalista tem o prazer de promover essa amnésia.

Enquanto isso, os jovens tubarões financeiros receberam seus bônus do passado e começaram a comprar coletivamente instituições financeiras para cercar Wall Street e a City de Londres, vasculhando nos detritos dos gigantes financeiros de ontem para resgatar os pedaços ainda bons e começar tudo de novo. Os bancos de investimento que continuam nos EUA – Goldman Sachs e J. P. Morgan –, apesar de reencarnados em empresas que possuem bancos, ganharam isenção dos requisitos regulatórios (graças ao Federal Reserve) e estão tendo lucros enormes em especulações perigosas (e deixando de lado dinheiro para grandes bônus) com o dinheiro do contribuinte em mercados de derivativos sem regulação e ainda em alta. O mecanismo que nos levou à crise recomeçou claramente como se nada tivesse acontecido. Inovações nas finanças estão a caminho na medida em que novas formas de empacotar e vender dívidas de capital fictício são inventadas e oferecidas a instituições como fundos de pensão, desesperadas para desembocar o excedente de capital. As ficções estão de volta!

Consórcios estão comprando propriedades em que houve despejos recentes, seja na expectativa de o mercado voltar a ser rentável, seja para ter terra valiosa para um momento de novo desenvolvimento ativo futuro. Pessoas ricas, corporações e entidades apoiadas pelo Estado (no caso da China) estão comprando várias parcelas de terra de modo surpreendente na África e América Latina, buscando consolidar seu poder e garantir uma segurança futura. Ou trata-se de uma nova fronteira especulativa que cedo ou tarde acabará em lágrimas? Os bancos normais estão estocando dinheiro, boa parte colhida em cofres públicos, também com a intenção de voltar ao pagamento de bônus compatíveis com o estilo de vida que levavam anteriormente, enquanto um conjunto de empresários paira ao seu redor à espera do momento oportuno de destruição criativa, apoiados por uma enxurrada de dinheiro público.

Enquanto isso, o poder do dinheiro exercido por poucos prejudica todas as formas de governança democrática. Os lobbies farmacêutico, de seguro de saúde e de hospitais, por exemplo, gastaram mais de 133 milhões de dólares no primeiro trimestre de 2009 para se certificar de que as coisas sairiam como eles querem na reforma da saúde nos Estados Unidos. Max Baucus, chefe do Comitê de Finanças do Senado, que formulou o projeto de lei referente aos serviços de saúde, recebeu 1,5 milhão de dólares por um projeto de lei que oferece um vasto número de novos clientes para as companhias de seguros, sem nenhuma proteção contra a exploração cruel e o lucro excessivo (Wall Street está encantada). Outro ciclo eleitoral, legalmente corrompido pelo imenso poder do dinheiro, logo se avizinhará. Nos Estados Unidos, os partidos da “Rua K” e de Wall Street serão devidamente reeleitos enquanto trabalhadores norte-americanos são exortados a encontrar uma saída para a confusão que a classe dominante criou. Já estivemos em situação igualmente precária antes, somos lembrados, e em todas as vezes os trabalhadores norte-americanos arregaçaram as mangas, apertaram os cintos e salvaram o sistema de algum mecanismo misterioso de autodestruição, pelo qual a classe dominante se exime de qualquer responsabilidade. Responsabilidade pessoal é, afinal, para os trabalhadores e não para os capitalistas.”

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