Editora: Expressão Popular
ISBN: 978-85-7743-120-5
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 256
Sinopse: Ver Parte
I
“A política é uma
dimensão da atividade humana. Desde que, com ou sem vontade de fazê-lo, os
homens vivem em sociedade, dependem da sociedade para nascer e sobreviver, não
há como ignorar a significação política que os comportamentos individuais inevitavelmente
assumem.
Tanto as ações
quanto as omissões dos indivíduos repercutem sobre as pessoas que os conhecem e
com as quais eles lidam. Por suas palavras como por seus silêncios, por seus
gestos ou por seus exemplos, por comando, sugestão, conselho ou oposição, querendo
ou não querendo, tendo ou não tendo consciência do que fazem, os indivíduos
influem uns sobre os outros, condicionam-se reciprocamente, moldam suas
respectivas atitudes em face das instituições vigentes, colaboram com os
movimentos tendentes a manter inalterada ou a modificar a estrutura
socioeconômica existente em um momento dado.”
“Depois de terem
reduzido os negros à condição de engraxates, eles concluem que os negros só servem
mesmo para engraxar sapatos.” (George Bernard Shaw)
“O sentido original
do apoliticismo é este: impedir que as classes e camadas da população
excluídas do exercício do poder tomem consciência das suas potencialidades
políticas, e queiram participar do controle da vida social. A ilusão contida na
ideia de uma atividade apolítica serve para escamotear ao exame da inteligência
dos governados uma série de problemas de cuja efetiva compreensão podem advir
dificuldades para os governantes.
Para melhor surtir
os seus efeitos, o apoliticismo vale-se da situação criada pela alienação.
Sob as condições de divisão da sociedade em classes, o trabalho humano se
dividiu e subdividiu em profissões e especializações limitadas, às quais os indivíduos
são virtualmente atrelados; com isso, criam-se, como dissemos,
atividades privadas do indivíduo que são, na prática, desprovidas de
consequências políticas. E, na própria esfera da atividade pública, criam-se
certas especializações das quais toda significação política parece ter
sido banida. Além disso, a própria atividade política, deixando de aparecer como
uma dimensão da atividade humana em geral, apresenta-se como uma especialização,
uma carreira, um ramo para especialistas. A perspectiva
acumpliciada com a alienação se serve desses dados históricos,
transformando-os em manifestações das características essenciais da atividade
humana em si, isto é, de uma mítica atividade humana sem condicionamento
histórico. Tal perspectiva tende sempre a excluir, a priori, a
possibilidade concreta de uma superação do trabalho parcelarizado, fragmentado,
com a conquista do homem total, quer dizer, de indivíduos livres,
dotados de qualidades humanas harmônicas, multiformes e desenvolvidas.”
“O apoliticismo,
em sua forma pura, não poderia ser amplamente adotado como ideologia das
classes dominantes. E isso por uma razão muito simples: o controle do Estado
nunca é diretamente exercido pelas classes dominantes em conjunto, ou sequer por
uma delas como um todo. Jamais é a burguesia toda quem exerce o poder e dirige
o Estado. É sempre um grupo representativo dela, uma parte, um punhado de
mandatários da classe. Outros grupos, outros indivíduos pertencentes à mesma
classe, e às vezes à mesma camada desta classe, ambicionam a condição de
mandantes.”
“A justa avaliação
da natureza e das dimensões dos problemas políticos exige uma visão de conjunto
dos mesmos problemas, isto é, um ponto de vista do qual a sociedade possa ser
enxergada como um todo. Este ponto de vista, naturalmente, é inacessível às
perspectivas deformadas pelo particularismo. A perspectiva de uma classe cujos
interesses básicos não se confundem com os interesses básicos da comunidade
exclui a possibilidade de vir o ponto de vista dessa classe a identificar-se de
maneira permanente com o autêntico ponto de vista da comunidade humana. Daí decorre
a impotência dos ideólogos da burguesia para pensarem por toda a humanidade na
consideração dos problemas políticos: a superação de uma visão empírica do status
atual da sociedade só é conseguida por eles através do recurso à
imaginação, ao sonho de uma comunidade utopicamente idealizada, o que resulta
afinal em uma falsa superação do empirismo.
