segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

A morte de Arthur: Rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda (Volume 2), de Thomas Malory

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-65-564-0015-0

Tradução: Maria Helena Rouanet

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 458

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Sinopse: Ver Parte I



“O gozo do amor é excessivamente breve e extremamente longo o sofrimento que ele provoca.”

 

 

“De nada valem as qualidades de um homem se não vierem acompanhadas de sabedoria.”

 

 

Quisera Deus que eu tivesse parte de suas características, e foi uma desventura eu estar enferma por ocasião desse torneio. Suponho que, em toda minha vida, nunca verei tal reunião de cavaleiros e damas como haveis visto.

Então, os dois cavaleiros contaram como Sir Palamedes foi o vencedor do primeiro dia com grande nobreza. No segundo dia, a vitória foi atribuída a Sir Tristão e, no terceiro, a Sir Lancelote. E, indagou ainda a rainha, quem se saiu melhor nos três dias de competição? Valha-me Deus!, disseram ambos. Sir Lancelote e Sir Tristão foram os que menos sofreram desonra, mas sabei que Sir Palamedes foi poderoso e se saiu muito bem, porém voltou-se contra a companhia com que havia começado e, com isso, perdeu boa parte de seu mérito, pois parece que é bastante invejoso. Então, jamais conquistará qualquer honra, observou a Rainha Guinevere, já que, se um invejoso adquire honra uma vez, se vê desonrado duas vezes. Por isso, todos os homens valorosos desgostam dos invejosos e não desejam demonstrar nenhuma boa vontade para com eles, ao passo que aquele que é cortês, amável e gentil só encontra boa vontade em toda parte.”

 

 

Foi-se embora a pé, adentrou uma floresta e, por volta da hora de prima, chegou a um morro onde havia um eremitério e um ermitão que ia celebrar uma missa. Então, Sir Lancelote se ajoelhou e implorou misericórdia a Nosso Senhor pelos seus maus atos. Terminada a missa, chamou o eremita e lhe rogou que, por caridade, ouvisse o relato de sua vida. De bom grado o farei, disse o bom homem. Sois da corte do Rei Arthur, senhor? Da companhia da Távola Redonda? Em verdade, sim. Meu nome é Sir Lancelote do Lago, de quem se fala muito bem, mas, agora, minha boa fortuna mudou, pois sou o homem mais desditoso do mundo. O ermitão o fitou longamente e se surpreendeu ao vê-lo assim, transtornado. Senhor, disse ele então, mais que ninguém, deveríeis dar graças a Deus, pois Ele vos fez ter mais honra mundana do que qualquer outro cavaleiro que hoje vive. Foi por vossa presunção, ao se pôr em Sua presença, no local onde se encontravam Sua carne e Seu sangue apesar de estar em pecado mortal, que não pudestes vê-Lo com olhos mundanos, pois Ele não quer aparecer onde estão tais pecadores, a menos que seja para lhes causar sofrimento e vergonha. Mais que qualquer outro cavaleiro, devíeis dar graças a Deus, já que Ele vos concedeu beleza, galhardia e uma grande força como a ninguém mais. Por isso, mais do que qualquer outro homem, estais obrigado a amá-Lo e a temê-Lo, uma vez que de nada vos servem vossa força e vossa valentia se Deus estiver contra vós.”

 

 

Cuidai para que vosso coração e vossa boca estejam sempre de acordo, disse o bom homem, e eu vos asseguro que tereis mais honra do que jamais tivestes na vida.”

 

 

Merlin também fez a Távola Redonda como representação da forma do mundo, pois ela representa este mundo de forma completa, já que todos, cristãos e pagãos, são por ela acolhidos e, quando são escolhidos para integrar a companhia da Távola Redonda, consideram-se mais felizes e com mais honra do que se houvessem ganhado metade da terra. Vistes que perderam seus pais e toda sua linhagem, e também esposas e filhos para fazerem parte de vossa companhia. Pudestes vê-lo por vós mesmo, uma vez que, desde que deixastes vossa mãe, não quis voltar a vê-la, por vos encontrardes entre os cavaleiros da Távola Redonda. Quando Merlin fez a Távola Redonda, disse que, por serem seus membros quem eram, através dela seria conhecida a verdade do Santo Graal. Perguntaram-lhe como poderiam saber quem se sairia melhor e levaria a cabo a demanda do Santo Graal. Ele respondeu então que havia três touros brancos que realizariam tal tarefa, dois dos quais seriam virgens, e o terceiro, casto. Disse ainda que um dos três sobrepujaria o próprio pai como o leão supera o leopardo em força e ousadia.

E aqueles que o ouviam disseram: Já que virá tal cavaleiro, deves usar tuas artes para fazer uma cadeira na qual não se sente nenhum outro homem a não ser aquele que há de sobrepujar todos os demais cavaleiros. E Merlin respondeu que assim o faria. Por isso, fez a Cadeira Perigosa, na qual Sir Galahad (filho de Lancelote) se sentou para cear no último domingo de Pentecostes.”

 

 

“Um filho não deve carregar os pecados do pai, nem o pai os pecados do filho, pois cada qual tem que levar sua própria carga.”

 

 

Quando viram a quantidade de gente que tinham matado, consideraram-se grandes pecadores. Em verdade, observou Bors, creio que, se Deus os amasse, não teríamos conseguido matá-los assim. Esses homens tanto fizeram contra Nosso Senhor que Ele não quis permitir que continuassem a reinar. Não digais isso, retrucou Galahad, pois, se agiram contra Deus, a vingança não é nossa, mas Daquele que tem poder para tanto.”

 

 

Como diz o velho refrão, é dura a batalha em que parentes e amigos se enfrentam uns aos outros, pois aí não pode haver compaixão, apenas guerra mortal.”

 

 

“Senhora, não quero ser obrigado a amar, já que o amor deve nascer do coração e não por qualquer forma de imposição. Isso é verdade, observou o rei. E o amor de muitos cavaleiros é livre em si mesmo e nunca estará vinculado ao que quer que seja, pois ali onde o amor é amarrado ele próprio consegue se desatar.”

 

 

“Passaram-se, assim, a festa da Candelária e a Páscoa. Em seguida, chegou o mês de maio, quando todos os corações vigorosos começam a florescer e a frutificar, pois, assim como as plantas e as árvores frutificam e florescem em maio, assim também o coração vigoroso, que ama de alguma forma, desabrocha e floresce em atos amorosos. Esse alegre mês de maio, mais do que qualquer outro, traz alento para todos os amantes, levando-os a se esforçar em algum sentido e por diversas causas. Nessa ocasião, as plantas e as árvores renovam o homem e a mulher, e, do mesmo modo, os amantes voltam a se lembrar de antigas doçuras, de antigas delicadezas e de muitos atos afáveis esquecidos por displicência. Pois, assim como o desvanecimento do inverno apaga e desfigura o verde verão, assim também age o amor inconstante no homem e na mulher, porque, em muitas pessoas, a constância inexiste. Vemos, diariamente, como, por um pequeno sopro desse desvanecimento do inverno, logo apagamos e afastamos o verdadeiro amor, tão valioso, por pouca coisa ou por nada. Isso não é sabedoria nem constância, mas sim fraqueza de natureza e grande desonra para quem quer que tenha semelhante atitude. Portanto, assim como o mês de maio germina e floresce em muitos jardins, do mesmo modo também ele faz florescer o coração de cada homem de mérito neste mundo, primeiro para Deus, depois para a felicidade daqueles a quem prometeu sua fé, pois nunca houve homem nem mulher de mérito que não amasse alguém mais que a todos os outros; a honra em armas jamais pode ser menosprezada, mas, em primeiro lugar, vem a honra a Deus e, em segundo, vossa dama, e, a esse amor, chamo de amor virtuoso.

Hoje em dia, porém, os homens não podem amar por sete noites seguidas, pois devem alcançar todos os seus desejos. Tal amor não tem condições de durar, pois, mal se encontram juntos e ardentes, o calor esfria. É assim que o amor se apresenta nos dias de hoje: logo se inflama e logo esfria. Isso não é constância. Mas o amor de outrora era diferente: os homens e as mulheres podiam amar-se por sete anos sem que houvesse entre eles nenhum prazer voluptuoso. Esse era o amor verdadeiro e sincero, e sabei que o amor nos tempos do Rei Arthur era dessa mesma natureza. É por esta razão que comparo o amor de hoje ao verão e ao inverno, pois um deles é quente e o outro, frio, exatamente como acontece com o amor em nossos dias. Assim, pois, todos vós que amais deveis lembrar do mês de maio, como fez a Rainha Guinevere, que menciono apenas brevemente: enquanto viveu, foi amante verdadeira e, por isso, teve um bom fim.”

