sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-85-2094-179-9

Tradução: Homero Freitas de Andrade

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 176

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Sinopse: O deserto dos tártaros é a obra-prima de Dino Buzzati. Publicado originalmente em 1940, o livro marcou a consagração do autor entre os grandes nomes da literatura italiana e foi eleito pela crítica especializada um dos melhores livros do século XX. A obra narra a história do jovem tenente Giovanni Drogo, que recebe com alegria uma missão no forte Bastiani — para ele, a primeira etapa de uma carreira gloriosa. Embora não pretendesse ficar por muito tempo, o oficial de repente se dá conta de que os anos se passaram enquanto, quase sem perceber, ele e seus companheiros alimentavam a expectativa de uma invasão estrangeira que nunca acontece. A espera pelo inimigo transforma-se na espera por uma razão de viver, na renúncia da juventude e na mistura de fantasia e realidade.

 


“Os dois amigos não conversavam. Drogo pensava em como podia ser o Forte Bastiani, mas não conseguia imaginá-lo. Não sabia sequer onde ficava exatamente nem quanto do caminho devia percorrer. Uns haviam-lhe dito um dia a cavalo, outros menos, nenhum daqueles a quem perguntara estivera lá realmente.”

 

 

“As paredes nuas e úmidas, o silêncio, a exiguidade das luzes: todos lá dentro pareciam ter-se esquecido de que em algum lugar do mundo existiam flores, mulheres sorridentes, casas alegres e hospitaleiras. Tudo ali dentro era uma renúncia, mas para quem, para que misterioso bem? Agora eles se dirigiam ao terceiro andar, através de um corredor, exatamente idêntico ao primeiro. Ouvia-se, por trás de algumas paredes, o distante eco de uma risada, que a Drogo pareceu inverossímil.”

 

 

“Até então ele passara pela despreocupada idade da primeira juventude, uma estrada que na meninice parece infinita, onde os anos escoam lentos e com passo leve, tanto que ninguém nota a sua passagem. Caminha-se placidamente, olhando com curiosidade ao redor, não há necessidade de se apressar, ninguém empurra por trás e ninguém espera, também os companheiros procedem sem preocupações, detendo-se frequentemente para brincar. Das casas, a porta, a gente grande cumprimenta-se benigna e aponta para o horizonte com sorrisos de cumplicidade; assim o coração começa a bater por heroicos e suaves desejos, saboreia-se a véspera das coisas maravilhosas que aguardam mais adiante; ainda não se veem, não, mas é certo, absolutamente certo, que um dia chegaremos a elas.

Falta muito? Não, basta atravessar aquele rio lá longe, no fundo, ultrapassar aquelas verdes colinas. Ou já não se chegou, por acaso? Não são talvez estas árvores, estes prados, esta casa branca o que procurávamos? Por alguns instantes tem-se a impressão que sim, e quer-se parar ali. Depois ouve-se dizer que o melhor está mais adiante, e retomasse despreocupadamente a estrada. Assim, continua-se o caminho numa espera confiante, e os dias são longos e tranquilos, o sol brilha alto no céu e parece não ter mais vontade de desaparecer no poente.

Mas a uma certa altura, quase instintivamente, vira-se para trás e vê-se que uma porta foi trancada às nossas costas, fechando o caminho de volta. Então sente-se que alguma coisa mudou, o sol não parece mais imóvel, desloca-se rápido, infelizmente, não dá tempo de olhá-lo, pois já se precipita nos confins do horizonte, percebe-se que as nuvens não estão mais estagnadas nos golfos azuis do céu, fogem, amontoando-se umas sobre as outras, tamanha é sua afoiteza; compreende-se que o tempo passa e que a estrada, um dia, deverá inevitavelmente acabar.

A um certo momento batem às nossas costas um pesado portão, fecham-no a uma velocidade fulminante, e não há tempo de voltar. Mas Giovanni Drogo, naquele momento, dormia, inocente, e sorria no sono, como fazem as crianças.

Passarão alguns dias antes que Drogo entenda o que aconteceu. Será então como um despertar. Olhará à sua volta, incrédulo; depois ouvirá um barulho de passos vindo de trás, verá as pessoas, despertadas antes dele, que correm afoitas e o ultrapassam para chegar primeiro. Ouvirá a batida do tempo escandir avidamente a vida. Nas janelas não mais aparecerão figuras risonhas, mas rostos imóveis e indiferentes. E se perguntar quanto falta do caminho, ainda lhe apontarão o horizonte, mas sem nenhuma bondade ou alegria. Entretanto, os companheiros se perderão de vista, um porque ficou para trás, esgotado, outro porque desapareceu antes e já não passa de um minúsculo ponto no horizonte.

Além daquele rio — dirão as pessoas —, mais dez quilômetros, e terá chegado. Ao contrário, não termina nunca, os dias se tornam cada vez mais curtos, os companheiros de viagem, mais raros, nas janelas estão apáticas figuras pálidas que balançam a cabeça.

Até Drogo ficar completamente sozinho e no horizonte surgir a estria de um imensurável mar parado, cor de chumbo. Então já estará cansado, as casas, ao longo da rua, terão quase todas as janelas fechadas, e as raras pessoas visíveis lhe responderão com um gesto desconsolado: o que era bom ficou para trás, muito para trás, e ele passou adiante, sem dar por isso. Ah, é demasiado tarde para voltar, atrás dele aumenta o fragor da multidão que o segue, impelida pela mesma ilusão, mas ainda invisível, na branca estrada deserta.”

 

 

As muralhas naquele ponto seguiam o declive do desfiladeiro, formando uma complicada escada de terraços e varandas. Embaixo dele, escuríssimas contra a neve. Drogo via, à luz do luar, as sucessivas sentinelas, seus passos metódicos fazendo cric-cric sobre a camada de gelo.

A mais próxima, num terraço abaixo, a uma dezena de metros, menos friorenta que as demais, permanecia imóvel, com as costas apoiadas a um muro, e parecia adormecida. Drogo ouviu-a cantarolar uma nênia com voz profunda.

Era uma sucessão de palavras (que Drogo não conseguia distinguir), ligadas entre si por uma ária monótona e sem fim. Falar e, pior, cantar em serviço era severamente proibido. Giovanni deveria puni-la, mas teve dó, pensando no frio e na solidão da noite. Começou então a descer uma curta escada que conduzia ao terraço e deu uma pequena tossida, para pôr de sobreaviso o soldado.

A sentinela virou a cabeça e, quando viu o oficial, retificou a posição, mas não interrompeu a nênia.

Drogo ficou enfurecido: aqueles soldados achavam que podiam zombar dele? Iam ver só a dureza que lhes imporia.

A sentinela percebeu logo a postura ameaçadora de Drogo e, apesar de a formalidade da senha, por antiquíssimo e mudo acordo, não ser praticada entre os soldados e o comandante da guarda, foi tomada de um excesso de escrúpulo. Sobraçando o fuzil, perguntou, com o sotaque muito particular usado no forte: “Quem vem lá? Quem vem lá?”

Drogo se deteve de repente, desorientado. A menos de cinco metros de distância, à luz límpida da lua, ele enxergava muito bem o rosto do militar, e sua boca estava fechada. Mas a nênia não tinha parado.

De onde vinha a voz, então?

Pensando nesse estranho fato, uma vez que o soldado continuava à espera, Giovanni disse mecanicamente a senha: “Milagre”. “Miséria”, respondeu a sentinela, e repôs a arma em posição de descanso.

Seguiu-se um silêncio imenso, no qual, mais forte que antes, navegava um sussurro de palavras e de canto.

Finalmente Drogo entendeu, e um lento arrepio percorreu-lhe a espinha. Era a água, era uma longínqua cascata rumorejante, a pique nos despenhadeiros próximos. O vento que fazia oscilar o longo jorro, o misterioso jogo dos ecos, o diferente som das pedras em percussão, formavam uma voz humana, que falava, falava: palavras de nossa vida, que se estava sempre prestes a entender, mas que na verdade nunca se entendia.

Não era então o soldado que cantarolava, não era um homem sensível ao frio, às punições e ao amor, mas a montanha hostil. Que triste engano, pensou Drogo, talvez tudo seja assim; acreditamos que ao redor haja criaturas semelhantes a nós e, ao contrário, só há gelo, pedras que falam uma língua estrangeira; preparamo-nos para cumprimentar o amigo, mas o braço recai inerte, o sorriso se apaga, porque percebemos que estamos completamente sós.”

 

 

Aproximou-se naquela manhã, dirigindo os olhos para o triângulo visível de deserto, e acreditou estar morto. Não pensou que pudesse ser um sonho. No sonho sempre há alguma coisa de absurdo e confuso, nunca se fica livre da vaga sensação de que tudo é falso, de que, num repente, teremos de acordar. No sonho, as coisas não são nunca límpidas e materiais como aquela desolada planície sobre a qual avançavam fileiras de homens desconhecidos.

Mas era coisa tão estranha, tão idêntica a certos devaneios seus de quando era moço, que Prosdocimo sequer pensou que pudesse ser verdade e acreditou estar morto.

Acreditou estar morto e que Deus o perdoara. Pensou estar no mundo do além, aparentemente idêntico ao nosso, só que lá as boas coisas se realizam segundo os desejos justos, e, após estes terem sido satisfeitos, fica-se com o ânimo sereno, não como aqui, onde há sempre alguma coisa que envenena até os melhores dias.

Prosdocimo acreditou estar morto, e não se movia, supondo que não lhe cabia mais mexer-se, como defunto, mas que uma secreta intervenção o sacudiria. Em vez disso, foi um sargento-mor que respeitosamente lhe tocou o braço: “Sargento”, disse-lhe. “O que foi? Não se sente bem?” Só então Prosdocimo começou a compreender.”

