sábado, 29 de fevereiro de 2020

Constituição histórica da educação no Brasil – Nadia Gaiofatto Gonçalves

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-8212-127-6
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 188
Sinopse: Esta obra oferece subsídios para que o estudante ou profissional da educação desenvolva reflexões críticas sobre a educação brasileira em sua constituição histórica, sempre que possível, problematizando sua realidade local. Trata-se de uma abordagem desafiadora e crítica, que leva a repensar o papel da escola, do educador, das propostas curriculares e de outras questões que envolvem os atos de ensinar e de aprender.


“Para Burke (A escrita da história, 1992), os historiadores da contemporaneidade encontram diversas e distintas maneiras de contemplar as novas proposições. Ele apresenta seis pontos que permitem visualizar pressupostos da história conhecida como tradicional, em contraposição aos da nova proposta:
Quadro 1.1 — Diferenças entre a “antiga” e a “Nova” História
Paradigma Tradicional
Nova História
Interesse especial pelo tema política e pela história mundial, em detrimento da local e regional
Interesse por toda a atividade humana, daí a expressão história total, relacionada aos annales.
História compreendida como uma narrativa dos acontecimentos, factual e linear
Preocupa-se em realizar análise das estruturas que envolvem as permanências e transformações históricas, o que implica diálogo com outras áreas de conhecimento.
Volta-se aos grandes feitos de “grandes homens”, como políticos ou militares.
Busca compreender a vida, as experiências e o pensamento das pessoas comuns.
Valoriza somente documentos oficiais como fontes válidas para a história.
Aceita uma maior variedade de documentos e registros, escritos, visuais e orais, por exemplo, como fontes.
Restrita a questões objetivas: porque, como, o que levou a, buscando “a” resposta correta, e pressupondo que há uma única resposta correta.
Busca articular elementos individuais e coletivos, tendências e acontecimentos para a compreensão do evento, pressupondo que podem haver distintas versões sobre o mesmo evento histórico.
A história é objetiva, ou seja, o historiador deve apresentar os fatos como eles aconteceram.
Não é possível absoluta objetividade na construção da explicação histórica, tanto por parte dos sujeitos envolvidos no evento quanto do historiador.
Fonte: Elaborado a partir de Burke, 1992, p 10-16.
Como principal transformação nas prioridades e preocupações dos pesquisadores, podemos destacar a compreensão de que não devemos buscar uma verdade, ou “a” verdade em história, como se acreditava antes, considerando que os relatos sobre um evento histórico podem ser distintos e que os historiadores também são condicionados social, cultural e historicamente, ou seja, não há como serem absolutamente objetivos e neutros em suas pesquisas e explicações históricas.”


“Embora a legitimidade de cada campo de conhecimento e das produções nele geradas sejam sempre feitas, em última instância, pela comunidade acadêmica da área, há alguns elementos que indicam caminhos necessários para que a explicação histórica possa ser considerada científica. Por exemplo: deve haver um problema de pesquisa claramente enunciado, um método de seleção, organização e interpretação das fontes, e um referencial teórico que oriente a explicação, que deve ser coerente e decorrente do problema, das fontes e do referencial.”


“Uma importante mudança de perspectiva se refere à linearidade da história. Na perspectiva tradicional, ela é progressiva, factual e eurocêntrica, ou seja, atende a dois pressupostos: o de que há uma evolução necessária na história e o de que o ideal de civilização, bem como o centro de toda história mundial, estão na Europa. Na nova proposição, esses pressupostos são questionados, porque não necessariamente ocorre uma evolução — termo pelo qual se compreende que houve sempre uma melhora —, mas sim mudanças, permanências ou transformações, por exemplo. Também não se reconhece um ideal civilizatório, uma vez que cada sociedade tem sua trajetória e especificidades próprias, e não precisamos almejar semelhança com nenhuma outra sociedade. Assim, as noções de tempo e espaço são fundamentais para a compreensão de cada sociedade e cultura, e outras noções, além da de sucessão, como as de simultaneidade, de permanência, de mudança e de transformação, são valorizadas.”


“Dos problemas e questionamentos desenvolvidos pelos historiadores, decorre necessariamente um novo olhar sobre os documentos: “A diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele” (Bloch, Apologia da história, 2001, p. 79). (...)
Podemos compreender o termo documento a partir da citação de Bloch, ou seja: documento é todo registro ou testemunho do passado humano, em suas diversas e distintas formas de materialização e suporte. O documento se torna fonte na medida em que alguém o seleciona e o interroga: ele será então fonte de informações — no caso, para o historiador. E dessa fonte ele buscará extrair informações específicas, de acordo com a pergunta que quer responder, o que implica que uma mesma fonte pode trazer diferentes informações e ser utilizada de diferentes formas, de acordo com a questão e o propósito para os quais foi selecionada.
Quando da utilização das fontes, lembramos que os documentos em geral são produzidos “por instituições ou indivíduos singulares, tendo em vista não uma utilização ulterior, e sim, na maioria das vezes, um objetivo imediato, espontâneo ou não, sem a consciência da historicidade, do caráter de ‘fonte’ que poderia[m] vir a assumir mais tarde” (Rousso, O arquivo ou o indício de uma falta, 1996, p. 87). Ou seja, devem ser indagados com base em suas condições de produção e de uso.
O documento não é inócuo. É, antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziu, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver; talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento [...] que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados, desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro — voluntária ou involuntariamente determinada imagem de si próprias. (Le Goff, História e memória, 2003, p. 537-538).
Ou seja, mesmo que o documento seja produzido sem consciência de seu uso posterior, como fonte, é importante que, entre as perguntas feitas, esteja essa: Por que esse registro foi guardado? Essa questão é relevante porque ajudará o pesquisador a compreender as informações que ele traz. Alguém ou alguma instituição fez com que aquele registro fosse preservado, enquanto muitos outros foram destruídos. Quem decidiu pela guarda ou descarte? Quais critérios foram utilizados para decidir quais documentos seriam guardados e quais seriam jogados fora? Essas são questões fundamentais para a história, hoje. Le Goff, quando afirma que o “documento é monumento”, remete às representações que uma pessoa, instituição ou sociedade querem deixar de seu passado — o que se relaciona aos critérios que estabeleceram a preservação de determinados documentos que trazem uma certa informação ou explicação sobre esse passado.
Um exemplo sobre essa afirmação: até pouco tempo atrás — quando não havia tantos recursos digitais que permitissem a alteração de uma imagem —, a fotografia era assumida como registro de uma realidade, ou seja, as pessoas pressupunham que o fotógrafo registrou a realidade, o que estava acontecendo.
A compreensão do historiador sobre esse tipo de fonte, atualmente, implica uma série de questionamentos, como: O fotógrafo criou uma aparente realidade ou escolheu uma parte da realidade para registrar? Pense no seguinte exemplo: enquanto um turista pode estar preocupado em fotografar os “cartões-postais” de uma cidade, outro fotógrafo — digamos, um repórter — pode priorizar a desigualdade social ou a pobreza ali encontradas, e isso somente mudando o ângulo e o foco da máquina. Assim, a escolha que o fotógrafo faz depende de quem ele é, de seus interesses — assim, sua escolha é intencional, embora não necessariamente esteja deliberadamente produzindo um documento com finalidade de registro histórico. Mas ele também pode estar fazendo isso, o que nos ajuda a compreender sua escolha e o uso que fará dela: se, onde, como, por que e quando essa fotografia será divulgada; como e para que ela será empregada, o que pode ultrapassar a intencionalidade ou o controle do fotógrafo. A mesma lógica pode ser aplicada a álbuns de fotos de família: tanto o momento em que a fotografia é tirada quanto a sua seleção em ser ou não tornada pública implicam representações que alguém pretende reforçar sobre aquele grupo. Pense: Quais são as fotografias que você escolheria para um álbum familiar? Quais critérios utilizaria? Muito provavelmente aqueles que fossem ao encontro da representação de família que você quer divulgar para seus descendentes e amigos uma família feliz, em bons momentos.”


