Editora: Unicamp
ISBN: 978-85-268-1232-1
Opinião: ★★☆☆☆☆
Páginas: 216
Sinopse: Ver Parte
I
“É preciso perceber e defender esse princípio
com intransigência, para não lançar o marxismo nas confusões de que ele nos
livra, ou seja, num tipo de pensamento para o qual só existe um único modelo de
unidade: a unidade de uma substância, de uma essência ou de um ato; nas
confusões gêmeas do materialismo “mecanicista” e do idealismo da consciência.
Se, por precipitação, se assimilar a unidade estruturada de um todo complexo à
unidade simples de uma totalidade; se se considerar o todo complexo como o puro
e simples desenvolvimento de uma única essência ou substância originária e simples,
então cai-se, no melhor dos casos, de Marx em Hegel, e no pior, de Marx em
Haeckel! Mas, fazendo isso, sacrifica-se justamente a diferença específica que
distingue Marx de Hegel: a que separa radicalmente o tipo de unidade
marxista do tipo de unidade hegeliano, ou a totalidade marxista da
totalidade hegeliana. O conceito de “totalidade” é hoje em dia um conceito de
grande consumo: passa-se quase sem visto de Hegel a Marx, da Gestalt a
Sartre, e assim por diante, invocando uma mesma palavra, a “totalidade”. A
palavra permanece a mesma, porém, o conceito muda, às vezes radicalmente, de um
autor a outro. Assim que se define esse conceito, termina a tolerância. A “totalidade”
hegeliana não é, com efeito, esse conceito maleável que se imagina) é um conceito
perfeitamente definido e individualizado por seu papel teórico. A totalidade
marxista é também, por seu lado, definida e rigorosa. Essas duas “totalidades”
têm em comum apenas: (1) uma palavra; (2) certa concepção vaga da unidade das
coisas; (3) inimigos teóricos. Em contrapartida, quase não têm relação em sua essência
mesma. A totalidade hegeliana é o desenvolvimento alienado de uma unidade
simples, de um princípio simples, ele mesmo momento do desenvolvimento da
Ideia; ela é, portanto, rigorosamente falando, o fenômeno, a manifestação de si
desse princípio simples, que persiste em todas as suas manifestações, logo, na
própria alienação que prepara sua restauração. Ainda aí, não se trata de
conceitos sem consequências. Pois essa unidade de uma essência simples, ao se
manifestar em sua alienação, produz este resultado: que todas as diferenças
concretas que figuram na totalidade hegeliana, inclusive as “esferas” visíveis
dentro dessa totalidade (a sociedade civil, o Estado, a religião, a filosofia
etc.), todas essas diferenças são negadas tão logo afirmadas; visto que elas
não são mais do que os “momentos” da alienação do princípio interno simples da
totalidade, que se realiza negando as diferenças alienadas que ele coloca;
ainda mais, essas diferenças são, como alienações – fenômenos – do princípio
interno simples, todas igualmente “indiferentes”, ou seja, praticamente iguais
diante dele, portanto iguais entre si, e é por isso que em Hegel nenhuma
contradição determinada jamais é dominante.43 Isso quer
dizer que o todo hegeliano possui uma unidade de tipo “espiritual” em que:
todas as diferenças são colocadas apenas para serem negadas, logo indiferentes;
elas nunca existem por si mesmas; elas têm apenas a aparência de uma existência
independente; sem jamais manifestar mais do que a unidade do princípio simples interno
que se aliena nelas, elas são praticamente iguais entre si, como fenômeno
alienado desse princípio.
É, portanto, afirmar que a totalidade
hegeliana: (1) não é realmente mas aparentemente articulada em “esferas”; (2)
que ela não tem por unidade sua complexidade mesma, ou seja, a estrutura dessa
complexidade; (3) que ela é então desprovida dessa estrutura com dominante, que
é a condição absoluta que permite a uma complexidade real ser unidade, e ser
realmente o objeto de uma prática, propondo-se transformar essa
estrutura: a prática política. Não é um acaso se a teoria hegeliana da
totalidade social jamais fundou uma política, se não existe e não pode
existir política hegeliana.
Não é tudo. Se toda contradição o é de um
todo complexo estruturado com dominante, não se pode considerar o todo complexo
fora de suas contradições, fora da relação de desigualdade fundamental entre
elas. Dito de outro modo, cada contradição, cada articulação essencial da
estrutura e a relação geral das articulações dentro da estrutura com dominante
constituem igualmente condições de existência do próprio todo complexo. Essa proposição
é de primeiríssima importância, pois significa que a estrutura do todo – logo,
a “diferença” das contradições essenciais e sua estrutura com dominante – é a
própria existência do todo; que a “diferença” das contradições ( que haja uma
contradição principal etc., e que cada contradição tenha um aspecto principal)
componha uma unidade com as condições de existência do todo complexo.