 

 

“Talvez a questão esteja toda nisso. Talvez nós pretendamos demasiado. Cabe-nos sempre o que merecemos, realmente.”

 

 

“Justamente naquela época Drogo deu-se conta de que os homens, ainda que possam se querer bem, permanecem sempre distantes; que, se alguém sofre, a dor é totalmente sua, ninguém mais pode tomar para si uma mínima parte dela; que, se alguém sofre, os outros não vão sofrer por isso, ainda que o amor seja grande, e é isso o que causa a solidão da vida.”

O Senhor das Moscas, de William Golding

Editora: Nova Fronteira / Saraiva de bolso

ISBN: 978-85-2092-877-6

Tradução: Geraldo Galvão Ferraz

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 258

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Sinopse: Um grupo de jovens é retirado de uma cidade atingida por um bombardeio atômico. Eles passam a viver numa ilha deserta do Pacífico e lá reconstituem os valores da sociedade em que viveram. Este romance é considerado a obra-prima do prêmio Nobel de 1983.


 

— Se chover como aconteceu quando chegamos, vamos precisar de abrigos. E mais uma coisa. Precisamos de abrigos porque os...

Fez uma pequena pausa e os dois esqueceram sua raiva. Quando Ralph recomeçou, o assunto era outro, seguro.

— Você percebeu, não é?

Jack largou a lança e ficou de cócoras.

— Percebeu o quê?

— Bem, eles estão com medo.

Virou-se e fixou o rosto altivo e sujo de Jack.

— Do jeito das coisas. Eles sonham. Você pode ouvi-los. Você já ficou acordado à noite?

Jack balançou a cabeça.

— Eles falam e gritam. Os pequenos. Até alguns dos outros. Como se...

— Como se não fosse uma boa ilha.

Espantados pela interrupção, olharam para o rosto sério de Simon.

— Como se... — disse Simon —, o bicho, o bicho ou a coisa-serpente, fosse verdadeiro. Lembram-se?

Os dois meninos mais velhos sobressaltaram-se quando ouviram o nome vergonhoso. Não se falava agora de cobras, elas não eram mencionáveis.

— Como se esta não fosse uma boa ilha — disse Ralph lentamente. — Sim, é isso.

Jack sentou-se e esticou as pernas.

— Eles estão malucos.

— É uma bobagem. Lembra-se de quando fomos explorar?

Sorriram um para o outro, lembrando-se do encantamento do primeiro dia. Ralph continuou.

— Então, nós precisamos de abrigos como uma espécie de...

— Lar.

— Certo.

Jack encolheu as pernas, abraçou os joelhos e franziu a testa, num esforço para conseguir clareza.

— A mesma coisa na floresta. Quero dizer, quando você está caçando... não quando está colhendo frutos, claro, mas quando você está em seu...

Fez uma curta pausa, sem saber se Ralph iria levá-lo a sério.

— Continue.

— Quando você está caçando, às vezes você se sente como se... — Corou subitamente.

— Claro, não é nada de mais. Só um sentimento. Mas você se sente como se não estivesse caçando, mas... sendo caçado. Como se houvesse alguma coisa atrás de você o tempo todo na floresta.

Ficaram quietos de novo: Simon atento, Ralph incrédulo e levemente indignado. Sentou-se, esfregando um ombro com a mão suja.

— Bem, não sei.

Jack ficou de pé, num pulo, e falou bem depressa.

— É assim que a gente se sente na floresta. Claro, é só isso. Só... só...

Deu alguns passos rápidos para a praia, depois voltou.

— Só que eu sei como se sentem. Entendeu? É isso.”

 

 

“— As pessoas não ajudam muito.

Ralph queria dizer que as pessoas nunca eram bem o que se pensava delas.”

 

 

“— Tenho medo dele — disse Porquinho — porque eu o conheço. Quando você tem medo de alguém, você o odeia, mas não pode parar de pensar nele. Você se ilude, dizendo que ele no fundo é legal. Então você o vê de novo; é como a asma e você não consegue respirar. É assim. Ele também o odeia, Ralph...”

 

 

“No meio deles, com o corpo sujo, cabelo emaranhado e nariz escorrendo, Ralph chorou pelo fim da inocência, pela escuridão do coração humano e pela queda no ar do verdadeiro e sábio amigo chamado Porquinho.”

Luz Sobre a Idade Média (Parte III), de Régine Pernoud

Editora: Publicações Europa-América

ISBN: 978-97-2104-279-7

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 208

Sinopse: Ver Parte I

 

Uma das funções da Igreja e dos seus tribunais é a luta contra a heresia. Toca-se aqui numa característica essencial da vida medieval, que só depois veio frequentemente a fazer escândalo. Para o apreender bem, é preciso compreender que a Igreja é então a garantia da ordem social, e que tudo aquilo que a ameaça atinge ao mesmo tempo a sociedade civil. Tanto mais que as heresias suscitam frequentemente mais violentas reprovações nos laicos que nos clérigos. Temos nos nossos dias dificuldade em retratar, por exemplo, o profundo mal-estar produzido na sociedade pela heresia albigense, simplesmente pelo fato de ela proscrever o juramento. Mas isso consistia em atacar a própria essência da vida medieval, que era o vínculo feudal. Todo o fundamento da feudalidade se encontrava abalado por isso.* Daí as reações vigorosas, excessivas por vezes, às quais se assistiu.

Devem esses excessos ser atribuídos à Igreja? Luchaire, pouco suspeito de indulgência para com ela, vê no papado um “poder essencialmente moderador” na luta contra a heresia. Com efeito, é o que ressalta das relações entre Inocêncio III e Raimundo de Toulouse e da correspondência do Papa com os seus núncios. Por outro lado, o exame de casos particulares revela claramente que pilhagens e massacres, quando se realizam, são ato de uma minoria excitada, que depois é vivamente censurada pela autoridade eclesiástica. Já citamos a carta de São Bernardo aos burgueses de Colônia depois do massacre de heréticos que teve lugar em 1145: “O povo de Colônia ultrapassou os limites. Se aprovamos o seu zelo, não aprovamos de modo nenhum o que ele fez, porque a fé é obra de persuasão e não se impõe”.**

Como acontece frequentemente, os laicos são muito menos moderados nos seus juízos e mais impiedosos que os clérigos. Além disso, neles as preocupações materiais se juntam às preocupações doutrinais, para as agravar. O primeiro soberano que aplica a pena de fogo aos heréticos, condenados a ser entregues ao braço secular, é o imperador Frederico II. Não podemos admirar-nos disso, visto sabermos que o personagem era bem pouco cioso da ortodoxia: um espírito dos mais “modernos”; facilmente cético, nada menos que obrigado a obedecer às objurgações do Papa; e quando faz cruzada, ostenta durante toda ela o mais profundo desprezo pelos seus correligionários, com a mais viva simpatia pelos muçulmanos. É bem provável, desde logo, que a preservação contra as heresias só o devia interessar de um modo muito secundário. Político prudente, no entanto, ele sentira o perigo que os heréticos representavam para a sociedade temporal.

Os massacres de judeus na ocasião da primeira cruzada não são cometidos pelos exércitos de Pedro, o Eremita, ou de Gautier Sans Avoir, mas são ordenados na Alemanha por um senhor laico, o conde Ennrich de Leiningen, depois da partida dos cruzados. Aliás, as expulsões de judeus foram, pelo menos em França, muito menos numerosas do que se tem dito, uma vez que apenas houve três de alcance geral: uma sob São Luís, por ocasião da sua cruzada; as duas outras sob Filipe, o Belo, ordenadas por razões financeiras.

A Inquisição adquiriu a sua deplorável reputação devido a uma ação semelhante dos poderes laicos, desviando esse instrumento em seu favor, para fazer das medidas da Igreja um instrumento de dominação – por vezes, entende-se, com a cumplicidade de certos eclesiásticos isolados. Contudo, ela só teve um caráter verdadeiramente sangrento e feroz na Espanha imperial do início do século XVI. Durante toda a Idade Média, é apenas um tribunal eclesiástico destinado a “exterminar” a heresia, quer dizer, expulsá-la para fora dos limites (ex terminis) do reino. As penitências que impõe não saem do âmbito das penitências eclesiásticas, ordenadas em confissão: esmolas, peregrinações, jejuns. Somente nos casos graves o culpado é entregue ao braço secular, o que significa que incorre em penas civis, como a prisão ou a morte, pois o tribunal eclesiástico não tem o direito de pronunciar ele próprio semelhantes penas.

Segundo declaração de autores que estudaram a Inquisição pelos seus autos — não importa quais sejam as suas tendências — ela apenas fez “poucas vítimas”. Esta é a expressão de Lea, escritor protestante traduzido em francês por Salomon Reinach (Histoire de l’inquisition, t. 1, p. 489). Em 930 condenações produzidas pelo inquisidor Bernard Gui durante a sua carreira, apenas 42 conduziram à pena de morte. Quanto à tortura, em toda a história da Inquisição no Languedoc apenas se assinalam três casos confirmados em que ela foi aplicada, indicando um uso muito longe de ser generalizado. Por outro lado, para que ela fosse aplicada era preciso que houvesse começo de prova, só podia servir para fazer completar confissões já feitas. Acrescentemos que, como todos os tribunais eclesiásticos, o da Inquisição ignora a prisão preventiva e deixa os acusados em liberdade até à apresentação de provas da sua culpabilidade.”