“No caso de Roger Chartier (O mundo como representação, 1991, p. 178), podemos identificar várias dessas possibilidades de diálogo, por exemplo, com as proposições de campo e habitus, quando o autor estabelece duas hipóteses principais para sua pesquisa sobre leituras:
A primeira hipótese sustenta a operação de construção de sentido efetuada na leitura (ou na escuta) como um processo historicamente determinado cujos modos e modelos variam de acordo com os tempos, os lugares, as comunidades.
A segunda considera que as significações múltiplas e móveis de um texto dependem das formas por meio das quais é recebido por seus leitores (ou ouvintes).
Essa possibilidade também aparece quando o autor estabelece o sentido para a apropriação social dos discursos, ressaltando a necessidade de voltarmos a atenção “para as condições e os processos que, muito concretamente, sustentam as operações de produção do sentido” (Chartier, 1991, p. 180), ou seja, de que sempre consideremos a relação estrutura-agente-história, a fim de desvendar o sentido das crenças e práticas estabelecidas. Essa perspectiva pressupõe, segundo o autor, a superação dos
falsos debates em torno da divisão, dada como universal, entre as objetividades das estruturas [...] e a subjetividade das representações [...]. Tentar superá-la exige, a princípio, considerar os esquemas geradores dos sistemas de classificação e de percepção como verdadeiras “instituições sociais”, incorporando sob a forma de representações coletivas as divisões da organização social mas também considerar, corolariamente, estas representações coletivas como as matrizes de práticas construtoras do próprio mundo social [...] (Chartier, 1991, p. 182-183)
A superação dessa dicotomia também é contemplada por Edward Thompson. Embora esse autor não esteja indicado por Catani e Faria Filho (Um lugar de produção e a produção de um lugar, 2005), tem sido utilizado em pesquisas de história da educação, em especial por significar uma abordagem mais contemporânea do materialismo históricof.”
f Destacamos a contribuição de historiadores que utilizam fundamentação marxista, como Eric Hobsbawn e Edward P. Thompson, que fazem parte da nova esquerda inglesa.


“Todas as questões apresentadas neste capítulo contribuem para refletir sobre perguntas como: Qual a importância de buscarmos os fundamentos históricos da educação no Brasil? O que significam os termos educação e escolarização? Qual a abrangência da educação? E da escola? Quais suas funções na sociedade? Essas funções sempre foram as mesmas?
Há várias respostas possíveis, que variam conforme a sociedade, a cultura e o momento histórico que abrangem o processo e a ação educativa ou escolar que estão sendo discutidos. Nesse sentido é que, para compreender a questão educacional, é necessário observarmos como ela foi e é constituída no Brasil.
Em cada sociedade, as ideias, os valores, a cultura e o entendimento a respeito da educação e da escolarização vão sofrendo alterações de acordo com o contexto que os cercam. Essas práticas, por sua vez, são direcionadas, consciente ou inconscientemente, por uma determinada concepção, um ou vários entendimentos sobre o que deve ser a educação e a escolarização, entre outros fatores. O termo educação é amplo, abrangendo desde processos de socialização iniciais, como os do âmbito familiar, até aprendizagens mais formais, enquanto escolarização trata das orientações normativas, práticas, culturas e instituições escolares, mais especificamente. É certo que a escolarização faz parte de um processo educativo, que por sua vez, pode ser desenvolvido sem a escola.
Conforme enunciado, consideramos que a história é uma construção coletiva e individual, simultaneamente; as transformações que nela ocorrem se dão, em grande parte, lenta e gradualmente, principalmente no campo das ideias; por seu papel na sociedade, a educação e a escolarização nunca são neutras nem apolíticas, pois envolvem determinada intencionalidade. Essa é uma das razões pelas quais julgamos necessário compreender seus fundamentos: para que possamos pensar e agir criticamente, como agentes históricos conscientes de que fazemos parte desse processo e de que não devemos aceitar e compreender a realidade de forma naturalizada, como se sempre tivesse sido assim: toda realidade contemporânea foi construída historicamente, por meio de ações e de omissões, da mesma forma que o panorama futuro está também em construção, neste momento.”


“Do Renascimento podemos destacar algumas características principais:
·        uma forte crítica aos valores medievais;
·        a busca do poder da razão;
·        a crítica e a liberdade preconizadas contra a autoridade;
·        a crescente retomada e valorização da cultura greco-romana;
·        o enriquecimento da arte e da cultura;
·        o humanismo, ou seja, a preocupação com a compreensão do homem e de seu papel no mundo, em contraposição às explicações teológicas da Idade Média;
·        a ascensão da burguesia;
·        invenções significativas, como a bússola e a imprensa;
·        grandes transformações econômicas, como o mercantilismo, que vai sendo instituído, e as consequentes viagens marítimas, que levaram ao contato com novas culturas;
·        além da Reforma protestante e a Contrarreforma católica.
Mais fortemente, a partir da metade do século XVI, destacamos a criação e rápida multiplicação do número de colégios.”

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Marx, manual de instruções (Parte III) – Daniel Bensaïd

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-351-6
Tradução: Nair Fonse
Ilustrações: Charb
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 192
Sinopse: Ver Parte I