Claramente, essa proposição implica que as contradições “secundárias” não são o
puro fenômeno da contradição “principal”, que a principal não é a essência da
qual as secundárias seriam outros tantos fenômenos; seriam tão bem seus
fenômenos que praticamente a contradição principal poderia existir sem as
secundárias, ou sem esta e aquela dentre elas, ou poderia existir antes
delas, ou depois.44 Ela implica, ao contrário, que as
contradições secundárias são essenciais à própria existência da contradição
principal, que elas constituem realmente a condição de existência dela, assim
como a contradição principal constituí a condição de existência delas. Tome-se
o exemplo deste todo complexo estruturado que é a sociedade. As “relações de
produção” não são aí o puro fenômeno das forças produtivas, são também sua condição
de existência; a superestrutura não é o puro fenômeno da estrutura, é também
sua condição de existência. Isso decorre do próprio princípio, enunciado anteriormente
por Marx: que em nenhum lugar existe uma produção sem sociedade, ou seja, sem relações
sociais; que a unidade, além da qual é impossível remontar, é a de um todo no
qual, se as relações de produção têm efetivamente por condição de existência a
própria produção, a produção tem ela mesma por condição de existência sua
forma: as relações de produção. Que não haja engano aqui: esse condicionamento
de existência das “contradições” umas pelas outras não anula a estrutura com
dominante que reina sobre as contradições e nelas (no caso, a determinação em
última instância pela economia). Esse condicionamento não desemboca, em sua
aparente circularidade, na destruição da estrutura de dominação que constitui a
complexidade do todo e sua unidade. Muito pelo contrário, ele é, no interior
mesmo da realidade das condições de existência de cada contradição, a
manifestação dessa estrutura com dominante que constitui a unidade do todo.45
Essa reflexão das condições de existência da contradição no interior de si
mesma, essa reflexão da estrutura articulada com dominante que constitui a
unidade do todo complexo no interior de cada contradição, eis o traço mais
profundo da dialética marxista, aquele que tentei apreender recentemente com o
conceito de “sobredeterminação”.46
Para entender esse ponto, passemos pelo desvio
de um conceito familiar. Quando Lenin diz que “a alma do marxismo é a análise
concreta de uma situação concreta”; quando Marx, Engels, Lenin, Stalin, Mao
explicam que “tudo se deve às condições”; quando Lenin descreve as “circunstâncias”
próprias da Rússia de 1917; quando Marx (e toda a tradição marxista) explicam
com mil exemplos que, conforme o caso, é esta ou aquela contradição que domina
etc., eles apelam para um conceito que pode parecer empírico: essas “condições”
são as condições existentes e, ao mesmo tempo, as de existência de um fenômeno considerado.
Ora, esse conceito é essencial ao marxismo justamente porque não é um conceito
empírico: a constatação do que existe ... É, ao contrário, um conceito teórico,
fundado na essência mesma do objeto: o todo complexo sempre-já-dado. Essas condições
não são outra coisa, com efeito, do que a existência em seu papel e em sua
essência do todo em um “‘momento” determinado, no “momento atual” do homem
político, ou seja, a relação complexa de condições de existência recíprocas
entre as articulações da estrutura do todo. É por isso que é teoricamente
possível e legítimo falar das “condições”, como daquilo que permite compreender
que a Revolução, “na ordem do dia”, não eclode e não triunfa senão aqui, na
Rússia, na China, em Cuba; em 1917, em 1949, em 1958, e não em outro lugar; nem
num outro “momento”; que a revolução, comandada pela contradição fundamental do
capitalismo, não tenha triunfado antes do Imperialismo e tenha triunfado nessas
“condições” favoráveis que foram justamente os pontos da ruptura histórica,
esses “elos mais fracos”: não a Inglaterra, a França, a Alemanha, mas a Rússia “atrasada”
(Lenin), a China e Cuba (ex-colônias, terras de exploração do Imperialismo). Se
é teoricamente permitido falar de condições sem cair no empirismo ou na irracionalidade
do “é assim” e do “acaso”, é porque o marxismo concebe as “condições” como a
existência (real, concreta, atual) das contradições que constituem o todo de um
processo histórico. É por isso que Lenin, invocando as “condições existentes”
na Rússia, não caía no empirismo: ele analisava a própria existência do todo
complexo do processo do Imperialismo na Rússia, em seu “momento atual”.
Mas se as condições não são senão a
existência atual do todo complexo, elas são suas próprias contradições, refletindo
cada uma em si a relação orgânica que mantém com as outras na estrutura com
dominante do todo complexo. É porque cada contradição reflete em si (em suas
relações específicas de desigualdade com as outras contradições, e na relação
de desigualdade específica entre seus dois aspectos) a estrutura com dominante
do todo complexo em que ela existe – portanto, a existência atual desse todo;
portanto, suas “condições” atuais –, que ela constitui um todo com elas: assim,
fala-se das “condições de existência” do todo ao falar das “condições
existentes”.
Será ainda necessário voltar a Hegel para
mostrar que nele, finalmente, as “circunstâncias” ou as “condições” não são, também
elas, senão fenômeno, portanto evanescentes, visto que elas nunca exprimem, sob
essa forma de “contingência” batizada “existência da Necessidade”, senão a
manifestação do movimento da Ideia; e é exatamente por isso que as “condições”
não existem verdadeiramente em Hegel, visto que se trata, sob o pretexto da
simplicidade se desenvolvendo em complexidade, de uma pura interioridade, cuja
exterioridade é apenas o fenômeno. Que a “relação com a natureza”, por exemplo,
para o marxismo, faça organicamente parte das “condições de existência”; que ela
seja um dos termos, o principal, da contradição principal (forças produtivas –
relações de produção); que ela seja, como a condição de existência delas, refletida
nas contradições “secundárias” do todo e de suas relações; que as condições de
existência sejam, portanto, um absoluto real, o dado-sempre-já-dado da
existência do todo complexo, que as reflete na sua própria estrutura – eis o
que é totalmente alheio a Hegel, que recusa, ao mesmo tempo, o todo complexo
estruturado e suas condições de existência, dando-se de antemão uma pura
interioridade simples. É por isso que, por exemplo, a relação com a natureza,
as condições de existência de toda sociedade humana desempenham em Hegel apenas
o papel de um dado contingente, do “inorgânico” do clima, da geografia (a
América, esse “silogismo cujo termo médio, o istmo do Panamá, é muito estreito”!),
o papel do famoso “é assim!” (expressão de Hegel diante das montanhas),
designando a Natureza material que deve ser “superada” (aufgehoben!) pelo
Espírito que é sua “verdade”... Sim, quando reduzidas assim à natureza
geográfica, as condições de existência são a própria contingência que será
absorvida, negada-superada pelo Espírito que é sua livre necessidade, e que
existe já na Natureza, na forma mesma da contingência (que faz com que uma
pequena ilha produza um grande homem!). É porque as condições de existência,
naturais ou históricas, nunca são para Hegel senão a contingência, que
elas não determinam em nada a totalidade espiritual da sociedade: a ausência
das condições (no sentido não empírico, não contingente) está necessariamente
ligada, em Hegel, à ausência de estrutura real do todo, à ausência de uma
estrutura com dominante, de uma determinação fundamental e dessa reflexão das
condições na contradição que sua “sobredeterminação” representa.