* – A observação foi feita por M. Belperron na sua obra sobre La croisade des albigeois (p. 76)

** – Idem, p. 115.

 

 

Na Idade Média, como em todas as épocas, a criança vai à escola. Em geral, à escola da sua paróquia ou do mosteiro mais próximo. Todas as igrejas agregam a si uma escola, pois o concílio de Latrão, em 1179, faz-lhes disso uma obrigação estrita. É uma disposição corrente, ainda visível na Inglaterra, encontrar reunidos a igreja, o cemitério e a escola. Frequentemente, são também as fundações senhoriais que asseguram a instrução das crianças: Rosny, uma aldeiazinha das margens do Sena, tinha desde o início do século XIII uma escola, fundada por volta do ano 1200 pelo seu senhor Guy V Mauvoisin. Por vezes também, trata-se de escolas puramente privadas, quando os habitantes de um lugarejo associam-se para sustentar um professor encarregado de ensinar as crianças. Um pequeno texto divertido conservou-nos a petição de alguns pais solicitando a demissão de um professor. Não tendo sabido fazer-se respeitar pelos seus alunos, foi por eles desrespeitado, ao ponto de eles o picarem com os seus grafiones (eum pugiunt grafionibus), isto é, os estiletes com os quais eles escrevem nas suas tabuinhas revestidas de cera.

Mas os privilegiados são evidentemente aqueles que podem aproveitar o ensino das escolas episcopais ou monásticas, ou ainda das escolas capitulares, porque os capítulos das catedrais estavam submetidos à obrigação de ensinar o que o referido concílio de Latrão lhes fixara.* Algumas adquiriram na Idade Média uma notabilidade muito particular. Por exemplo, as de Chartres, Lyon, Mans, onde os alunos representavam as tragédias antigas; a de Lisieux, onde no início do século XII o bispo em pessoa se deleitava em ensinar; a de Cambrai, sobre a qual um texto citado pelo erudito Pithou nos informa que elas tinham sido estabelecidas especialmente a fim de serem úteis ao povo na condução dos seus assuntos temporais.

As escolas monásticas tiveram talvez ainda mais renome, como as de Bec e Fleury-sur-Loire, onde foi aluno o rei Roberto, o Piedoso; a de Saint-Géraud d’Aurillac, onde Gerbert aprendeu os primeiros rudimentos das ciências que ele próprio iria levar até um tão alto grau de perfeição; a de Marmoutier, perto de Tours; a de Saint-Bénigne de Dijon, etc. Em Paris encontram-se desde o século XII três séries de estabelecimentos escolares: a escola Notre-Dame, ou grupo de escolas do bispado, cuja direção é assumida pelo chantre para as classes elementares, e pelo chanceler para o grau superior; as escolas de abadias como Sainte-Geneviève, Saint-Victor ou Saint-Germain-des-Prés; e enfim as instituições particulares abertas por professores que obtiveram a licença de ensino, como por exemplo Abelardo.

A criança era aí admitida com sete ou oito anos de idade, e o ensino que preparava para os estudos da universidade estendia-se como hoje por uma dezena de anos. São os números que fornece o abade Gilles de Muisit. Os rapazes eram separados das moças, que tinham em geral os seus estabelecimentos particulares, menos numerosos talvez, mas onde os estudos eram por vezes muito ativos. A abadia de Argenteuil, onde foi educada Heloísa, ensinava às moças a Sagrada Escritura, as letras, a medicina e mesmo a cirurgia, sem contar o grego e o hebraico que Abelardo lá ensinou. Em geral, as pequenas escolas proporcionavam aos seus alunos as noções de gramática, aritmética, geometria, música e teologia, que lhes permitiriam aceder às ciências estudadas nas universidades. É possível que algumas tenham comportado uma espécie de ensino técnico. A Histoire Littéraire cita, por exemplo, a escola de Vassor, na diocese de Metz, na qual, enquanto se aprendia a Sagrada Escritura e as letras, se trabalhava o ouro, a prata, o cobre.**

Os mestres eram quase sempre secundados pelos estudantes mais velhos e mais formados, como atualmente no ensino mútuo. Diz Gilles de Muisit, lembrando as suas recordações de juventude:

 

C’étoit ce belle chose de plenté d’écoliers:

Ils manoient ensemble par loges, par soliers,

Enfants de riches hommes et enfants de toiliers.

 

Que bela coisa ver a quantidade de aprendizes:

Habitavam desvãos e quartos, em comum,

Filhos de homens ricos e filhos de artesãos.

 

De fato, nessa época as crianças de todas as “classes” da sociedade eram instruídas juntas, como o testemunha a anedota célebre de Carlos Magno sendo severo para com os filhos dos barões que se mostravam preguiçosos, ao contrário dos filhos dos servos e de pessoas pobres. A única distinção estabelecida consistia nas retribuições: ensino gratuito para os pobres e pago para os ricos. Esta gratuidade podia prolongar-se por toda a duração dos estudos, e mesmo para o acesso ao ensino, uma vez que às pessoas que têm a missão de dirigir e tomar conta das escolas o concílio de Latrão proíbe “exigir dos candidatos ao professorado uma qualquer remuneração pela outorga da licença”.

Há pouca diferença, na Idade Média, na educação dada às crianças de diversas condições. Os filhos dos vassalos menores são educados na residência senhorial, juntamente com os do suserano, e os dos ricos burgueses são submetidos à mesma aprendizagem que o último dos artesãos, se estes querem futuramente tomar conta da loja paterna. É sem dúvida por isto que temos tantos exemplos de grandes personagens saídos de famílias de condição humilde: Suger, que governa a França durante a cruzada de Luís VII, é filho de servos; Maurice de Sully, o bispo de Paris que mandou construir Notre-Dame, nasceu de um mendigo; São Pedro Damião foi guarda-porcos na sua infância; e uma das mais vivas luzes da ciência medieval, Gerbert d’Aurillac, é igualmente pastor; o papa Urbano VI é filho de um pequeno sapateiro de Troyes; e Gregório VII, o grande papa da Idade Média, era filho de um pobre cabreiro.

Inversamente, muitos dos grandes senhores são letrados cuja educação não devia diferir muito da dos clérigos. Roberto, o Piedoso, compõe hinos e seqüências latinas; Guilherme IX, príncipe da Aquitânia, é cronologicamente o primeiro dos trovadores; Ricardo Coração-de-Leão deixou-nos poemas, assim como os senhores de Ussel, dos Baux e tantos outros. E há casos mais excepcionais, como o do rei da Espanha Afonso X, o Astrônomo, que escreve sucessivamente poemas e obras de direito, faz progredir notavelmente os conhecimentos astronômicos da época com a redação das suas Tables alphonsines (Tabelas afonsinas), deixa uma vasta Chronique (Crônica) sobre as origens da história da Espanha e uma compilação de direito canônico e de direito romano, que foi o primeiro Code (Código) do seu país.

Os estudantes mais dotados tomam naturalmente o caminho da universidade. Fazem a sua escolha segundo o ramo que os atrai, pois cada uma tem algo do que se pode considerar uma especialidade. Em Montpellier, é a medicina. Desde 1181 Guilherme VII, senhor desta cidade, deu a qualquer particular — quem quer que seja, e venha de onde vier — a liberdade de ensinar esta arte, desde que apresente suficientes garantias de saber. Orleans tem como especialidade o direito canônico, e Bologne o direito romano. Mas “nada se pode comparar a Paris”, onde o ensino das artes liberais e da teologia atrai os estudantes de todos os países – Alemanha, Itália, Inglaterra, e mesmo da Dinamarca ou Noruega.

Estas universidades são criações eclesiásticas, de algum modo o prolongamento das escolas episcopais, das quais diferem no fato de dependerem diretamente do Papa, e não do bispo do lugar. A bula Parens scientiarum, de Gregório IX, pode ser considerada a carta de fundação da universidade medieval, com os regulamentos promulgados em 1215 pelo cardeal-núncio Roberto de Courçon, agindo em nome de Inocêncio III, e que reconheciam explicitamente aos professores e aos alunos o direito de associação. Criada pelo papado, a universidade tem um caráter inteiramente eclesiástico. Os professores pertencem todos à Igreja, e as duas grandes ordens que a ilustram no século XIII – franciscana e dominicana – nela vão cobrir-se de glória com um S. Boaventura e um S. Tomás de Aquino. Os alunos, mesmo os que não se destinam ao sacerdócio, são chamados clérigos, e alguns deles usam a tonsura, o que não quer dizer que aí apenas se ensine a teologia, uma vez que o seu programa comporta todas as grandes disciplinas científicas e filosóficas, da gramática à dialética, passando pela música e pela geometria.

Essa “universidade” de professores e estudantes forma um corpo livre. Desde o ano 1200, Filipe Augusto tinha subtraído os seus membros da jurisdição civil — dito de outra maneira, dos seus próprios tribunais. Professores, alunos e mesmo os criados destes dependem apenas dos tribunais eclesiásticos, o que é considerado um privilégio e consagra a autonomia dessa corporação de elite. Professores e estudantes estão, portanto, inteiramente isentos de obrigações relativamente ao poder central. Administram-se a si próprios, tomando em comum as decisões que lhes respeitam, e gerem sua tesouraria sem nenhuma ingerência do Estado. É esta a característica essencial da universidade medieval, e provavelmente aquela que mais a distingue da de hoje.

Esta liberdade favorece entre as diversas cidades uma emulação, da qual teríamos dificuldade em fazer uma idéia atualmente. Durante anos, os professores de Direito Canônico de Orleans e de Paris disputam entre si os alunos. Os registros da Faculdade de Decreto, publicados na coleção dos Documents inédits, formigam de recriminações a propósito dos estudantes parisienses, que vão fraudulentamente concluir a sua licenciatura em Orleans, onde os exames são mais fáceis. Ameaças, anulações, processos, nada surte efeito, e as contestações prolongam-se interminavelmente. Emulação também a respeito dos professores mais estimados ou menos, das discussões apaixonadas das teses, que os estudantes tomam a peito até ao ponto de algumas vezes entrar em greve. A universidade, mais ainda do que nos nossos dias, é na Idade Média um mundo turbulento.

