quinta-feira, 19 de abril de 2018

Desigualdades de gênero, raça e etnia – Ana Paula Comin de Carvalho (et al.)

Editora: Intersaberes
ISBN: 978-85-8212-487-1
Outros autores: Cristian J. Salaini, Débora Allebrandt, Nádia Elisa Meinerz e Nilson Weisheimer
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 176
Sinopse: A obra aprofunda a discussão sobre as desigualdades de gênero, raça e etnia. O tema é complexo e atual, e neste livro o leitor encontra reflexões sobre crenças preconceituosas, ações discriminatórias, rotulações pejorativas e condutas excludentes. Por fim, são abordadas as formas de combate às desigualdades sociais.



“Desigualdade social é um fenômeno social, cultural e histórico exterior ao indivíduo, não sendo, portanto, determinado por condições naturais, biológicas ou por herança genética. Desse modo, é necessário ter presente que ninguém nasce desigual, mas, com grande frequência, as pessoas nascem em condições desiguais.
Segundo o sociólogo Guilherme A. Galliano1, quando falamos de desigualdade social, estamos nos referindo ao fato de existirem hierarquias entre pessoas e grupos sociais, nas quais os indivíduos que ocupam posições superiores possuem vantagem em relação aos que ocupam posições inferiores. Essas vantagens ou privilégios dizem respeito às formas de acesso e distribuição de bens socialmente valorizada – a propriedade, o capital, o poder e a informação, por exemplo. Essa distribuição é sempre ordenada por norma, o que a torna um componente da estrutura de grupos e sociedades.
Tal como aqui propomos, a desigualdade social refere-se à existência de privilégios na distribuição de bens sociais, possuindo certas características básicas que passaremos a descrever:
1. A desigualdade é um fenômeno social – As desigualdades de gênero, raça e etnia não são fatores biológicos ou naturais, mas sim artificiais, no sentido de serem uma criação humana.
2. A desigualdade é um fenômeno onipresente – Pode ser verificado em todas as sociedades humanas.
3. A desigualdade adquire diferentes configurações – As desigualdades mudam de forma e de conteúdo em cada época histórica e tipo de sociedade.
4. A desigualdade influencia as condições de vida das pessoas e dos grupos sociais – Isso implica reconhecer que as desigualdades potencializam conflitos e contradições entre pessoas e coletividades distintas.”


Mecanismos de manutenção das desigualdades sociais
Conforme Galliano (1981), algumas normas que ordenam a distribuição de bens sociais consistem em leis e regras formais, como a legislação eleitoral, mas há outras informais e bastante difusas, como a moda e as regras de etiqueta. Elas geralmente atendem aos interesses daqueles que as estabelecem. Os predicados sujeitam-se às normas por causa das sanções que garantem a coercitividade destas, isto é, a sua obediência deve-se ao receio de ser penalizado ou constrangido pelos demais.”


Formas de explicação sociológica das desigualdades sociais
De acordo com Galliano (1981), as formas de explicação sociológica das desigualdades sociais podem ser divididas em três tipos: a concepção dicotômica, os esquemas de graduação e o esquema funcional.
A concepção dicotômica vê a exploração econômica como o principal fator de desigualdade. Nessa perspectiva, os indivíduos que detêm os meios de produção – burgueses – têm acesso privilegiado aos bens sociais, em detrimento daqueles que não detêm tais meios – os operários. Um exemplo de explicação sociológica nesses termos é a interpretação de Karl Marx.
Nos esquemas de graduação, um fator (a renda) ou a combinação de fatores (renda, tipo de trabalho e grau de instrução) são empregados para explicar as desigualdades socais. De acordo com esse ponto de vista, esses elementos são determinantes no que se refere ao acesso a bens sociais. A interpretação de Max Weber é um modelo dessa concepção.
No esquema funcional, a divisão social do trabalho é vista como a geradora das desigualdades sociais. A diferenciação e a especialização no âmbito do trabalho produzem desigualdades entre os membros de sociedades que antes realizavam as mesmas tarefas. Um exemplo da aplicação desse esquema é a interpretação de Émile Durkheim.”


“Outro marco no surgimento dos estudos sobre mulheres foi o livro O segundo sexo, de Simone de Beauvoir (1949), publicado entre as décadas de 1940 e 1950. Em uma célebre frase, que é tomada ainda hoje como referência tanto na academia quanto no movimento social organizado, a autora resume sua proposição: “A gente não nasce mulher, torna-se mulher”a.
Nesse sentido, a desigualdade entre homens e mulheres não pode ser pensada como algo que nasce com os indivíduos, e sim como fruto de uma imposição própria da vida em sociedade. Nessa mesma época, a antropóloga Margareth Mead3 publicou sua tese sobre a inexistência de uma relação entre o sexo biológico e o temperamento do indivíduo, com base no estudo de três diferentes grupos culturais.
Entre os grupos pesquisados por ela estavam os Arapesh da Montanha, cujo temperamento de homens e mulheres era igualmente dócil e carinhoso. Tanto os homens como as mulheres cuidavam de maneira muito afetuosa das crianças, de tal forma que elas eram o centro da vida na aldeia. Já entre os Mundugmor, tanto homens quanto mulheres eram extremamente agressivos e belicosos, não havendo espaço na sua cultura para manifestações de carinho ou afeto. As crianças, nas aldeias Mundugmor, viviam por sua própria conta, de tal modo que ninguém lhes dava atenção. Ao contrário, muitas vezes elas eram trocadas e vendidas para os inimigos em troca de outros prisioneiros adultos.
Um terceiro grupo pesquisado pela autora, à semelhança da nossa sociedade, apresentava uma diferenciação de temperamentos relacionada ao sexo. No entanto, ao contrário do que se passa conosco, entre os Tchambuli são os homens que tomam conta da casa e das crianças, tendo um temperamento mais dócil e afetuoso, enquanto que as mulheres são mais ativas em relação à produção dos meios de subsistência, responsabilizando-se pelo comércio com as outras tribos.”
a: Para uma discussão crítica sobre o mito do matriarcado, ver Bamberger2, que, deixando de lado a discussão sobre a existência ou não de tal regime devido à inexistência de provas históricas, chama a atenção para a forma como os mitos sobre o matriarcado reforçam a tese da superioridade masculina.


“Rosaldo4, por meio de revisão crítica dos estudos antropológicos em sociedades não ocidentais, constata que, em todos os povos, em maior ou menor medida, os homens desempenham papéis de maior valor cultural e detêm sempre alguma autoridade sobre as mulheres.
Buscando uma resposta para a diferenciação universal dos papéis sexuais, a autora propõe uma explicação embasada na hierarquização social do espaço ocupado em diferentes sociedades por homens e mulheres. Segundo a autora, em virtude do seu papel de mãe, a mulher estaria mais relacionada à esfera doméstica, enquanto o homem possuiria uma participação mais efetiva na esfera pública. Nesse sentido, os homens são mais valorizados socialmente porque se ocupam de uma esfera social relacionada ao poder e à autoridade. Os exemplos etnográficos apresentados servem também para relativizar a divisão entre o doméstico e o público, já que o grau dessa oposição é variável conforme o contexto cultural. Rosaldo chega à conclusão de que a desigualdade entre homens e mulheres é menor nos grupos em que o homem participa ativamente das tarefas domésticas.
Outra tese relevante, apresentada nessa coletânea, é esboçada por Nancy Chodorow, com base na reflexão sobre a socialização diferenciada de homens e mulheres. Segundo Chodorow5, as mulheres são socializadas no ambiente doméstico, em companhia das mulheres mais velhas, as quais lhes transmitem desde cedo uma série de características maternais. Nesse sentido, desde criança as mulheres aprendem as atividades do ambiente doméstico, tornando-se “pequenas mães”. Já a experiência de socialização dos homens é radicalmente oposta.
Os meninos precisam aprender a ser homens longe do ambiente doméstico, procurando companhias horizontais (meninos de sua idade) e estabelecendo laços públicos. Isso resulta em diferenças marcantes na psicologia masculina e feminina. Da mesma forma, a partir dessa socialização, o status social — a forma como cada sexo é reconhecido socialmente — das mulheres é um status atribuído, enquanto o dos homens é um status conquistado.
Sherry Ortner também propõe uma explicação para a desigualdade com base nos papéis sociais que eram atribuídos a cada sexo. Para Ortner6, enquanto a mulher desempenha funções tidas como instintivas (procriar, cuidar, nutrir a prole), ela é percebida como mais próxima de um estado de natureza. Enquanto isso, o homem é pensado como mais próximo da cultura, porque a ele são delegadas as funções de transformação da natureza em prol da vida em sociedade. Nessa equação, o polo valorizado é o da cultura e da capacidade de transcender as condições naturais e modificá-las ao seu propósito.”