Crises de ontem e de hoje
Muitas coisas mudaram desde a época de Marx: técnicas de produção, fontes de energia, organização do trabalho, grande distribuição, formas de crédito, globalização do mercado. No entanto, a lógica da crise que ele analisou está no cenário da crise atual. Ela não explode no comércio varejista, mas “no comércio atacadista e nos bancos”. Começa na esfera financeira pela “insolvência que interrompe bruscamente a aparente prosperidade”, para depois atingir o que a vulgata jornalística chama de “economia real”. O capital comercial e bancário que inicialmente contribuiu para mascarar a crescente desproporção entre produção e consumo torna-se o elo mais fraco:
Apesar do caráter autônomo que possui, o movimento do capital mercantil nada mais é que o movimento do capital industrial na esfera da circulação. Mas, em virtude dessa autonomia, o capital mercantil move-se até certo ponto sem depender dos limites do processo de reprodução e por isso leva este a transpor os próprios limites. A dependência interna e a autonomia externa fazem o capital mercantil chegar a um ponto em que surge uma crise para restaurar a coesão interior.[7]
Nos anos 1970, a taxa de lucro estava corroída pelos ganhos sociais obtidos no período de crescimento do pós-guerra. A contrarreforma liberal, iniciada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, visava a destruir esses ganhos (indexação relativa dos salários aos ganhos de produtividade, sistemas de proteção social, taxa de desemprego moderada) para impor o que Frédéric Lordon chamou de “capitalismo com baixa pressão salarial”. Visava sobretudo a modificar a divisão do valor agregado em detrimento dos salários, a aumentar a produtividade pela diminuição do custo do trabalho, a reduzir a proteção social, a melhorar a política fiscal vigente para empresas e altos salários.
Entre 1980 e 2006, a parte dos salários no valor agregado das empresas efetivamente diminuiu de 67% para 57% nos quinze países mais ricos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Disso decorreu uma redução relativa da demanda solvente, compensada por um incremento de crédito e de despesas militares, além do crescimento espetacular da desigualdade de rendimentos. O “salário” dos nababos e de outros paraquedas dourados são a demonstração mais ostensiva. Por mais chocante que possa parecer, essa desigualdade também é funcional: estimula o consumismo de luxo de uma casta que compensa em parte a restrição do consumo de massa, entretanto sem poder substituí-lo. A redução relativa das transações, consequência da ruptura do “círculo virtuoso” que liga a evolução dos salários aos ganhos de produtividade, traduziu-se por uma desaceleração dos investimentos produtivos, ao mesmo tempo que o capital disponível acumulado, em busca de ganho rápido e fácil, inflou a bolha dos investimentos financeiros. Comparado a um coeficiente 20 em 1960, o lucro das sociedades financeiras atinge 160 em 2006. Entusiasmados, os bancos chegaram a emprestar quarenta vezes mais do que seus fundos próprios poderiam garantir.
Nos anos 2000, nos Estados Unidos (mas também em países como a Espanha), o crescimento foi sustentado por um boom imobiliário, estimulado pelo crédito a uma clientela pouco ou nada solvente. Durante o verão de 2007, esses créditos com juros inicialmente baixos mas variáveis, sem tributos nem garantias, exceto uma hipoteca sobre o bem comprado, atingiram a massa crítica de 1,3 trilhão de dólares nos Estados Unidos. Entre 1975 e 2006, o índice de endividamento das famílias dobrou e atingiu 127% da renda disponível. Em tal patamar, os credores não são apenas incompetentes ou irresponsáveis, mas escroques e criminosos que encorajam deliberadamente o endividamento de pobres inadimplentes, na tentativa de encobrir dívidas duvidosas e apagar seus traços na opacidade da securitização. No fim da estrada, há milhões de famílias sem-teto.
Concedamos generosamente o benefício da dúvida. Suponhamos que não tenham sido meramente cínicos, mas ofuscados pelos sortilégios do fetichismo monetário, e que tenham acreditado no inacreditável, no milagre do dinheiro que se autoengendra sem passar pela fecundação da produção. A hipótese é plausível, pois Jean-Claude Trichet[x] em pessoa se deslumbrava no Financial Times de 29 de janeiro de 2007: “Existe atualmente tanta criatividade em matéria de novos instrumentos financeiros sofisticados que não sabemos mais onde estão os riscos”. Caríssima criatividade! O guru dos anos loucos, Alan Greenspan, submetido a um duro interrogatório por uma comissão da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, confessou, com ar contrito, ter pensado que o egoísmo dos banqueiros seria um regulador suficiente: “Cometi um erro ao presumir que o interesse pessoal fosse tamanho que se empenhariam em proteger os acionistas”. E o oráculo deposto concluiu: “É um pilar essencial da economia de mercado que acaba de ruir. Estou pasmo, ainda não entendi como isso pôde acontecer”[8]. Se é o que ele diz...
“Em forte contradição com esse refinamento [...], a especulação inglesa voltou para sua forma mais primitiva de fraude”, escreveu Marx em 26 de setembro de 1856. Na Grande Exposição de Londres, a construção do Crystal Palace contemplou, com efeito, a circulação de 4 mil falsas ações. A especulação liberal das últimas décadas conduziu a “pura escroqueria” a píncaros jamais galgados. O escândalo Madoff é apenas o mais visível. Ao exigir retorno sobre investimento na faixa de 15% ou mais, para um crescimento em média três vezes inferior, subjugados pelo “fetiche capitalista” do “valor criador de valor” e pelo mistério do “dividendo cuja fonte é o próprio capital”, os acionistas foram tão cegos quanto os banqueiros. Entretanto, o prodígio era mais assombroso do que a multiplicação bíblica dos pães. A cavalgada desse crescimento a crédito não poderia durar indefinidamente. Estouro da bolha financeira, queda das Bolsas, restrição ao crédito: o estrondo põe brutalmente fim à alucinação. Ao chamar o virtual à ordem, o real confirma o aviso de Marx: “o movimento do capital financeiro nada mais é do que o movimento do capital industrial na esfera da circulação”.
Contrariamente à fórmula de que a crise financeira se propagaria e contaminaria a indevidamente chamada “economia real” (como se a esfera financeira fosse irreal!), ela revela principalmente uma crise latente de sobreprodução, há muito (excessivamente) adiada pelo incentivo ao crédito e que irrompe agora à luz do dia nos setores da construção e automobilístico. Os vendedores, apavorados com a possibilidade de ficar com a mercadoria parada, reduzem preços, liquidam, vendem abaixo do custo. Mas isso não basta. Antes vilipendiado, o Estado é chamado ao socorro, como última garantia e derradeiro recurso. O mito liberal de uma regulação mercantil pura e de uma expansão ilimitada da esfera financeira desaba, em conjunto com seu corolário, a utopia de uma “empresa sem indústria”, propagada outrora pelo presidente da Alcatel, Serge Tchuruk. Ele sonhava com firmas que subcontratassem ou terceirizassem todas as atividades de produção, para conservarem apenas as atividades financeiras. Nessa “nova economia” virtual, o capital manteria a ilusão de prosperar sem intervenção do trabalho[9]. Mas a realidade vingou-se. O sonho absurdo do capital sem trabalho, do “enriquecimento sem causa” e da globalização beatificada (cara a Alain Minc) “despedaçou-se”, confessou Nicolas Sarkozy em seu discurso de 25 de setembro de 2008, em Toulon. Virou, inclusive, um pesadelo.
No momento de pagar a conta do desastre financeiro, as responsabilidades esvaem-se no anonimato do “se” misterioso, de um social killer tão anônimo quanto as sociedades de mesmo nome: “esconderam-se riscos cada vez maiores...; fingia-se acreditar que a gestão global de riscos os anulasse...; permitiu-se aos bancos especularem no mercado, em vez de cumprirem sua função...; financiaram-se especuladores em vez de empreendedores...; deixaram-se agências de classificação de risco e fundos especulativos sem nenhum controle...; submeteram-se os bancos a normas contábeis sem qualquer garantia de gestão de riscos...”, invectivou Nicolas Sarkozy. E seu primeiro-ministro repetiu como um eco: “O mundo está à beira do abismo por culpa de um sistema irresponsável” (François Fillon, 3 de outubro de 2008). Como se os partidos políticos, de direita e de esquerda, não tivessem despendido muita força e resolução, durante um quarto de século, para largar as rédeas desse capitalismo financeiro, que não é uma forma velada de capitalismo, mas sua própria essência. “Todos querem a concorrência sem as consequências funestas da concorrência. Todos querem o impossível, quer dizer, as condições de vida burguesa sem as consequências necessárias dessas condições...”, escreveu Marx a seu correspondente Annenkov.
A crise é, dessa forma, “o estabelecimento pela força da unidade entre momentos (produção e consumo) levados à autonomia”, mas que são “essencialmente um só”. Essa violência é, antes de tudo, a violência social das famílias jogadas na rua pelo não pagamento de dívidas, das demissões em massa, do fechamento de empresas e deslocalizações, das filas diante dos restaurantes populares, dos sem-teto que morrem de frio, das míseras economias em detrimento da saúde. É também a criminalização da resistência social, o aumento do poder do Estado penal em proporção inversa ao do Estado social, a instauração de um estado de exceção irrestrito sob pretexto de antiterrorismo. É, enfim, a guerra pelo acesso aos recursos energéticos, pela segurança das vias de abastecimento de gás e petróleo, por uma nova distribuição de territórios e zonas de influência.
A crise atual, a crise do presente, não é uma crise a mais que se acrescentaria à dos mercados asiáticos ou à da bolha da internet. É uma crise histórica – econômica, social, ecológica – da lei do valor. A medida de tudo pelo tempo de trabalho abstrato tornou-se, como Marx anunciara em seus manuscritos de 1857, uma medida “miserável” das relações sociais. Além da crise de confiança evocada pela vulgata jornalística, a fé no todo-poderoso mercado foi mortalmente abalada. Quando se deixa de acreditar no inacreditável, agrega-se à crise social uma crise de legitimidade ideológica e moral, que acaba por atingir a ordem política: “Um estado político em que alguns indivíduos ganham milhões enquanto outros morrem de fome poderá subsistir se a religião não estiver mais lá, com suas esperanças fora deste mundo, para explicar o sacrifício?”, perguntava Chateaubriand às vésperas das revoluções de 1848. Ele mesmo respondeu profeticamente:
Tente persuadir o pobre quando ele souber ler e não tiver mais crença, quando ele possuir a mesma instrução que você. Tente persuadi-lo de que deve se submeter a todas as privações enquanto seu vizinho possui mil vezes o supérfluo: como último recurso, terá de matá-lo.
Sob a luz ofuscante da crise, milhões de oprimidos terão de aprender a ler.”
[7] Ibidem, cap. 18.
[x] Alto funcionário francês, ex-presidente do Banco Central europeu. (N. T.)
[8] Le Monde, 25 out. 2008.
[9] Ver Jean-Marie Harribey, “L’entreprise sans usines ou la captation de la valeur”, Le Monde, 3 jul. 2001; La démence sénile du capital: fragments d’économie critique (Bègles, Éditions du Passant, 2002).



“Nos manuscritos de 1857-1858 surge um esboço de crítica do que se chamaria hoje de produtivismo, com a noção de fuga para a frente da produção pela produção e de um desenvolvimento do consumo que não é mais função de novas necessidades sociais, mas de uma lógica autômata do mercado. A produção dominada pela busca do lucro máximo, e não pela satisfação de necessidades, conduz a um “círculo sempre ampliado de circulação”. A tendência à criação de um mercado mundial é, assim, “imediatamente dada no próprio conceito do capital”. Porém, a “produção do mais-valor baseada no crescimento e no desenvolvimento das forças produtivas” exige também a “produção de novo consumo”. Exige que:
o círculo de consumo no interior da circulação se amplie tanto quanto antes se ampliou o círculo produtivo. Primeiro, ampliação quantitativa do consumo existente; segundo, criação de novas necessidades pela propagação das existentes em um círculo mais amplo; terceiro, produção de novas necessidades e descoberta e criação de novos valores de uso. [...].[d]
Em uma época em que o enorme “acúmulo de mercadoria” está bem longe da dimensão de nossos shopping centers e outros hipermercados, Marx, em antecipação aos críticos da sociedade de consumo, compreende que a lógica do lucro e da produção pela produção gera inevitavelmente um consumo quantitativamente ampliado, que diverge do desenvolvimento das necessidades humanas. A busca legítima de “novas qualidades úteis das coisas” ocorre sob forma de exploração – a palavra é cuidadosamente escolhida – desenfreada da terra, como se fosse uma oferta grátis a apetites desmedidos e passível de trabalho sem fim.
Apoiado em uma pesquisa teórica de grande fôlego, o discurso de Marx no aniversário do People’s Paper, em 1856, não é uma incursão fortuita na preocupação que seria hoje chamada de ecologista:
Hoje, tudo parece carregar em si a própria contradição. Máquinas dotadas da capacidade maravilhosa de encurtar e tornar mais fecundo o trabalho humano provocam a fome e a fadiga do trabalhador. As fontes de riqueza recém-descobertas transformam-se por estranho malefício em fontes de privação. Os triunfos da arte parecem obtidos às custas de qualidades morais. Ao mesmo tempo que o domínio da natureza se torna cada vez maior, o homem se transforma em escravo de outros homens e de sua própria infâmia. Mesmo a límpida luz da ciência não pode brilhar sobre o fundo tenebroso da ignorância. Todas as nossas invenções e progressos parecem dotar as forças materiais de vida intelectual, ao mesmo tempo que reduzem a vida humana a uma força material bruta.[e]”
[d] Idem, Grundrisse, cit., p. 332-3. (N. T.)
[e] Idem, “Discours à l’occasion de l’anniversaire du People’s Paper”, 14 abr. 1856. (N. T.)