Se insisto a tal ponto nessa “reflexão”, que
propus chamar “sobredeterminação”, é porque é preciso absolutamente isolá-la,
identificá-la e dar-lhe um nome, para prestar contas teoricamente de sua
realidade, que tanto a prática teórica quanto a prática política do marxismo
nos impõem. Tentemos delimitar bem esse conceito. A sobredeterminação designa,
na contradição, a qualidade essencial seguinte: a reflexão, na própria
contradição, de suas condições de existência, ou seja, de sua situação na
estrutura com dominante do todo complexo. Essa “situação” não é unívoca. Ela
não é nem só sua situação “de direito” (a que ela ocupa na hierarquia das instâncias
em relação à instância determinante: a economia na sociedade), nem só sua
situação “de fato” (se ela é, no estágio considerado, dominante ou
subordinada), mas a relação dessa situação de fato com essa situação de
direito, ou seja, a própria relação que faz dessa situação de fato uma “variação”
da estrutura, com dominante, “invariante” da totalidade.
Se assim for, é preciso então admitir que a
contradição deixa de ser unívoca (as categorias deixam de ter, de uma vez por
todas, um papel e um sentido fixos), visto que reflete em si, em sua própria
essência, sua relação com a estrutura desigualitária do todo complexo.
Mas é preciso acrescentar que, deixando de ser unívoca, ela não se torna “equívoca”
por isso, produto da primeira pluralidade empírica a chegar, à mercê das
circunstâncias, e dos “acasos”, seu puro reflexo, como a alma de tal poeta não
é mais do que essa nuvem que passa. Muito pelo contrário, deixando de ser
unívoca, logo, determinada de uma vez por todas, assegurada em seu papel e sua
essência, ela se revela determinada pela complexidade estruturada que lhe
designa seu papel, como – se me perdoarem esta palavra horrorosa! – complexamente-estruturalmente-desigualitariamente-determinada...
Confesso que preferi uma palavra mais curta: sobredeterminada.
É esse tipo muito particular de determinação
(essa sobredeterminação) que dá à contradição marxista sua especificidade e
permite dar conta teoricamente da prática marxista, seja ela teórica ou
política. Só ela permite compreender as variações e as mutações concretas de
uma complexidade estruturada tal como uma formação social (a única a que a
prática marxista se refere verdadeiramente até agora), não como variações e
mutações acidentais produzidas por “condições” externas sobre um todo estruturado
fixo, suas categorias e a ordem fixa destas (o mecanicismo é esse mesmo), mas
como outras tantas reestruturações concretas inscritas na essência, o “jogo” de
cada categoria; na essência, o “jogo” de cada contradição; na essência, o “jogo”
das articulações da estrutura complexa com dominante que se reflete nelas. É
preciso dizer ainda mais uma vez que, doravante, sem assumir, sem pensar,
depois de tê-lo identificado, esse tipo muito particular de determinação, é
impossível pensar a possibilidade da ação política, da própria prática teórica;
ou seja, muito precisamente a essência do objeto (da matéria-prima) da prática política
e teórica, ou seja, a estrutura do “momento atual” (político ou teórico)
ao qual se aplicam tais práticas. É preciso acrescentar que, sem conceber essa
sobredeterminação, é impossível dar conta teoricamente da simples realidade
seguinte: do prodigioso “trabalho” de um teórico, seja ele Galileu, Spinoza ou
Marx, e de um revolucionário, Lenin e todos os seus irmãos, dedicando seus
sofrimentos, quando não sua vida, a resolver estes pequenos “problemas”...:
elaborar uma teoria “evidente”, fazer a revolução “inevitável”, realizar em sua
própria “contingência” (!) pessoal a Necessidade da História, seja ela teórica
ou política, onde, em breve, o futuro viverá muito naturalmente seu “presente”.
Para tornar esse ponto mais preciso,
retomemos os próprios termos de Mão Tsé-tung. Se todas as contradições estão
submetidas à grande lei da desigualdade; se, para ser marxista e poder agir
politicamente (e, acrescentarei, para poder produzir na teoria), é preciso a
todo custo distinguir o principal do secundário entre as contradições e seus
aspectos; se essa distinção é essencial à prática e à teoria marxista – é, observa
Mao, que ela é requerida para encarar a realidade concreta, a realidade da
história que os homens vivem, para prestar contas de uma realidade onde reina a
identidade dos contrários, ou seja: (1) a passagem, em condições
determinadas, de um contrário no lugar do outro,47 a mudança dos
papéis entre as contradições e seus aspectos (chamaremos de .deslocamento a
esse fenômeno de substituição); (2) “a identidade” dos contrários numa unidade
real (chamaremos de condensação a esse fenômeno de “fusão”). É, com
efeito, a grande lição da prática que, se a estrutura com dominante permanece
constante, o emprego dos papéis muda aí: a contradição principal torna-se secundária,
uma contradição secundária toma seu lugar, o aspecto principal torna-se
secundário, o aspecto secundário torna-se principal. Há sempre uma contradição
principal e contradições secundárias, mas elas trocam de papel na estrutura
articulada com dominante, a qual permanece estável. “Não há absolutamente dúvida
nenhuma” – diz Mao Tsé-tung – “de que, em cada uma das diversas etapas do
desenvolvimento do processo, só existe uma contradição principal que desempenha
o papel dirigente”. Mas essa contradição principal produzida por deslocamento
não se torna “decisiva”, explosiva, a não ser por condensação (por “fusão”).