A superação ao
mesmo tempo do empirismo e do utopismo, bem como a possibilidade de alcançar um
ponto de vista universalmente válido, estavam reservadas para uma classe que
pudesse vir a se libertar do particularismo da sua perspectiva de
classe, identificando-se, na prática, com a humanidade com um todo. Seria
preciso que a evolução social humana e o desenvolvimento das forças produtivas
dominadas pelo homem permitissem o aparecimento de uma classe que só pudesse se
libertar da exploração da propriedade particular suprimindo o próprio sistema
da propriedade particular. Seria preciso que se formasse um movimento social
destinado a abolir as classes; que, pela primeira vez na história, uma classe
de não proprietários pudesse dirigir uma revolução. E o capitalismo se
encarregou de criar as condições necessárias para isso, através do
extraordinário desenvolvimento das forças sociais produtivas, através da
concentração industrial, através da montagem de um sistema de produção que se
estende à sociedade inteira, através da socialização técnica do modo de produzir
da sociedade e através, sobretudo, da criação do proletariado moderno. Com o
proletariado moderno, no dizer de Marx e Engels, o capitalismo engendrara os
coveiros que o haveriam de enterrar (Manifesto
comunista).116
É evidente que,
enquanto perdurarem as condições de divisão da sociedade em classes, o
interesse da classe operária será um interesse particular, isto é, um interesse
que não se confunde desde·logo, imediatamente, com o interesse da humanidade
como um todo. Mas o fato de que a libertação do proletariado implique concretamente
em um movimento orientado para a libertação da humanidade como um todo já faz
da perspectiva da classe operária a primeira perspectiva ideológica a poder
antecipar aspectos essenciais do pensamento pós-ideológico e supraideológico.
“Com o ponto de
vista de classe do proletariado – escreve Lukács – chega-se a um ponto a partir
do qual a totalidade da sociedade se torna visível” (Histoire
et conscience de classe). Só uma classe cujo movimento de libertação
exige a supressão da própria divisão da sociedade em classes (e não a mera
queda da classe particular que detém o poder) é que, por estar ela realizando a
reunificação da humanidade, pode se identificar, até certo ponto, com o
mundo reunificado.”
115 O homem que
nasceu póstumo, Mário FERREIRA DOS SANTOS, ed. Livr. do Globo, Porto
Alegre.
116 Manifesto
comunista, MARX e ENGELS, ed. Vitória, Rio de Janeiro.
“Hegel já definira
a maneira dogmática de pensar, em um dos seus livros, explicando-a à luz dos
critérios dialéticos e racionalistas: “A maneira dogmática de pensar – escreveu
o filósofo alemão – no domínio do saber e no estudo da filosofia não é outra
coisa senão a opinião de acordo com a qual o verdadeiro consiste em uma
proposição que é um resultado fixo, ou, ainda, uma proposição que é imediatamente
sabida” (La
phénomenologie de l’esprit). No entanto, o próprio Hegel, que revelara
tão aguda sensibilidade dialética para a caracterização do dogmatismo, não pôde
impedir que o dogmatismo prejudicasse, na prática, alguns dos aspectos
essenciais do seu pensamento filosófico.
É preciso não
perder de vista o fato de que o dogmatismo não aparece como tal, isto é, como
um processo de traição à verdade, ante a consciência do eventual dogmático. O
dogmatismo não é incompatível com a boa-fé individual, a sinceridade subjetiva.
O caso particular
de Hegel pode ser esclarecedor, neste sentido. Ainda jovem, impressionado com a
ascensão revolucionária da burguesia francesa e com os fenômenos que viera a
conhecer em seus estudos de economia política e de história (Cf. Lukács em O jovem
Hegel), Hegel é levado a elaborar uma metodologia de direção
profundamente antidogmática, com base na qual se esforça por construir um vasto
e ambicioso sistema de explicação de todo o universo. Mais tarde, com o peso
dos anos – e, sobretudo, com a derrota de Napoleão e com a criação da Santa
Aliança – Hegel vai sofrendo uma alteração de perspectiva. Sua filosofia da
história se torna mais resignada: o presente já não lhe aparece como um começo
e sim como uma culminação. À filosofia já não cabe, como na época da Fenomenologia,
“reconhecer e saudar” a nova oclusão do espírito; ela já corresponde ao mocho
de Minerva, que só levanta voo quando as sombras da noite estão chegando. (Cf.
Lukács em El asalto a la razón).
Ninguém tem o
direito de simplificar o problema, dizendo, por exemplo, que o velho Hegel se
tenha acanalhado e vendido às forças sociais mais reacionárias do
seu tempo e do seu país. Uma análise simplista da sutil mudança de perspectiva
do genial pensador nos impediria inclusive de compreender com que vigor e
através de quantas mediações as pressões sociais alienadoras atuam sobre
a consciência dos indivíduos.