E como pensa? Como bom especialista em perfil criminal, invade o disco rígido desse social killer para reverter contra ele sua própria lógica e exterminá-lo. Desconcertante tal estratagema para um espírito francês acostumado a perambular pelos jardins geométricos de Le Nôtre. A considerar, desde Descartes, que o homem é “mestre e dono” da natureza. A celebrar, com Auguste Comte, a superioridade do positivo sobre o negativo. A só admitir alternativas simples, o princípio da não contradição, a lógica binária do terceiro excluído. A repetir, com qualquer jornalista ou ministro do Interior, que fatos são fatos, são obstinados e falam por si.
Eis que um indivíduo lhes diz que os fatos nunca falam por si. Que tudo depende do olhar, da luz que os ilumina, do contexto, da perspectiva do todo. Que as aparências não são o reflexo fiel da essência, tampouco um simples véu, porque são o parecer do ser. Que não há o acaso de um lado e a necessidade do outro, separados comportadamente, mas que a necessidade tem seus acasos e o acaso, sua necessidade. Que o produtor também é um consumidor, que o salário, que parece ao capitalista individual um puro custo de produção, também é, para o capital em geral, uma demanda solvente. Que não existe oposição irredutível entre grevista e usuário, porque o usuário de hoje é o grevista de amanhã e vice-versa.
Enfim, é exasperante esse barbudo que, quando tudo parece simples, afirma ser mais complicado. E que, como nos contos da tradição judaica, responde às perguntas com outras perguntas.”



“Por ocasião da crise econômica estadunidense de 1857, o reencontro “acidental” de Marx com a lógica hegeliana o incita à elaboração de “uma concepção científica própria”. À escuta dos espasmos e lapsos do capital, essa concepção não tem a missão de dizer a verdade derradeira, mas de empreender um trabalho incansável de desmistificação – do Estado, do Direito, da História, da Economia. E da própria Ciência! A crítica é esse trabalho reflexivo incessante da consciência contra suas próprias representações religiosas, suas próprias ilusões e seus próprios erros.
Na superfície enganosa do processo de circulação, na praça movimentada do mercado, onde tudo se troca e se equivale, o capital aparece como Kapitalfetisch – o fetiche capitalista do capital fetichizado. Como capital portador de juros, em que dinheiro parece fazer dinheiro, ele assume sua forma mais característica e “mais alienada”. Resulta uma mistificação levada ao extremo, uma coisificação generalizada das relações sociais. Um mundo encantado onde os seres andam de ponta-cabeça, onde o senhor Capital e a senhora Terra dançam fantasticamente em sua ronda macabra. Esse mundo, em que os agentes da produção se sentem em casa em suas “formas ilusórias” de todos os dias, é o reino da personalização das coisas e da coisificação das pessoas, o da religiosidade diabólica da vida cotidiana moderna.
Esse fetichismo não é um simples travestismo da realidade. Se fosse esse o caso, seria simplesmente uma imagem malfeita do real, e um bom par de óculos bastaria para corrigir a vista e desvendar o objeto tal como é. A ciência comum bastaria para perscrutar a verdade oculta. Mas a representação fetichizada entretém em permanência, no espelho deformante de sua relação, a ilusão recíproca do sujeito e do objeto. Não é mais questão de se contentar com uma ciência que dissipe de uma vez por todas a falsa consciência e garanta a soberania lúcida do indivíduo racional, mestre e possuidor da natureza tanto quanto de si mesmo. Porque essa ilusão não nasce apenas na mente. Ela resulta de relações sociais reais. Enquanto estas perdurarem, a alienação poderá ser combatida na prática, mas não vencida. Em um mundo atormentado pelo fetichismo mercantil generalizado, não há saída da ideologia dominante pelo arco triunfal da Ciência. A crítica reconhece a própria incapacidade de possuir a verdade e declarar, de uma vez por todas, a verdade derradeira. Seu combate sempre reiniciado contra as ervas daninhas da loucura e do mito conduz unicamente a clareiras, onde o evento rasga temporariamente o véu da obscuridade.
Para a crítica, portanto, nenhum repouso. Ela nunca está quite com a ideologia. O melhor que pode fazer é resistir, afrontar, zombar e ironizar, criando condições para um desencanto e uma desilusão. A sequência não mais se desenrola na mente, mas na luta. Lá onde a crítica das armas substitui as armas da crítica. Onde a teoria se torna prática. E a razão, estratégica.”


“Para Marx, suas descobertas “científicas” originais residem:
·        na demonstração das formas gerais ainda indiferenciadas do mais-valor e do duplo caráter do trabalho;
·        na compreensão do capital como relação social;
·        na compreensão de que o valor de uso não se anula no valor de troca, mas conserva sua importância específica.
Essas descobertas desnudam a importância:
·        da forma geral (da estrutura) em relação ao caos da “macedônia” empírica;
·        da relação social inscrita na totalidade do movimento.
Sua “crítica da economia política” inaugura, assim, outra maneira de “fazer ciência”, irredutível tanto à fundação de uma nova ciência positiva da economia quanto ao retorno a uma filosofia especulativa. Teoria revolucionária do fetichismo, enfrenta miragens para vencer sortilégios.
Marx pratica uma lógica dinâmica das determinações, e não uma lógica estática e classificatória das definições. Não procura colar etiquetas sobre as coisas para arrumá-las em um dicionário, e sim captar as relações entre os fenômenos sociais inscritos em uma totalidade em movimento. Ele é bem claro sobre este ponto: “não são definições em que se classificariam as coisas, mas funções determinadas que se exprimem em categorias determinadas”. Para descartar qualquer equívoco, Engels explica insistentemente aos leitores que procurariam a qualquer preço, nos textos de Marx, definições simples e tranquilizadoras, “lá onde, na realidade, ele desenvolve”:
De uma maneira geral, tem-se o direito de procurar em seus escritos definições claras, válidas e conclusivas. É evidente que, no momento em que as coisas e suas influências recíprocas são concebidas não como fixas, mas como variáveis, os próprios conceitos também estão sujeitos a variações e mudanças. Nessas condições, não estarão contidos em uma definição, mas desenvolvidos conforme o processo histórico de sua formação.[h]
Advertência àqueles que tentam questionar Marx para que reconheça uma definição atemporal de classes ou de trabalho, e que se prendem eles próprios nos grilhões de definições rígidas. ”
[h] Friedrich Engels, “Prefácio”, em O capital, Livro III. (N. T.)