É ela que constitui o “elo decisivo” que é preciso apreender e puxar para si na
luta política, como diz Lenin (ou na prática teórica...), para que venha toda a
corrente, ou, para empregar uma imagem menos linear, é ela que ocupa a posição
nodal estratégica que é preciso atacar para “desmembrar a unidade” existente.”
Ainda aqui não se deve deixar-se levar pelas aparências de uma sucessão arbitrária
de dominações, pois cada uma constitui uma etapa do processo complexo (base da “periodização”
da história) e é porque lidamos com a dialética de um processo complexo que
lidamos com esses “momentos” sobredeterminados e específicos que são as “etapas”,
os “estágios”, os “períodos”, e com essas mutações de dominação específica que
caracterizam cada etapa. A nodalidade do desenvolvimento (estágios
específicos) e o nódulo específico da estrutura de cada estágio são a
existência e a realidade mesma do processo complexo. Aí está o que funda a
realidade, decisiva na e para a prática política (e muito evidentemente
também para a prática teórica), dos deslocamentos da dominação e das condensações
das contradições, de que Lenin nos dá um exemplo tão claro e tão profundo em
sua análise da Revolução de 1917 – o ponto de “fusão” das contradições, nos
dois sentidos do termo: o ponto em que se condensam (“fundem”) várias
contradições tais que ele se torna o ponto de fusão (crítico), o ponto
da mutação revolucionária, da “refundação”. (...)
Toda a história da teoria e da prática
marxista confirma esse ponto. Não é somente como o efeito exterior da interação
entre diferentes formações sociais existentes que a teoria e a prática
marxistas encontram a desigualdade, mas no seio mesmo de cada formação social.
E, no seio de cada formação social, não é somente na forma da simples
exterioridade (ação recíproca entre a infraestrutura e a superestrutura)
que a teoria e a prática marxistas encontram a desigualdade, mas numa forma
organicamente interior a cada instância da totalidade social, a cada
contradição. É “o economicismo” ( o mecanicismo), e não a verdadeira tradição
marxista, que põe de uma vez por todas no lugar a hierarquia das instâncias,
determina a cada uma sua essência e seu papel, e define o sentido unívoco de
suas relações; é ele que identifica para sempre os papéis e os atores, não
concebendo que a necessidade do processo consiste na permuta dos papéis “segundo
as circunstâncias”. É o economicismo que identifica de antemão e para sempre a
contradição-determinante-em-última-instância com o papel de contradição-dominante,
que assimila para sempre este ou aquele “aspecto” (forças de produção,
economia, prática...) com o papel principal, e tal outro “aspecto”
(relações de produção, política, ideologia, teoria...) com o papel secundário,
ao passo que a determinação em última instância pela economia se exerce
justamente, na história real, nas permutas de papel principal entre a economia,
a política, e a teoria etc. Engels o havia muito bem visto e indicado na sua
luta contra os oportunistas da Segunda Internacional, que esperavam da eficácia
unicamente da economia o advento do socialismo. Toda a obra política de Lenin
atesta a profundidade deste princípio: que a determinação em última instância
pela economia se exerce, segundo os estágios do processo, não acidentalmente,
não por razões exteriores ou contingentes, mas essencialmente, por razões
interiores e necessárias, por permutas, deslocamentos e condensações.
A desigualdade é, portanto, bem interior à
formação social, porque a estruturação com dominante do todo complexo, este
invariante estrutural, é ela mesma a condição das variações concretas das
contradições que a constituem, logo, de seus deslocamentos, condensações e
mutações etc. e, inversamente, porque tal variação é a existência desse invariante.
O desenvolvimento desigual (ou seja, esses mesmos fenômenos de deslocamento
e condensação que se podem observar no processo de desenvolvimento do todo
complexo) não é, portanto, exterior à contradição, mas constitui sua essência
mais íntima. A desigualdade que existe no “desenvolvimento” das contradições,
ou seja, no próprio processo, existe, portanto, na essência da própria
contradição. Se o conceito de desigualdade não estivesse associado a uma
comparação externa de caráter quantitativo, eu diria de bom grado que a
contradição marxista é “desigualmente determinada”, com a condição de que se
aceite reconhecer sob essa desigualdade a essência interna que ela designa: a sobredeterminação.
Resta-nos ainda examinar um último ponto: o
papel motor da contradição no desenvolvimento de um processo. O
entendimento da contradição não teria sentido se não permitisse o entendimento
desse motor.
O que se disse de Hegel permite compreender
em que sentido a dialética hegeliana é motriz, e em que sentido o conceito é “autodesenvolvimento”.
Quando a fenomenologia celebra, num texto belo como a noite, “o trabalho
do negativo” nos seres e nas obras, a morada do Espírito na própria morte, a
inquietude universal da negatividade desmembrando o corpo do Ser para engendrar
o corpo glorioso desse infinito, do nada tornado Ser, o Espírito, todo filósofo
treme em sua alma como diante dos Mistérios. No entanto, a negatividade só pode
conter o princípio motor da dialética, a negação da negação, como a reflexão
rigorosa dos pressupostos teóricos hegelianos da simplicidade e da origem. A
dialética é negatividade como abstração da negação da negação, ela mesma
abstração do fenômeno da restauração da alienação da unidade originária. É por
isso que, em todo começo hegeliano, é o Fim que está em ação; é por isso que a
origem nunca faz senão crescer em si mesma e produzir em si seu próprio fim, em
sua alienação. O conceito hegeliano – “o que permanece no ser-outro o que ele é”
– é assim a existência da negatividade. A contradição é, portanto, motriz em
Hegel como negatividade, ou seja, como reflexão pura do “ser em si mesmo no ser
outro”, logo, como reflexão pura do princípio da própria alienação: a
simplicidade da Ideia.