“Outro autor que concorda com a tese de que a dominação masculina é um componente estrutural da sociedade é Pierre Bourdieu. Para Bourdieu7, tanto o homem quanto a mulher são produtos da dominação masculina à medida que ela cria expectativas sociais, às quais ambos estão sujeitos. Isso quer dizer que os homens também estão subjugados a uma série de expectativas de gênero, tais como o uso da força, o papel de provedores do lar, a imposição de atividade e constante disposição sexual, a recriminação de qualquer demonstração de emoção ou afetividade.
Grande parte dos homens está muito longe de corresponder a essas expectativas e sofre com a necessidade de fazê-lo. Essas imposições sociais são muito fortes porque são incorporadas pelos sujeitos por meio da socialização e passam a ser vistas como naturais. Pelo fato de homens e mulheres se socializarem e serem socializados pelos mesmos princípios, não há como considerar uns mais vítimas do que outros. (...)
Além disso, Bourdieu (1999) argumenta que a dominação masculina é uma forma de dominação eminentemente simbólica. Como tal, ela só pode ser exercida com a colaboração dos dominados. Nesse sentido, é preciso indicar o papel das próprias mulheres no reconhecimento dessa dominação masculina como legítima, à medida que elas também reproduzem as mesmas normas que as oprimem na socialização de seus filhos, tanto homens quanto mulheres. Um bom exemplo disso é a dupla moral sexual que perpassa, ainda hoje, grande parte da sociedade brasileira: para o homem, valoriza-se e espera-se que tenha o maior número possível de relações sexuais com diferentes parceiras; para a mulher, esse tipo de prática é altamente recriminado. Tanto a regra da virgindade e da fidelidade conjugal para a mulher quanto o incentivo das relações sexuais para os homens são padrões morais compartilhados por homens e mulheres. Não é apenas o homem que vai recriminar uma mulher que tem múltiplos parceiros, mas também as próprias mulheres. Da mesma forma, elas também valorizam a virilidade e a capacidade de conquista dos homens.
Considerando-se ainda o papel fundamental das mulheres como mães na socialização das crianças, pode-se dizer que elas atuam na reprodução dessa dupla moral sexual em relação aos seus filhos e filhas. Nesse sentido, a dominação masculina se perpetua na nossa sociedade porque tem as próprias mulheres como aliadas.”


“A maior parte dos escritos sobre violência de gênero aborda a questão da violência doméstica. Tais estudos foram extremamente significativos para a consolidação de um campo de estudos sobre as mulheres e as condições de opressão feminina no Brasil. Ao longo dos últimos 40 anos, essa temática foi alvo de uma série de pesquisas acadêmicas que procuraram explorar tanto as dimensões físicas quanto simbólicas de situações empíricas de violência perpetuadas contra mulheres dentro de suas casas. Essas pesquisas tinham como principal objetivo demonstrar que os fenômenos de violência não estavam relacionados apenas às características individuais dos agressores, mas refletiam uma ordem social mais ampla, que rege as relações entre homens e mulheres.
Uma das referências mais importantes para a consolidação desse campo foi a da socióloga Heleieth Saffioti e suas elaborações sobre conceito de patriarcado. Para Saffioti8, nossa sociedade é perpassada por uma ordem patriarcal de gênero, que pressupõe um projeto de dominação-exploração por parte dos homens sobre as mulheres.
A violência de gênero é uma prática autorizada, ou pelo menos tolerada socialmente, de punição a qualquer forma de desvio ou subversão das normas de gênero patriarcais. Ou seja, a capacidade de mando dos homens e o requisito de obediência das mulheres só funcionam à medida que são auxiliados pela violência física e simbólica. Isso porque a ideologia patriarcal não é suficiente para garantir a obediência dos dominados, sendo que o patriarca, ou alguém em seu nome, deve fazer valer a sua vontade por meio da violência.
Ainda segundo essa autora, a violência de gênero abrange como vítimas as mulheres, as crianças e os adolescentes de ambos os sexos, e é, em geral, perpetrada por agressores homens, ou mesmo por mulheres que desempenham a função patriarcal no lugar deles. Nesse sentido, quando as mulheres praticam a violência, não o fazem em seu nome, pois, como categoria social, elas estão destituídas de um projeto de dominação-exploração dos homens.”


“O sociólogo alemão Max Weber9 (1864-1920) mostrou que a raça, como determinante de uma aparência exterior herdada e transmissível pela hereditariedade, não interessa por si mesma ao pesquisador. Ela só adquire importância quando é sentida subjetivamente como uma característica comum e constitui, por essa razão, uma fonte da atividade comunitária, isto é, de uma ação social que repousa no sentimento dos participantes de pertencer ao mesmo grupo.
O parentesco, ou as diferenças físicas, não funda a atração ou a repulsa entre as coletividades. É por meio do estabelecimento de relações de dominação de um grupo sobre o outro que esses elementos são socialmente levados em consideração. Em outras palavras, a atração ou a repulsa são socialmente construídas pelo emprego dos mais diversos elementos.
Para Weber, tanto as disposições raciais quanto as adquiridas pelos hábitos de vida podem dar lugar a relações sociais comunitárias, não havendo, portanto, necessidade de operar-se uma distinção fundamental entre elas. Sendo assim, a raça, do mesmo modo que os costumes, pode atuar como uma das forças possíveis na formação de comunidades. Os contrastes porventura existentes têm de ser conscientemente percebidos como tais pelos agentes para criar nos participantes um sentimento de comunidade e relações associativas fundadas explicitamente nessas diferenças.
Ainda de acordo com Weber (2000), o grupo étnico se define a partir da crença subjetiva na origem comum, não sendo possível procurar sua fonte na posse de traços, quaisquer que sejam eles. O sociólogo ressalta a importância de um interesse comum que induz a ação comunitária política, sendo esta última que gera a ideia de uma comunidade de sangue. O conteúdo de uma comunidade étnica é a crença em uma honra, ou seja, a convicção da excelência de seus próprios costumes e da inferioridade dos outros.
Em suma, o que distingue, para Weber, a pertença racial da pertença étnica, é que a primeira estaria efetivamente fundada numa comunidade de origem, num parentesco biológico efetivo, ao passo que a segunda estaria baseada na crença do sentimento e da representação coletiva da existência de uma comunidade de origem. No entanto, a pertença racial não seria condição suficiente para a produção de relações comunitárias. Tal característica precisaria ser socialmente levada em consideração nas interações entre os grupos e mobilizada politicamente para fomentar sentimentos e ações comunitárias. Nessa perspectiva, não são as características físicas que determinam comportamentos ou a existência de grupos, e sim os sentidos socialmente construídos e compartilhados nas relações.
Desse modo, percebemos um importante deslocamento nos termos do debate sobre raça e etnicidade. Não se trata mais de uma simples oposição entre coletividades formadas por características morfológicas e psicológicas e outras compostas por características culturais — agora ambos os elementos não representam nada por si mesmos e podem configurar comunidades étnicas.”