 

 

“Feliz é aquele que tem um amigo fiel.”

 

 

“Para mim, o despeito é injúria maior do que qualquer dano.”

 

 

“Ai, este é o maior defeito que nós, os ingleses, possuímos: nada nos satisfaz, nem mesmo por um curto espaço de tempo.”

As crônicas de Nárnia: A cadeira de prata, de C. S. Lewis

Editora: Martins Fontes

ISBN: 978-85-7827-069-8

Tradução: Paulo Mendes Campos

Opinião: ★★★

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Páginas: 112

Sinopse: Ver Parte I


 

“– Ei, Jill, o que há com você?

Jill só fez uma careta, a careta que a gente faz quando quer dizer alguma coisa, mas sente que vai acabar chorando se falar.”

 

 

“Chorar funciona mais ou menos enquanto dura.”

 

 

“Levantou-se e olhou em torno, atenta. Nenhum sinal do Leão, mas, com tantas árvores por ali, podia ser que ele estivesse por perto. A sede era intolerável e ela juntou coragem para localizar a água. Na ponta dos pés, escondendo-se de árvore em árvore, espreitando por todos os cantos, avançou. A floresta estava tão quieta que não era difícil descobrir de onde vinha o ruído. Numa clareira corria o riacho, brilhante como um espelho. Apesar da visão da água multiplicar sua sede, não correu logo para beber. Ficou paradinha, como se fosse de pedra, boquiaberta. Motivo: o Leão estava postado exatamente à beira do riacho, cabeça erguida, patas dianteiras esticadas. Não havia dúvida de que a vira, pois olhou dentro dos olhos dela por um instante e virou-se para o lado, como se a conhecesse há muito tempo e não precisasse dar-lhe muita atenção.

Ela pensou: “Se eu correr, ele me pega; se eu ficar, ele me come.”

De qualquer forma, mesmo que tivesse tentado, não teria saído do lugar. Não tirava os olhos de cima do Leão. Quanto tempo durou isso não saberia dizer. Pareciam horas. A sede era tão forte que chegou a pensar que pouco se importaria em ser comida pelo animal, desde que desse tempo de beber um bom gole.

– Se está com sede, beba.

Eram as primeiras palavras que ouvia desde que Eustáquio falara com ela à beira do abismo. Por um segundo procurou descobrir quem falara. A voz voltou:

– Se está com sede, venha e beba.

Lembrou-se naturalmente do que dissera Eustáquio sobre os animais falantes daquele outro mundo e percebeu que era a voz do Leão. Não se parecia com a voz humana: era mais profunda, mais selvagem, mais forte. Não ficou mais amedrontada do que antes, mas ficou amedrontada de um modo diferente.

– Não está com sede? – perguntou o Leão.

– Estou morrendo de sede.

– Então, beba.

– Será que eu posso... você podia... podia arredar um pouquinho para lá enquanto eu mato a sede?

A resposta do Leão não passou de um olhar e um rosnado baixo. Era (Jill se deu conta disso ao defrontar o corpanzil) como pedir a uma montanha que saísse do seu caminho.

O delicioso murmúrio do riacho era de enlouquecer.

– Você promete não fazer... nada comigo... se eu for?

– Não prometo nada – respondeu o Leão.

A sede era tão cruel que Jill deu um passo sem querer.

– Você come meninas? – perguntou ela.

– Já devorei meninos e meninas, homens e mulheres, reis e imperadores, cidades e reinos – respondeu o Leão, sem orgulho, sem remorso, sem raiva, com a maior naturalidade.

– Perdi a coragem – suspirou Jill.

– Então vai morrer de sede.

– Oh, que coisa mais horrível! – disse Jill dando um passo à frente. – Acho que vou ver se encontro outro riacho.

– Não há outro – disse o Leão.

Jamais passou pela cabeça de Jill duvidar do Leão; bastava olhar para a gravidade de sua expressão. De repente, tomou uma resolução. Foi a coisa mais difícil que fez na vida, mas caminhou até o riacho, ajoelhou-se e começou a apanhar água na concha da mão. A água mais fresca e pura que já havia bebido. E não era preciso beber muito para matar a sede. Antes de beber, havia imaginado sair em disparada logo depois de saciada. Percebia agora que seria a coisa mais perigosa. Ergueu-se de lábios ainda molhados.

– Venha cá – disse o Leão.

E ela foi. Estava agora quase entre as patas dianteiras do Leão, olhando-o diretamente nos olhos.

Mas não aguentou isso por muito tempo e desviou o olhar.”

 

 

“– Fique quieta. Daqui a pouco soprarei. Antes de tudo, lembre-se dos sinais! Repita-os ao amanhecer, antes de dormir e, caso acordar, durante a noite. Por mais estranhos que sejam os acontecimentos, de maneira alguma deixe de obedecer aos sinais. Em segundo lugar, aviso-a de que falei, aqui na montanha, com a maior clareza: não o farei sempre em Nárnia. O ar aqui na montanha é limpo, e aqui o seu espírito também é limpo; em Nárnia, o ar será mais pesado. Cuidado para que o ar pesado não confunda seu espírito. Os sinais que aprendeu aqui surgirão sob formas bem diferentes ao depará-los lá. É importantíssimo conhecê-los de cor e desconfiar das aparências. Lembre-se dos sinais, acredite nos sinais. Nada mais importa. Agora, Filha de Eva, adeus...”

 

 

“– Amigos – disse o príncipe –, quando um homem se lança numa aventura como esta, deve dar adeus à esperança e ao medo; do contrário, tanto a morte quanto a libertação podem não chegar a tempo de salvar-lhe a honra e a razão.”

 

 

“– Coragem, meus amigos – ouviu-se a voz do príncipe Rilian. – Vivos ou mortos, Aslam será nosso guia.

– Perfeitamente, Alteza – era a voz de – Brejeiro. E sempre se pode lembrar que há uma vantagem em morrer aqui: não se gasta dinheiro com enterro.

Jill mordeu a língua. (Quem não quer mostrar o medo que está sentindo, deve ficar em silêncio; é a voz que nos denuncia.)”

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A morte de Arthur: Rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda (Volume 1), de Thomas Malory

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-65-564-0015-0

Tradução: Maria Helena Rouanet

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 458

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Sinopse: “Aquele que retirar esta espada desta pedra e desta bigorna será o legítimo rei de toda a Inglaterra.” Em uma narrativa poeticamente construída, que atravessa o nascimento, a ascensão e a morte do lendário Rei Arthur, Sir Thomas Malory tece uma das histórias mais conhecidas da língua inglesa. Publicada pela primeira vez em 1485, esta lenda tem sido contada e recontada ao longo dos séculos, sendo o principal pilar da literatura arturiana e despertando muita curiosidade. Nesta edição belamente ilustrada pelo famoso artista inglês Aubrey Beardsley, ganham vida as batalhas épicas, os romances proibidos e a trama completa dos nobres cavaleiros da Távola Redonda. Composto por dois volumes e com prefácio de William Caxton, primeiro editor da obra, ainda no século XV, o box conta com a brilhante tradução de Maria Helena Rouanet.



“Pouco depois, chegaram doze cavaleiros já bem idosos que vinham, em nome do imperador de Roma, cobrar tributos por o reino de Arthur sob pena de serem destruídos, tanto o rei quanto as suas terras. Sois mensageiros, disse Arthur, e, por isso, tendes liberdade para dizer o que quiserdes. Se não fosse este o caso, morreríeis por tais palavras. Esta porém é minha resposta: não devo nem quero dever nenhum tributo ao imperador, a não ser que este seja pago em campo aberto, e será com uma lança afiada ou com uma espada. E juro, pela alma de meu pai, Uther Pendragon, que não tardarei a fazê-lo.”