A perspectiva
marxista, em comparação com a perspectiva a que Hegel chegou, é socialmente
mais avançada e oferece um instrumental teórico mais eficiente para analisar e
combater a alienação do dogmatismo. Oferece o instrumental, mas não
oferece (e nem podia oferecer) uma garantia de que esse· instrumental será
empregado sempre da maneira mais apropriada.
“Por si só – já
escrevia Lenin – o reconhecimento do marxismo não exime ninguém dos erros” (A
doença infantil do ‘esquerdismo’ no comunismo).122
Quando se é Marx,
Engels, Lenin ou Gramsci,
os princípios e a metodologia do marxismo são utilizados de modo a limitar ao máximo,
dentro da medida do possível, o número de erros. Mas a experiência histórica
nos mostra que a mera adesão à perspectiva marxista não faz de todo marxista um
Marx, um Engels, um Lenin ou um Gramsci.
Não há nada de
estranhável, por conseguinte, no fato de que os revolucionários marxistas
tenham cometido erros. Se Marx, Engels, Lenin e Gramsci os cometeram, por que
não haveriam de cometê-los outros marxistas? E, em especial, por que não
haveriam de cometer erros revolucionários de formação teórica mais ou menos
improvisada para atender às exigências imediatas da prática? Ainda aqui,
recorremos a algumas citações de Lenin: “O proletariado, vocês sabem muito bem,
não está isento dos defeitos e das fraquezas da sociedade capitalista” (Pravda,
abril de 1919). “As classes trabalhadoras, oprimidas, animalizadas,
mantidas durante séculos num estado de miséria, ignorância e barbárie, não
podem levar a termo a revolução sem cometer erros” (Carta aos operários
americanos, agosto de 1918).
É claro, porém, que
o reconhecimento desta inevitabilidade genérica dos erros no movimento
operário não serve para justificar a priori qualquer dos erros
individualizados, concretos, cometidos no presente ou a serem cometidos no futuro,
e muito menos os erros porventura cometidos no passado.
Do erro,
considerando o conceito de erro em nível superior de abstração, pode-se dizer
hegelianamente que é “um momento necessário da verdade”; porém isso não tem
valor de sanção para este ou aquele erro tomados de per si.
Encontramos hoje
entre alguns marxistas a convicção de que os erros cometidos sob o estalinismo
não foram propriamente erros, porque eram inevitáveis, dadas as circunstâncias
em que se verificaram. É um entendimento deformado. Resulta de uma concepção
não dialética da história.
Se renunciamos à
crítica do passado, sob a alegação de que os acontecimentos do passado foram necessários,
e apresentamos como prova desta necessidade o fato mesmo de que eles
tenham ocorrido, estamos identificando erroneamente a necessidade dialética e
a fatalidade metafísica. As coisas acontecem porque o acontecer delas
corresponde a determinadas exigências e, por conseguinte, as coisas acontecem necessariamente.
Mas as coisas não acontecem tal como não podiam deixar de acontecer, isto
é, o modo de ocorrência delas não é predeterminado por nenhum mecanismo cego,
por nenhum destino implacável, como também não o é por forças inteiramente independentes
da vontade dos homens.
De resto, não nos é
lícito considerar o passado uma coisa ou uma realidade inumana: o
passado é o nosso passado, é a nossa história, integra a essência
daquilo que chegou a ser a nossa realidade atual. Renunciar a julgar o passado
é renunciar a julgar o presente, é assumir em face da realidade humana uma
posição ficticiamente neutra e falsamente não empenhada.
Estes marxistas que
acham conveniente procurar esquecer o estalinismo sem fazer-lhe a necessária
crítica, estes marxistas que dizem que os erros do estalinismo só deveriam ser
considerados erros dentro do contexto contemporâneo – estes marxistas que legalizam
os erros do estalinismo em função das dificuldades objetivas enfrentadas
nas décadas de 1930 e 1940 – veem-se sempre em situação melindrosa quando
precisam explicar porque o estalinismo não se institucionalizou no tempo em que
Lenin enfrentava dificuldades objetivas em nada inferiores àquelas com que
se defrontou Stalin.
A subestimação da
profundidade dos erros cometidos, a condenação atenuada das responsabilidades
pelas deformações e a excessivamente tranquila ostentação de uma boa
consciência marxista em face do estalinismo representam uma atitude de
conivência com o dogmatismo, conivência tanto mais grave quanto mais vivo ainda
se acha o dogmatismo em vigor no movimento marxista.