“Embora sejam conceitos correlacionados, preconceito e discriminação não têm o mesmo significado. Enquanto o preconceito corresponde a um juízo de valor antecipado, a discriminação é o ato de estabelecer diferenças, distinções e separações. Em outras palavras, ela é a materialização do preconceito.”


“Qual critério devemos utilizar para definir se a distribuição de renda numa sociedade é mais ou menos justa? A distância de valores entre os que ganham mais e os que ganham menos? A renda média por indivíduo ou família? Deveríamos dar mais peso à desigualdade existente nos estratos de renda mais baixos ou mais altos? Todas essas indagações demonstram que não estamos diante de uma questão meramente técnica, mas eminentemente política, isto é, do que a sociedade considera relevante.
Dessa forma, como nos lembra Miller10, se a igualdade de oportunidades parece ser um ideal amplamente compartilhado no pensamento do século XX, a igualdade de renda é um tema muito mais controverso. Pensadores conservadores alegam que a busca da igualdade é incompatível com a liberdade, pois ela coloca em risco as bases da economia de mercado e é um esforço inútil, já que novas formas de desigualdade certamente irão surgir para substituir as que foram suprimidas.
Um exemplo disso pode ser encontrado no campo do conhecimento. Não saber ler e escrever implica um acesso muito restrito aos bens sociais. Tal desigualdade vem sendo fortemente combatida por meio de políticas estatais no campo da educação.
No entanto, com o surgimento de novas tecnologias de informação, começou a se produzir uma nova desigualdade entre aqueles que as dominam e os que não conseguem fazê-lo. Os pensadores liberais dão maior peso à igualdade de oportunidades e só aprovam a igualdade de renda na forma de um nível mínimo de provisão, ao qual cada pessoa teria direito. O salário mínimo, por exemplo, seria um mecanismo para garantir essa renda básica a cada trabalhador.
Apenas na tradição socialista a igualdade de renda se tomou um valor fundamental. Contudo, muitos socialistas argumentam em favor da maior igualdade de situação material e poucos são a favor da completa igualdade, concepção presente apenas na perspectiva comunista.
Os socialistas das democracias ocidentais, em geral, são comprometidos com um ideal de igualdade social que tem os seguintes parâmetros: as diferentes recompensas que as pessoas recebem devem corresponder às reais diferenças de esforços e capacidades; ninguém deve ter um padrão de vida abaixo de um mínimo prescrito, e o âmbito da desigualdade não deve ser tão grande a ponto de dar origem a divisões de classe.
Esse último aspecto é importante, já que, numa sociedade em que as pessoas se encontram divididas entre si por barreiras de classe social, é pouco provável que elas compreendam e sintam solidariedade pela situação das outras.
Outra questão importante é saber se até mesmo uma ideia moderada de igualdade como esta é viável em uma sociedade moderna. Supondo-se que o mercado continue a desempenhar um papel central na produção e na distribuição de bens e serviços, parece inevitável que desigualdades substanciais continuem a surgir dos sucessos e fracassos das pessoas na concorrência econômica. É muito difícil controlar diretamente tais desigualdades.
O filósofo político norte-americano Michael Walzer11 elaborou uma proposta denominada igualdade complexa. Segundo esse autor, a sociedade moderna incorpora certo número de esferas de distribuição em que diferentes bens são alocados de acordo com os critérios vigentes naquele campo específico. Se as fronteiras entre as esferas forem respeitadas, o destaque de uma pessoa na esfera econômica pode ser compensado pelo de outra na esfera social, ou de uma terceira no campo político. Desse modo, o pluralismo social poderia levar a um tipo de igualdade em que nenhuma pessoa superasse decisivamente outra. No entanto, a posição econômica exerce muita influência nas sociedades atuais, em especial na capacidade de uma pessoa obter outros bens sociais: como reputação, poder político, educação, entre outros.”


“De acordo com o etnólogo Carlos Moore Wedderburn12, o conceito de ação afirmativa teve sua origem na Índia, logo após a Primeira Guerra Mundial, antes mesmo que esse país se tornasse independente do Império Britânico. No ano de 1919, Bhimrao Ramji Ambedkar (1891-1956), jurista, economista, historiador e membro de uma casta considerada “intocável” propôs a representação diferenciada dos segmentos populacionais designados e considerados como inferiores na sociedade indiana. Para ele, isso significava instituir políticas públicas diferenciadas e constitucionalmente protegidas em favor da igualdade para todos os segmentos sociais.
Como nos lembra Wedderburn (2005), o sistema de castas indiano é uma milenar estrutura de opressão, embutida nos conceitos religiosos do hinduísmo. Ele se organiza em torno de conceitos de superioridade e inferioridade, de pureza e impureza, que envolvem critérios religiosos e sociorraciais.
Historicamente, tal sistema se articula em torno de quatro castas formais, das quais as três primeiras são consideradas superiores e a quarta, inferior, pois, segundo o hinduísmo, foi criada por Deus para servir às três castas superiores.
Ao longo do tempo, esse sistema se tornou mais complexo, com a criação de múltiplas castas subalternas fora do sistema formal, designadas intocáveis. Estas, conforme a religião hindu, por serem poluídas, devem obediência e sujeição a todas as demais castas, inclusive à casta inferior. Ainda existem populações tribais conhecidas como tribos estigmatizadas, que vivem fora do sistema de castas, relegadas ao último estágio de inferioridade.
Ainda segundo esse autor, visando romper com esse sistema milenar, Ambedkar apresentou aos órgãos coloniais britânicos a demanda pela representação eleitoral diferenciada em favor das classes oprimidas. Esse ato tornou-se um dos principais motivos dos embates ideológicos que emergiram entre os nacionalistas indianos.
Mahatma Mohandas Gandhi (1869-1948), promotor da luta pela independência da Índia e pertencente a uma casta superior, opôs-se à noção de ação afirmativa porque acreditava que qualquer tentativa de mudar o status quo entre as castas, por meio de mecanismos legais, dividiria o país e levaria a uma guerra civil entre as castas superiores e inferiores, provocando o massacre destas últimas. Ele defendia que somente uma mudança de mentalidade das castas superiores e a independência da Índia libertariam as castas inferiores. Gandhi, inclusive, ameaçou suicidar-se em público se a Grã-Bretanha adotasse os mecanismos de ações afirmativas em favor dos “intocáveis”.
Conforme Wedderburn, Ambedkar argumentava que seria impossível desmantelar o sistema de castas sem a adoção de medidas específicas que favorecessem a mobilidade social dos segmentos oprimidos. Como os dirigentes nacionalistas precisavam da totalidade do apoio dos indianos para alcançar a independência da nação, viram-se obrigados a ceder a várias exigências de Ambedkar, que reivindicava a inclusão de instrumentos de ação afirmativa na constituição da Índia independente. Em 1950, ele próprio redigiu a parte da Carta Magna indiana referente a essas questões. Os seus artigos 16 e 17 proíbem a discriminação com base na raça, casta e descendência, abolem a intocabilidade e instituem um sistema de ações afirmativas denominado reserva, ou representação seletiva, nas assembleias legislativas, na administração pública e nas redes de ensino.
Tais políticas, como aponta o autor (Wedderburn, 2005), foram fortemente combatidas pelas castas superiores, mas, apesar disso, o Estado tentou reforçá-las aumentando, em 1980, e dez anos depois, os percentuais das cotas de participação. Após décadas de ofensivas destinadas a derrubar as políticas de ação afirmativa e retirá-las da constituição, os políticos de ultradireita passaram a reclamar a implantação de cotas em favor das castas superiores.
Como o caso da Índia, analisado por Wedderburn, demonstra, as políticas de ação afirmativa, ao contrário do que geralmente se acredita, não se iniciaram nos Estados Unidos nos anos 1960, mas emergiram a partir das lutas pela descolonização após a Segunda Guerra Mundial, quando foram aplicadas com a denominação de indigenização ou nativização. (...)
Na perspectiva desse autor (Wedderburn, 2005), como resultado da luta da comunidade negra estadunidense por direitos civis, desencadeada nos anos 1950, os Estados Unidos incorporaram, na década seguinte, à sua legislação e prática social, mecanismos que surgiram do contexto de descolonização do mundo afro-asiático. A oficialização das políticas de ação afirmativa para esse segmento desencadeou novas ideias e propostas que permitiram reivindicações de outros grupos discriminados dentro do país, como os nativos estadunidenses, as mulheres, os idosos, os deficientes físicos, os homossexuais, os imigrantes, entre outros.
Para Wedderburn, a experiência dos negros estadunidenses reforçou, tanto nos EUA quanto em outros países da Europa, a luta das mulheres pela igualdade em todas as esferas da vida pública e privada. A mobilização específica destas popularizou o conceito de políticas públicas de ação afirmativa e, em especial, do mecanismo de cotas como um dos seus principais instrumentos.”