É também um mundo cosmopolita. As quatro “nações” entre as quais estavam repartidos os clérigos parisienses indicam-no suficientemente: havia os picardos, os ingleses, os alemães e os franceses. Os estudantes vindos de cada um destes países eram, portanto, suficientemente numerosos para formar um grupo que tinha a sua autonomia, os seus representantes, a sua atividade particular. Fora disto, assinalam-se correntemente nos registros nomes italianos, dinamarqueses, húngaros e outros. Os professores que ensinam vêm também de todas as partes do mundo. Siger de Brabant e Jean de Salisbury, seus nomes já os identificam; Alberto Magno vem da Renânia; S. Tomás de Aquino e S. Boaventura, da Itália. Não há então obstáculo às trocas de pensamento, e só se julga um professor pela amplidão do seu saber.

Esse mundo matizado possui uma língua comum, o latim, única falado na universidade. É sem dúvida o que lhe evita ser uma nova Torre de Babel, apesar dos grupos diversificados de que é composta. O uso do latim facilita as relações, permite aos sábios comunicar-se de uma ponta à outra da Europa, dissipa de antemão qualquer confusão na expressão, e salvaguarda também a unidade de pensamento.

Os problemas que apaixonam os filósofos são os mesmos em Paris, Edimburgo, Oxford, Colônia, Pavia, ainda que cada centro e cada personalidade lhes imprima o seu caráter próprio. Tomás de Aquino, vindo da Itália, acaba de esclarecer e ultimar em Paris uma doutrina cujas bases concebera em Colônia, escutando as lições de Alberto Magno. Nada se parece menos com um vaso fechado do que a Sorbonne do século XIII. Gilles de Muisit resume deste modo a vida dos estudantes:

 

Clercs viennent à études de toutes nations

Et en hiver s’assemblent par plusiers légions.

On leur lit e ils oient pour leur instruction;

En été s’en retraient moult en leurs régions.

 

Clérigos vêm aos estudos de todas as nações

E no inverno se reúnem em vários grupos.

Fazem-se leituras e escutam, instruindo-se;

No verão regressam muitos às suas regiões.

 

O seu vaivém é perpétuo. Partem para alcançar a universidade da sua escolha, voltam para as suas terras nas férias, põem-se a caminho para aproveitar as lições de um professor de nomeada ou estudar uma matéria na qual determinada cidade se especializou. Já mencionamos as “fugas” dos candidatos aos exames de direito canônico para Orleans, e isto se repete constantemente, por vezes entre cidades muito distantes. Estudantes e professores são freqüentadores das estradas reais. A cavalo e mais freqüentemente a pé, percorrem léguas e léguas, dormindo em celeiros ou na hospedaria. Com os peregrinos e os mercadores, são eles que mais contribuem para a extraordinária animação que na Idade Média reinou nas nossas estradas, e que elas apenas reencontraram no século do automóvel, ou melhor, depois do desenvolvimento dos desportos de ar livre. O mundo letrado da época é um mundo itinerante. A tal ponto que em alguns o movimento se torna uma necessidade, uma mania.”

* - Diz Luchaire: “Em cada diocese fora das escolas rurais ou paroquiais que já existiam, os capítulos e os mosteiros principais tinham as suas escolas, o seu pessoal de professores e de alunos” (La société française au temps de Philippe-Auguste, p. 68).

** - Cf. Livro VII, c. 29, citado por J. Guiraud, Histoire partiale, histoire vraie, p. 348.

 

 

A universidade foi o grande orgulho da Idade Média. Os papas falam com benevolência desse “rio de ciência que, através das suas múltiplas derivações, irriga e fecunda o terreno da Igreja universal”. Nota-se, não sem satisfação, que em Paris a multidão dos estudantes é tal que o seu número chega a ultrapassar o da população.* É-se cheio de indulgência por eles, e gozam da simpatia geral apesar das suas ”gracinhas” e pilhérias, que frequentemente incomodam os burgueses. Algumas cenas da sua vida foram descritas por um dos escultores do portal Saint-Étienne, em Notre-Dame de Paris: Vemo-los a ler e estudar; uma mulher vem perturbá-los, e arranca-os dos seus livros; para a punir, é colocada no pelourinho por ordem da autoridade. Os reis dão o exemplo desse modo de tratar os “escolares” como meninos mimados: Filipe Augusto, depois da batalha de Bouvines, mandou um mensageiro anunciar a sua vitória em primeiro lugar aos estudantes parisienses.

Tudo o que respeita ao saber é assim honrado na Idade Média: “Com desonra morra merecidamente quem não gosta de livro”, dizia um provérbio.** Basta inclinarmo-nos sobre os textos para encontrar sinal das medidas pelas quais qualquer apetite de ciência era encorajado e alimentado. Entre outras, citamos a criação em 1215 de uma cátedra de teologia em Paris, especialmente para permitir aos padres da diocese aperfeiçoarem-se e completarem os seus estudos, o que testemunha a preocupação de manter um grau elevado de instrução, mesmo no baixo clero. O “homem avisado”, esse tipo de homem completo que foi o ideal do século XIII, devia ser necessariamente um letrado.

Nestas condições, podemos perguntar-nos se na Idade Média o povo era tão ignorante como em geral se supõe. Ele tinha ao seu alcance, incontestavelmente, os meios de se instruir, e a pobreza não era um obstáculo, uma vez que o custeio dos estudos podia ser inteiramente gratuito, da escola da aldeia (ou antes, da paróquia) até à universidade. E ele aproveitava-se disso, uma vez que abundam os exemplos de pessoas humildes tornadas grandes clérigos.

Significa isto que a instrução estava tão divulgada como nos nossos dias? Parece que sobre este ponto houve um mal-entendido, pois mais ou menos se confundiu a cultura com a letra, pois para nós um iletrado é fatalmente um ignorante. O número de iletrados era sem dúvida maior na Idade Média do que na nossa época.*** Mas é justo este ponto de vista? O alfabeto pode ser tomado como único critério da cultura? Do fato de a educação se ter tornado sobretudo visual, pode-se concluir que o homem apenas se educa pela visão?

Num capítulo dos estatutos municipais de Marselha, datando do século XIII, depois de enumerar as qualidades exigidas de um bom advogado, acrescenta-se litteratus vel non litteratus (quer seja letrado, quer não). Isto parece muito significativo, pois pode-se ser um bom advogado sem saber ler nem escrever, ou seja, conhecer o costume, o direito romano, o manejo da linguagem e ignorar o alfabeto. Noção que nos é difícil de admitir, mas que contudo é de importância capital para compreender a Idade Média. Era-se mais instruído então pelo ouvido do que pela leitura. Por muito honrados que sejam, os livros e os escritos têm apenas um lugar secundário. O papel de primeiro plano é reservado à palavra, ao verbo, em todas as circunstâncias da vida. Nos nossos dias, oficiais e funcionários redigem relatórios, mas na Idade Média aconselham-se e deliberam; uma tese não é uma obra impressa, é uma discussão; a conclusão de um ato não é uma assinatura aposta ao fim de um escrito, é a tradição manual ou empenhamento verbal; governar é informar-se, inquirir, depois fazer proclamar as decisões. (...)

Nestas condições, podemos perguntar-nos se na Idade Média o povo era tão ignorante como em geral se supõe. Ele tinha ao seu alcance, incontestavelmente, os meios de se instruir, e a pobreza não era um obstáculo, uma vez que o custeio dos estudos podia ser inteiramente gratuito, da escola da aldeia (ou antes, da paróquia) até à universidade. E ele aproveitava-se disso, uma vez que abundam os exemplos de pessoas humildes tornadas grandes clérigos.

Significa isto que a instrução estava tão divulgada como nos nossos dias? Parece que sobre este ponto houve um mal-entendido, pois mais ou menos se confundiu a cultura com a letra, pois para nós um iletrado é fatalmente um ignorante. O número de iletrados era sem dúvida maior na Idade Média do que na nossa época.**** Mas é justo este ponto de vista? O alfabeto pode ser tomado como único critério da cultura? Do fato de a educação se ter tornado sobretudo visual, pode-se concluir que o homem apenas se educa pela visão?

Num capítulo dos estatutos municipais de Marselha, datando do século XIII, depois de enumerar as qualidades exigidas de um bom advogado, acrescenta-se litteratus vel non litteratus (quer seja letrado, quer não). Isto parece muito significativo, pois pode-se ser um bom advogado sem saber ler nem escrever, ou seja, conhecer o costume, o direito romano, o manejo da linguagem e ignorar o alfabeto. Noção que nos é difícil de admitir, mas que contudo é de importância capital para compreender a Idade Média. Era-se mais instruído então pelo ouvido do que pela leitura. Por muito honrados que sejam, os livros e os escritos têm apenas um lugar secundário. O papel de primeiro plano é reservado à palavra, ao verbo, em todas as circunstâncias da vida. Nos nossos dias, oficiais e funcionários redigem relatórios, mas na Idade Média aconselham-se e deliberam; uma tese não é uma obra impressa, é uma discussão; a conclusão de um ato não é uma assinatura aposta ao fim de um escrito, é a tradição manual ou empenhamento verbal; governar é informar-se, inquirir, depois fazer proclamar as decisões.