Em suas tremendas
consequências negativas, e como vício teórico e prático, o estalinismo não tem
absolvição possível.”
122 A doença
infantil do ‘esquerdismo’ no comunismo, LENIN, trad. Luiz Fernando Cardoso,
ed. Vitória, Rio de Janeiro.
“Para Marx e para
Engels a ditadura do proletariado não tinha nada de intrinsecamente
antidemocrática. Enquanto os blanquistas viam nas medidas democráticas
da Comuna a expressão dos erros e da fraqueza da sua direção, Marx e Engels
encaravam tais medidas como um saldo altamente positivo do movimento de 1871. E
Engels, na Introdução que escreveu para A guerra civil na França (de
Marx), por ocasião do 20° aniversário da Comuna de Paris, expressou claramente
este ponto de vista: “Ultimamente, as palavras ditadura do proletariado voltaram
a despertar sagrado terror ao filisteu social-democrata. Pois bem, senhores,
quereis saber que face tem essa ditadura, olhai para a Comuna de Paris: eis aí
a ditadura do proletariado!”125
Na revolução russa,
entretanto, o caráter democrático da ditadura do proletariado não pôde se
realizar como seria desejável. E, em face das exigências da segurança e da
preservação das conquistas revolucionárias, foram tomadas medidas particularmente
rigorosas contra as classes interessadas na contrarrevolução. (...)
A esta pergunta
responde afirmativamente Rodolfo Mondolfo em seu folheto Bolchevismo y
dictadura.126 Escreve Mondolfo: “O sistema bolchevista,
com a pretensão de saltar na Rússia as fases da evolução histórica
laboriosamente atravessada pelo mundo ocidental e de passar da sociedade feudal
diretamente para a sociedade socialista sem passar pela fase de desenvolvimento
capitalista, não fez outra coisa, na realidade, senão colocar o Estado no
lugar da burguesia, criando e desenvolvendo, com o sacrifício forçado
das massas trabalhadoras, um formidável capitalismo de Estado, muito mais duro
e inexorável do que o capitalismo privado”.
Parece-nos,
contudo, inaceitável a apreciação do professor Mondolfo. Seu conteúdo de classe
transparece claramente no fato de que ele se refira ao “capitalismo de Estado”
na União Soviética como “muito mais duro e inexorável” (e, em outra passagem,
como “mais áspero”) do que o “capitalismo privado”. Caberia indagar, aqui: “mais
duro”, “mais áspero”, para quem? Para a burguesia ou para as amplas massas
trabalhadoras? Pretenderia, por acaso, o professor Mondolfo, apologista do
refordismo moderado, fazer-nos crer que a industrialização na União Soviética
foi mais “dura” e mais “áspera” para as camadas mais populares e para os operários
em especial do que a industrialização levada a cabo na Inglaterra, por exemplo?
É certo que o povo
soviético pagou elevado preço pelo seu progresso material, sob o socialismo.
Mas ele pelo menos pagou por este progresso e o teve. E, no Ocidente, os
povos pagam mais caro por um progresso menor. E, quando um povo usufrui
genericamente de um padrão de vida elevado e das vantagens de maior
desenvolvimento econômico, não consegue manter a sua prosperidade senão às
custas dos povos explorados de países subdesenvolvidos (os Estados Unidos
da América do Norte, por exemplo).”
125 A guerra
civil em França, em Obras escolhidas de Marx e Engels, volume 1, ed.
Vitória, Rio de Janeiro.
126 Materialismo
histórico & bolchevismo y dictadura, Rodolfo MONDOLFO; ed. Nuevas,
Buenos Aires.
“O polonês
Kolakowski mostra que o burocrata que justifica procedimentos desumanos em
função da necessidade de apressar a construção do socialismo esquece-se,
na verdade, que o socialismo não se resume na mera realização de certas tarefas
econômicas, esquece-se que o socialismo (tal como o concebeu Marx) é a humanização
dos homens, e não leva em conta o fato de que as práticas de desumanidade acarretam
deformações em quem as sofre e em quem as pratica, retardando, por
conseguinte, o avanço para o socialismo.