1: Introdução à sociologia, 1981.
2: O mito do matriarcado, 1979.
3: Sexo e temperamento, 2000.
4: A mulher, a cultura e a sociedade, 1979.
5: Estrutura familiar e personalidade feminina, 1979.
6: Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?, 1979.
7: A dominação masculina, 1999.
8: Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero, 2001.
9: Economia e sociedade, 2000.
10: Igualdade, 1996.
11: Spheres of justice, 1983.
12: Do marco histórico das políticas públicas de ações afirmativas, 2005.

terça-feira, 17 de abril de 2018

Contra-História do Liberalismo (Parte III) – Domenico Losurdo

Editora: Ideias & Letras
ISBN: 978-85-9823-975-5
Tradução: Giovanni Semeraro
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 400
Sinopse: Ver Parte I



“Obviamente, a carga de exclusão implícita na autoproclamação da comunidade dos livres revela-se com toda a sua força na relação com os povos coloniais. Muitas vezes, longe de ser percebida como uma contradição, a teorização e a prática da escravidão contra os excluídos reforça ulteriormente a autoconsciência orgulhosa da comunidade dos livres, que se vangloriam de estarem imunizados do espírito servil atribuído aos bárbaros por eles subjugados. É por isso que Locke pode apresentar-se como campeão da liberdade e legitimar contemporaneamente o poder absoluto que a comunidade dos livres é chamada a exercer sobre os escravos negros. Em 1809 Jefferson celebra os Estados Unidos como “um império pela liberdade”, fundado sobre uma Constituição que garante o “autogoverno”32. Quem assim se expressa é um proprietário de escravos, que exerce o poder sobre os seus escravos com brutalidade, vendendo conforme a necessidade como peças ou mercadorias separadas os diversos membros da família de sua propriedade; e ele se abandona a essa celebração em uma carta enviada a um outro proprietário de escravos, que acabou de tomar o seu lugar na presidência dos Estados Unidos. A Constituição apontada como modelo consagra o nascimento do primeiro Estado racial, enquanto o autogoverno aqui celebrado garante aos proprietários de escravos do Sul o gozo legítimo da sua propriedade sem interferências do governo federal.
A passagem da escravidão hereditária à semiescravidão, sempre contra povos coloniais, não produz mudanças radicais no quadro de conjunto. Embora em formas diferentes, reapresenta-se o fenômeno que já conhecemos: grandes autores como John S. Mill, Tocqueville, Lecky, denunciando com paixão o despotismo monárquico ou jacobino e saudando ao mesmo tempo com entusiasmo o despotismo contra povos coloniais. Trata-se de uma relação de poder que, ao longo de todo um período histórico, longe de ser combatida ou contida, deve ser difundida e generalizada: uma vez que “um despotismo vigoroso” é o único método capaz de elevar a um nível superior os povos atrasados ou os “bárbaros”; são de interesse da civilização e da paz as conquistas coloniais, que portanto devem ser estendidas até abarcar o globo inteiro; “o "despotismo direto dos povos avançados” sobre os atrasados é já “a condição normal”, mas esta deve tornar-se “geral”33.
A autoconsciência da comunidade dos livres é tão orgulhosa e segura de si que chega a desafiar sem problemas as provenientes possíveis desmentidas da história ou da análise empírica da sociedade. Nos anos da monarquia de julho Tocqueville, desapontado, toma consciência de um fato desconcertante: no mundo islâmico e em “todo o Oriente” a escravidão apresenta-se em forma mais “suave” que no Ocidente; e, todavia, a Tunísia preocupou-se em abolir esse instituto, que ao contrário continua a subsistir nas colônias da França liberal (e na América democrática)34. É muito significativo o balanço histórico traçado por John S. Mill depois da guerra de Secessão: nos Estados Unidos tem sido abolida só uma “escravidão sem esperança de resgate”, que comportava a “degradação do intelecto” e que às vezes aplicava “penas graves” àquele que tivesse ousado “ensinar a ler a um escravo”. Ainda pior — acrescenta o liberal inglês — era a situação, na época do comércio dos negros, “nas nossas colônias escravistas”, onde os escravos na prática eram condenados a trabalhar até a morte, para serem rapidamente substituídos mediante a “importação” de outros desventurados, destinados também a um rápido consumo. Nas colônias inglesas e nos Estados Unidos por muito tempo tem se alastrado uma escravidão com características particularmente repugnantes e em grande parte desconhecidas “no mundo antigo e no Oriente”35. Aqui, parece ser percebido ou intuído o fenômeno do parto gêmeo de liberalismo e escravidão-mercadoria em base racial. E, no entanto, como Tocqueville, nem John S. Mill tem dúvidas sobre a perfeita correspondência do Ocidente e a causa da liberdade e sobre o direito do primeiro de exercer o despotismo também sobre os povos islâmicos.
O liberal inglês não tem dificuldade em interpretar a guerra do ópio como uma cruzada pela liberdade de comércio e pela liberdade enquanto tal: “a proibição de importar ópio na China” viola a “liberdade [...] do comprador, muito mais que “do produtor ou do vendedor”36. Por outro lado, a lição dada aos “bárbaros” chineses só pode ser salutar. Não é o caso então de usar sutilezas sobre as formas: são “ridículos” os “apelos à humanidade e ao espírito cristão a favor de canalhas (ruffians), e à lei internacional a favor de um povo que não reconhece lei alguma da guerra”37. Estamos em 1857-58: nesse momento, sem mencionar a sorte dos coolies, na Índia e na Inglaterra se mancha da “barbárie” de que fala Tocqueville a propósito da repressão da revolta dos sepoys; na China dá um apoio decisivo para a liquidação da tentativa dos Taiping de derrubar a autocrática e decrépita dinastia Manchu; na Irlanda continua a estender um domínio feroz (“em país nenhum tenho visto tantos gendarmes” — observa Engels)38; enfim, no tocante aos Estados Unidos, a Inglaterra contribui para as fortunas do Sul, absorvendo grande parte do algodão produzido graças ao trabalho dos escravos negros. Contudo John S. Mill não tem dúvidas: o seu país promove a causa da liberdade no mundo, impondo à China com a força das armas a importação do ópio produzido na Índia sempre pela iniciativa da potência colonial!
Quando eclode a revolta dos sepoys na Índia, Tocqueville não esconde que aos “massacres dos bárbaros” indianos seguem “as barbáries dos civilizados”39. Mas isso não lhe impede de chegar a uma conclusão maniqueísta: “estes indianos são animais tão brutos quanto ferozes”; a sua vitória significaria “a restauração da barbárie”, a vitória dos “selvagens” e a derrota do “único país da liberdade política que ainda existe na Europa”40. A aspiração dos chineses ou dos indianos para conservar ou recuperar a independência nacional, o desejo de livrar-se do domínio colonial sequer são levados em consideração. Pelo fato de apresentar-se como representante exclusiva da causa da liberdade, a comunidade dos livres interpreta os desafios que a todo momento é obrigada a enfrentar como sendo ataques à liberdade, expressões de espírito servil, além de barbáries.
Macaulay reconhece que os colonos ingleses na Irlanda se comportam como os espartanos em relação aos hilotas: estamos na presença de uma “raça de soberanos” ou de uma “casta soberana”, que exerce um poder absoluto sobre os seus “escravos”41. Nem por isso despontam dúvidas sobre o direito que a livre Inglaterra tem de exercer a ditadura sobre os bárbaros das colônias. É uma ditadura que pode assumir as formas mais cruéis. Macaulay descreve com eficácia de que maneira age o governador da Índia, Warren Hastings, quando, em um momento difícil para a Inglaterra, já empenhada na luta contra os colonos americanos rebeldes e os seus aliados franceses, ele é chamado a enfrentar a população nativa da colônia: 
“Começou um reino de terror, um terror acrescido de mistério: o que precisava sofrer era menos horrível do que devia se temer. Ninguém sabia o que podia esperar desse estranho tribunal [...]. Ele era formado por juízes, nenhum dos quais tinha familiaridade com os costumes de milhões de pessoas sobre as quais se atribuía uma ilimitada autoridade. Os seus documentos estavam escritos com letras desconhecidas, as suas sentenças pronunciadas com sons desconhecidos. Ao redor de si havia já reunido um exército constituído pela pior parte da população nativa”.
Então, começa a desencadear-se uma onda de prisões sem um motivo de imputação e sem poupar sequer os anciãos da “mais venerável dignidade”. É uma orgia de violência que não respeita os santuários e desencadeia os instintos mais bestiais: há indianos que “derramam o seu sangue no vão da porta, enquanto procuram defender, de espada na mão, os sagrados apartamentos das suas mulheres”. Em conclusão: “Todas as injustiças dos opressores passados, asiáticos ou europeus, apareciam como uma bênção comparadas à justiça da Corte Suprema”.
E, no entanto, depois dessa descrição tão horripilante, Macaulay conclui que, por ter salvo a Inglaterra e a civilização, Hastings merece “grande admiração” e deve ser colocado entre “os homens mais eminentes da nossa história”42.”
32 Jefferson, 1995, vol. III, p. 1585-86 (carta a J. Madison, 27 de abril de 1809). / 33 Mill, 1972, p. 382 (= Mill, 1946, p. 291). / 34 Tocqueville, 1951, vol. III, t. 1, p. 330. / 35 Mill, 1983, p. 391-93 (livro II, cap. 5). / 36 Mill, 1972, p. 151 (= Mill, 1981, p. 130). / 37 Mill, 1963-91, vol. XV, p. 528 (carta a E. Chadwick, 13 de março de 1857). / 38 Marx, Engels, 1955-89, vol. XXIX, p. 56 (carta a Marx, 23 de maio de 1856). / 39 Tocqueville, 1951, vol. VIII, t. 3, p. 496 (carta a (G. de Beaumont, 17 de agosto de 1857). / 40 Tocqueville, 1951, vol. XVIII, p. 424 (carta a A. de Circout, 25 de outubro de 1857). / 41 Macaulay, 1986, p. 301-303. / 42 Macaulay 1850, vol. IV, p. 273-74, 266, 300-301.