Um elemento essencial da vida medieval foi a pregação. Nessa época, pregar não era monologar em termos escolhidos perante um auditório silencioso e convencido. Pregava-se um pouco por todo lado, não apenas nas igrejas, mas também nos mercados, nos campos de feira, no cruzamento das estradas; e de modo muito vivo, cheio de calor e de ímpeto. O pregador dirigia-se ao auditório, respondia às suas perguntas, admitia mesmo as suas contradições, os seus rumores, as suas invectivas. Um sermão agia sobre a multidão, podia desencadear imediatamente uma cruzada, propagar uma heresia, preparar revoltas. O papel didático dos clérigos era então imenso. Eram eles que ensinavam aos fiéis a sua história e as suas lendas, a sua ciência e a sua fé; que comunicavam os grandes acontecimentos, transmitia de uma ponta à outra da Europa a notícia da tomada de Jerusalém, ou a da perda de Saint-Jean d’Acre; que aconselhavam uns e guiavam outros, mesmo nos seus negócios profanos. Nos nossos dias são prejudicados nos seus estudos e na vida aqueles que não têm memória visual, a qual no entanto é mais rara, de exercício mais automático e menos racional que a memória auditiva. Na Idade Média a pessoa instruía-se escutando, e a palavra era de ouro.”

* - A afirmação não pode ser tomada à letra, mas não deixa de ter interesse saber que a população parisiense nessa época compreendia pouco mais de quarenta mil habitantes.

** - Renart, Prov. franç., II, 99.

*** - De fato é bem menos do que se disse, uma vez que a maior parte das testemunhas que intervêm nos atos notariais sabem assinar; e entre outros exemplos tem-se o de Joana d’Arc, pequena camponesa que contudo sabia escrever.

**** - De fato é bem menos do que se disse, uma vez que a maior parte das testemunhas que intervêm nos atos notariais sabem assinar; e entre outros exemplos tem-se o de Joana d’Arc, pequena camponesa que contudo sabia escrever.

 

 

Para nós, uma obra literária é coisa pessoal e imutável, fixada na forma que o seu autor lhe deu, daí a nossa obsessão contra o plágio. Na Idade Média, o anonimato é corrente. Uma ideia, uma vez emitida, pertence imediatamente ao domínio público, passa de mão em mão, ornamenta-se com mil fantasias, sofre todas as adaptações imagináveis, e só cai no esquecimento quando dela se esgotaram os múltiplos aspectos. O poema leva uma vida independente do seu criador, é coisa móvel e renasce incessantemente. Qualquer achado literário é retomado, modificado, amplificado, rejuvenescido com o movimento e a animação que caracterizam a vida. O erro dos críticos alemães, vendo na Chanson de Roland uma obra coletiva e impessoal, explica-se ao considerar esse caráter fluido das nossas grandes gestas, e em geral das produções literárias da Idade Média. Na sua origem houve certamente uma atividade precisa, mas elas não deixaram de evoluir, ao gosto dos poetas que as enriqueciam com uma nova seiva, ou simplesmente dos jograis que as recitavam a seu modo e nelas inseriam episódios da sua lavra.”

Luz Sobre a Idade Média (Parte II), de Régine Pernoud

Editora: Publicações Europa-América

ISBN: 978-97-2104-279-7

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 208

Sinopse: Ver Parte I

 

A Idade Média, tal como se apresentava, corria o risco de nunca conhecer senão o caos e a decomposição. Nascida de um império desmoronado e de vagas de invasões sucessivas, formada por povos desarmônicos que tinham cada um os seus usos, seus quadros e sua ordem social diferentes, quando não opostos, e quase todos um sentido muito vivo das castas, da sua superioridade de vencedores, ela deveria apresentar o mais inconcebível esboroamento, e de fato o apresentou no início.

Contudo, verificamos que nos séculos XII e XIII essa Europa tão dividida, tão perturbada por ocasião do seu nascimento, atravessa uma era de harmonia e de união tal como nunca conhecera, e talvez não conhecerá mais no decorrer dos séculos. Por ocasião da primeira cruzada, vemos príncipes sacrificarem os seus bens e os seus interesses, esquecer as suas querelas para tomarem juntamente a Cruz. Os povos mais diferentes reuniram-se num único exército. A Europa inteira estremeceu à palavra de um Urbano II, de um Pedro, o Eremita, mais tarde de um São Bernardo ou de um Foulques de Neuilly. Vemos monarcas, preferindo a arbitragem à guerra, submeter-se ao julgamento do Papa ou de um rei estrangeiro para regularizar as suas dissensões. Fato ainda mais notável, encontramo-nos perante uma Europa organizada. Ela não é um império, não é uma federação — é a Cristandade.

É preciso reconhecer aqui o papel representado pela Igreja e pelo papado na ordem europeia. Foram, com efeito, fatores essenciais de unidade. A diocese, a paróquia, confundindo-se frequentemente com o domínio, foram durante o período de decomposição da Alta Idade Média as células vivas a partir das quais se reconstituiu a nação. As grandes datas que para sempre marcariam a Europa são as da conversão de Clóvis, assegurando no mundo ocidental a vitória da hierarquia e da doutrina católicas sobre a heresia ariana; e a coroação de Carlos Magno pelo Papa Estêvão II, que consagra o duplo poder espiritual e temporal, cuja união formará a base da cristandade medieval.

É preciso ter em conta, de uma maneira mais geral, a influência do dogma católico que ensina que todos os filhos da Igreja são membros de um mesmo corpo, como o lembram os versos de Rutebeuf:

 

Tous sont un corps en Jésus-Christ,

Dont je vous montre par l’écrit

Que li uns est membre de l’autre.

 

Todos somos um só corpo em Jesus Cristo,

E assim eu vos mostro, pelo que está afirmado,

Que nós somos membros d’Ele.

 

A unidade de doutrina, vivamente sentida na época, jogava a favor da união dos povos. Carlos Magno compreendera-o tão bem que, para conquistar a Saxônia, enviava missionários de preferência a exércitos, e o fazia por convicção, não por simples ambição. A história repetiu-se no Império Germânico com a dinastia dos Otões. A Cristandade pode definir-se praticamente como a “universidade” dos príncipes e dos povos cristãos obedecendo a uma mesma doutrina, animados de uma mesma fé, e reconhecendo desde logo o mesmo magistério espiritual. Esta comunidade de fé traduziu-se numa ordem europeia assaz desconcertante para cérebros modernos, bastante complexa nas suas ramificações, grandiosa contudo quando a examinamos no seu conjunto. A paz na Idade Média foi muito precisamente, segundo a bela definição de Santo Agostinho, “a tranquilidade da ordem”.

Um ponto central permanece fixo – o papado, centro da vida espiritual. Mas muito diversas são as suas relações com os diferentes Estados. Alguns estão ligados à Santa Sé por títulos especiais de dependência. É o caso do Império Romano-Germânico, cujo chefe, sem se encontrar sob a suserania do Papa, ao contrário do que se acreditou frequentemente, deve contudo ser escolhido ou pelo menos confirmado por ele. Isto explica-se, reportando-nos às circunstâncias que presidiram à sua fundação e à parte essencial que aí tinha tomado o papado, que não faz mais do que conferir-lhe o seu título e julgar casos de deposição. Outros reinos são vassalos da Santa Sé, pois num dado momento da sua história pediram aos papas a sua proteção: como os reis da Hungria, entregando-lhe solenemente a sua coroa; ou como os reis da Inglaterra, Polônia ou Aragão, pedindo-lhe que autenticasse os seus direitos, de modo que o selo de São Pedro ratifica doravante e preserva as suas liberdades. Outros enfim, e entre estes a França, não têm nenhum laço de dependência temporal com a Santa Sé, mas aceitam naturalmente as suas decisões em matéria de consciência, e também se submetem de boa vontade à sua determinação arbitral.

Tal é, nas suas grandes linhas, o edifício da Cristandade, como o precisou Inocêncio III numa época em que ela já se encontrava realizada na prática havia vários séculos. Assenta essencialmente numa harmonia de ordem mística entre os povos. Quando examinamos os princípios do equilíbrio europeu, concebidos na altura do tratado de Vestfália, não podemos impedir-nos de achar bastante pobre esta dosagem das nacionalidades, esta agulha de balança fazendo as vezes das sólidas bases sobre as quais se fundava a paz medieval.

Equivocamo-nos frequentemente sobre o caráter destas relações entre a Igreja e os Estados. Estamos habituados a ver na autoridade espiritual e na autoridade temporal dois poderes claramente distintos, e por vezes esta “intrusão” do papado nos assuntos dos príncipes foi julgada intolerável. Tudo se aclara se nos integrarmos na mentalidade da época. Não é a Santa Sé que impõe o seu poder aos príncipes e aos povos, mas os príncipes e os povos que, sendo crentes, recorrem naturalmente ao poder espiritual, quer eles queiram fazer fortalecer a sua autoridade ou respeitar os seus direitos, quer desejem fazer solucionar as suas questões por um árbitro imparcial. Como o enuncia Gregório X: “Se é dever daqueles que dirigem os Estados salvaguardar os direitos e a independência da Igreja, é também dever daqueles que detêm o governo eclesiástico tudo fazer para que os reis e os príncipes possuam a plenitude da sua autoridade”. Os dois poderes, em vez de se ignorarem ou de se combaterem, reforçam-se mutuamente.

O que pôde prestar-se a confusão é que na Idade Média é geral professar um maior respeito pela autoridade religiosa do que pela autoridade laica e julgar uma superior à outra, segundo o dito célebre de Inocêncio III: “Como a alma está para o corpo, ou como o Sol está para a Lua”. Trata-se de hierarquia de valores, que não arrasta necessariamente a uma subordinação de fato.