“Apesar da função social da fotografia e da mise-en-scène, a iconografia de Marx em vida mantém certo grau de familiaridade e intimidade, revestido ulteriormente de uma espécie de crosta pela grosseira iconografia e fanática hagiografia stalinistas, que orquestraram a difusão internacional de um novo culto. No universo “politicamente correto” da burocracia vitoriosa, a santa imagem do pai fundador deveria ser ao mesmo tempo tranquilizadora, ameaçadora e imaculada. Por esse motivo, as biografias purificadas de qualquer alusão a um provável filho bastardo não reconhecido, a discrição pudica a respeito dos gracejos machistas de Marx ou o silêncio sobre os deslizes homofóbicos de Engels[2]: apesar de inovadores e audaciosos teórica e politicamente, eram homens de seu tempo e de seus preconceitos, porque a verdade é que mentalidades não mudam no mesmo ritmo que leis e técnicas.
A sacralização burocrática de indivíduos humanamente falíveis produziu a estatuária e as imagens pitorescas de um Marx Júpiter olímpico, autoritário, dominador, portador de novas Tábuas da Lei, imitando o ar severo e a barba emaranhada do Moisés de Michelangelo, cujo olhar de pedra aterrorizou Freud em pessoa. Quantos cartazes e vinhetas, panos de fundo dominando as tribunas de congressos pletóricos, peitos cobertos de condecorações, desfiles comemorativos e berloques kitsch ornaram a sacrossanta procissão dinástica – Marx-Engels-Lenin-Stalin! Esses perfis sobrepostos conferiam uma legitimidade genealógica inspirada no Gênesis bíblico de Adão a Noé: Marx teria gerado Lenin, que teria gerado Stalin, tal como Adão gerou Seth, que gerou Enoch, que gerou Kenan. E assim por diante, sem ruptura nem descontinuidade, até o paraíso reconquistado ou o fim dos tempos.
A destruição dos ícones burocráticos e a derrubada dos ídolos de gesso são uma redenção: uma maneira de libertar Marx dos dogmas que o mantiveram acorrentado durante quase um século.
Sua obra aberta, sem limites, revolve em profundidade o espírito de uma época. Crítica em movimento de um sistema dinâmico, O capital, apesar das múltiplas remodelagens de seu plano inicial, era inacabável. Não porque a vida de seu autor tenha sido demasiadamente curta, mas porque era uma vida humana, e o objeto de sua crítica, em perpétuo movimento, sempre o conduzia mais longe. (...)
A atualidade de Marx é a do próprio capital. Porque, se ele foi um excepcional pensador de sua época, se pensou com seu tempo, também pensou contra seu tempo e além dele, de maneira intempestiva. Seu corpo a corpo, teórico e prático, com o inimigo irredutível, o poder impessoal do capital, transporta-o até nosso presente. Sua inatualidade de ontem faz sua atualidade de hoje.
A (re)descoberta de um Marx desvencilhado de seu culto e seus fetiches é ainda mais necessária porque uma parte essencial de sua obra (nada menos que os manuscritos parisienses de 1848, A ideologia alemã, os manuscritos de 1857-1858, as Teorias da mais-valia, os Livros II e III de O capital e uma abundante correspondência) foi publicada a título póstumo. A recepção estende-se por décadas, na cadência de traduções frequentemente tardias e imperfeitas. Desse modo, desconhecida pelo movimento trabalhista francês renascente sob o Segundo Império, a primeira tradução francesa do Manifesto Comunista só foi divulgada em 1872, em O Socialista, jornal de língua francesa publicado... nos Estados Unidos [3]!
Ora, a herança de uma obra, principalmente se for dirigida à ação prática, é irredutível a seu texto. É a história de suas interpretações e recepções, inclusive das infidelidades, que por vezes são a melhor maneira de lhe permanecer fiel. Como também escreve Derrida: “A herança não é um bem, uma riqueza que se recebe e se guarda no banco; a herança é a afirmação ativa, seletiva, que pode ser às vezes reanimada e reafirmada mais por seus herdeiros ilegítimos do que pelos legítimos”[4].
É, de certo modo, uma herança sem proprietários nem manual de instruções.
Uma herança à procura de autores.”
[2] Ver principalmente a carta de Engels de 22 de junho de 1869: “Os pederastas começam a se contar e pensam que formam um poder dentro do Estado. Só falta a organização, mas parece que ela já existe secretamente. E, como eles têm homens importantes em todos os velhos partidos, sua vitória é inevitável. Guerre aux cons, paix aux trous-du-cul [Guerra aos imbecis, paz aos bundões], diz-se agora [...]. Para os que tomam a dianteira, como nós, com nossa atração ingênua pelas mulheres, as coisas não correrão bem”.
[3] Ver Philippe Videlier, La proclamation du Nouveau Monde, seguida do Manifeste du Parti Communiste (Vénissieux, Paroles d’Aube, 1995).
[4] Jacques Derrida, Marx en jeu (Paris, Descartes & Cie., 1997).


“O florescimento desses “mil marxismos” aparece como um momento de liberação, em que o pensamento se evade de seus grilhões doutrinários. Significa a possibilidade de recomeçar, após as experiências traumáticas de um século trágico, mas sem fazer do passado uma tábula rasa. Plurais e atuais, esses marxismos comprovam uma viva curiosidade. Porém, sua expansão interroga se, apesar das diferenças e fragmentações disciplinares, podem constituir um programa de pesquisas que compartilhe o mesmo nome. Em outras palavras, pode-se ainda falar de marxismo no singular ou é melhor se contentar, conforme a fórmula do filósofo catalão Fernández Buey, com um Marx sem “ismos” ou um marxismo desconstruído? “Qual é o consenso mínimo”, pergunta André Tosel, “para que se possa chamar uma interpretação de legitimamente marxista?” A pluralidade dos “mil marxismos”, presentes e futuros, coloca a “questão do acordo teórico mínimo em um campo de desacordos legítimos”, para que essa generosa multiplicação não conduza a um esmigalhamento do núcleo teórico e à sua dissolução no caldo de cultura pós-moderno.
O longo jejum teórico do período stalinista aguçou apetites legítimos de descoberta e invenção. As amarras do marxismo de Estado e as excomunhões inquisitoriais também alimentaram uma aspiração legítima à liberdade de pensamento, de que foram precursores os “grandes hereges” do período precedente (Ernst Bloch, o Lukács tardio, Jean-Paul Sartre, Louis Althusser, Henri Lefebvre e Ernest Mandel). O risco agora parece inverso: que mil marxismos coexistam polida e consensualmente em uma paisagem pacificada. Esse perigo de ecletismo caminha junto com a reabilitação institucional de um Marx conivente com as civilidades de uma marxologia acadêmica sem alcance subversivo. Em Espectros de Marx, Derrida alertou contra essa tentação de “jogar Marx contra o marxismo, a fim de neutralizar e ensurdecer o imperativo político na exegese tranquila de uma obra catalogada”.
O fundamento dessa ameaça reside na discordância entre o ritmo do renascimento intelectual e a lentidão da remobilização social, na cisão perpetuada entre teoria e prática, que há muito tempo caracteriza o marxismo ocidental[5]. Consequentemente, ao reivindicar sua unidade, o marxismo se submete a um duplo critério de julgamento. Se não foi seriamente refutado no plano teórico, foi incontestavelmente desgastado por graves derrotas políticas do movimento trabalhador e das políticas de emancipação do século passado. Seu programa de pesquisas continua sólido. Mas só haverá futuro se, em vez de se refugiar na clausura universitária, puder estabelecer uma estreita ligação com a prática renovada dos movimentos sociais e com a resistência à globalização imperialista.
Aí efetivamente se exprime, com grande impacto, a atualidade de Marx: sua crítica da privatização do mundo, do fetichismo da mercadoria como espetáculo, da fuga mortífera na aceleração da corrida pelo lucro, da conquista insaciável de espaços submetidos à lei impessoal do mercado. A obra teórica e militante de Marx nasceu na época da globalização vitoriana. O progresso dos transportes foi, à época, o equivalente da internet: o crédito e a especulação tiveram um desenvolvimento impetuoso; foram celebradas as bodas bárbaras do mercado e da tecnologia; surgiu uma “indústria do massacre”... Mas, dessa grande transformação, nasceu também o movimento trabalhador da Primeira Internacional. A “crítica da economia política” é o deciframento indispensável dos hieróglifos da modernidade e o ato inaugural de um programa de pesquisas sempre fecundo.
A crise agora exposta da globalização capitalista e a derrocada de seu discurso apologético constituem o fundamento da renascença dos marxismos[6]. Esse florescimento responde frequentemente às exigências de uma pesquisa livre e rigorosa, mesmo que se acautele contra as armadilhas da exegese acadêmica. Mostra a que ponto os espectros de Marx rondam nosso presente e como seria errôneo contrapor uma idade de ouro imaginária nos anos 1960 à esterilidade dos marxistas contemporâneos. O trabalho molecular da teoria é provavelmente menos visível do que antes. Não traz aos mestres pensadores de hoje a mesma notoriedade dos antigos. É certamente mais denso, mais coletivo, mais livre e mais secular. Se os anos 1980 foram razoavelmente desérticos, o novo século promete ser bem mais do que um oásis.
Fernand Braudel disse que, para acabar com o marxismo, seria necessário um incrível policiamento do vocabulário. Queiramos ou não, o pensamento de Marx agora pertence à prosa da nossa era – por mais que desagrade àqueles que, como o célebre burguês, fazem prosa sem saber[a]. Ser fiel a essa mensagem crítica é sustentar que nosso mundo da concorrência e da guerra de todos contra todos não pode ser reformado somente com alguns retoques, que é necessário subvertê-lo, e com mais urgência do que nunca. Para compreendê-lo a fim de mudá-lo, em vez de simplesmente comentá-lo ou denunciá-lo, o pensamento de Marx e o “trovão” de O capital, pouco audível em sua época, são não um ponto de chegada, mas um ponto de partida e de passagem obrigatório à espera de ser transposto.”
[5] Ver Perry Anderson, Considerações sobre o marxismo ocidental/Nas trilhas do materialismo histórico (São Paulo, Boitempo, 2004).
[6] Dão testemunho os trabalhos de Robert Brenner e Mike Davis nos Estados Unidos, uma intensa atividade editorial na Ásia e na América Latina, uma rica produção na própria França, com pesquisas militantes sobre a lógica da globalização. Sob o impulso de David Harvey, a exploração de um “materialismo histórico-geográfico” retoma as pistas abertas por Henri Lefebvre sobre a produção do espaço. Estudos feministas alimentam a reativação da reflexão sobre relação de classes sociais, gênero e identidade comunitária. Os trabalhos de John Bellamy Foster, Mike Davis, Paul Burkett conferem fundamento teórico ao ecossocialismo. Estudos culturais, ilustrados principalmente pelos trabalhos de Fredric Jameson nos Estados Unidos e Terry Eagleton na Grã-Bretanha, abrem novas perspectivas para a crítica das representações, ideologias e formas estéticas. A crítica da filosofia política recupera o fôlego com os estudos de Domenico Losurdo e Ellen Wood sobre o liberalismo e o colonialismo, com a redescoberta de grandes personagens como György Lukács e Walter Benjamin; com a investigação de uma historiografia crítica sobre a Revolução Francesa; com as leituras renovadas do corpus marxista de jovens filósofos; com as interrogações de juristas práticos e universitários sobre as metamorfoses e incertezas do direito; com as controvérsias, inspiradas principalmente pela ecologia social, sobre o papel das ciências e das técnicas e sobre seu controle democrático; com uma interpretação original da psicanálise lacaniana; com a confrontação da herança marxista com obras como as de Hannah Arendt, Habermas e Bourdieu.
[a] Alusão a Molière, O burguês fidalgo. (N. T.)