Não pode ser assim em Marx. Se lidamos apenas
com processos de estrutura complexa com dominante, o conceito de negatividade (e
os conceitos que ele reflete: negação da negação, alienação etc.) não pode
servir para o entendimento científico dos desenvolvimentos desses processos.
Assim como o tipo da necessidade do desenvolvimento não pode ser reduzido à
necessidade ideológica da reflexão do fim sobre seu começo, igualmente o
princípio motor do desenvolvimento não pode ser reduzido ao desenvolvimento da
ideia em sua própria alienação. Negatividade e alienação são,
portanto, conceitos ideológicos, que, para o marxismo, só podem
designar seu próprio conteúdo ideológico. Que o tipo hegeliano da
necessidade e a essência hegeliana do desenvolvimento sejam rejeitados não
significa absolutamente que estejamos, por essa razão, no vazio teórico da
subjetividade, do “pluralismo”, ou da contingência. Muito pelo contrário, é com
a condição de nos libertarmos dos pressupostos hegelianos que estaremos seguros
de escapar verdadeiramente desse vazio. É, com efeito, porque o processo é
complexo e possui uma estrutura com dominante que é possível prestar contas
realmente de seu devir e de todos os aspectos típicos desse devir. (...)
Dizer que a contradição é motriz, em teoria
marxista, é, portanto, dizer que ela implica uma luta real, afrontamentos
reais situados em lugares precisos da estrutura do todo complexo; é,
portanto, dizer que o lugar do enfrentamento pode variar conforme a relação
atual das contradições na estrutura com dominante; é dizer que a condensação
da luta num lugar estratégico é inseparável do deslocamento da
dominância entre as contradições; que esses fenômenos orgânicos de deslocamento
e de condensação são a própria existência da “identidade dos
contrários”, até que eles produzam a forma globalmente visível da mutação ou
do salto qualitativo que sanciona o momento revolucionário da refundação do
todo. É, a partir daí, possível prestar contas da distinção capital para a
prática política entre momentos distintos de um processo: “não antagonismo”, “antagonismo”
e “explosão”. A contradição, diz Lenin, está sempre em ação, seja qual for o
momento. Esses três momentos não são, portanto, senão três formas de existência
da contradição. Caracterizarei de bom grado o primeiro como o momento em que a
sobredeterminação da contradição existe na forma dominante do deslocamento (a
forma “metonímica” daquilo que é identificado na expressão consagrada: “mudanças
quantitativas” na história ou teoria); o segundo como o momento em que a
sobredeterminação existe na forma dominante da condensação (conflitos de
classe agudos no caso da sociedade, crise teórica na ciência etc.); e o último,
a explosão revolucionária (na sociedade, na teoria etc.), como o momento da
condensação global instável provocando o desmembramento e o remembramento do
todo, ou seja, uma reestruturação global do todo sobre uma base
qualitativamente nova. A forma puramente “acumulativa”, por mais que essa “acumulação”
possa ser puramente quantitativa (a soma não é senão excepcionalmente dialética)
aparece, portanto, como uma forma subordinada, da qual Marx nos deu um único exemplo
puro, não metafórico, mas “excepcional” (uma exceção baseada nas suas próprias
condições) no único texto d’O capital que constitui o objeto de um
célebre comentário de Engels no Anti-Dühring
(Livro I, cap. 12).”
43 Não se deve confundir a teoria de Hegel
com o julgamento de Marx sobre Hegel. Por mais espantoso que isso possa parecer
a quem o conhece por intermédio do julgamento de Marx, Hegel não é, na sua
teoria da sociedade, o avesso de Marx. O princípio “espiritual” que constitui a
unidade interna da totalidade hegeliana histórica não é de maneira nenhuma
assimilável ao que figura em Marx na forma da “determinação em última instância
pela economia”. Não se encontra em Hegel o princípio inverso: a determinação em
última instância pelo Estado ou pela filosofia. É Marx que diz: na
realidade, a concepção hegeliana da sociedade equivale a fazer da
Ideologia o motor da História, porque é uma concepção ideológica. Mas Hegel não
diz nada parecido. Não há para ele na sociedade, na totalidade
existente, determinação em última instância. A sociedade hegeliana não é
unificada por uma instância fundamental existente no interior dela mesma, ela
não é nem unificada, nem determinada por uma de suas “esferas”, quer seja a
esfera política, quer seja a filosófica ou a religiosa. Para Hegel, o princípio
que unifica e determina a totalidade social não é tal “esfera” da sociedade,
mas um princípio que não tem nenhum lugar nem corpo privilegiado na sociedade,
pela razão de que ele reside em todos os lugares e em todos os corpos, Ele está
em todas as determinações da sociedade, econômicas, políticas, jurídicas etc.,
e até nas mais espirituais. Tal como Roma: não é sua ideologia que a
unifica e a determina, para Hegel, mas um princípio “espiritual” (ele mesmo
momento do desenvolvimento da Ideia), que se manifesta em todas as
determinações romanas, economia, política, religião, direito etc. Esse
princípio é a personalidade jurídica abstrata. É um princípio “espiritual”,
do qual o direito romano não é senão uma manifestação entre todas as outras. No
mundo moderno, é a subjetividade, princípio igualmente universal: a
economia é aí subjetividade, como a política, a religião, a filosofia, a música
etc. A totalidade da sociedade hegeliana é feita de tal maneira que seu
princípio é, ao mesmo tempo, imanente e transcendente a ela, mas que, enquanto
tal, ele nunca coincide com nenhuma realidade determinada da própria sociedade.
É por isso que a totalidade hegeliana pode ser dita afetada por uma unidade de
tipo “espiritual”, onde cada elemento é pars totalis, e onde as esferas visíveis
não são senão o desdobramento alienado e restaurado do dito princípio interno.