Além disso, é preciso não esquecer que a Igreja, guardiã da fé, é também juiz no foro íntimo e depositária dos juramentos, o que ninguém na Idade Média teria ousado contestar. Quando é cometido um escândalo público, ela tem o direito e o dever de pronunciar a sua sentença, de absolver o culpado ou de perdoar o arrependido. Portanto, quando excomunga um Roberto, o Piedoso, ou um Raimundo de Toulouse, ela apenas usa de um poder que lhe é universalmente reconhecido. Do mesmo modo, quando ela desobriga do juramento de fidelidade os súditos do rei Filipe Augusto ou do imperador Henrique IV, na sequência da sua conduta repreensível ou das suas exações, ela exerce uma das suas funções soberanas, porque na Idade Média todo juramento toma por testemunha Deus, e por consequência a Igreja, que tem o poder de unir e de desunir.

Que tenha havido abusos da parte da Santa Sé, como da parte do poder temporal, é coisa incontestável, e a história das disputas entre o papado e o império está aí para prová-lo. Mas podemos dizer que no conjunto esta tentativa audaciosa de unir os dois poderes — o espiritual e o temporal — teve um saldo positivo para o bem comum. Era uma garantia de paz e de justiça esse poder moral do qual não se podiam infringir as decisões sem correr perigos precisos — entre outros o de se ver despojado da sua própria autoridade e afastado da estima dos seus súditos. Enquanto Henrique II está em luta com Thomas Beckett, não se sabe qual prevalecerá, mas no dia em que o rei decide desembaraçar-se do prelado por um assassínio, é ele o vencido. A reprovação moral e as sanções que ela provoca têm então mais eficácia que a força material. Para um príncipe interdito, a vida deixa de ser tolerável: os sinos silenciosos à sua passagem, os súditos fugindo à sua aproximação, tudo isto compõe uma atmosfera à qual não resistem até mesmo os caracteres mais fortemente temperados. Até Filipe Augusto acaba finalmente por se submeter, quando nenhum constrangimento exterior o teria podido impedir de deixar a infeliz Ingeburga gemer na prisão.

Durante a maior parte da Idade Média, o direito de guerra privada permanece considerado inviolável, tanto pelo poder civil como pela mentalidade geral. Manter a paz entre os barões e os Estados apresenta, portanto, imensas dificuldades; e se não fosse esta concepção da Cristandade, a Europa correria o risco de nunca passar de um vasto campo de batalha. Mas o sistema em vigor permite opor toda uma série de obstáculos ao exercício da vingança privada. Em primeiro lugar, a lei feudal exige que um vassalo que jurou fidelidade ao seu senhor não possa apresentar armas contra ele. Houve faltas, evidentemente, mas assim mesmo o juramento de fidelidade está longe de ser uma simples teoria ou um simulacro. Quando o rei da França Luís VII vai em socorro do conde Raimundo V, ameaçado em Toulouse por Henrique II da Inglaterra, este retira-se, ainda que dispondo de forças muito superiores e assegurado da vitória, e declara que não pode cercar uma praça em que se encontra o seu suserano. Na ocasião, o laço feudal tinha livrado a realeza francesa de uma situação particularmente perigosa.

Por outro lado, o sistema feudal maneja toda uma sucessão de arbitragens naturais. O vassalo pode sempre recorrer de um senhor ao suserano deste; o rei, à medida que a sua autoridade se estende, exerce cada vez mais o seu papel de mediador; o Papa, enfim, permanece o árbitro supremo. Frequentemente, basta a reputação de justiça ou de santidade de um grande personagem para que se recorra a ele. A história da França nos dá mais do que um exemplo: Luís VII é o protetor de Thomas Beckett e o seu intermediário, quando dos seus conflitos com Henrique II; São Luís impõe-se de igual modo à Cristandade quando pronuncia o célebre Dit d’Amiens, que acalmava os diferendos entre Henrique III da Inglaterra e os seus barões.

Temos ainda que qualquer nobre, por vingança ou por ambição, pode invadir as terras do seu vizinho, e que o poder central não é suficientemente poderoso para substituir pela sua justiça a do indivíduo, sem falar das guerras sempre possíveis entre os Estados. A Idade Média não contestou o problema da guerra em geral, mas restringiu sucessivamente o domínio, as crueldades e as durações da guerra por uma série de soluções práticas e de medidas aplicadas no conjunto da Cristandade. É assim, com leis precisas, que se edificou a Cristandade pacífica.

A primeira dessas medidas foi a Paz de Deus, instaurada desde o fim do século X.* É também a primeira distinção que foi feita, na história do mundo, entre o fraco e o forte, entre os guerreiros e as populações civis. Desde 1023 o bispo de Beauvais faz o rei Roberto, o Piedoso, assumir o juramento da paz. É feita proibição de maltratar as mulheres, as crianças, os camponeses e os clérigos. As casas dos agricultores são, como as igrejas, declaradas invioláveis. Reserva-se a guerra para aqueles que estão equipados para combater. É esta a origem da distinção moderna entre objetivos militares e construções civis – noção totalmente ignorada pelo mundo pagão. A interdição não foi sempre respeitada, mas aquele que a transgredia sabia que se expunha a sanções temporais e espirituais temíveis.

A Trégua de Deus foi inaugurada no início do século XI pelo imperador Henrique II, o rei da França Roberto, o Piedoso, e o Papa Bento VIII. Os concílios de Perpignan e de Elne, de 1041 e 1059, já a haviam renovado. Na sua passagem por Clermont em 1095, Urbano II a define e a proclama solenemente, no decurso deste mesmo concílio que esteve na origem das cruzadas. Ela reduz a guerra no tempo, como a Paz de Deus a reduz no seu objeto: por ordem da Igreja, é proibido qualquer ato de guerra desde o primeiro domingo do Advento até o oitavo da Epifania; desde o primeiro dia da Quaresma até o oitavo da Ascensão; e durante o resto do tempo, da quarta-feira à noite à segunda-feira de manhã. Conseguimos imaginar o que eram essas guerras fragmentadas, aos bocadinhos, que não podiam durar mais de três dias seguidos? Também aqui há infrações, sujeitando o transgressor a todos os riscos e também à vergonha. Quando Oton de Brunswick é derrotado em Bouvines — contra todas as expectativas, pelo exército muito inferior em número de Filipe Augusto — não se deixa de ver aí o castigo daquele que tinha ousado romper a trégua e travar o combate no domingo.

Os príncipes cristãos tomam por vezes iniciativas que completam e secundam as da Igreja. Filipe Augusto, por exemplo, institui a “quarentena-do-rei”, pela qual um intervalo de quarenta dias deve obrigatoriamente decorrer entre a ofensa feita, e devidamente anotada por aquele que a recebeu, e a abertura das hostilidades. Sábia medida, que reserva tempo para a reflexão e as conciliações de comum acordo. Este mesmo intervalo de quarenta dias encontra-se nos prazos concedidos aos que pertencem a uma cidade inimiga, para voltar para a sua terra e pôr os seus haveres em segurança quando rebentar uma guerra. Assim, não poderia na Idade Média existir questão de sequestro ou de campo de concentração.

Mas a grande glória da Idade Média é ter empreendido a educação do soldado, é ter feito do soldado da velha guarda um cavaleiro. Aquele que se batia por amor dos grandes golpes, da violência e da pilhagem tornou-se o defensor do fraco; transformou a sua brutalidade em força útil, o seu gosto pelo risco em coragem consciente, a sua turbulência em atividade fecunda; simultaneamente, o seu ardor vivificou-se e disciplinou-se. O soldado tem doravante um papel a desempenhar, e os inimigos que ele é convidado a combater são precisamente aqueles em quem subsistem os desejos pagãos de massacre, devassidão e pilhagem. A cavalaria é a instituição medieval da qual, com justiça e com maior gosto, se guardou a recordação, pois jamais se teve concepção mais nobre do título de guerreiro. Tal como a encontramos instituída desde o início do século XII, ela é realmente uma ordem e quase um sacramento. Contrariamente à opinião geralmente difundida, ela não se confunde com a nobreza. “Ninguém nasce cavaleiro”, diz um provérbio. A plebeus, mesmo a servos, ela é conferida, e nem todos os nobres a recebem. Mas ser armado cavaleiro é tornar-se nobre, e uma máxima do tempo pretende que “o meio de ser enobrecido sem cartas é ser feito cavaleiro”.

Do futuro cavaleiro exigem-se qualidades precisas, o que se traduz no simbolismo das cerimônias durante as quais se lhe concede o seu título. Deve ser piedoso, dedicado à Igreja, respeitador das suas leis. A sua iniciação começa com uma noite inteira passada em orações diante do altar sobre o qual está deposta a espada que ele cingirá. É a vigília de armas, depois da qual ele toma um banho em sinal de pureza, e depois ouve missa e comunga. Entregam-lhe então solenemente a espada e as esporas, lembrando-lhe os deveres do seu cargo: ajudar o pobre e o fraco, respeitar a mulher, mostrar-se corajoso e generoso; a sua divisa deve ser valentia e generosidade. Vêm em seguida a armadura e a rude colée, a pranchada dada sobre o ombro. Em nome de São Miguel e São Jorge ele é investido cavaleiro.

Para cumprir bem os seus deveres, precisa ser tão hábil como bravo: a cerimônia prossegue então com uma série de provas físicas, que são outros tantos testes destinados a experimentar o seu valor. Ele entra na liça para “correr em alvos” — isto é, estando a cavalo, derrubar um manequim —, e para desmontar em torneio os adversários que o venham desafiar. Os dias em que são armados novos cavaleiros são dias de festa, em que cada um rivaliza em proezas sob os olhos dos castelães, da corte senhorial e do povo miúdo concentrado nas circunvizinhanças do campo de torneios. Destreza e vigor físico, benevolência e generosidade, o cavaleiro representa um tipo de homem completo cuja beleza corporal é acompanhada pelas mais sedutoras qualidades:

 

Tant est prud’homme si comme semble

Qui a ces deux choses ensemble:

Valeur du corps e bonté d’âme.