“Após ter depurado o terreno da hagiografia, na reconstrução da história do liberalismo, convém partir do slogan agitado pelos rebeldes (na luta pela independência da Inglaterra): “Não queremos ser tratados como negros”. A revolta começa por um lado reivindicando a igualdade, por outro lado reafirmando e aprofundando ainda mais a desigualdade. As duas reivindicações estão inseparavelmente entrelaçadas: pelo fato de instituir uma nítida superioridade em relação aos peles-vermelhas, os colonos se sentem perfeitamente iguais aos homens de bem e aos proprietários de Londres, e exigem que essa igualdade seja reconhecida e consagrada em todos os níveis. Não é muito diferente a dialética que depois desagua na Gloriosa Revolução. Vimos um expoente do protoliberalismo inglês reivindicar, contra as interferências do poder monárquico, o gozo tranquilo dos próprios bens e dos próprios servos. Longe de colocá-las em discussão, a “verdadeira liberdade” consagra as relações existentes de servidão (e, nas colônias, de escravidão), enquanto partes de uma inviolável esfera privada. A igualdade que os proprietários reivindicam em relação ao soberano, que na prática pode ser apenas um primus inter pares, anda de mãos dadas com a reificação dos servos que acabam sendo assimilados aos outros objetos de propriedade. É por isso que liberalismo e escravidão-mercadoria em base racial emergem juntos no âmbito de um parto gêmeo.”