 

 

“Arthur e Pellinore ficaram lutando assim por muito tempo, fazendo algumas pausas para descansar e retomando o combate. Um e outro investiam contra o adversário como dois carneiros e, assim, caíam no chão. Por fim, atacaram-se com tanta força que suas armas se chocaram, mas a espada do cavaleiro fez a do Rei Arthur em pedaços, o que o deixou consternado. Então, o cavaleiro lhe disse: Estais à minha mercê. Posso decidir se quero vos perdoar ou vos matar. E, a menos que vos rendais e vos deis por vencido, morrereis. Quanto à morte, replicou Arthur, ela será bem-vinda quando chegar, mas quanto a dar-me por vencido, prefiro morrer a admitir semelhante afronta.”

 

 

Os dois partiram e foram ao encontro de um eremita que era um homem santo e um excelente médico. O eremita curou o rei de todas as suas feridas e lhe deu bons bálsamos. Arthur permaneceu ali por três dias e, quando todos seus ferimentos estavam curados e ele já podia andar e cavalgar, retomaram viagem. Enquanto cavalgavam, o rei disse: Não tenho mais espada. Pouco importa, retrucou Merlin. Perto daqui há uma espada que, se tudo der certo, será vossa. Prosseguiram cavalgando até chegaram às margens de um lago extenso e de águas límpidas. No meio desse lago, Arthur avistou um braço vestido de brocado branco que segurava uma bela espada na mão. Veja, disse Merlin, ali está a espada a que me referi. Nesse momento, viram uma donzela que andava sobre as águas. Quem é essa donzela?, perguntou Arthur. É a Dama do Lago, respondeu Merlin. Dentro dele, há um grande rochedo e, sobre ele, um palácio formoso e ricamente adornado como não existe nenhum outro na Terra. Esta donzela logo estará aqui à vossa frente. Deveis lhe falar gentilmente para que ela queira vos dar essa espada. Pouco depois, a moça se aproximou, saudou Arthur, que respondeu ao seu cumprimento. Donzela, indagou o rei, que espada é aquela empunhada pelo braço saindo da água? Quisera que fosse minha, pois não tenho espada. Senhor Rei Arthur, replicou a donzela, aquela espada é minha e, se vos dignais me conceder um dom quando eu vos pedir, ela será vossa. Por minha fé, disse Arthur, eu vos concederei o que me pedirdes. Pois bem, prosseguiu a Dama do Lago, entrai naquela barca, remai até onde está o braço e tomai a espada juntamente com sua bainha. Eu vos pedirei o que desejo quando chegar a hora.”

 

 

Devias conceder o perdão àqueles que te pedem, pois um cavaleiro sem misericórdia é desprovido de honra.”

 

 

“O rei Arthur convocou todos os seus cavaleiros, dando terras aos que não as possuíam em quantidade e recomendando-lhes que jamais cometessem qualquer crime ou ultraje; que evitassem sempre a traição; que não fossem cruéis em hipótese alguma; que concedessem sua misericórdia a quem a pedisse, sob pena de perder a honra e o senhorio do Rei Arthur para todo o sempre. Recomendou-lhes também que sempre socorressem damas, donzelas e senhoras; que nenhum homem travasse combate algum envolvendo querelas injustas, por nenhuma lei, nem por bens mundanos. Todos os cavaleiros da Távola Redonda, tanto os mais velhos quanto os mais jovens, prestaram tal juramento e, a cada ano, voltaram a renová-lo na grande festa de Pentecostes.”

 

 

Sir Accolon começou então a proferir palavras traiçoeiras, dizendo: Estais vencido, cavaleiro, e não podeis resistir por muito tempo. Também estais desarmado e haveis perdido muito sangue. Como não me agrada a perspectiva de matá-lo, rendei-vos a mim como fazem os covardes. Não, retrucou Sir Arthur, jamais farei isso, porque prometi levar tal batalha ao extremo, e, por minha fé, é o que farei enquanto viver. Prefiro morrer com honra a viver com vergonha e, se me fosse dado morrer cem vezes, preferiria que assim fosse a ter que me render a vós, pois, embora não tenha mais arma, ainda tenho honra, e se me matardes desarmado vossa será a vergonha. Pouco me importo com a vergonha, retrucou Accolon, e, por isso, preparai-vos, pois já sois um homem morto. Tendo dito isso, desfechou tamanho golpe que Arthur quase caiu, e seu adversário insistiu para que ele lhe pedisse clemência. Sir Arthur, porém, lançou-se sobre Accolon com seu escudo e lhe deu um golpe tão forte na mão com o pomo da espada que o cavaleiro acabou recuando três passos.

Quando a Donzela do Lago viu Arthur, como seu corpo prosseguia cheio de bravura e sabendo da traição que havia sido tramada para matá-lo, lastimou profundamente que um cavaleiro de tanto mérito e um homem de tanta coragem fosse ser destruído. O golpe que Sir Accolon desfechou em seguida foi tão forte que, por um feitiço lançado pela donzela, a espada Excalibur lhe caiu das mãos. De um salto, Arthur apoderou-se da arma e, assim que a segurou, soube que era sua espada, Excalibur. Disse, então: Estiveste separada de mim por muito tempo e muito dano me causaste. Nesse instante, viu a bainha pendendo da cinta de seu adversário e pulou subitamente sobre ele, arrancou-a dali e a atirou o mais longe que pôde. Ah, cavaleiro, exclamou Arthur, hoje me fizestes muito mal com esta espada. Agora, chegou a hora de vossa morte, pois vos prometo que, antes de nos separarmos, recebereis, por esta arma, a mesma paga que me destes porque me infligistes muita dor e me fizestes perder muito sangue. Nesse momento, lançou-se sobre seu adversário com toda a força, atirando-o no chão. Arrancou-lhe o elmo e lhe aplicou tamanho golpe na cabeça que ele começou a sangrar pelos ouvidos, pelo nariz e pela boca. Agora vou vos matar, disse Arthur. Podeis perfeitamente fazê-lo, retrucou Accolon, se assim o desejardes, já que sois o melhor cavaleiro que jamais enfrentei e vejo que Deus está convosco. Mas prometi travar esta batalha a qualquer preço e não me acovardar enquanto vivesse; portanto, de minha boca nunca sairão palavras de rendição, e que Deus use minha vida segundo seus desígnios. De repente, Arthur teve a impressão de já ter visto aquele cavaleiro. Antes que vos mate, perguntou, dizei-me de que país sois e de que corte? Senhor cavaleiro, respondeu Sir Accolon, sou da corte do Rei Arthur e me chamo Accolon de Gaula. Arthur sentiu-se então mais desalentado do que antes, pois se lembrou de sua irmã, a Fada Morgana, e do encantamento da embarcação. Ah, senhor cavaleiro, disse ele, rogo-vos que me digais quem vos deu esta espada e por meio de quem a conseguistes.

Então Sir Accolon se deu conta do ocorrido e disse: Maldita seja essa espada, pois por ela encontrei a morte. É bem possível, replicou o Rei Arthur. Bem, senhor, principiou o vencido, vou confessar tudo: esta espada esteve sob minha guarda a maior parte dos últimos doze meses, e a Fada Morgana, esposa do Rei Uriens, a fez chegar ontem às minhas mãos através de um anão, com o intuito de que eu matasse o Rei Arthur, seu irmão, o homem que ela mais odeia no mundo porque tem mais honra e bravura do que qualquer outro do mesmo sangue. Ela também me ama muito, como amante, e este amor é recíproco. Assim, se pudesse provocar a morte de Arthur com suas artes, logo trataria de matar seu esposo, o Rei Uriens, e faria de mim o rei desta terra e ela seria minha rainha. Isto agora não vai ser possível, acrescentou Accolon, pois bem sei que vou morrer. Pois eu sentiria muito por vós se vos tivesses tornado rei desta terra, disse Sir Arthur. Teria sido uma grande lástima se houvesses destruído vosso senhor. Tendes razão, replicou o cavaleiro, mas, agora que vos disse a verdade, rogo-vos que me digais de onde sois e de que corte. Ah, Accolon, exclamou o Rei Arthur, pois ficai sabendo que sou o Rei Arthur e que me causastes grande mal. Ao ouvir isso, Accolon disse em voz alta: Gentil e doce senhor, tende compaixão de mim, pois não vos havia reconhecido. Ah, Sir Accolon, disse o monarca, tereis minha clemência, porque bem vejo, por vossas palavras, que não me haveis reconhecido. Mas percebo, por essas mesmas palavras, que estavas de acordo com minha morte e, por isto, sois um traidor. Sei, porém, que sois menos culpado do que minha irmã, a Fada Morgana, já que ela, com suas falsas artes, fez com que concordásseis com ela e consentisses em seus falsos prazeres. No entanto, se eu viver, hei de me vingar dela, de tal forma que toda a Cristandade falará a esse respeito. Deus sabe que eu a honrei e venerei mais que a todos de minha linhagem; que confiei mais nela do que em minha própria esposa e em todos os meus outros parentes.