 

É homem probo, como parece,

Quem possui juntas estas duas coisas:

Valor de corpo e bondade de alma.

 

Aquilo que se espera dele não é apenas, como no ideal antigo, um equilíbrio, um meio termo, mens sana in corpore sano, mas um máximo: ele é convidado a ultrapassar-se a si próprio, a ser ao mesmo tempo o mais belo e o melhor, colocando a sua pessoa a serviço de outrem. Aqueles romances em que quais os heróis da Távola Redonda vão sem cessar em busca do mais maravilhoso feito heroico, traduzem apenas o ideal exaltante oferecido então àquele que sente a vocação das armas. Nada de mais dinâmico (para empregar uma expressão moderna) do que o tipo do bom cavaleiro.

A cavalaria pode ser perdida, do mesmo modo que merecida. Aquele que falta aos seus deveres é destituído publicamente, cortam-lhe as suas esporas de ouro rentes ao salto, em sinal de infâmia. Dizia-se Honni soit hardement où il n’a gentillesse, o que equivalia a exprimir que o puro valor guerreiro não era nada sem nobreza de alma.

De fato, a cavalaria foi o grande entusiasmo da Idade Média. O sentido da palavra cavalheiresco, que ela nos legou, traduz muito fielmente o conjunto de qualidades que suscitavam a sua admiração. Basta percorrer a sua literatura, contemplar as obras de arte que dela nos restam, para ver por todo lado — nos romances, nos poemas, nos quadros, nas esculturas, nos manuscritos com iluminuras — surgir esse cavaleiro do qual a bela estátua da catedral de Bamberg representa um perfeito espécime. Por outro lado, é suficiente ler os nossos cronistas para constatar que esse tipo de homem não existiu apenas nos romances, e que a encarnação do perfeito cavaleiro, realizada no trono de França na pessoa de um São Luís, teve nessa época uma multidão de êmulos.

Nestas condições, compreende-se quais podiam ser as características da guerra medieval. Estritamente localizada, reduz-se frequentemente a um simples passeio militar, à tomada de uma cidade ou de um castelo. Os meios de defesa são então muito superiores aos de ataque: as muralhas, os fossos de uma fortaleza garantem a segurança dos sitiados; uma corrente estendida ao longo da entrada de um porto constitui uma salvaguarda, pelo menos provisória. Para o ataque, a quase nada se recorre, apenas às armas de mão: espada e lança. Se um belo corpo-a-corpo arranca dos cronistas gritos de admiração, eles só têm desdém pelas armas de covardes — o arco ou a besta — que diminuem os riscos, mas também as grandes façanhas.

Para cercar uma praça, utilizam-se máquinas: catapultas, manganelas, como a sapa e a mina, mas confia-se sobretudo na fome e na duração das operações para submeter os sitiados. Também as torres de menagem estão providas adequadamente: enormes provisões de cereais amontoam-se em vastas caves, que a lenda romântica transformou em “masmorras”,** e arranjam-se de modo a ter sempre um poço ou uma cisterna no interior da praça-forte. Quando uma máquina de guerra é demasiado mortífera, o papado proíbe o seu uso: o da pólvora de canhão, cujos efeitos e composição se conhecem desde o século XIII, só começa a propagar-se no dia em que a sua autoridade já não é suficientemente forte, e em que já se começam a esboroar os princípios da Cristandade. Como escreve Orderic Vital, “por temor de Deus, por cavalheirismo, procurava-se aprisionar de preferência a matar. Guerreiros cristãos não têm sede de espalhar sangue”. É corrente, no campo de batalha, ver o vencedor perdoar àquele que desmontou, e que lhe grita “obrigado!”. Cita-se como exemplo a batalha de Andelys, conduzida por Luís VI em 1119, na qual se assinalam somente três mortos entre novecentos combatentes.”

* – O concílio de Charroux, em 989, lança o anátema contra todo aquele que entre pela força numa igreja e dela leve qualquer coisa; contra todo aquele que roube os bens dos camponeses ou dos pobres, as suas ovelhas, o seu boi, o seu burro.

** – Essas vastas caves serviam de reserva. Continham apenas um orifício circular no meio da abóbada, pelo qual se faziam passar os cestos para tirar o grão. Elas existem ainda em certos países, como por exemplo a Argélia.

 

 

A história da igreja está tão intimamente ligada à Idade Média em geral, que é incômodo fazer um capítulo à parte. Seria preferível, sem dúvida, estudar a propósito de cada característica da sociedade medieval, ou de cada etapa da sua evolução, a influência que ela exerceu ou o papel que nela desempenhou.* É impossível, aliás, ter uma visão justa da época se não se possui algum conhecimento da Igreja, não só nas suas grandes linhas, mas também em pormenores como a liturgia ou a hagiografia. E a primeira recomendação que se faz aos aprendizes-medievalistas — isto é, aos alunos da École des Chartes — é de se familiarizarem com eles.

Apreenderemos de imediato a importância do seu papel, se nos reportarmos ao estado da sociedade durante os séculos a que se convencionou chamar a Alta Idade Média — período de esboroamento de forças, durante o qual a Igreja representa a única hierarquia organizada. Face à desagregação de todo o poder civil, um ponto permanece estável, o papado, resplandecendo no mundo ocidental na pessoa dos bispos, e o conjunto da organização permanece sólido mesmo nos períodos de eclipse que a Santa Sé sofreu.

Esse movimento que leva a arraia-miúda a procurar a proteção dos grandes proprietários, a confiar-se a eles por atos de recomendação (commendatio) que vemos multiplicarem-se desde o fim do Baixo Império, só podia funcionar a favor dos bens eclesiásticos, pois agrupava-se à volta dos mosteiros mais facilmente do que à volta dos senhores laicos. “Vive-se bem sob o báculo”, dizia um adágio popular, traduzindo o provérbio latino Jugum ecclesiæ, jugum dilecte. Abadias como Saint-Germain-des-Prés, Marmoutiers, São Vítor de Marselha, viram assim acrescentarem-se as suas possessões. Do mesmo modo, os bispos tornaram-se frequentemente os senhores temporais de toda ou parte da cidade da qual haviam feito a sua metrópole, e cooperam ativamente a defendê-la das invasões. A atitude do bispo Gozlin por ocasião do ataque de Paris pelos normandos está longe de constituir um fato isolado, e frequentemente a própria arquitetura da igreja traz a marca dessa função militar que era então, para todos aqueles que possuíam algum poder, um dever e uma necessidade. É o caso das Santas Marias do Mar ou das igrejas fortificadas da Thiérache.

A grande sabedoria de Carlos Magno foi compreender o interesse que apresentava essa hierarquia solidamente organizada, e que a Igreja podia ser fator de unidade para o império. De fato, a lei católica era a única a poder cristalizar as possibilidades de união, que se revelavam graças ao advento da dinastia carolíngia, a única a poder cimentar uns aos outros esses grupos de homens dispersos, refugiados nos seus domínios. Exatamente como aceitava a feudalidade, achando mais útil servir-se do poder dos barões do que combatê-lo, ele conduziu a exaltação da Cristandade favorecendo a Igreja. A sua coroação em Roma pelo Papa Estêvão II permanece uma das grandes datas da Idade Média, associando para séculos o poder espiritual e o poder temporal. A doação de Pepino acabava de fornecer ao papado o domínio territorial que devia constituir a base do seu magistério doutrinal. Recebendo a sua coroa das mãos do Papa, Carlos Magno afirmava simultaneamente o seu próprio poder e o caráter desse poder, apoiando-se em bases espirituais para estabelecer a ordem europeia. O papado adquirira um corpo, o império adquire uma alma.”

* - Por exemplo, trabalhos recentes valorizaram a origem não apenas religiosa, mas propriamente eucarística das associações medievais: a procissão do Santo Sacramento foi a “causa direta” da fundação das confrarias operárias. Ver, a este propósito, a bela obra de G. Espinas, Les origines du droit d’association (Lille, 1943, t. I, p. 1034).

 

 

Se os ataques param perante a personalidade do Papa, os cardeais são frequentemente acusados dessa afeição ao dinheiro, que faz distribuir as prebendas e os benefícios aos mais ricos, não aos mais dignos. E sabe-se também quantos protestos vigorosos suscita esse nepotismo e o dos bispos:

 

A leurs neveux, qui rien ne valent

Qui en leurs lits encore étalent

Donnent provendes, et trigalent [s’amusent]

Pour les deniers que ils emmallent [encaissent].

 

Aos sobrinhos que nada valem,

Que nos seus leitos ainda se embalam,

Dão prebendas, e divertem-se

Com os dinheiros que recebem.

 

Étienne de Fougères, a quem devemos estes versos, dá conselhos salutares sobre esta questão àqueles que têm a missão de nomear os pastores dos fiéis:

 

Ordonner doit bon clerc et sage

De bonne mœurs, de bom aage,

Et né de loyal mariage;

Peu ne me chaut de quel parage [origine]

Ne doit nul prouvère ordonner,

Se il moustier lui veut donner,

Que il ne sache sermonner,

E la gent bien arraisonner.

 

Deve-se ordenar um bom e sábio clérigo

De bons costumes, de boa idade,

E nascido de honesto casamento,

Pouco importa qual a origem.

Nenhum prior deve ordenar,

Se o mosteiro lhe quiser dar,

Quem não saiba pregar um sermão

E as gentes persuadir.