Realização do governo da lei no âmbito do espaço sagrado e aprofundamento do abismo em relação ao espaço profano
No início, o liberalismo expressa a autoconsciência de uma classe de proprietários de escravos ou de servos que vai se formando enquanto o sistema capitalista começa a emergir e a se afirmar graças também àquelas práticas impiedosas de expropriação e opressão, postas em marcha na metrópole e acima como “acumulação capitalista originária”41. Contra o despotismo e o gozo monárquico e o poder central essa classe reivindica o autogoverno e o gozo tranquilo da sua propriedade (inclusive a de escravos e servos), tudo em nome do governo da lei, da rule of law. Podemos então dizer que o liberalismo é a tradição de pensamento caracterizada mais do que pela celebração da liberdade ou do indivíduo, pela celebração daquela comunidade dos indivíduos livres que define o espaço sagrado.
Não por acaso, os países clássicos da tradição liberal são aqueles nos quais, por meio do puritanismo, o Antigo Testamento interferiu mais profundamente. Isso vale já para a revolução holandesa ou, pelo menos para os bôeres de origem holandesa, que se identificam com o “povo eleito” 42. E vale ainda mais para a Inglaterra: a partir particularmente da Reforma, os ingleses se consideram o novo Israel, “o povo investido pelo Onipotente de uma missão ao mesmo tempo particular e universal”43. Essa ideologia e essa consciência missionária se propagam, mais enfatizadas, no outro lado do Atlântico. Basta pensar em Jefferson, o qual propõe que o brasão dos Estados Unidos represente os filhos de Israel guiados por um feixe de luz44. E novamente se faz sentir em toda a sua radicalidade a distinção entre espaço sagrado e espaço profano.
No Antigo Testamento caro à elite dominante, que ama identificar-se com o povo eleito que conquista Canaan e aniquila os seus habitantes ou que recruta os seus escravos entre os gentis, agem duas rigorosas e drásticas delimitações. O antropocentrismo separa nitidamente da natureza circunstante o mundo humano, no interior do qual o papel absolutamente privilegiado ou único é reservado ao “povo eleito”. O espaço sagrado, a minúscula ilha sagrada, resulta assim delimitado de maneira muito nítida em relação ao ilimitado espaço profano: poder-se-ia dizer que, fora do povo eleito, tudo propende a reduzir-se à natureza dessacralizada, no âmbito da qual acabam entrando também as populações condenadas por Javé a serem canceladas da face da terra. O extermínio se abate sobre “homens e mulheres, crianças e velhos, até bois, ovelhas e burros” ou, com expressões de maior pregnância, atinge “todo ser vivente”, “todo vivente” (Josué, VI, 21; X, 35; X, 40), “todos os habitantes da terra e toda a germinação do solo” (Gen., XIX, 25). No âmbito do espaço propriamente profano não parece emergir ou desempenhar uma função de destaque a distinção entre homem e natureza.
Mas a exclusiva limitação do espaço sagrado desempenha também uma função enormemente positiva. No âmbito do povo eleito valem regras precisas, pode haver lugar para a servidão, mas não para a escravidão propriamente dita. À distância de milênios esse é o ponto de vista de Locke que, evocando de maneira explícita o Antigo Testamento, faz a distinção entre servidão dos trabalhadores assalariados (nas metrópoles) e escravidão nas colônias. E a continuidade resulta ainda mais impressionante se levarmos em consideração que destinados à escravidão são os negros, que a teologia e a ideologia da época considera os descendentes de Cam e Canaan condenados para sempre por Noé, conforme nos informa o Gênesis, a carregar os grilhões.
Chegamos assim a um resultado paradoxal, pelo menos em relação à ideologia dominante. O Ocidente é ao mesmo tempo a cultura que com maior rigor e eficácia teoriza e pratica a limitação do poder, e que com maior sucesso e em escala mais ampla se dedicou ao desenvolvimento da chattel slavery, o instituto que implica a total aplicação do poder do dono sobre os escravos reduzidos a mercadoria e “natureza”. E esse paradoxo se manifesta de maneira particularmente clamorosa exatamente nos países de mais consolidada tradição liberal.
Certamente, já no âmbito do hebraísmo o pathos exclusivo do espaço sagrado tende a assumir as formas de um universalismo que às vezes se apoia sobre a subjugação (ou aniquilação) dos profanos, e outras vezes sobre a sua cooptação. A absoluta transcendência de Javé estimula, como aparece evidente particularmente no hebraísmo pós-exílio, um processo de desnaturalização da dicotomia espaço sagrado/espaço profano. A mobilidade da fronteira, e portanto a possibilidade de operar cooptações dentro do espaço sagrado e da civilização, vale ainda mais para os puritanos e a tradição liberal, que herdam o hebraísmo filtrado pelo cristianismo. Por outro lado, a ampliação mesmo parcial do espaço sagrado é a resposta obrigatória às lutas conduzidas pelos excluídos, que frequentemente do Antigo Testamento extraem um motivo diverso e contraposto em relação ao preferido pela elite dominante: se inspiram na história do povo reduzido à escravidão em terra estrangeira e que consegue finalmente libertar-se do domínio do Faraó. E a ideologia que inspira a revolta dos escravos estourada em 1800 na Virgínia e dirigida por um chefe que se comporta como novo Moisés45. É por essa capacidade dos escravos de extrair elementos de revolta da própria cultura dominante, que os proprietários olham com desconfiança também para a instrução religiosa.”
41 Marx, Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 751-752, 779-81 e passim. / 42 Noer, 1978, p. 21. / 43 Poliakov, 1987, p. 55. / 44 Cf. Losurdo, 1993, cap. 3, § 9. / 45 Jordan, 1977, p. 393.


“Mais tarde, a partir da Comuna de Paris dissemina-se em todo o Ocidente liberal a tendência a recolocar em discussão não apenas as concessões democráticas arrancadas pelas massas populares mas o próprio governo da lei. Nos Estados Unidos Theodore Roosevelt enuncia um método muito sumário para acabar com greves e conflitos sociais: “é possível suprimir os sentimentos que agora animam uma grande parte do nosso povo, prendendo dez dos seus chefes, colocando-os [...] contra uma parede e fuzilando-os”20.
Essas tendências chegam a uma ulterior radicalização após a revolução de outubro. Então, pode-se compreender muito bem o golpe de Estado fascista Itália em 1922. Os que o apoiam, por um período de tempo mais ou menos prolongado, são inumeráveis personalidades que se declaram liberais e até pensam em recuperar o liberalismo autêntico. É o caso de Luigi Einaudi, o qual saúda a volta do “liberalismo clássico”. Por algum tempo, também Croce olha com simpatia para a tentativa de voltar para o “liberalismo puro”, que não deve ser confundido com o insano “liberalismo democrático”. Ainda em 1929, ao subscrever implicitamente a condenação feita por Mussolini de todo “regime demoliberal”, Antonio Salandra se define “antigo liberal de direita (sem demo)”21.
Como é possível observar, a atitude benévola diante do golpe de Estado não se explica só com a aguda crise social e política do momento; trata-se ao contrário de cancelar ou de redimensionar de forma mais ou menos drástica as concessões democráticas arrancadas pelo movimento popular à sociedade liberal. Quando ainda vigorava a belle époque, em 1909, Einaudi retratara o imposto progressivo como uma espécie de “banditismo organizado para roubar o dinheiro dos outros mediante o Estado”22. Ora, Mussolini se apressa a acabar com esse “banditismo”, atraindo assim o aplauso de não poucos liberais. Nas décadas anteriores Pareto desenvolvera, enquanto liberal, uma dura polêmica contra o “mito” do Estado social, concordara com as posições de Spencer e Maine e dera a sua adesão, sempre como liberal, à Liberty and Property Defense League23; em 1922-23 ele pode respirar aliviado pelo golpe de Estado que finalmente afugenta as ameaças, se não a liberdade, em todo caso à propriedade.
Ao contrário, exclusivamente ao estado de exceção parece fazer referência Mises quando, em 1927, aponta no esquadrismo fascista um “remédio momentâneo ditado pela situação de emergência” e adequado à tarefa da salvação da civilização europeia”24. Na realidade, cinco anos antes, após ter se distanciado das contaminações democráticas e até socialistas que o liberalismo havia sofrido na Inglaterra, ele havia trovejado contra o “destruicionismo”, a “política destruicionista” e o “terrorismo” dos sindicatos e das suas greves25: graças a Mussolini na Itália tudo isso havia terminado. Resta o fato de que em um livro já no título dedicado à celebração do liberalismo se pode ler um elogio enfático do golpe de Estado que, embora com métodos violentos, havia salvado a civilização: “o mérito adquirido desta forma pelo fascismo viverá eternamente na história”26.
20 Hofstadter, 1960, p. 216. / 21 Cf. losurdo, 1994, cap. 2, §1. / 22 Einaudi, cit. in Favilli, 1984, p. 106-107. / 23 Veja-se em particular Pareto, 1966, p. 224-25; Mackay, 1981, p. VII e XII (no que diz respeito à adesão de Pareto à League). / 24 Mises, 1927, p. 45. / 25 Mises, 1922, p. 469ss. / 26 Mises, 1927, p. 45.


“Obviamente, nesse âmbito o caso mais clamoroso é constituído pela secessão do Sul dos Estados Unidos, posta em marcha agitando palavras de ordem liberais em defesa do direito natural ao autogoverno e ao gozo tranquilo da propriedade. A vitória militar do Norte não encerra o conflito. Contra a fugaz implementação da democracia multirracial os seguidores da supremacia branca reagem imediatamente não apenas com os linchamentos e com o terrorismo antinegro promovidos pelo Ku Klux Klan, mas recorrendo à guerrilha e à violência armada. Em 1874, no Sul circula um apelo para fundar Ligas Brancas de modo a neutralizar com todos os meios as tentativas do Congresso para tornar efetiva a participação dos negros: “a nossa guerra [será] ininterrupta e impiedosa”28. Em conclusão: “tal como a luta de 1861 a 1865 foi uma guerra civil, assim foi o conflito de 1856 a 1877, e foi uma guerra civil conduzida com a mesma aspereza e o mesmo ódio, apenas com menor derramamento de sangue”29.”
28 Hofstadter (org.), 1958-82, vol. III, p. 43-44. / 29 Franklin, 1983, p. 290.