Marx, manual de instruções (Parte II) – Daniel Bensaïd

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-351-6
Tradução: Nair Fonse
Ilustrações: Charb
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 192
Sinopse: Ver Parte I



“O poder do Estado é “desde já abolido”, escreve Marx, sobre as seis semanas de liberdade da Comuna. Abolido? A palavra é forte. Como “antítese direta do Império”, a Comuna “era formada por conselheiros municipais, escolhidos por sufrágio universal nos diversos distritos da cidade, responsáveis e com mandatos revogáveis a qualquer momento”. Ela “devia ser não um corpo parlamentar, mas um órgão de trabalho, Executivo e Legislativo ao mesmo tempo”. “Dos membros da Comuna até os postos inferiores, o serviço público tinha de ser remunerado com salários de operários”[I] (...)
Não se trata de interpretar o enfraquecimento do Estado como a absorção de todas as suas funções na simples “administração das coisas” nem de decretar a abolição do Estado, mas sim de reunir as condições que permitam suprimir seu bricabraque burocrático. A tomada do poder é o início desse processo, não sua concretização. As primeiras medidas da Comuna não parecem perturbar a ordem das coisas: separação entre Igreja e Estado e envio dos padres ao calmo “retiro da vida privada”; destruição pública de duas guilhotinas em 6 de abril de 1871; libertação dos prisioneiros políticos; supressão do trabalho noturno dos padeiros; fechamento das casas de penhores; demolição da coluna Vendôme, “símbolo da força bruta e da falsa glória”, que enaltece o militarismo e o chauvinismo; direito de assento aos estrangeiros na Comuna, cuja bandeira é a da “República Universal”; libertação das mulheres da “escravidão degradante” da prostituição; transferência dos serviços públicos para a Comuna; e, acima de tudo, “supressão do exército permanente e sua substituição pelo povo armado”. Não é tudo. Mas é alguma coisa.”
Então, a Comuna revela-se “uma forma enfim encontrada” de emancipação, ou de ditadura do proletariado, ou as duas coisas indissociavelmente. É o que proclama Engels na conclusão de sua introdução, em 18 de março de 1891, de A guerra civil na França: “Pois bem, senhores, quereis saber como é esta ditadura? Olhai para a Comuna de Paris. Tal foi a ditadura do proletariado”[22].”
No século XIX, a palavra “ditadura” evoca a instituição romana de um poder de exceção, devidamente delegado e limitado no tempo para enfrentar uma situação de urgência. Opõe-se ao arbitrário da “tirania”. É nesse sentido que Marx a utiliza em As lutas de classes na França. As jornadas de junho de 1848, com efeito, repartiram ao meio o próprio sentido da palavra “revolução”. Foi desdobrada aos olhos dos possuintes em uma “revolução bela” – a de fevereiro, a da “cordialidade geral” – e uma “revolução feia” – a de junho, “repugnante” aos olhos do partido da ordem nascente, “porque o fato tomou o lugar da fraseologia”.
No entanto, não é a revolução que foi “feia”, mas sim a reação. Diante da violência desenfreada dos possuintes, Marx adota pela primeira vez o “corajoso lema”: “Derrubar a burguesia! Ditadura da classe operária!”[23]. Após um século XX que conheceu tantos despotismos militares e burocráticos, essa conotação da palavra “ditadura” prevalece sobre o significado original. Tornou-se impronunciável. Se a Comuna era a “ditadura do proletariado”, como proclama Engels em tom de desafio, é importante lembrar o que ela foi na verdade. Com mandatários sob controle popular permanente, pagos como trabalhadores qualificados, ela suprime “toda a fraude dos mistérios e pretensões do Estado”. Sua mais formidável medida foi “sua própria organização, improvisada no momento em que em uma porta estava o inimigo estrangeiro e em outra o inimigo de classe”[24]. Ela “não elimina a luta de classes”, mas representa a “liberação do ‘trabalho’” como “condição fundamental e natural da vida individual e social”. Cria, desse modo, o “meio racional” em que pode começar – começar apenas! – a se desenvolver a emancipação social[25].
Ela é simplesmente “a forma sob a qual a classe trabalhadora assume o poder político”[26]. Na Mensagem de 31 de maio de 1871 ao Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT ou Primeira Internacional), Marx repete: “O sufrágio universal serviria ao povo, constituído em comunas”, e “nada podia ser mais estranho ao espírito da Comuna do que substituir o sufrágio universal por uma investidura hierárquica”. Ele jamais considera restringir o direito de voto. Quanto à relação dos representantes com os representados, dos mandatários com os mandantes, ele propõe um controle permanente, concretizado pelos princípios da responsabilidade e da revogabilidade. Essa “ditadura” não tem nada de um poder arbitrário e despótico. Ela é apenas o exercício do poder constituinte inalienável de um povo soberano.”
[I] Karl Marx, A guerra civil na França, cit., p. 55-6. (N. E.)
[22] Friedrich Engels, “Prefácio”, em Karl Marx, A guerra civil na França, cit., p. 197.
[23] Karl Marx, As lutas de classes na França, cit., p. 63-4.
[24] Idem, A guerra civil na França, cit., p. 130.
[25] Ibidem, p. 131.
[26] Ibidem, p. 169.