Quer dizer que não é possível por nenhuma razão identificar (mesmo como seu
avesso) o tipo de unidade da totalidade hegeliana com a estrutura de unidade da
totalidade marxista.
44 Esse mito de origem é ilustrado pela
teoria do contrato social “burguês”, que, em Locke, por exemplo, essa pura joia
teórica, define uma atividade econômica no estado de natureza anterior (de
direito ou de fato, pouco importa) às suas condições jurídicas e políticas de
existência!
45 Marx nos dá, na Introdução..., a
mais bela demonstração da invariância da estrutura com dominante na aparente
circularidade dos condicionamentos, quando analisa a identidade da produção, do
consumo, da distribuição por meio da troca. Capaz de dar ao leitor a vertigem hegeliana
... – “nada mais simples então”, diz Marx, “para um hegeliano, do que colocar a
produção e o consumo como idênticos” (p. 158), mas é enganar-se inteiramente. “O
resultado a que chegamos não é o de que a produção, a distribuição, a troca, o
consumo são idênticos, mas que eles são todos os elementos de uma totalidade,
diferenciações no interior de uma unidade”, na qual é a produção, na sua
diferença específica, que é determinante. “Uma produção determinada determina
portanto um consumo, uma distribuição, uma troca determinados; ela regula
igualmente as relações recíprocas determinadas desses diferentes momentos. A
bem dizer, a produção, também ela, sob a forma exclusiva, é, por seu lado,
determinada pelos outros fatores” (p. 164).
46 Não forjei esse conceito. Como o indicara,
tomei-o emprestado de duas disciplinas existentes: no caso, a linguística e a
psicanálise. Ele possui aí uma “conotação” objetiva dialética e – particularmente
em psicanálise – formalmente assaz aparentada ao conteúdo que designa aqui, para
que esse empréstimo não seja arbitrário. É preciso necessariamente uma palavra
nova para designar uma precisão nova. Pode-se decerto forjar um neologismo.
Pode-se também “importar” (como diz Kant) um conceito assaz aparentado para que
sua domesticação (Kant) seja fácil. Esse “parentesco” poderia, ademais,
permitir, por sua vez, um acesso à realidade psicanalítica.
47 Sobre a contradição, pp. 56-57.
“Marx professa sempre uma filosofia do homem:
“Ser radical é pegar as coisas pela raiz; ora, para o homem, a raiz é o próprio
homem[...]” (1843). Mas o homem não é então liberdade-razão senão porque ele é inicialmente
“Gemeinwesen”, “ser comunitário”, um ser que só se realiza teoricamente
(ciência) e praticamente (política) em relações humanas universais, tanto com
os homens quanto com seus objetos (a natureza exterior “humanizada” pelo
trabalho). Ainda aqui, a essência do homem funda a história e a política.
A história é a alienação e a produção da
razão na desrazão, do homem verdadeiro no homem alienado. Nos produtos
alienados de seu trabalho (mercadorias, Estado, religião), o homem, sem o
saber, realiza a essência do homem. Essa perda do homem, que produz a história
e o homem, supõe uma essência preexistente definida. No fim da história, esse
homem, que se tornou objetividade inumana, terá apenas de reaver, como sujeito,
sua própria essência alienada na propriedade, na religião e no Estado, para se
tornar homem total, homem verdadeiro.
Essa nova teoria do homem funda um novo tipo
de ação política: a política de uma reapropriação prática. O apelo à
simples razão do Estado desaparece. A política não é mais simples crítica
teórica, edificação da razão pela imprensa livre, mas reapropriação prática de
sua essência pelo homem. Pois o Estado, como a religião, é o homem, mas o homem
despossuído; o homem está cindido entre o cidadão (Estado) e o homem civil,
duas abstrações. No céu do Estado, nos “direitos do cidadão”, o homem vive
imaginariamente a comunidade humana de que é privado na terra dos “direitos do
homem”. Assim, a revolução não será mais somente política (reforma
liberal racional do Estado), mas “humana” (“comunista”), para restituir ao
homem sua natureza alienada na forma fantástica do dinheiro, do poder e dos deuses.
A partir de então, essa revolução prática será a obra comum da filosofia e do
proletariado, pois, na filosofia, o homem é afirmado teoricamente; no
proletariado, ele é negado praticamente. A penetração da filosofia no
proletariado será a revolta consciente da afirmação contra sua própria negação,
a revolta do homem contra suas condições inumanas. Então, o proletariado negará
sua própria negação e tomará posse de si no comunismo. A revolução é a própria prática
da lógica imanente à alienação: é o momento em que a crítica, até então
desarmada, reconhece suas armas no proletariado. Ela fornece ao proletariado a
teoria do que ele é: o proletariado lhe fornece em compensação sua força armada,
uma única e mesma força onde cada um se alia apenas consigo mesmo. A aliança
revolucionária do proletariado e da filosofia é, portanto, ainda aqui, selada
com a essência do homem.”
“A partir de 1845, Marx rompe radicalmente
com toda teoria que funda a história e a política numa essência do homem. Essa
ruptura única comporta três aspectos teóricos indissociáveis:
(1) formação de uma teoria da história e da
política fundada em conceitos radicalmente novos: conceitos de formação social,
forças produtivas, relações de produção, superestrutura, ideologias, determinações
em última instância pela economia, determinação específica dos outros níveis
etc.;
(2) crítica radical das pretensões teóricas
de todo humanismo filosófico;
(3) definição do humanismo como ideologia.
Nessa nova concepção, tudo se encaixa também
rigorosamente, mas é um novo rigor: a essência do homem criticada (2) é
definida como ideologia (3), categoria que pertence à nova teoria da sociedade
e da história (1).
A ruptura com toda antropologia ou todo
humanismo filosóficos não é um detalhe secundário: ela é constitutiva da
descoberta científica de Marx.