“Mas, nesse contexto, é acima de tudo interessante o fato de que não poucos estudiosos estadunidenses, para explicar a história do seu país, recorram à categoria de “democracia para o povo dos senhores” ou de Herrenvolk democracy, com uma eloquente mistura linguística de inglês de um lado e de alemão de outro, e de um alemão que remete por muitos aspectos à história do Terceiro Reich.
Não apenas o universo de concentração no seu conjunto, mas também cada uma das instituições totalitárias do século XX começaram a delinear-se muito antes do fim da presumida belle époque. Convém partir da deportação. As sucessivas, sangrentas deportações dos índios, começando com a realizada pela América de Jackson (apontada como modelo de democracia por Tocqueville), evocam os “horrores provocados pelos nazistas com o tratamento infligido por eles aos povos subjugados”70. Os peles-vermelhas não são as únicas vítimas dessa prática. O comércio dos negros representa “o mais maciço deslocamento involuntário de seres humanos de toda a história71. Os deportados são obrigados a trabalhar em uma plantação escravista, que apresenta analogias com o campo de concentração72. A comparação não deve parecer exagerada. É nesse âmbito que o processo desumanização alcançou picos dificilmente igualáveis. Na Jamaica, no império liberal britânico de meados do século XVIII, observamos a prática de um tipo de punição por si eloquente: “um escravo era obrigado a defecar na boca do escravo culpado, que depois era costurada por quatro ou cinco horas”73. Também os companheiros totalmente inocentes eram obrigados a fazer parte da desumanização da vítima e, com ela, do grupo étnico de pertencimento. Se tudo isso não fosse parecer suficientemente cruel, se pense então nos métodos com os quais, entre o fim do século XIX e o início do século XX, é imposta nos Estados Unidos a supremacia branca:
“Notícias dos linchamentos eram publicadas nas folhas locais e vagões suplementares eram acrescidos aos trens para espectadores, às vezes milhares, provenientes de localidades a quilômetros de distância. Para poder assistir ao linchamento, as crianças podiam ter o dia livre das escolas. O espetáculo podia incluir a castração, o esfolamento, a assadura, o enforcamento, os golpes de arma de fogo. Os souvenires para compradores podiam incluir os dedos das mãos e dos pés, os dentes, os ossos e até os genitais da vítima, assim como postais ilustrados do evento.”74
Novamente nos deparamos com um processo de desumanização difícil de ser igualado.
Antes no Norte e depois, com o fim da guerra de Secessão, no Sul, os negros em teoria “livres” sofrem humilhações e persecuções de todo tipo, tornam-se até alvo — ressalta um historiador recorrendo a uma linguagem que mais uma vez exige a nossa atenção — de verdadeiros “pogrom”75. Estes são praticados por bandos já ativos no Norte nos anos 20 e 30 do século XIX e que, mais tarde, no Sul assumem uma forma acabada no Ku Klux Klan, uma organização que parece antecipar as “camisas pretas” do fascismo italiano e as “camisas marrons” do nazismo alemão76. Não menos brutal que a violência extralegal é a justiça oficial: no Sul os negros continuam a serem submetidos a um sistema penitenciário tão sádico que leva a pensar nos “campos de concentração da Alemanha nazista”77.
O que associa as duas situações é em todo caso a violência da ideologia racista. Theodore Roosevelt pode ser tranquilamente aproximado a Hitler78. Para além das personalidades individuais convém não perder de vista o quadro geral: “Os esforços para preservar a ‘pureza da raça’ no Sul dos limados Unidos antecipavam alguns aspectos da perseguição desencadeada pelo regime nazista contra os hebreus nos anos trinta do século XX”.
70 Assim William T. Hagan, reportado com consenso por Hauptman, 1995, p. 5. / 71 Davis, cit. in Wood, 2004, p. 43. / 72 Elkins, 1959. / 73 Wood, 2004, p. 43. / 74 Woodward, 1998, p. 16 / 75 Brown, 1975, p. 30. / 76 MacLean 1994, p. 184 / 77 Fletcher M. Green, cit. in Woodward, 1963, p. 207. / 78 Van den Berghe, 1967, p. 13; Dyer, 1980, p. XIII.