O Rei Arthur chamou então os cavaleiros que guardavam a liça e lhes disse: Vinde, senhores, pois aqui estão dois cavaleiros que lutaram com grandes padecimentos para ambos. Cada um de nós poderia ter matado o outro, mas, se um de nós houvesse reconhecido o outro, não teria havido batalha alguma, nem se teria desferido golpe algum. Por seu turno, Accolon falou em altos brados, dirigindo-se a todos os cavaleiros e outros homens ali reunidos. Ah, senhores, disse, este nobre cavaleiro contra quem lutei, coisa que muito lamento, é o homem dotado de mais bravura, empenho e mérito que existe no mundo, pois trata-se do próprio Rei Arthur, senhor natural de todos nós. E por desventura e infortúnio, enfrentei em combate o rei e senhor a quem devo fidelidade.”

 

 

“Uma vez que se caiu em desgraça, não há recuperação possível.”

 

 

Então, o rei cavalgou até o local onde o Imperador Lucius jazia morto. Junto dele, encontrou também os corpos do Sultão da Síria, do Rei do Egito e da Etiópia, que eram dois nobres monarcas, e ainda dezessete outros reis de diversas regiões, além de sessenta senadores de Roma, todos nobres. Aqueles cadáveres receberam bálsamos e resinas aromáticas e foram cobertos com sessenta camadas de véus e encerrados em baús de chumbo para evitar a decomposição e o mau cheiro. Sobre esses corpos, depositaram-se ainda seus escudos, suas armas e seus pavilhões para que todos soubessem de que país cada um deles se originava. Mais adiante, encontraram três senadores que ainda estavam vivos, e o rei lhes disse: Para salvar suas vidas, desejo que leveis os corpos desses mortos até Roma e os apresenteis aos Potentados de minha parte, mostrando-lhes minhas credenciais e dizendo-lhes ainda que em breve estarei pessoalmente em Roma. Suponho que os romanos tenham entendido que não devem me cobrar qualquer tributo. E ordeno que, ao chegar à sede do império, digais aos Potentados, a todo o Conselho e ao Senado que lhes envio esses corpos como o tributo que eles pretenderam cobrar de mim. Caso isso não os satisfaça, posso pagar um pouco mais quando for até lá, pois não lhes devo nem vou pagar qualquer outro tributo.”

 

 

“Voltemos agora a Sir Lancelote, que cavalgava com a donzela por uma linda estrada. Senhor, disse a jovem, perto deste caminho costuma ficar um cavaleiro que causa sofrimento às damas e senhoras. Ele as rouba ou se deita com elas, para não dizer coisa pior. Como?, exclamou Lancelote. Um cavaleiro ladrão e violador de mulheres? Pois ele comete grande afronta à ordem da cavalaria e quebra o juramento que fez. É lamentável que continue vivo. Eu vos peço, gentil donzela, que seguis cavalgando à minha frente, sozinha, e eu a seguirei às ocultas. Se ele vier vos causar algum transtorno, correrei em vosso auxílio e ensinarei esse homem a se portar como um cavaleiro.

Assim, pois, a donzela seguiu seu caminho a passo lento. Poucos minutos depois, saiu do bosque o referido cavaleiro, acompanhado de seu pajem. Arrebatou a donzela de sua montaria, e ela começou a gritar. Surgiu então Lancelote, cavalgando o mais depressa possível, até chegar perto do cavaleiro, dizendo: Ah! Falso cavaleiro e traidor da cavalaria? Quem vos ensinou a importunar damas e senhoras? Diante da atitude daquele homem que o censurava, o tal cavaleiro nem respondeu. Limitou-se a sacar da espada e arremeter contra o recém-chegado. Este atirou no chão sua lança e, empunhando a espada, desferiu tamanho golpe no alto do elmo de seu adversário que lhe abriu a cabeça e o pescoço até a altura dos ombros. Agora tendes a recompensa que há tanto merecíeis! É bem verdade, replicou a donzela, pois, assim como Sir Turquine ficava à espreita para destruir cavaleiros, este aí fazia a mesma coisa para destruir e afligir senhoras, damas e donzelas. Chamava-se Sir Peris de Forest Savage. E agora, donzela, perguntou Sir Lancelote, há algum outro serviço que eu possa vos prestar? Não, senhor, respondeu a moça. Por ora, não. Desejo apenas que Jesus Todo-Poderoso vos proteja por onde quer que cavalgueis, pois sois o cavaleiro mais cortês e mais gentil com todas as damas e donzelas que jamais vi no mundo. Há, porém, uma coisa que parece vos faltar, senhor. Sois um cavaleiro sem esposa e não quereis amar nenhuma dama ou donzela, pois nunca ouvi dizer que tivésseis amado ninguém, mais ou menos intensamente, o que é uma grande lástima. Mas dizem também que amais a Rainha Guinevere, que ordenou, por encantamento, que nunca amásseis nenhuma outra mulher a não ser ela, além disso determinou que dama ou donzela alguma desfrutará de vós e que, por este motivo, muitas delas, nestas terras, de alto ou baixo estado, muito se lamentam.

Gentil donzela, disse Sir Lancelote, não posso impedir que as pessoas digam de mim o que quiserem, mas creio que eu não tenha a intenção de me tornar um homem casado, pois, nesse caso, teria que me deitar com minha esposa e deixar as armas e os torneios, as batalhas e as aventuras. Quanto a ter prazer com amantes, é algo que recuso antes de mais nada por temor a Deus, pois os cavaleiros aventureiros que são adúlteros ou que se deixam levar pela luxúria não são felizes nem afortunados nas guerras: ou são vencidos por um cavaleiro mais modesto que eles, ou, para sua infelicidade e maldição, matam cavaleiros que são melhores do que eles. Assim, aquele que tem amantes é desditoso e tudo a sua volta é desdita.”

 

 

“Amar quem não nos ama é uma grande tolice.”

 

 

“Vede, disse ele, aqui se pode comprovar que não existe cavaleiro tão bom que não possa levar uma queda, nem tão alerta que não possa ser apanhado de surpresa uma vez que seja, nem que cavalgue tão bem que não possa ser derrubado.”

 

 

“Como diz o livro francês, chegaram ao castelo de Sir Darras quarenta cavaleiros de sua própria linhagem decididos a matar Sir Tristão e seus dois companheiros. O velho cavaleiro, porém, não lhes deu seu consentimento e manteve os três encarcerados, dando-lhes de comer e de beber. Nesse local, Sir Tristão suportou grandes padecimentos, já que a enfermidade se havia apoderado dele e este é o maior sofrimento que um prisioneiro pode enfrentar, pois, enquanto estiver são de corpo, consegue suportar a prisão com a graça de Deus e a esperança de ser libertado. Mas, quando a enfermidade se apossa do corpo de um prisioneiro, ele pode dizer que foi despojado de todas as riquezas do mundo e tem portanto motivos para gemer e chorar. Foi exatamente o que aconteceu com Sir Tristão, tomado de tamanha angústia que esteve a ponto de tirar a própria vida.”

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Os 77 melhores contos dos Irmãos Grimm (Volume II)

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-65-5640-255-0

Introdução e organização: Luciana Sandroni

Tradução: Íside M. Bonini

Ilustrações: Silvio Ramirez

Opinião★★★

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Páginas: 296

Sinopse: Ver Volume I


“A desgraça, diz um velho ditado, vem sempre de noite.”

 

 

“Quem acha a chave velha, não necessita mais da nova.”

 

 

O avô e seu neto

Era uma vez um velho, tão velho que já não enxergava bem, os ouvidos estavam quase surdos e os joelhos trêmulos. Era com grande dificuldade que conseguia segurar a colher e sempre derramava a sopa na toalha, deixando-a, também, escorrer pela boca.

O filho e a nora sentiam nojo ao ver isso, e assim ficou resolvido que o velho avô iria sentar-se atrás do fogão. Davam-lhe a sopa numa tigela de barro, mas não muita. O velho olhava com grande tristeza para a mesa e seus olhos enchiam-se de lágrimas.

Certa vez, suas mãos trêmulas não conseguiram segurar nem mesmo a tigela, que caiu no chão, espatifando-se.