 

Esta riqueza devia inevitavelmente arrastar uma decadência e um relaxamento nos costumes, dos quais a Igreja se defendeu através de reformas sucessivas. É Rutebeuf ainda que se ergue, entre outros, contra esta apatia de clérigos preocupados antes de tudo em se aproveitarem dos seus bens materiais:

 

Ah! prélats de Saint Église

Qui, pour garder les corps de bise

Ne voulez aller aux matines,

Messire Geoffroy de Sargines

Vous demande delà la mer.

Mais je dis cil fait à blâmer

Qui rien nulle plus vous demande

Fors bons vins et bonnes viandes

Et que le poivre soit bien fort.

 

Ah! prelados da Santa Igreja

Que, para pouparem o corpo ao frio

Não querem ir às matinas,

O distinto Geoffroy de Sargines

Precisa de vós além-mar.

Mas digo-vos que, se aquele vos condena,

Que ninguém mais vos solicite

Excelentes vinhos e excelentes carnes,

E que se carregue bem na pimenta.

 

Estas fraquezas estão na origem das crises que a Igreja medieval atravessa por diversas vezes, e também dos grandes movimentos que a agitam. A evolução do clero regular dá muito exatamente conta da evolução geral da Igreja. Nos primeiros séculos os monges beneditinos realizam um trabalho prático: são cultivadores de baldios, abrindo o caminho ao Evangelho com a relha do seu arado; abatem florestas, secam pântanos, aclimatam a vinha e semeiam o trigo; o seu papel é eminentemente social e civilizador; são eles também que guardam para a Europa os manuscritos da Antiguidade e fundam os primeiros centros de erudição. Respondendo às necessidades da sociedade que evangelizam, foram pioneiros e educadores, ajudando poderosamente o progresso material e moral desta sociedade.

As ordens que se fundam depois têm um caráter completamente diferente: franciscanos, dominicanos, têm um fim em primeiro lugar doutrinal, representam uma reação precisamente contra esse abuso das riquezas que se censura à Igreja do seu tempo, e contra as heresias que a ameaçam. Ao mesmo tempo acentuam o movimento de reforma, já desenhado por duas vezes com os monges negros de Cluny e os monges brancos de Clairvaux e de Citeaux. Assim, a própria Igreja sentira os perigos a que a expunha o seu lugar no mundo medieval e remediava-os, continuando a fazer face às necessidades novas que se apresentavam. Aos perigos que ameaçavam os Lugares Santos, e às dificuldades sentidas pelos peregrinos que os visitam, opõe o auxílio guerreiro dos templários e o auxílio caritativo dos hospitalários. Cada situação nova suscita da sua parte novas iniciativas, através das quais se pode seguir toda a marcha de uma época. Cada estado de fato suscita da sua parte novas iniciativas, através das quais se pode seguir toda a marcha de uma época.

É mais difícil deslindar a influência moral exercida pela Igreja nas instituições privadas, porque a maior parte das noções que lhe são devidas entraram de tal modo nos costumes, que temos dificuldade em nos darmos conta da novidade que elas representavam. A igualdade moral do homem e da mulher, por exemplo, representa um conceito inteiramente estranho à Antiguidade, em que a questão nem sequer se tinha posto. De igual modo, na legislação familiar era uma profunda originalidade substituir o direito do mais forte pela proteção devida aos fracos. O papel do pai de família e do proprietário fundiário encontrava-se completamente modificado. Face ao seu poder, proclamava-se a dignidade da mulher e da criança e fazia-se da propriedade uma função social.

O modo de encarar o casamento, segundo as ideias cristãs, era também radicalmente novo. Até então só se vira a sua utilidade social, e por consequência se admitira tudo o que não provocava desordens deste ponto de vista. Pela primeira vez na história do mundo, a Igreja via o casamento em relação ao indivíduo, e considerava nele não a instituição social, mas a união de dois seres para desabrochamento pessoal, para a realização do seu fim terrestre e sobrenatural. Isto provocava, entre outras consequências, a necessidade de livre adesão em cada um dos cônjuges, que ela tornava ministros de um sacramento, tendo o padre como testemunha e a igualdade de deveres para ambos. Até ao concílio de Trento as formalidades da Igreja são muito reduzidas, visto que basta a troca de juramentos perante um padre — “Tomo-te por esposo. Tomo-te por esposa” — para que o casamento seja válido. É em casa que se passam as cerimônias simbólicas: beber pela mesma taça, comer do mesmo pão:

 

Boire, manger, coucher ensemble

Font mariage, ce me semble.

 

Beber, comer, dormir juntos

Fazem o casamento, parece-me.

 

Este é o adágio de direito consuetudinário, ao qual se acrescenta no século XVI: “Mas é preciso que a Igreja passe por lá”.

Seria ainda necessário assinalar a influência exercida pela doutrina eclesiástica no regime de trabalho. O direito romano apenas conhecia, nos contratos de arrendamento ou de venda, a lei da oferta e da procura, enquanto o direito canônico, e depois dele o direito consuetudinário, submetem a vontade dos contraentes às exigências da moral e à consideração da dignidade humana. Isto devia ter uma profunda influência nos regulamentos dos mestres, que proibiam à mulher os trabalhos demasiado fatigantes para ela — a tapeçaria de tear alto, por exemplo. O resultado foram também todas aquelas precauções de que se rodeavam os contratos de aprendizagem e o direito de visita concedido aos jurados, tendo por finalidade controlar as condições de trabalho do artesão e a aplicação dos estatutos. Sobretudo, é preciso apontar como muito revelador o fato de ter estendido à tarde de sábado o repouso de domingo, no momento em que a atividade econômica se amplifica com o renascimento do grande comércio e o desenvolvimento da indústria.

Uma revolução mais profunda tinha de ser introduzida pelas mesmas doutrinas no concernente à escravatura. Notemos que a Igreja não se ergueu contra a instituição propriamente dita de escravatura, que era uma necessidade econômica das civilizações antigas. Mas lutou para que o escravo, tratado até então como uma coisa, fosse daí em diante considerado como um homem e possuísse os direitos próprios da dignidade humana. Uma vez obtido este resultado, a escravatura encontrava-se praticamente abolida, sendo a evolução facilitada pelos costumes germânicos, que conheciam um modo de servidão muito suavizado. O conjunto deu lugar à servidão medieval, que respeitava os direitos do ser humano, e como restrição à suas liberdades apenas introduzia a ligação à gleba. É curioso constatar que o fato paradoxal da reaparição da escravatura no século XVI, em plena civilização cristã, coincide com o retorno geral ao direito romano nos costumes.

Numerosas concepções próprias das leis canônicas passaram assim para o direito consuetudinário. Deste ponto de vista, é muito revelador o modo como a Idade Média encara a justiça, porque a noção de igualdade espiritual dos seres humanos, estranha às leis antigas, aí se manifesta geralmente. É neste sentido que ao longo do tempo foram introduzidas diversas reformas. Por exemplo, no que respeita à legislação dos bastardos, tratados mais favoravelmente pelo direito eclesiástico do que pelo direito civil, pois eles não são considerados responsáveis pela culpa à qual devem a vida. Em direito canônico, uma pena infligida não tem como fim a vingança da injúria ou a reparação para com a sociedade, mas a emenda do culpado. Também este conceito, inteiramente novo, não deixou de modificar o direito consuetudinário.

A sociedade medieval conhece assim o direito de asilo, consagrado pela Igreja. É bastante desconcertante, para a mentalidade moderna, ver oficiais de justiça sofrerem uma condenação por terem ousado penetrar nas terras de um mosteiro a fim de aí procurar um criminoso, o que aconteceu ao jurista Beaumanoir, entre outros. Acrescentemos que os tribunais eclesiásticos rejeitavam o duelo judiciário bem antes da sua proscrição por Luís IX, e até surgir a ordem de 1324 eles foram os únicos a prever perdas e danos para a parte lesada. Sob a mesma influência, a Idade Média conhecia a gratuidade da justiça para os pobres, que se necessário recebiam mesmo um advogado oficial. A declaração de culpa só era feita após a apresentação da prova, o que significa que se ignorava a prisão preventiva.

Como toda a sociedade medieval, a Igreja goza de privilégios, o principal dos quais consiste precisamente em possuir os seus próprios tribunais. É o privilegium fori, reconhecido a todos os clérigos e àqueles que, pela sua profissão, estão ligados à vida clerical — por exemplo, os estudantes e os médicos. O papel dos “provisorados” ou tribunais eclesiásticos, na Idade Média, foi tanto mais amplo pelo fato de ser imenso o número de pessoas dependendo direta ou indiretamente do clero. E o título de clérigo se aplicava de modo muitíssimo menos restrito que nos nossos dias, gerando frequentemente confusão e contestações entre a justiça real ou senhorial e a justiça eclesiástica. Os clérigos eram todos aqueles que tinham um modo de vida clerical. Era uma definição bastante vaga, que tinha o defeito de convir tanto aos mestres quanto aos alunos que frequentavam a universidade, aos monges e aos padres. Caracterizava-se por vezes com base em sinais exteriores, como a tonsura ou o vestuário, mas estes atributos podiam ser usurpados pelos que preferiam a justiça do direito canônico à do direito consuetudinário, e daí o provérbio “o hábito não faz o monge”. De um modo geral, consideraram-se clérigos aqueles que se submetiam às obrigações da vida clerical, em particular no que respeita à interdição do casamento, que aliás só se estendia então aos clérigos que recebiam as ordens maiores, quer dizer, aos diáconos e aos padres. No século XII esta interdição é aplicada aos subdiáconos, mas não às ordens menores, que não eram então consideradas como tendo de levar forçosamente ao sacerdócio. Os outros clérigos podiam tornar a casar em justas bodas, desde que cum unica et virgine (uma só vez, e com uma jovem). Casar com uma viúva, ou voltar a casar, era para um clérigo expor-se a ser taxado de bigamia, termo que várias vezes gerou confusão.”