Depois da catástrofe e além da hagiografia: a herança permanente do liberalismo
O horror do século vinte não é algo que irrompe repentinamente e de fora um mundo de convivência pacífica. Por outro lado, não se contentar com o quadro edificante da hagiografia usual para se colocar no terreno do real, com as suas contradições e os seus conflitos, não significa de modo algum não reconhecer os méritos e os pontos de força da tradição de pensamento aqui objeto de indagação. Claro, é necessário abandonar de uma vez por todas o mito da passagem gradual e pacífica, a partir de motivações e impulsos puramente internos, do liberalismo à democracia, isto é, do gozo generalizado da liberdade negativa ao reconhecimento em escala cada vez mais ampla dos direitos políticos.
Resta claro que resulta totalmente imaginário o pressuposto deste discurso: a comunidade dos livres se afirma reivindicando para si ao mesmo tempo a liberdade negativa e positiva, e excluindo de ambas, seja as populações de origem colonial, seja os semiescravos e os servos da metrópole. Mas aqui, gostaria de mostrar o valor de uma série de razões, que apresento em ordem de importância crescente.
Em primeiro lugar, não se deve esquecer que os clássicos da tradição liberal não apenas falam com frieza, hostilidade e às vezes com aberto desprezo da democracia, mas consideram o seu advento como uma ruptura arbitrária e intolerável do pacto social e, portanto, como uma causa legítima de “apelo ao céu” (nas palavras de Locke), isto é, às armas.
Em segundo lugar, deve ser levado em consideração que as cláusulas de exclusão foram superadas não de forma indolor, mas por meio de convulsões violentas e às vezes de violência inaudita.
A abolição da escravidão na esteira da guerra de secessão custou aos Estados Unidos mais vítimas do que a soma dos dois conflitos mundiais. No tocante a discriminação censitária, para o seu cancelamento deu uma contribuição decisiva o ciclo revolucionário francês. Enfim, em grandes países como a Rússia, a Alemanha, os Estados Unidos o acesso das mulheres aos direitos políticos tem atrás de si as convulsões bélicas e revolucionárias do início do século XX.
Em terceiro lugar, além de não ser indolor, o processo histórico culminado no advento da democracia não é absolutamente linear. À emancipação, isto é, à aquisição de direitos anteriormente não reconhecidos e não gozados, pode muito bem se seguir uma desemancipação, ou uma privação dos direitos dos quais os excluídos haviam arrancado o reconhecimento e o gozo. Afirmado na França na trilha da revolução de fevereiro de 1848, o sufrágio universal (masculino) é cancelado dois anos depois pela burguesia liberal, e logo depois é reintroduzido em decorrência não de um processo de amadurecimento do liberalismo mas do golpe de Estado de Luís Napoleão, do qual se serve para a encenação do rito da aclamação plebiscitária. Nesse âmbito o exemplo mais clamoroso nos é fornecido pelos Estados Unidos. O fim da guerra de Secessão inaugura o período mais feliz na história dos afro-americanos, os quais agora conquistam os direitos civis e políticos e passam a fazer parte dos organismos representativos. Mas, trata-se de uma espécie de breve intervalo da tragédia. O compromisso que ocorre em 1877 entre brancos do Norte e do Sul comporta para os negros a perda dos direitos políticos e, muitas vezes dos próprios direitos civis, como é testemunhado pelo regime de segregação racial e pela violência selvagem dos pogrom e dos linchamentos. Essa fase de desemancipação, que se desenvolve no âmbito de uma sociedade que continua a se autodefinir “liberal”, dura quase um século.
Existe depois uma quarta razão. O processo de emancipação muitas vezes tem tido um impulso totalmente externo ao mundo liberal. Não se pode compreender a abolição da escravidão nas colônias inglesas sem a revolução negra de Santo Domingo, vista com horror, e muitas vezes combatida, pelo mundo liberal no seu conjunto. Aproximadamente trinta anos depois o instituto da escravidão é cancelado também nos Estados Unidos, mas sabemos que os abolicionistas mais fervorosos são acusados pelos seus adversários de serem influenciados ou contagiados por ideias francesas e jacobinas. À breve experiência de democracia multirracial segue-se uma longa fase de desemancipação marcada por uma terrorista supremacia branca. Quando acontece o momento da virada? Em dezembro de 1952 o ministro estadunidense da justiça envia para a Corte Suprema, empenhada em discutir a questão da integração nas escolas públicas, uma carta eloquente: “A discriminação racial leva água para a propaganda comunista e suscita dúvidas também entre as nações amigas a respeito da intensidade da nossa devoção à fé democrática”. Washington — observa o historiador americano que reconstrói esse acontecimento — corria o perigo de perder as “raças de cor” não apenas no Oriente e no Terceiro Mundo, mas no próprio coração dos Estados Unidos: aqui também a propaganda comunista alcançava um sucesso considerável na sua tentativa de ganhar os negros para a “causa revolucionária”, provocando neles o desmoronamento da “fé nas instituições americanas”88. Observando bem, o que coloca em crise antes a escravidão e depois o regime terrorista de supremacia branca são respectivamente a revolta de Santo Domingo e a revolução de outubro. A afirmação de um princípio essencial, se não do liberalismo, pelo menos da democracia liberal (no sentido hodierno do termo), não pode ser pensada sem a contribuição decisiva dos dois capítulos da história mais odiados pela cultura liberal da época.
Enfim, a quinta e última razão, a mais importante de todas. Refiro-me ao entrelaçamento entre emancipação e desemancipação que caracteriza cada etapa do processo de superação das cláusulas de exclusão que caracterizam a tradição liberal. Nos Estados Unidos o desaparecimento da discriminação censitária e a afirmação do princípio de igualdade política são favorecidos pela contenção quantitativa e pela neutralização política e social das “classes perigosas”, graças à expropriação e deportação dos índios (que por muito tempo permite alargar a classe dos proprietários de terra) e à escravização dos negros; na Europa a expansão do sufrágio no século XIX vai de mãos dadas com a expansão colonial e com a imposição do trabalho forçado contra os povos ou as “raças” consideradas bárbaras ou de menor idade. Esse entrelaçamento às vezes apresenta-se de maneira abertamente trágica. Objeto de humilhações, discriminações e persecuções de todo tipo no Sul, os afro-americanos procuram conquistar o reconhecimento participando em primeira linha nas guerras da União. Acontece então que em alguns ambientes começa a se homenagear a coragem demonstrada pelos soldados de cor na batalha das Wounded Knees89. Quer dizer, a esperança de emancipação dos negros passa, é obrigada a passar, pela sua participação ativa no aniquilamento dos peles-vermelhas!
No entanto, dessa própria reconstrução histórica, longe de qualquer tom apologético e edificante, emergem os méritos reais e os reais pontos de força do liberalismo. Dando prova de uma extraordinária elasticidade, este procurou constantemente responder e se adaptar aos desafios do tempo. É verdade, longe de ser espontânea e indolor, essa transformação tem sido em boa parte imposta do exterior pelos movimentos políticos e sociais com os quais o liberalismo repetida e duramente tem se chocado. Mas, exatamente nisso reside a flexibilidade. O liberalismo soube aprender do seu antagonista (a tradição de pensamento que, partindo do “radicalismo” e passando por Marx, deságua nas revoluções que de diversas maneiras nele se inspiraram) muito mais de quanto o seu antagonista tenha conseguido aprender do liberalismo. Acima de tudo, o antagonista não soube aprender o que constitui o segundo grande ponto de força do liberalismo. O processo de aprendizagem do liberalismo não é nada fácil, pelo menos para os que querem superar as cláusulas de exclusão que atravessam em profundidade essa tradição de pensamento. Nenhuma outra mais do que essa se dedicou a pensar o problema decisivo da limitação do poder. No entanto, historicamente, esta limitação do poder veio acompanhada da delimitação de um restrito espaço sagrado: ao amadurecer uma autoconsciência orgulhosa e exclusivista, a comunidade dos livres que o habita é levada a considerar legítimas a escravização ou a subjugação mais ou menos explícita, impostas à grande massa dispersa pelo espaço profano. Às vezes, chegou-se até a dizimação e ao aniquilamento. Desapareceu totalmente essa dialética em base à qual o liberalismo se transforma em uma ideologia da dominação e até em uma ideologia da guerra?
Em relação à economia: ao tomar claramente as distâncias de toda insípida utopia de uma harmonia social milagrosamente isenta de qualquer elemento de contradição, de conflito e de tensão, o pensamento liberal tem insistido com força sobre a necessidade da competição entre os indivíduos no âmbito do mercado, com a finalidade de desenvolver a riqueza social e as forças produtivas. Trata-se de um ulterior grande mérito histórico que deve ser reconhecido. Mas, também nesse nível emergiram as assustadoras cláusulas de exclusão que já conhecemos. Longe de ser o lugar onde todos os indivíduos se encontram livremente como vendedores e compradores de mercadorias, por séculos o mercado liberal tem sido o lugar da exclusão, da desumanização e até do terror. Os antepassados dos atuais cidadãos negros tinham sido mercadoria no passado, não autônomos compradores e vendedores. E por séculos o mercado tem funcionado como instrumento de terror: muito antes do chicote, o que providenciava a obediência total do escravo era a ameaça da sua venda, como mercadoria trocada no mercado separadamente dos outros membros da família90. No mercado têm sido vendidos e comprados também os servos brancos a contrato, condenados assim a uma sorte não muito diferente da reservada aos escravos negros; em nome do mercado têm sido reprimidas coalizões operárias e têm sido ignorados e negados os direitos econômico-sociais, com a consequente mercantilização de aspectos essenciais da personalidade e dignidade humana (a saúde, a instrução etc). Em casos extremos o culto supersticioso do Mercado tem determinado imensas tragédias, como a que em 1847 leva a Inglaterra a condenar à morte por inanição uma massa incalculável de indivíduos concretos (irlandeses). Tudo isso é um capítulo de história definitivamente fechado? E mais: o liberalismo deixou definitivamente para trás a dialética de emancipação/desemancipação, com os perigos de regressão e restauração nela implícitos, ou essa dialética ainda está bem viva, graças também à flexibilidade que é própria dessa corrente de pensamento?
E, no entanto, por difícil que possa ser essa operação para os que estão empenhados em superar as cláusulas de exclusão do liberalismo, assumir a herança dessa tradição de pensamento é uma tarefa absolutamente inescapável. Por outro lado, os méritos do liberalismo são importantes e evidentes demais para que haja necessidade de atribuir-lhe outros, totalmente imaginários. Faz parte desses últimos a presumida capacidade espontânea de autocorreção que frequentemente lhe é atribuída. Se partirmos desse pressuposto, torna-se totalmente inexplicável a tragédia em primeiro lugar dos povos submetidos à escravidão ou semiescravidão, ou deportados, dizimados e eliminados; trata-se de uma tragédia, que longe de ser impedida ou bloqueada pelo mundo liberal, se desenvolveu em estreita conexão com ele. Inconsistente no plano historiográfico, a hagiografia usual é também um insulto à memória das vítimas. Em contraposição às difundidas remoções e transfigurações o livro que agora chega ao final apresenta-se como uma “contra-história”: dizer adeus à hagiografia é a condição preliminar para desembarcar no terreno da história.”
88 Woodward, 1966, P. 131-34. / 89 Litwack, 1998, p. 463. / 90 Johnson, 1999, p. 19,22-23.