A nora brigou muito com ele, mas o avô suspirou e não disse nada. Então ela comprou uma gamela de madeira bem barata e grosseira e ele passou a tomar a sopa na gamela.

Quando estavam todos sentados na sala, o netinho, de quatro anos de idade, juntava pedaços de madeira no chão.

— Que estás fazendo, meu filhinho? — perguntou-lhe o pai.

— Estou fazendo uma gamela — respondeu o menino —, para dar de comer a mamãe e papai quando eu for grande.

Então os pais olharam um para o outro silenciosamente, depois começaram a chorar. Levantaram-se e foram buscar o velho para se sentar à mesa com todos. Daí por diante serviram-no sempre na mesa com eles, nunca mais se importando que deixasse cair sopa na toalha.”

 

 

“— E tu achas que o menino cuidaria dos gansos? — respondeu Henrique. — Hoje em dia, os filhos já não obedecem a ninguém, só fazem o que lhes dá na veneta, porque se julgam mais sabidos do que os pais, justamente como aquele criado que foi procurar a vaca tresmalhada e correu atrás dos melros.”

 

 

“As montanhas não se encontram, mas os homens, bons ou ruins, acabam sempre se encontrando neste mundo.”

 

 

“Os pássaros que muito cantam pela manhã, à tarde são devorados pelo gavião!”

 

 

“Quem abre uma cova para outro, sempre acaba caindo nela.”

 

 

“Só malandros prometem o que não podem cumprir.”

 

 

O camponesinho no céu

Era uma vez um pobre camponês, muito bondoso que ficou gravemente doente e morreu. Ele então foi para o Céu.

Na mesma época, morreu também um nobre muito rico que por sua vez também foi para o Céu.

São Pedro chegou com as chaves, abriu a porta e fez entrar o nobre. Ao que parece, não vira o pobre camponês e tornou a fechar a porta. E do lado de fora o camponês ouvia as grandes comemorações de alegria que se dirigiam ao nobre, acompanhadas com cantos e música.

Por fim, voltou a reinar o silêncio. São Pedro veio abrir a porta e mandou entrar o pobre camponês. Este esperava que à sua entrada também se faria música e cantaria, porém, tudo permaneceu tranquilo.

Foi recebido, sim, com muito agrado, os anjos rodearam-no carinhosamente, mas ninguém cantou.

O camponês, magoado, perguntou a São Pedro a razão por que não cantavam para ele como tinham feito para o nobre, e se no céu reinava a injustiça como na terra.

Então São Pedro explicou-lhe:

— Não, tu és tão caro para nós como todos os demais, e terá todas as delícias do céu como o nobre. Só que pobres camponeses como tu chegam todos os dias ao paraíso, ao passo que nobre tão rico chega um cada cem anos…”

sábado, 27 de novembro de 2021

O homem sem qualidades (Parte IV), de Robert Musil

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-85-2094-276-5

Tradução: Lya Luft e Carlos Abbenseth

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 1248

Sinopse: Ver Parte I



“Nada é comido tão quente quanto se cozinhou; com o tempo, os mais intensos exageros, entregues a si mesmos, produzem um novo comedimento; não poderíamos nos sentar em nenhum trem, e na rua deveríamos ter sempre na mão uma pistola carregada, se não pudéssemos confiar na lei mediana que torna improváveis as possibilidades exageradas.”

 

 

“Quem hoje se atreve a concretizar ideias políticas básicas tem de ser um pouco especulador e um pouco criminoso!”

 

 

“Mas como, em comparação com a dor atual, a dor antiga parece um velho camarada inofensivo, hoje aquilo parecia apenas uma lembrança de camaradagem e intimidade.”

 

 

“Sem dúvida era um crente, apenas não acreditava em nada: sua maior devoção à ciência jamais conseguira fazê-lo esquecer que a beleza e bondade das pessoas vinha daquilo em que acreditavam, e não daquilo que sabiam. Mas a crença sempre estivera ligada ao saber, embora apenas como um saber imaginado, desde os primeiros dias de seu mágico nascimento. E essa antiga parcela de saber há muito apodreceu e levou consigo, na mesma decomposição, a crença: portanto, hoje é preciso reconstruir essa ligação. E naturalmente não só de maneira a levar a crença “às alturas do saber”, mas de modo a fazê-la sair voando daquelas alturas. A arte de erguer-se acima do saber tem de ser novamente exercitada. E como tal não é possível a um indivíduo, todos deveriam voltar seu sentido para isso, não importa onde o tenham posto.”

 

 

“— Sem dúvida é um hábito repelente da burguesia rica ver algo de diabólico nos loucos e criminosos.”

 

 

“A exigência ideal de amar ao próximo é seguida pelas pessoas reais em duas partes, a primeira dizendo que não suportamos os outros, a segunda querendo que se mantenham relações sexuais com uma metade deles.”

 

 

“Hoje em dia as pessoas só tinham amores sexuais: não suportamos nossos semelhantes, e no entrelaçamento dos sexos as pessoas se amam com crescente revolta contra a exagerada valorização desse impulso.”

 

 

“— Uma pessoa sozinha — respondeu diante da condescendente disposição da irmã de deixar tudo como estava — pode ter uma fraqueza: ela murcha e some no meio de suas outras qualidades. Mas quando duas pessoas dividem uma fraqueza, ela assume, em comparação com as qualidades que não lhes são comuns, um peso duplo, e aproxima-se de uma confissão voluntária.”

 

 

“— Provavelmente, nos anos da puberdade nosso amor por nós mesmos se modifica — disse, sem transições. — Pois aí ceifa-se um prado de ternura em que se brincara até então, para conseguir pasto para um determinado impulso.

— Para que a vaca dê leite! — completou Ágata logo depois, malcriada mas digna, e sem abrir os olhos.

— Sim, certamente tudo isso se liga entre si — disse Ulrich, e continuou: — Portanto, há um momento em que nossa vida perde quase toda a sua ternura, esta murcha, concentra-se naquele único exercício que então fica sobrecarregado. Não lhe parece também que por toda parte no mundo reina uma secura horrível, enquanto num só lugar chove sem parar?

Ágata disse:

— A mim me parece que amei minhas bonecas de menina com uma intensidade como nunca amei homem algum: quando você foi embora, encontrei no sótão uma caixa com velhas bonecas.

— E o que fez com elas? — perguntou Ulrich. — Deu de presente?

— A quem as poderia dar? Eu as joguei no fogo — disse ela.

Ulrich retrucou, vivamente:

— Quando lembro minha infância, posso dizer que naquele tempo “dentro” e “fora” mal se distinguiam um do outro. Quando eu rastejava em direção de alguma coisa, ela vinha ao meu encontro, voando; e quando acontecia alguma coisa que nos parecia importante, ela não só nos excitava, mas as próprias coisas começavam a ferver. Não afirmo que fôssemos mais felizes do que mais tarde. Ainda não nos possuíamos a nós mesmos; na verdade, ainda nem existíamos, nossos estados pessoais ainda não estavam separados do mundo com suficiente nitidez. Parece estranho, mas é verdade quando digo que nossos sentimentos, nossas vontades, nós mesmos, ainda não estávamos inteiramente em nós. Mais estranho é que eu também poderia dizer: ainda não estavam suficientemente distanciados de nós. Pois se hoje, quando pensa possuir a si mesma inteiramente, você por exceção perguntasse quem é na verdade, faria essa descoberta. Sempre se verá de fora, como a uma coisa. Notará que numa ocasião fica irada, noutra fica triste, assim como seu casaco uma vez está molhado, outra quente. Por mais que observe, quando muito conseguirá descobrir-se, nunca entrar em si mesma. Você fica fora de si própria, não importa o que faça, exceto naqueles poucos momentos em que se poderia dizer que está fora de si. Para compensar isso, quando adultos conseguimos poder pensar em todas as ocasiões, “eu sou”, caso isso nos divirta. Você vê um carro, e de alguma forma também vê, de um modo espectral: “Estou vendo o carro.” Você ama ou está triste, e vê que está amando ou sendo triste. Mas em sentido pleno, nem o carro nem sua tristeza ou seu amor nem você mesma estão ali inteiramente. Nada está mais inteiramente como esteve uma vez, na infância. Mas tudo o que você toca está congelado, até no seu interior mais remoto, assim que você chegou a ser uma “personalidade”, e o que sobrou, envolto por um ser totalmente exterior, é como um fantasmagórico fio de névoa da autoconsciência e de um tristonho amor-próprio. O que está errado nisso? Temos a sensação de que ainda se poderia voltar atrás! Não podemos afirmar que uma criança tenha experiências totalmente diferentes das de um homem. Não sei resposta definitiva a isso, embora possa haver vários pensamentos a respeito. Mas há muito respondi a isso perdendo o amor por esse tipo de eu e de mundo.”