Ela significa que, num único e mesmo ato, Marx
rejeita a problemática da filosofia anterior e adota uma problemática nova. A filosofia
anterior idealista (“burguesa”) repousava, em todos os seus domínios e
desenvolvimentos (“teoria do conhecimento”, concepção da história, economia
política, moral, estética etc.), sobre uma problemática da natureza humana (ou
da essência do homem). Essa problemática foi, durante séculos, a evidência mesma,
e ninguém sonhava em questioná-la, mesmo em suas modificações internas.
Essa problemática não era vaga nem imprecisa:
era, ao contrário, constituída por um sistema coerente de conceitos precisos, estreitamente
articulados uns aos outros. Ela implicava, quando Marx a enfrentou, os dois
postulados complementares definidos por ele na sexta tese sobre Feuerbach:
(1) que existe uma essência universal do
homem;
(2) que essa essência é o atributo dos “indivíduos
considerados isoladamente” que são seus sujeitos reais.
Esses dois postulados são complementares e
indissociáveis. Ora, sua existência e sua unidade pressupõem toda uma concepção
empirista-idealista do mundo. Para que a essência do homem seja atributo
universal, é preciso efetivamente que sujeitos concretos existam, como
dados absolutos: o que implica um empirismo do sujeito. Para que esses
indivíduos empíricos sejam homens, é preciso que eles tragam em si toda a
essência humana, se não de fato, ao menos de direito: o que implica um idealismo
da essência. O empirismo do sujeito implica, portanto, o idealismo da
essência e reciprocamente. Essa relação pode se inverter em seu “contrário” – empirismo
do conceito, idealismo do sujeito. A inversão respeita a estrutura fundamental
dessa problemática, que permanece fixa.
Pode-se reconhecer nessa estrutura-tipo não
só o princípio das teorias da sociedade (de Hobbes a Rousseau), da economia
política (de Petty a Ricardo), da moral (de Descartes a Kant), mas também o
próprio princípio da “teoria” idealista e materialista (pré-marxista) “do
conhecimento” ( de Locke a Feuerbach, passando por Kant). O conteúdo da
essência humana ou dos sujeitos empíricos pode variar (como se vê de Descartes a
Feuerbach); o sujeito pode passar do empirismo ao idealismo (como se vê de
Locke a Kant): os termos e sua relação variam apenas no interior de uma
estrutura-tipo invariante, que constitui essa problemática mesma: a um
idealismo da essência responde sempre um empirismo do sujeito (ou a um
idealismo do sujeito, um empirismo da essência).
Ao rejeitar a essência do homem como
fundamento teórico, Marx rejeita todo esse sistema orgânico de postulados. Ele
expulsa as categorias filosóficas sujeito, empirismo, essência ideal etc.
de todos os domínios em que elas reinavam. Não só da economia política
(rejeição do mito do homo economicus, ou seja, do indivíduo com
faculdades e necessidades definidas, na condição de sujeito da economia clássica);
não só da história (rejeição do atomismo social e do idealismo político-ético);
não só da moral (rejeição da ideia moral kantiana); mas também da própria
filosofia: visto que o materialismo de Marx exclui o empirismo do sujeito (e
seu inverso: o sujeito transcendental) e o idealismo do conceito (e seu
inverso: o empirismo do conceito).
Essa revolução teórica total somente tem
condições de recusar os antigos conceitos porque os substitui por conceitos
novos. Marx funda efetivamente uma nova problemática, uma nova maneira
sistemática de colocar questões ao mundo, novos princípios e um novo método.
Essa descoberta está contida imediatamente na teoria do materialismo histórico,
na qual Marx propõe não só uma nova teoria da história das sociedades, mas, ao
mesmo tempo, implícita porém necessariamente, uma nova “filosofia” com
implicações infinitas. Assim, quando Marx substitui na teoria da história o
velho par indivíduos-essência humana por novos conceitos (forças produtivas,
relação de produção etc.), ele propõe de fato, simultaneamente, uma nova
concepção da “filosofia”. Ele substitui os antigos postulados
(empirismo-idealismo do sujeito, empirismo-idealismo da essência) que estão na
base, não só do idealismo, mas também do materialismo pré-marxista, por um materialismo
dialético-histórico da práxis: ou seja, por uma teoria dos diferentes níveis
específicos da prática humana (prática econômica, prática política,
prática ideológica, prática científica) em suas articulações próprias, fundada
nas articulações específicas da unidade da sociedade humana. Resumindo, digamos
que Marx substitui o conceito “ideológico” e universal da “prática”
feuerbachiana por uma concepção concreta das diferenças específicas que permite
situar cada prática particular nas diferenças específicas da estrutura social.
Para compreender o que Marx traz de radicalmente
novo, é preciso então tomar consciência não só da novidade dos conceitos do
materialismo histórico, mas também da profundidade da revolução teórica que
eles implicam e anunciam. É com essa condição que é possível definir o estatuto
do humanismo: rejeitando suas pretensões teóricas e reconhecendo sua
função prática de ideologia.”