Para a ética
revolucionária marxista, fins e meios acham-se organicamente ligados: os fins
não são indiferentes aos meios que conduzem a eles. A interpretação cínica da
máxima de que “os fins justificam os meios” é tão inaceitável quanto o
moralismo dos fariseus, que querem que a revolução se faça com “bons modos”, através
da pura persuasão, dos exemplos dignificantes, dos conselhos amenos e das
exortações sentimentaloides. A recusa do moralismo estreito não conduz
necessariamente ao cinismo. Mas o procedimento dos estalinistas, na prática, em
diversas circunstâncias, deixou-se orientar por uma concepção cínica,
superficial. E é esta visão cínica, deformada, imediatista, que podemos
encontrar em numerosos incidentes ocorridos sob Stalin e na maneira como foram solucionados,
com sério prejuízo para a superação da alienação da humanidade.”
“Enquanto a
humanidade como um todo não sabia como produzir mais e melhor, como multiplicar
a eficácia do trabalho humano, era compreensível que o atraso persistisse. Mas
era um atraso geral. Por que, agora, que o atraso não é mais um atraso geral e
inevitável, alguns países não conseguem sair dele, não conseguem superá-lo?
Por que os ensinamentos proporcionados pela experiência (diversificada, aliás)
dos países que se industrializaram e desenvolveram não são logo utilizados
pelos países subdesenvolvidos com resultados tranquilos e imediatos?
A resposta a esta
questão é menos complexa do que pode parecer. Na realidade, o
subdesenvolvimento – devemos dizê-lo francamente – só não desaparece com maior
rapidez porque tem os seus beneficiários.
Desde a revolução
comercial, desde os primeiros tempos da substituição do feudalismo pelo
capitalismo nos centros históricos, a história da humanidade registra um
tremendo aprofundamento da diferença de nível alcançado pela evolução
socioeconômica em determinados países em comparação com o atraso em que permaneceram
outros países historicamente marginalizados. E, quando se montou o mecanismo
espoliador do mercado capitalista mundial, os países historicamente
marginalizados foram integrados a um sistema que os avassalava, que
regulamentava e fixava as normas da sua exploração, em benefício dos
países capitalistas desenvolvidos.
São os interesses
do mercado mundial que estimulam a formação de monoculturas nos países
subdesenvolvidos, esforçam-se por manter tais países na condição de meros exportadores
de matérias-primas, estabelecem desde logo condições de comércio que excluem
toda e qualquer igualdade efetiva nas relações entre países
desenvolvidos e subdesenvolvidos e procuram acentuar cada vez
mais a dependência da economia dos países subdesenvolvidos no que se refere ao
mercado mundial.
Controlados
economicamente, mantidos em dependência econômica, com raio de ação muito
limitado para as suas elites dirigentes no campo das iniciativas econômicas,
não é de se estranhar que a própria história política dos países
subdesenvolvidos esteja cheia de acontecimentos que se apresentam, à primeira
vista, como verdadeiros epifenômenos, ecos de ocorrências verificadas nos países
capitalistas desenvolvidos e que afetaram o mercado mundial (Exemplo: o crack
de 1929 na Bolsa de Nova York e a revolução de 1930 no Brasil). Engolindo
as regiões subdesenvolvidas e assimilando-as, integrando-as a um mecanismo
espoliador (originalmente de caráter abertamente colonialista, depois assumindo
formas mais sutis) mantido em proveito de algumas nações capitalistas
desenvolvidas, o mercado mundial praticamente acabou com as histórias econômicas
particulares deste ou daquele país. “Não há mais verdadeiramente, no mundo
contemporâneo, história econômica deste ou daquele país, mas unicamente a de
toda a humanidade” (Caio Prado Júnior, História econômica do Brasil).133
(...)
O
subdesenvolvimento coloca o país em uma situação alienada. Não propriamente
por se tratar de uma situação de atraso, de miséria, mas por se tratar de uma
situação na qual a permanência no atraso e na miséria lhe é imposta por forças
interessadas, forças estranhas ao legítimo interesse nacional, que é o
interesse do povo – e especialmente das classes trabalhadoras – do país subdesenvolvido.
O povo do país
subdesenvolvido produz. Porém, forças que lhe são estranhas se apropriam
da produção, do fruto do seu trabalho. A atividade do país subdesenvolvido –
tal como a atividade do operário no interior de uma fábrica capitalista – não é
uma atividade em que ele se realize, é uma atividade não-livre, uma atividade
que se realiza em condições impostas por outrem. Tal como o produto do
trabalho do operário na fábrica do capitalista é apropriado pelo capitalista, o
produto do trabalho de um povo que vive em um país subdesenvolvido sofre
controle por parte do mercado capitalista internacional e é sangrado por
empresas monopolistas ou oligopolistas cuja sede se encontra fora do país.