 

 

“O pequeno feitiço continua igual a si mesmo, não importa se vemos uma mulher nua pela primeira vez, ou se vemos pela primeira vez uma menina de vestido fechado, e as grandes paixões desenfreadas ligam-se a isso, ao fato de que o ser humano imagina que seu mais secreto eu o espreita atrás das cortinas dos olhos alheios.”

 

 

“Tudo o que Ágata até aqui sentira, no breve tempo desde sua meninice, como fracasso seu diante das exigências da vida social, fora causado porque passara aquele tempo sem viver suas tendências mais íntimas, ou até vivendo contra elas. Eram tendências para entrega e confiança, pois jamais se sentira tão à vontade na solidão quanto o irmão; mas se até ali lhe fora impossível entregar-se com toda a alma a uma pessoa ou causa, era porque ela trazia em si a possibilidade de uma entrega maior, não importava se essa estendesse os braços para o mundo ou Deus! Um conhecido caminho para entregar-se a toda a humanidade é não suportarmos nosso vizinho, e da mesma forma pode surgir um oculto e fervoroso anseio por Deus quando um tipo associal foi provido de um grande amor: nesse sentido, o criminoso religioso não é um absurdo maior do que a velhota religiosa que não encontrou marido.”

 

 

“Ágata devia ter subido e caminhado assim cerca de uma hora, quando de repente se viu diante daquele bosquezinho de que se lembrava. Rodeou uma sepultura esquecida à beira da mata, onde há quase cem anos um poeta se suicidara e, segundo sua última vontade, fora também enterrado. Ulrich dissera que não tinha sido um bom poeta, embora famoso, e a poesia um tanto míope que se expressa no pedido ser enterrado num belvedere lhe provocara duras críticas. Mas Ágata gostava da inscrição na grande lápide, desde quando, num passeio, tinham decifrado juntos suas belas letras Biedermeier lavadas e apagadas pela chuva; e curvou-se sobre as correntes negras, feitas de elos graúdos e angulosos, que rodeavam o quadrado da morte isolando-o da vida.

“Eu não vos signifiquei nada”, mandara o poeta colocar em sua tumba, e Ágata pensou que o mesmo se podia dizer dela. Esse pensamento, à beira de um bosque, sobre os verdes vinhedos e a cidade estranha e imensurável que balouçava lentamente ao sol da manhã sua cauda de fumaça, comoveu-a mais uma vez. Ajoelhou-se sem pensar e encostou a testa numa das colunas de pedra que sustentavam as correntes; a posição inusitada e o toque frio da pedra imitavam a paz hirta e abúlica da morte que esperava por ela. Tentou concentrar-se. Mas não o conseguiu logo: em seu ouvido entravam cantos de pássaros, havia tantos sons diferentes que ela se surpreendeu; galhos moviam-se, e, como ela não notasse o vento, pareceu-lhe que as próprias árvores agitavam seus ramos; ouviram-se passinhos leves no súbito silêncio; a pedra que tocava, repousando sobre ela, era tão lisa como se houvesse entre ela e sua testa um pedaço de gelo impedindo um toque completo. Só algum tempo depois entendeu que naquilo que a distraía expressava-se exatamente o que queria perceber, aquele sentimento fundamental de ser supérflua; e, se o quisermos designar da maneira mais simples, devemos dizer que a vida seria tão completa sem Ágata que ela nada tinha a fazer ou procurar ali. Esse sentimento cruel no fundo não era desesperado nem magoado, apenas um ouvir e ver, como Ágata sempre fizera, mas sem nenhum impulso ou sequer a possibilidade de participar. Havia nessa exclusão quase uma sensação de abrigo, assim como há um espanto que esquece de fazer qualquer indagação. Daria no mesmo se ela fosse embora. Para onde? Devia haver um “onde”. Ágata não era dessas pessoas nas quais também a convicção da insignificância de todas as fantasias causasse satisfação semelhante à abstinência belicosa ou astuciosa com a qual aceitamos nosso insatisfatório destino. Ela era generosa e espontânea nesses assuntos, não como Ulrich que causava as maiores dificuldades às suas emoções para proibir-se de tê-las, se não suportassem a prova. É que ela era tola! Sim, dizia isso a si mesma. Não queria refletir! Obstinada, premiu a testa baixada contra as correntes de ferro que cederam um pouco e depois resistiram, esticadas. Nas últimas semanas ela começara a acreditar novamente em Deus, de alguma forma, mas sem pensar nele. Certos estados em que o mundo sempre lhe parecera diferente do que parecia ser, como se ela não vivesse mais excluída mas mergulhada numa radiante convicção, tinham sido levados por Ulrich à beira de uma metamorfose interior e de uma transformação completa. Ela teria sido livre, disposta a imaginar um Deus que abre seu mundo como quem abre um esconderijo. Mas Ulrich dizia que não era preciso, quando muito faria mal imaginar mais do que se podia experimentar. E decidir isso era assunto para ele. Mas então, teria de guiá-la, sem a abandonar. Ele era a soleira entre duas vidas, e toda a nostalgia que ela sentia por uma delas, e toda a fuga da outra, levava primeiro a ele. Ela o amava na maneira despudorada com que se ama a vida. De manhã, ele despertava em todos os membros dela, quando abria os olhos. Também agora fitava-a do escuro espelho da sua dor: e só então Ágata lembrou outra vez que queria se matar. Tinha a sensação de ter fugido de casa por birra, em direção de Deus, quando saíra com o propósito de se matar. Mas o propósito agora devia ter-se esgotado, voltando à sua origem, que era ter sido magoada por Ulrich. Estava zangada com ele, ainda sentia isso, mas os pássaros cantavam e ela voltou a escutá-los. Estava tão confusa como antes, mas agora de uma confusão alegre. Queria fazer alguma coisa que atingisse a Ulrich, não apenas a ela. A rigidez infinita em que estivera ali ajoelhada cedeu ao calor do sangue que lhe jorrava vivo nas veias enquanto se levantava do chão.”

 

 

“O inferno não é interessante, é terrível. Quando não o humanizamos — como Dante, que o povoou com literatos e pessoas importantes, e com isso desviou a atenção das técnicas de punição —, mas tentamos dar uma visão original dele, mesmo as pessoas mais fantasiosas não conseguem superar os pueris tormentos e pobres deformações das qualidades terrestres. Mas exatamente o vazio pensamento da punição e tormento inimagináveis e por isso inevitáveis, e infinitos, a pressuposição de uma transformação, insensível a todos os esforços contrários, em direção do mal, tem a atração de um abismo. Assim são também as casas de loucos. São asilos de pobres. Têm algo da falta de imaginação do inferno. Mas muitas pessoas, que não sabem das causas das enfermidades mentais, não receiam nenhuma possibilidade tanto quanto a de perder a razão um dia, exceto a de perderem seu dinheiro; e é singular quantas pessoas sentem isso, torturadas pela ideia de um dia poderem se perder de repente. Pela supervalorização do que pensam de si mesmas segue provavelmente a supervalorização do horror que os sadios imaginam habitar os asilos dos enfermos.”

 

 

“Sua Alteza não considerava as outras pessoas tolas, embora se julgasse mais inteligente que elas.”

 

 

“O conde Leinsdorf perguntou:

— Diga, quem é afinal esse Feuermaul?

— Seu pai tem várias empresas na Hungria — respondeu Ulrich. — Acho que alguma coisa ligada a fósforo, na qual nenhum operário chega a mais de quarenta anos. Doença profissional: necrose óssea.

— Sim, mas e o rapaz? — O destino dos operários não atingia o conde.

— Ele devia ter estudado. Direito, eu acho. O pai é um self-made-man e ficou aborrecido porque o rapaz não tinha vontade de estudar.

— Por que não teve vontade de estudar? — perguntou o conde Leinsdorf, que naquele dia estava muito minucioso.