“Por mais tempo que se permaneça na movimentada praça do mercado, onde se agitam vendedores e clientes, onde se trocam mercadorias e dinheiro, continua intacto o mistério da acumulação da riqueza. Se a troca fosse equitativa, o mercado seria um jogo de soma nula. Cada um receberia a exata contrapartida do que oferecesse. Supondo-se que haja jogadores mais hábeis do que outros, que embolsem mais do que o valor apostado, ainda assim seria um jogo de soma nula, porque alguns perderiam exatamente o que outros ganhariam. Porém, o gigantesco ajuntamento de mercadorias não para de crescer. O capital acumula-se. De onde vem esse crescimento? Insondável mistério. Pelo menos enquanto se fica aturdido pela efervescência do mercado ou, em versão mais contemporânea, pela agitação neurótica dos corretores e operadores da Bolsa.
O detetive Marx nos convida a olhar ao redor. A descobrir o que se passa nos bastidores ou, melhor ainda, no subsolo, nos porões onde o mistério se esclarece:
Deixemos, portanto, essa esfera rumorosa, onde tudo se passa à luz do dia, ante os olhos de todos, e acompanhemos os possuidores de dinheiro e de força de trabalho até o terreno oculto da produção, em cuja porta se lê: No admittance except on business [Entrada permitida apenas para tratar de negócios]. [...] O segredo da criação do mais-valor tem, enfim, de ser revelado. [...] Ao abandonarmos essa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, de onde o livre-cambista vulgaris [vulgar] extrai noções, conceitos e parâmetros para julgar a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já podemos perceber uma certa transformação, ao que parece, na fisionomia de nossas dramatis personae [personagens teatrais]. O antigo possuidor do dinheiro se apresenta agora como capitalista, e o possuidor de força de trabalho, como seu trabalhador. O primeiro, com um ar de importância, confiante e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da... despela.[b]”
Cena extraordinária de descida aos Infernos! Dá para vê-los, esses dois personagens. O homem do dinheiro (hoje, dos euros), satisfeito, arrogante, autoritário, e o trabalhador resignado, humilhado, envergonhado de ter se vendido e do que o espera.
Atrás da agitação superficial do mercado fica o curtume, o local do crime: a oficina ou a fábrica onde o trabalhador é espoliado do mais-valor, onde enfim se revela o segredo da acumulação da riqueza. Entre as mercadorias, uma é bem singular: a força de trabalho. Ela tem a fabulosa virtude de criar valor ao ser consumida, de funcionar mais tempo do que o necessário para sua própria reprodução. É dessa capacidade que o homem do dinheiro se apoderou. O trabalhador, que não possui nada para vender exceto sua força de trabalho, não tem escolha. Mas, se aceitou e consentiu em seguir seu comprador, ele não se pertence mais. “O valor de uso da força de trabalho [sua utilidade para o comprador], o próprio trabalho, pertence tão pouco ao seu vendedor quanto o valor de uso do óleo pertence ao comerciante que o vendeu”[c]. Aparentemente equitativo, dando e recebendo – de “ganha-ganha”, como diriam nossos candidatos –, o contrato de compra e venda da força de trabalho revela-se uma trapaça. Uma vez concluído, o trabalhador é reduzido a “tempo de trabalho personificado”[d], uma “carcaça de tempo”, segundo Marx, que o empregador tem legalmente o direito de utilizar quanto quiser.
A repartição entre o tempo de trabalho necessário à reprodução da força de trabalho do trabalhador e de sua família, e o “sobretrabalho” que lhe é gratuitamente extorquido ou imposto pelo patrão: essa é a aposta inicial da luta de classes. A aposta de uma luta permanente, em que o trabalhador se esforça para aumentar sua parte na divisão entre trabalho necessário e sobretrabalho, entre salário e mais-valor, enquanto o patrão, inversamente, ao intensificar o trabalho, prolongar sua duração e reduzir as necessidades do trabalho, se esforça no sentido oposto.
Compreende-se agora o disparate da ideia de “preço justo” para uma “jornada normal de trabalho”. Não existe jornada normal nem preço justo. Porque a força de trabalho, à diferença das outras mercadorias, contém em si um “elemento histórico e moral”[e]. Marx entende que as necessidades sociais não são redutíveis às necessidades básicas de se alimentar e se aquecer. Elas evoluem historicamente. Enriquecem-se, diversificam-se, e seu reconhecimento pela sociedade é o resultado de uma relação de forças. Com insistência, o trabalhador não cansa de lutar para que novas necessidades (culturais, de lazer, qualidade de vida, saúde, educação) se tornem legítimas dentro do tempo de trabalho reconhecido como “socialmente necessário” à reprodução de sua força de trabalho. Em outras palavras, luta para deslocar a seu favor o cursor da divisão e, portanto, reduzir o “tempo de trabalho extra”, o mais-valor usurpado por seu empregador. Inversamente, o empregador sempre se esforça para reduzir as necessidades socialmente reconhecidas do trabalhador e aumentar a taxa de exploração ou de mais-valor, fazendo pressão sobre os salários, exigindo redução de encargos, reclamando isenções fiscais, desviando despesas de saúde e educação para a esfera privada. Tentando prolongar o tempo de trabalho (aumento da duração semanal, adiamento da idade de aposentadoria) ou intensificar o trabalho (aumento do ritmo, “gestão por estresse”, gerenciamento do tempo ocioso etc.), a maior parte das vezes investindo em ambas as frentes. Na primeira, Marx fala de aumento do mais-valor absoluto; na segunda, de aumento do mais-valor relativo. (...)
Foi cometido um crime original. O mais-valor foi roubado! Se a vítima, o trabalhador, não morreu (mas às vezes morre: acidentes de trabalho, suicídio, depressão, doenças profissionais), ficou mutilado, física e psiquicamente. Porque, na manufatura moderna:
[...] não só os trabalhos parciais específicos são distribuídos entre os diversos indivíduos, como o próprio indivíduo é dividido e transformado no motor automático de um trabalho parcial [...]. As potências intelectuais da produção, ampliando sua escala por um lado, desaparecem por muitos outros lados. O que os trabalhadores parciais perdem concentra-se defronte a eles no capital.[f]
A consequência é o que Marx já qualifica de “patologia industrial”. Com o aparecimento dos acionistas assalariados, essa patologia atinge a esquizofrenia. Despedaçado, bipartido entre assalariado e acionista, dividido contra si próprio, o trabalhador teria agora interesse, como acionista, em explorar-se e demitir-se, a si próprio, para aumentar a cotação de suas ações!”
[b] Karl Marx, O capital, Livro I (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), p. 250-1. (N. T.)
[c] O capital, Livro I (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), p. 270. (N. T.)
[d] Ibidem, p. 317. (N. T.)
[e] Ibidem, p. 246. (N. T.)
[f] Ibidem, p. 434-5. (N. T.)