Antigamente, a
exploração dos países subdesenvolvidos exigia o controle político direto por
parte das potências imperialistas: o sistema colonial típico montado pela
Grã-Bretanha não comportava, no século 19, a autonomia política (nem mesmo
relativa) dos povos colonizados. No nosso tempo, contudo, o colonialismo tradicional,
que utilizava sem máscaras a ocupação militar do território pilhado e impunha
governos títeres, cedeu lugar, em geral, ao neocolonialismo. O neocolonialismo
utiliza formas de exploração mais sutis do que as do colonialismo tradicional: prefere
a coação econômica ao desembarque de tropa. Também a ingerência política na
vida dos povos subdesenvolvidos por parte das potências do neocolonialismo é
uma ingerência menos aberta e franca do que a ação dos antigos colonizadores do
velho estilo. O neocolonialismo está para os velhos métodos de
exploração colonial, neste particular, assim como o capitalismo está para os velhos
métodos de exploração feudal ou escravista do trabalhador: a técnica da
exploração evoluiu, tornou-se mais complexa, mais refinada, mais insidiosa.”
133 História econômica
do Brasil, Caio PRADO JR., ed. Brasiliense, São Paulo.
“Para o moralismo,
basta substituir alguns homens por outros homens (pertencentes, de resto, à
mesma classe social dos anteriores) e os problemas nacionais tenderão
automaticamente para se solucionar. Não será preciso mexer na estrutura da
produção, não será preciso bulir no estatuto de propriedade, não será preciso enfrentar
obstáculos institucionais internos realmente sérios e nem será preciso lutar
contra os aproveitadores externos do nosso subdesenvolvimento. Uma expressão
coerente do moralismo, como é o professor Eugênio Gudin – que, aliás, já foi
ministro da Fazenda e, na sua gestão, não resolveu nenhum dos nossos maiores
problemas econômicos – sustentará mesmo que o Brasil não é explorado pelos Estados
Unidos e que é o Brasil, ao contrário, quem explora os norte-americanos,
fazendo com que estes paguem pelo nosso café um preço superior ao justo (O Globo,
1/7/1963).141
141 O Globo, edição
de 1/7/1963.
“No exame dos
problemas relativos à alienação política e especialmente no exame dos
problemas relativos à alienação no interior do movimento socialista,
poderíamos ter procurado estudar mais detidamente as deformações surgidas na
teoria marxista do Estado, a interpretação imediatista de certas ideias de Lenin,
a questão das relações entre a direção do Partido e a direção do Estado, depois
da tomada do poder (questão discutida por Fidel Castro no discurso pronunciado
há tempos contra o sectarismo de Aníbal Escalante, em Cuba).145
Para a teoria
marxista, o Estado, como instituição, consubstancia – em forma ilusória – o
ideal humano de comunidade. Este ideal humano de uma vida comunitária (de
integração, sem diluição, do indivíduo na coletividade) serve de base a uma mistificação
na sociedade classista: o Estado – forma ilusória da comunidade – é controlado
por interesses particulares e sanciona a exploração do homem pelo homem. Tal caráter
de classe do Estado não desaparece, desde logo, sob o socialismo: novas
forças sociais passam a controlar o aparelho do Estado, mas o Estado ainda não
encarna concretamente a autêntica comunidade humana e continua a ser um corpo
estranho a esta autêntica comunidade dos homens. Torna-se necessária, sob o
socialismo, uma enérgica iniciativa das forças revolucionárias no sentido de
forçar a abertura da administração aos mais amplos setores das camadas
populares, no sentido de promover a participação cada vez mais ativa do povo nos
processos de que resultam as decisões estatais. Para conseguir diminuir o
abismo cavado pela divisão da sociedade em classes, o abismo que separa a vida
popular cotidiana das misteriosas esferas da administração pública, pode ser
útil uma retomada da problemática de Rousseau, do Contrato
social, uma reavaliação de algumas profundas intuições libertárias do
individualismo democrático-burguês, nos moldes da reavaliação que vem sendo empreendida
pelo filósofo marxista italiano Galvano della Volpe.146”
145 A revolução
e o Estado, Fidel CASTRO, trad. Eduardo Sucupira Filho, ed. Brasiliense, São
Paulo.
146 Rousseau e
Marx, Galvano della VOLPE, ed. Riuniti, Itália.
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