— Santo Deus — disse Ulrich dando de ombros —, provavelmente: “Pais e filhos.” Quando o pai é pobre, os filhos amam o dinheiro; quando papai tem dinheiro, os filhos voltam a amar a humanidade. Vossa Alteza ainda não ouviu falar do problema do filho em nosso tempo?

— Sim, ouvi alguma coisa. Mas por que Arnheim protege esse Feuermaul? Isso tem ligação com as jazidas de petróleo? — perguntou o conde Leinsdorf.

— Vossa Alteza sabe disso? — exclamou Ulrich.

— Claro, sei de tudo — respondeu Leinsdorf pacientemente.”

 

 

“O que distingue um homem sadio de um doente mental é exatamente que o sadio tem todas as doenças mentais, e o enfermo apenas uma!”

 

 

“É sabidamente um grande alívio, quando nos aborrecemos, aliviarmos nossa raiva em alguém, ainda que essa pessoa não tenha nenhuma culpa; só que de hábito se esquece isso quando se trata do amor. Porém é a mesma coisa, e o amor muitas vezes tem de ser aliviado em alguém que não tem culpa nenhuma, caso não encontre outra oportunidade de se expandir.”

 

 

“Desde as inspirações do homem fora do comum até o kitsch que une os povos, aquilo que Ulrich chamava fantasia moral ou simplesmente sentimento, formava uma única e secular fermentação sem escapamentos. O ser humano não consegue viver sem entusiasmo. Entusiasmo é o estado no qual todos os seus sentimentos e pensamentos têm o mesmo espírito. Você pensa, quase que pelo contrário, que o entusiasmo é o estado em que um sentimento é demasiado forte, um só, que — o arrebatamento! — arrebata os demais? Não, você não quis dizer nada a respeito? Mesmo assim, é isso. Também é isso. Mas a força desse entusiasmo é insopitável. Sentimentos e pensamentos ganham continuidade uns pelos outros, como um todo, precisam de certa forma seguir na mesma direção, arrebatar-se mutuamente. E com todos os meios, drogas, fantasias, sugestão, fé, convicção, muitas vezes apenas com ajuda do efeito simplificado da burrice, cada ser humano trata de criar um estado parecido com isso. Acredita em ideias, não porque às vezes sejam verdadeiras, mas porque precisa acreditar. Porque precisa manter seus afetos em ordem. Através de uma ilusão, deve tapar o buraco entre as paredes de sua vida, pelo qual, de outro modo, seus sentimentos voariam aos quatro ventos. O correto seria provavelmente, em vez de entregar-se a estados aparentes efêmeros, procurar pelo menos as condições de um verdadeiro entusiasmo. Mas, embora no total o número de decisões que dependem do sentimento seja infinitamente maior do que aquelas que se realizam com a pura sensatez, e todos os acontecimentos que movem a humanidade nasçam da fantasia, só as questões racionais são ordenadas de maneira suprapessoal, e para o resto nada foi feito que mereça o nome de esforço comum, ou que ao menos revele sua desesperada necessidade.”

 

 

““É preciso ser duro como um diamante e terno como uma mãe!”, pensou, evocando uma velha definição do século XVII.”

 

 

“Dedica uma parcela de tua solidão à serena reflexão sobre teu próximo, principalmente se não concordas com ele: talvez venhas então a entender e usar melhor o que te causa repulsa, e aprendas a poupá-lo na fraqueza e a encorajá-lo na virtude que possivelmente está apenas intimidada!”

 

 

“Só posso concluir que temos de ser como queremos que sejam nossos filhos!” (Matthias Claudius)

 

 

“Ele teve ocasião de falar do paradoxo melindroso e por muitos repudiado de que qualquer compreensão pressupõe uma certa superficialidade, uma tendência à superfície, que, no mais, se expressava na palavra “compreender”, pois as experiências originárias não se entendiam isoladas, mas uma pela outra, sendo, portanto, inevitável que se entrelaçassem mais na superfície que na profundidade.”

 

 

“Mudando um provérbio, talvez se possa dizer que uma consciência pesada é quase um melhor travesseiro que a tranquila, basta que seja pesada o bastante.”

 

 

“— As duas contradições estão sempre presentes e formam uma quadriga: amamos uma pessoa porque a conhecemos e porque não a conhecemos; e a conhecemos porque a amamos, e não a conhecemos porque a amamos. E isso por vezes atinge um ponto em que se torna bastante sensível. São os famosos momentos em que Vênus e Apolo veem um gancho vazio ao se fitarem, ficando profundamente admirados por terem antes visto outra coisa. Se o amor continua mais forte que o espanto, vai haver uma luta entre estes dois, e às vezes o amor sai vencedor, embora desesperado, esgotado e incuravelmente ferido. Se ele, porém, não for tão forte, haverá uma luta entre as pessoas, ofensas, para compensar ter-se bancado o bobo... haverá terríveis assaltos da realidade... desonras extremas... — Já passara por esses temporais do amor com bastante frequência para poder descrevê-los calmamente.”

 

 

“— Até no pensamento, onde tudo está num contexto lógico e objetivo — prosseguiu Ulrich —, em geral só aceitamos plenamente a convicção superior de outra pessoa quando também nos submetemos a ela de alguma forma, seja como modelo e guia, seja como amigo ou mestre. Sem esse sentimento, que não tem nada a ver com a coisa, só aceitamos a opinião alheia com a ressalva implícita de que nós mesmos seremos melhores guardiães dela que o próprio autor; isso quando não temos a intenção de mostrar ao sujeitinho a insuspeitada importância de sua ideia! E na arte, então, a maioria das pessoas sabe muito bem que seria impossível produzirmos nós mesmos aquilo que lemos, vemos e ouvimos; mas temos a consciência condescendente de que, se soubéssemos fazer, faríamos logo muito melhor! Talvez tenha de ser assim, e isso faça parte da natureza ativa do espírito, que não podemos encher como uma panela vazia — concluiu Ulrich —, mas que é atuante ao apreender, tendo deveras de a-prender.”

 

 

“O amor tem o efeito benéfico de fazer-nos cegos! — retrucou Ulrich. — O amor ofusca: essa simples frase contém a metade dos enigmas do amor ao próximo, que nos propusemos!

— Pode-se, no máximo, acrescentar ainda que o amor também faz ver o que não existe — afirmou Ágata, concluindo, pensativa: — No fundo, essas duas frases contêm tudo de que precisamos no mundo, para, apesar dele, sermos felizes!”

 

 

“Será que amamos uma coisa porque é bela, ou ela fica bela por ser amada.”

 

 

“Ulrich parecia ter se desviado, mas prosseguiu nessa direção: “Pelo visto, é essa a razão por que eu hoje tenho de anotar: a história, os acontecimentos, até a arte, surgem... de uma falta de felicidade. Mas tal falta não deriva das circunstâncias que nos impediriam de atingir a felicidade, e sim de nosso próprio sentimento. Este constitui a viga cruzada da dupla qualidade: não tolera qualquer outro a seu lado e não é ele próprio persistente. Dessa forma, tudo a que ele está ligado ganha a aparência de validade eterna, e, apesar disso, todos nós procuramos abandonar as criações de nosso sentimento e mudar as opiniões que neles se expressam. Pois um sentimento se transforma a partir do momento em que perdura; não possui constância e identidade; precisa ser consumado de novo. Sentimentos não são apenas mutáveis e inconstantes — como, aliás, são considerados —, mas tornar-se-iam cabalmente assim no momento exato em que deixassem de sê-lo. Tornam-se falsos quando duram. Precisam surgir sempre de novo, caso devam permanecer, e, mesmo assim, serão outros. Uma ira que durasse cinco dias não seria mais ira, mas perturbação mental; ela se transforma em perdão ou disposição para a vingança, e algo de semelhante acontece com todos os sentimentos.

Nosso sentimento procura esteio naquilo que configura, e por um tempo sempre o acha. Mas Ágata e eu sentimos no que nos rodeia o temor oculto, a tendência centrífuga do que se encontra junto, o desdito no dito, a peregrinação das paredes supostamente firmes; vemos e ouvimos isso de repente. Parece-nos uma aventura e duvidosa companhia viver ‘uma época’. Encontramo-nos na floresta mágica. E embora ainda não abarquemos e mal conheçamos ‘nosso’ sentimento, esse sentimento diferente, temos medo por ele e gostaríamos de retê-lo. Mas, como reter um sentimento? Como seria possível permanecer no mais alto degrau da felicidade, caso se consiga atingi-lo? No fundo, essa é a única questão que nos ocupa. Temos o pressentimento de um sentimento que escapa à efemeridade dos restantes. Encontra-se na corrente frente a nós como uma maravilhosa sombra imóvel. Mas, para perdurar, não teria de deter a marcha do mundo? Chego à conclusão de que não pode ser um sentimento no mesmo sentido dos outros.”