“No Livro I, o mais-valor foi roubado. No Livro II, ele passou de mão em mão. No Livro III, chega a hora de dividir o butim, do “acerto”, nas palavras de Michel Audiard e Albert Simonin[j]. Livro da “produção capitalista considerada em sua totalidade”, o Livro III de O capital desperta o entusiasmo de Engels: “Esse livro está destinado a revolucionar definitivamente toda a economia política e fará um alvoroço enorme”. Porque “toda a economia política burguesa será demolida” e chega-se ao desfecho do enredo. Caminhando do abstrato ao concreto, do ciclo único de um capital imaginário ao movimento global de uma multiplicidade de capitais, do valor ao preço e ao lucro, do esqueleto do capital a seu sangue e sua carne, o retrato falado desse social killer tornou-se cada vez mais preciso. Ele aparece agora como um ser vivo, insaciável, perpetuamente sedento por novos lucros:
No Livro I, analisamos os diversos aspectos que apresenta o processo de produção capitalista em si, como atividade de produção imediata, e fizemos abstração de todos os efeitos secundários. Mas a vida do capital ultrapassa esse processo de produção imediata. No mundo real, o processo de circulação, que é o objeto do Livro II, vem completá-lo [...]. No Livro III, trata-se de descobrir e descrever as formas concretas que se originam do movimento do capital como um todo. É sob essas formas concretas que os capitais enfrentam em seu movimento real [...]. As formas do capital que vamos expor neste livro o aproximam progressivamente da forma com que ele se manifesta na sociedade, na superfície, pode-se dizer, na ação recíproca dos vários capitais na concorrência e na consciência ordinária dos próprios agentes de produção.[k]
Como forma transfigurada do mais-valor, o lucro está no âmago do processo global de produção capitalista. O mais-valor é apenas o lucro em potencial. Precisa realizar-se para se orientar em seguida, seja para o consumo, seja para a acumulação (ou o investimento). Os valores, medidos em tempo de trabalho, transformam-se em preço de produção quando as mercadorias deixam o processo de produção. Esses preços simultaneamente são e não são a mesma coisa que o valor, sua negação e sua plenitude. Igualmente, diz Marx, o lucro tanto é o mais-valor sob outra forma quanto algo distinto do mais-valor:
O lucro, tal como apresentado aqui, é a mesma coisa que mais-valor, mas simplesmente em uma forma mistificada que nasce necessariamente do modo de produção capitalista [...]. Como o preço da força de trabalho aparece em um dos polos em forma modificada de salário, o mais-valor aparece no polo oposto sob a forma modificada de lucro. [A forma em que] camuflam e apagam sua origem e o mistério de sua existência. [...] Quanto mais seguimos o processo da autoexpansão do capital, mais misteriosas parecem suas relações e menos se revela o segredo de sua organização interna. [...] O mais-valor transformado em lucro tornou-se irreconhecível.[l]
O encarregado da lavagem de dinheiro conclui sua missão com sucesso.
É esse o jogo de trapaça que fazem os economistas clássicos para explicar os diferentes rendimentos (renda, lucro e salário), dissimulando a origem comum. Para eles, a cada fator de produção corresponde um rendimento naturalmente legítimo e equitativo: ao capital, o lucro; à terra, a renda fundiária; ao trabalho, o salário. “Eis a fórmula trinitária que engloba todos os segredos do processo social de produção.” Capital, terra, trabalho! Ora, o capital “são os meios de produção monopolizados por uma parte da sociedade”, “personificados no capital”. A terra, “massa de matéria rude e bruta”, só produz renda se fecundada por certa quantidade de trabalho. Quanto ao terceiro termo da trindade, o “trabalho”, ele é um “simples fantasma” se considerado abstratamente como “troca de matéria com a natureza”, e não concretamente, historicamente, como atividade de produção em uma relação social de (propriedade) particular.
Da mesma forma que o capital, o trabalho assalariado e a propriedade fundiária são formas sociais historicamente determinadas, uma pelo trabalho, a outra pelo monopólio do globo terrestre, ambas correspondentes ao capital e pertencentes à mesma estrutura econômica da sociedade.[m]
Os agentes da produção têm uma imagem “falseada” da repartição da riqueza.
Para eles, não são apenas as diversas formas do valor que, sob a forma de renda, vão a diversos atores do processo social de produção; é o próprio valor que vem dessas fontes e serve de substância para essa renda.[n]
Na fórmula trinitária, o capital, a terra e o trabalho aparecem como “três fontes diferentes e autônomas” do interesse (em vez de lucro), da renda fundiária e do salário, seus respectivos e legítimos frutos. Na realidade os três provêm de uma única fonte, o trabalho, o único capaz de produzir mais do que gasta:
Para o capitalista, o capital é uma máquina que suga perpetuamente o sobretrabalho; para o proprietário fundiário, a terra é um imã perene que atrai a fração do mais-valor sugada pelo capital; enfim, o trabalho é a condição e o meio renovados em permanência, que permitem obter, sob o nome de salário, uma fração do valor criado pelo trabalho, logo, uma parte do produto social medido por essa fração do valor, isto é, o necessário à vida.[o]
O rateio entre lucro, renda e salário é o resultado de uma distribuição leonina, em que o capital dita sua lei ao trabalho. É ainda o mais-valor que se cinde entre o lucro do empresário (capitalista industrial) e o interesse do banqueiro (capitalista financeiro). (...)
Durante o processo de circulação, o capital muda continuamente o figurino: entra em cena como dinheiro (D), sai por um lado e volta pelo outro em forma de máquinas e matérias-primas (P) – ou capital constante – e salários – ou capital variável. Daí sai de novo e se reapresenta como produto, mercadorias (M), que por sua vez se metamorfoseiam no ato de venda, para reassumir a forma dinheiro. Com o detalhe de que, ao voltar a essa forma (D’), o dinheiro inicial (D) terá procriado. Ao longo de suas metamorfoses, o capital cresce. Acumula-se. (...)
A lógica do sistema e a pluralidade dos capitais englobam a possibilidade de que a circulação possa se distanciar da produção e de que o capital bancário possa se autonomizar em relação ao capital industrial. Desse fato pode nascer a ilusão do dinheiro que faz dinheiro, do dinheiro que fecunda a si próprio, sem passar pelo circuito da produção e da circulação. Essa é a ilusão do pequeno poupador ou do acionista que se deleitam com a ideia de um mais-valor de 15% ao ano na Bolsa (diante de um crescimento real inferior a 3%) ou com a ideia de um interesse garantido de mais de 5%, sem se perguntar qual prodígio fará proliferar o dinheiro adormecido. Ele não enxerga o ciclo completo do capital (D-P-M-D’), só o circuito (D-D’).


E se o circuito financeiro se entusiasmar, se o círculo D-D’ da circulação financeira girar mais depressa do que o círculo da produção global (D-P-M-D’) e se, além do mais, maravilhados com esse prodígio, acionistas e banqueiros anteciparem os ciclos futuros e acelerarem o movimento, então o sistema se tornará hidrocéfalo, a economia especulativa ou virtual se tornará mais importante do que a economia real. É a famosa bolha, que, como o sapo da fábula, acabará por explodir[p].
Nessas proezas do crédito, o fetichismo do dinheiro atinge seu cume. Surge como um “ser místico”, dotado de poder mágico e miraculoso: “todas as forças sociais produtivas parecem vir do capital e não do trabalho. Parecem jorrar de seu seio”[q]. Isso porque, na esfera da circulação, “as relações em que o valor foi originalmente produzido são totalmente postas nos bastidores”[r]. O processo real de produção, isto é, o conjunto do processo de produção imediata e do processo de circulação, “origina novas estruturas, em que o fio condutor das conexões e relações internas se perde cada vez mais, as relações de produção tornam-se autônomas umas em relação às outras, os elementos de valor ficam estagnados em formas independentes umas das outras”[s]. Desse modo, uma parte do lucro separa-se e parece advir não mais da exploração do trabalho assalariado, mas do trabalho do próprio capitalista. E o interesse do capital parece independer do trabalho assalariado do trabalhador e ter no capital sua origem autônoma.”
[j] Autores franceses de romances policiais. (N. T.)
[k] Karl Marx, O capital, Livro III (São Paulo, Boitempo, no prelo). Aqui em tradução livre. (N. T.)
[l] Idem. (N. T.)
[m] Idem. (N. T.)
[n] Idem. (N. T.)
[o] Idem. (N. T.)
[p] Alusão à fábula “O sapo que queria ser boi”, de La Fontaine. (N. T.)
 [q] Karl Marx, O capital, Livro III, cit. (N. T.)
[r] Idem. (N. T.)
[s] Idem. (N. T.)



“(...) Ricardo ainda podia acreditar sinceramente na imparcialidade e na fiabilidade informativa do mercado, se não em tempo real, pelo menos a longo prazo, a posteriori. Mas e enquanto se espera? Enquanto se espera, a cisão entre venda e compra continua, e a “disjunção do processo de produção imediato e do processo de circulação aumenta a possibilidade da crise”. Essa possibilidade resulta do fato de que as formas que o capital percorre no ciclo de suas metamorfoses (de dinheiro – D – a meios de produção – P –, de meios de produção a mercadorias – M –, de mercadorias a dinheiro – D’) “podem ser, e são, separadas”. Elas “não coincidem no tempo e no espaço”. A fortiori, com a globalização: o capitalista individual entende o salário como um custo de produção puro, uma vez que o consumidor compra produtos importados e que seus próprios produtos são vendidos em um mercado longínquo. É rompido o chamado círculo virtuoso entre produção e consumo, venda e compra.
A separação da venda e da compra diferencia a economia capitalista de uma economia de troca, em que “ninguém pode vender sem ser comprador” (e reciprocamente), em que a maior parte da produção é diretamente dirigida para a satisfação de necessidades imediatas. “Na produção mercantil”, por outro lado, “a produção imediata desaparece”. Não se produz mais em função de necessidades, mas de lucro – que não se importa com necessidades sociais, apenas com demanda solvente, pois, “se não existe venda, é a crise”.
Na produção mercantil, para realizar o mais-valor que lhe é incorporado, “a mercadoria deve necessariamente ser transformada em dinheiro, mas o dinheiro não deve ser necessária e imediatamente transformado em mercadorias”. É por isso que venda e compra podem se dissociar. Em sua primeira forma, “a crise é a metamorfose da própria mercadoria, a dissociação entre compra e venda”; em sua segunda forma, é função do dinheiro como meio de pagamento autonomizado, “onde o dinheiro atua em duas fases distintas e separadas no tempo, em duas funções distintas”[n], de simples equivalente geral entre mercadoria e de capital acumulado.
Essa autonomização do dinheiro prolonga-se na separação entre lucro de empresa e juros. Ela termina por:
Dar à forma do mais-valor uma existência autônoma, causando a esclerose dessa forma relativamente à sua substância. Uma parte do lucro, por oposição à outra, desliga-se completamente da relação capitalista enquanto tal e parece derivar não da exploração do trabalho assalariado, mas sim do trabalho do próprio capitalista. Por oposição, o interesse parece então ser independente quer do trabalho assalariado do operário, quer do trabalho do capitalista, e ter no capital a sua fonte própria, autônoma. Se primitivamente o capital aparecia na superfície da circulação, de fetiche capitalista, de valor criador de valor, ele reaparece aqui sob a forma de juros, a sua forma mais alienada e a mais característica.[o]
Esse prodígio dos juros, do dinheiro que parece fazer dinheiro sem percorrer o ciclo das metamorfoses, sem passar pelo processo de produção e de circulação, é o estágio supremo do fetichismo e da mistificação alimentada pelos economistas vulgares.”
[n] Karl Marx, Teorias da mais-valia, cit., p. 509-10. (N. T.)
[o] Idem, O capital, Livro III, cap. 48. (N. T.)