“Convencionou-se dizer que a ideologia
pertence à região “consciência”. Que não haja engano sobre essa denominação,
que permanece contaminada pela problemática idealista anterior a Marx. Na
verdade, a ideologia tem muito pouco a ver com a “consciência”, supondo que
esse termo tenha um sentido unívoco. Ela é profundamente inconsciente, mesmo
quando se apresenta (como na “filosofia” pré-marxista) numa forma refletida. A
ideologia é efetivamente um sistema de representações, mas essas representações
não têm, no mais das vezes, nada a ver com a “consciência”; elas
são, no mais das vezes, imagens, ‘eventualmente conceitos, mas é antes de tudo
corno estruturas que elas se impõem à imensa maioria dos homens, sem
passar por sua “consciência”. São objetos culturais percebidos-aceitos-suportados,
que atuam funcionalmente sobre os homens por um processo que lhes escapa. Os
homens “vivem” sua ideologia corno o cartesiano “via” ou não via – se não
estava olhando para ela – a Lua a duzentos passos: de maneira nenhuma como
uma forma de consciência, mas como um objeto do seu “mundo” – como seu
próprio “mundo”. O que se quer dizer, todavia, quando se diz que a
ideologia diz respeito à “consciência” dos homens? Primeiro, que se distingue a
ideologia das outras instâncias sociais, mas também que os homens vivem suas
ações, comumente atribuídas pela tradição clássica à liberdade e à “consciência”,
na ideologia, mediante e pela ideologia; em suma, que a relação “vivida”
dos homens com o mundo, inclusive com a História (na ação ou inação política),
passa pela ideologia, ou melhor, é a própria ideologia. É nesse sentido
que Marx dizia que é na ideologia (como lugar das lutas políticas) que os
homens tomam consciência de seu lugar no mundo e na história; é no
interior dessa inconsciência ideológica que os homens conseguem modificar suas
relações “vívidas” com o mundo e adquirir essa nova forma de inconsciência
específica que se chama “consciência”.
A ideologia se refere, portanto, à relação vivida
dos homens com seu mundo. Essa relação, que não se mostra “consciente”
senão sob a condição de ser inconsciente, parece, da mesma maneira, não
ser simples senão sob a condição de ser complexa, de não ser uma relação simples,
mas uma relação de relações, uma relação de segundo grau. Na ideologia, os
homens exprimem, com efeito, não suas relações com suas condições de
existência, mas a maneira pela qual vivem sua relação com suas condições
de existência, o que supõe simultaneamente relação real e relação “vivida”, “imaginária”.
A ideologia é, então, a expressão da relação dos homens com seu “mundo”, ou
seja, a unidade (sobredeterrninada) de sua relação real e de sua relação
imaginária com suas condições de existência reais. Na ideologia, a relação real
está inevitavelmente investida na relação imaginária: relação que mais exprime
uma vontade (conservadora, conformista, reformista ou
revolucionária), até mesmo uma esperança ou uma nostalgia, do que descreve uma
realidade.
É nessa sobredeterminação do real pelo
imaginário e do imaginário pelo real que a ideologia é, em seu princípio, ativa,
que ela reforça ou modifica a relação dos homens com suas condições de
existência, nessa relação ela mesma imaginária. Decorre daí que essa ação
jamais pode ser puramente instrumental: os homens que se serviriam de uma
ideologia corno de um puro meio de ação, de uma ferramenta, encontram-se presos
nela, tornados por ela no momento mesmo em que se servem dela, e acreditam ser
seus senhores incontestes.
Isso é perfeitamente claro no caso de uma sociedade
de classes. A ideologia dominante é então a ideologia da classe dominante.
Mas a classe dominante não mantém com a ideologia dominante, que é a sua
ideologia, uma relação exterior e lúcida de utilidade ou de astúcia puras.
Quando a “classe ascendente”, burguesa, desenvolve, no decurso do século XVIII,
uma ideologia humanista da igualdade, da liberdade e da razão, ela dá à sua
própria reivindicação a forma da universalidade, corno se assim ela quisesse
alistar do seu lado, formando-os para esse fim, os próprios homens que ela não
libertará senão para os explorar. Aí está o mito rousseauniano da origem da
desigualdade: os ricos fazendo aos pobres o “discurso mais refletido” já
concebido, para convencê-los a viver sua servidão como sua liberdade. Na
verdade, a burguesia deve crer no seu mito, antes de convencer dele os outros,
e não só para os convencer, pois o que ela vive em sua ideologia é essa relação
imaginária com suas condições de existência reais, a qual lhe permite
simultaneamente agir sobre si (dar-se consciência jurídica e moral, e as condições
jurídicas e morais do liberalismo econômico) e sobre os outros (seus explorados
e futuros explorados: os “trabalhadores livres”) a fim de assumir, preencher e
suportar seu papel histórico de classe dominante. Na ideologia da liberdade,
a burguesia vive assim exatamente sua relação com suas condições de
existência; ou seja, sua relação real (o direito da economia capitalista
liberal), mas investida por uma relação imaginária (todos os homens são
livres, inclusive os trabalhadores livres). Sua ideologia consiste nesse jogo
de palavras sobre a liberdade, que revela tanto a vontade burguesa
de mistificar seus explorados (“livres”!) para mantê-los sob controle, pela
chantagem da liberdade, quanto a necessidade da burguesia de viver sua
própria dominação de classe como a liberdade de seus próprios explorados. Assim
como um povo que explora outro não poderia ser livre, igualmente uma classe que
se serve de uma ideologia está, também, submetida a ela. Quando se fala
da função de classe de uma ideologia, é preciso, portanto, compreender que a
ideologia dominante é efetivamente a ideologia da classe dominante, e que ela
lhe serve não só para dominar a classe explorada, mas também para se
constituir ela mesma como classe dominante, fazendo-a aceitar como real e
justificada sua relação vivida com o mundo.”
“Para nós, o “real” não é uma palavra de
ordem teórica: o real é o objeto real, que existe, independentemente de seu
conhecimento, mas que não pode ser definido senão por seu conhecimento. Nessa
segunda relação, teórica, o real forma uma unidade com os meios de seu conhecimento;
o real é sua estrutura conhecida ou a conhecer, é o objeto mesmo da teoria
marxista, esse objeto demarcado pelas grandes descobertas teóricas de Marx e de
Lenin, esse campo teórico imenso e vivo, em constante desenvolvimento, onde doravante
os acontecimentos da história humana podem ser dominados pela prática dos homens,
porque estão submetidos à sua apreensão conceitual, ao seu conhecimento.”
“O recurso à moral, profundamente inscrito em
toda ideologia humanista, pode desempenhar o papel de um tratamento imaginário
dos problemas reais.”
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