E, de repente, Ulrich concluía: “Volto assim à questão: o amor é um sentimento? Creio que não. O amor é um êxtase. E para amar perenemente o mundo, para poder abarcar também o passado com o amor do Deus-Artista, o próprio Deus precisaria ficar num êxtase constante. Só como tal seria concebível...””

 

 

“É própria dos sentimentos a tentativa enérgica e muitas vezes apaixonada de transformar os estímulos aos quais devem sua aparição, e de eliminá-los ou favorecê-los; e as direções principais da existência são para fora e de fora. Por isso, a ira traz em si o contra-ataque, o anseio a aproximação, e o medo a transição para fuga, paralisia ou, situado entre ambas, o grito. Mas também a reação desse comportamento ativo imprime ao sentimento boa parte das particularidades e do conteúdo que o caracterizam; a conhecida frase de um psicólogo americano, segundo a qual ‘não choramos porque estamos tristes, mas estamos tristes porque choramos’, pode ser exagerada; é certo, porém, que não apenas agimos como sentimos, mas também logo aprendemos a sentir conforme nossos atos, sejam quais forem seus motivos.

Um conhecido exemplo para esse vaivém é a briga de cães que começa como alegre brincadeira e termina num duelo sangrento, mas o mesmo pode ser igualmente observado em crianças e pessoas simples. E toda a bela teatralidade da vida não consiste afinal num grande exemplo disso, com seus gestos, meio a sério, meio vazios, de honra e honraria, de ameaça, gentileza, contenção e tudo o mais, gestos de querer representar alguma coisa e de representação, que descartam o juízo e influenciam diretamente o sentimento? Até a ‘disciplina’ faz parte disso, baseando-se no efeito de impor por longo tempo um comportamento, para que suscite afinal o sentimento que deveria originá-lo.”

“Mais importante que a repercussão dos atos é, tanto nesses como em outros exemplos, o fato de uma vivência mudar de significado quando, em seu decurso, passa, do âmbito das forças características que de início a conduziam, para o de outras ligações da alma. Pois do lado de dentro ocorre algo de semelhante ao exterior. O sentimento preme para dentro; ele ‘toma inteiramente a pessoa’, como se diz, não sem acerto; afasta o que não se conforma a ele e favorece o que pode lhe servir de alimento. Num tratado de psiquiatria, eu li estranhas denominações para isso: ‘força de comutação’ e ‘trabalho de comutação’. Ao mesmo tempo, o sentimento estimula o interior a voltar-se para ele. A disponibilidade interna, na medida em que não se exauriu no primeiro momento, preme pouco a pouco em sua direção; e assim que captura forças maiores, armazenadas em pensamentos, lembranças, princípios etc., o sentimento também é inteiramente capturado por elas, e elas o transformam de tal modo que fica difícil dizer quem se apossa de quem.

Mas, uma vez atingido seu ápice por intermédio de tais processos, são eles que vão novamente enfraquecer e diluir o sentimento. Pois outros sentimentos e vivências, que não mais se submetem integralmente a ele, irão então cruzar sua esfera e, por fim, até mesmo desalojá-lo. Na verdade, esse curso contrário, ligado à satisfação e ao desgaste, começa com a própria aparição do sentimento; pois sua expansão não significa apenas um aumento de seu poder, mas ao mesmo tempo também um arrefecimento das necessidades das quais ele se origina ou se serve.

Isso deve igualmente ser levado em conta com relação aos atos; pois o sentimento não apenas se exalta, mas também se arrefece na ação; e sua saturação, quando não é perturbada por outro sentimento, prossegue até o fastio, quer dizer, até o ponto em que surge novo sentimento.”

“É preciso mencionar especialmente uma coisa. Enquanto subjuga o interior, o sentimento entra também em contato com atividades que colaboram para a vivência e a compreensão do mundo exterior; e assim, o mundo, como nós o entendemos, acabará em parte padronizado segundo o modelo e sentido do próprio sentimento, que procura se fortalecer por intermédio desses ecos. Os exemplos são conhecidos: quando sentimos intensamente, ficamos cegos para o que pessoas imparciais percebem, e percebemos o que outros não veem. A pessoa triste vê as coisas pretas e despreza o que poderia iluminá-las; a alegre vê o mundo iluminado e é incapaz de perceber algo que perturbe esse quadro; quem ama ganha a confiança das piores pessoas; e o desconfiado não apenas vê sua desconfiança confirmada em toda parte, mas as confirmações chegam a desabar sobre ele. Dessa maneira, atingindo certa força e duração, cada sentimento constrói seu próprio mundo, um mundo selecionado e cheio de conexões, o que não é de somenos importância nas relações humanas! Nisso se incluem nossa notória inconstância e nossas arbitrariedades”.”

 

 

“Sendo fluxo constante, os sentimentos não se deixam deter; não se deixam, portanto, ‘examinar detidamente’; quer dizer, quanto mais precisamente os observamos, tanto menos sabemos o que sentimos. A atenção já é uma modificação do sentimento. Todavia, se eles fossem uma ‘mistura’, esta deveria na verdade apresentar a maior nitidez no momento de parada, embora a atenção se intrometa.”

 

 

“Nesse momento, havia algo em seu rosto que teria feito sua falecida mãe recordar o menino no qual ela toda manhã dava um grande laço bonito embaixo do queixo, antes de ele ir para a escola; poderíamos designar esse algo como falta total de brutalidade masculina. Essa lacuna torna impossível um garoto viver entre outros garotos. O corpo comprido, grande, mas sem forças, de perninhas finas, parecia uma lança com a cabeça espetada em cima, boiando sobre a arena ensurdecedora dos colegas de escola, que troçavam daquele laço dado por mão materna; e, em pesadelos, o professor Lindner ainda hoje se via por vezes nessa situação, sofrendo pelo bem, pelo belo, pelo verdadeiro. Mas, exatamente por isso, ele nunca confessava ser a brutalidade uma qualidade indispensável ao homem, comparável ao cascalho que é misturado à argamassa para dar-lhe solidez; e, principalmente depois que se transformara no homem que se orgulhava de ser, via naquela antiga lacuna uma confirmação de que nascera para melhorar o mundo, mesmo que em escala modesta. Bem, mas hoje já estamos acostumados com a explicação de que os grandes oradores surgem por problemas da fala e os heróis pela fraqueza, com outras palavras, que nossa natureza sempre precisa abrir um buraco quando quer que ergamos uma montanha acima dele; e como os semi-ignorantes e semisselvagens que, predominantemente, determinam o curso da vida quase que veem em cada gago um Demóstenes, fica mais fácil ainda considerar como sinal de bom gosto espiritual quando alguém declara que o mais importante em Demóstenes é sua gagueira inicial. Todavia, ainda não se conseguiu atribuir as façanhas de Hércules ao fato de que ele tenha sido uma criança franzina, ou os recordes em corrida e salto a um pé chato, ou ainda a coragem a um caráter medroso, sendo, portanto, necessário convir que um talento especial requer algo mais que a própria falta!”

 

 

“Um homem firme jamais fará seu próprio comportamento depender do comportamento alheio.”

 

 

“As obras do sentimento definham quando a experiência amorosa imediata não torna a revigorá-las.”

 

 

“É sobretudo a evolução em direção ao sentimento definido o que acarreta a inconstância e fragilidade da vida psíquica. Que não possamos reter o instante em que sentimos; que os sentimentos murchem, mais rápidos que as flores, ou se transformem em flores de papel quando pretendem perdurar; que a felicidade e a vontade, a arte e o ideário sejam passageiros — tudo isso decorre do caráter definido do sentimento, que lhe imprime um destino e o empurra para dentro do curso da vida, onde será dissolvido ou modificado. O sentimento que se mantém sem definições e limites é, pelo contrário, relativamente imutável. Veio-lhe uma comparação: “Um morre, como um indivíduo, o outro permanece, como uma espécie ou gênero.” Quem sabe se, de fato, mesmo que indiretamente, não se reproduz assim na disposição do sentimento numa disposição geral da vida.”