quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Marxismo e alienação: contribuição para um estudo do conceito marxista de alienação (Parte IV), de Leandro Konder

Editora: Expressão Popular

ISBN: 978-85-7743-120-5

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 256

Sinopse: Ver Parte I

 

“A política é uma dimensão da atividade humana. Desde que, com ou sem vontade de fazê-lo, os homens vivem em sociedade, dependem da sociedade para nascer e sobreviver, não há como ignorar a significação política que os comportamentos individuais inevitavelmente assumem.

Tanto as ações quanto as omissões dos indivíduos repercutem sobre as pessoas que os conhecem e com as quais eles lidam. Por suas palavras como por seus silêncios, por seus gestos ou por seus exemplos, por comando, sugestão, conselho ou oposição, querendo ou não querendo, tendo ou não tendo consciência do que fazem, os indivíduos influem uns sobre os outros, condicionam-se reciprocamente, moldam suas respectivas atitudes em face das instituições vigentes, colaboram com os movimentos tendentes a manter inalterada ou a modificar a estrutura socioeconômica existente em um momento dado.”

 

 

“Depois de terem reduzido os negros à condição de engraxates, eles concluem que os negros só servem mesmo para engraxar sapatos.” (George Bernard Shaw)

 

 

“O sentido original do apoliticismo é este: impedir que as classes e camadas da população excluídas do exercício do poder tomem consciência das suas potencialidades políticas, e queiram participar do controle da vida social. A ilusão contida na ideia de uma atividade apolítica serve para escamotear ao exame da inteligência dos governados uma série de problemas de cuja efetiva compreensão podem advir dificuldades para os governantes.

Para melhor surtir os seus efeitos, o apoliticismo vale-se da situação criada pela alienação. Sob as condições de divisão da sociedade em classes, o trabalho humano se dividiu e subdividiu em profissões e especializações limitadas, às quais os indivíduos são virtualmente atrelados; com isso, criam-se, como dissemos, atividades privadas do indivíduo que são, na prática, desprovidas de consequências políticas. E, na própria esfera da atividade pública, criam-se certas especializações das quais toda significação política parece ter sido banida. Além disso, a própria atividade política, deixando de aparecer como uma dimensão da atividade humana em geral, apresenta-se como uma especialização, uma carreira, um ramo para especialistas. A perspectiva acumpliciada com a alienação se serve desses dados históricos, transformando-os em manifestações das características essenciais da atividade humana em si, isto é, de uma mítica atividade humana sem condicionamento histórico. Tal perspectiva tende sempre a excluir, a priori, a possibilidade concreta de uma superação do trabalho parcelarizado, fragmentado, com a conquista do homem total, quer dizer, de indivíduos livres, dotados de qualidades humanas harmônicas, multiformes e desenvolvidas.”

 

 

“O apoliticismo, em sua forma pura, não poderia ser amplamente adotado como ideologia das classes dominantes. E isso por uma razão muito simples: o controle do Estado nunca é diretamente exercido pelas classes dominantes em conjunto, ou sequer por uma delas como um todo. Jamais é a burguesia toda quem exerce o poder e dirige o Estado. É sempre um grupo representativo dela, uma parte, um punhado de mandatários da classe. Outros grupos, outros indivíduos pertencentes à mesma classe, e às vezes à mesma camada desta classe, ambicionam a condição de mandantes.”

 

 

“A justa avaliação da natureza e das dimensões dos problemas políticos exige uma visão de conjunto dos mesmos problemas, isto é, um ponto de vista do qual a sociedade possa ser enxergada como um todo. Este ponto de vista, naturalmente, é inacessível às perspectivas deformadas pelo particularismo. A perspectiva de uma classe cujos interesses básicos não se confundem com os interesses básicos da comunidade exclui a possibilidade de vir o ponto de vista dessa classe a identificar-se de maneira permanente com o autêntico ponto de vista da comunidade humana. Daí decorre a impotência dos ideólogos da burguesia para pensarem por toda a humanidade na consideração dos problemas políticos: a superação de uma visão empírica do status atual da sociedade só é conseguida por eles através do recurso à imaginação, ao sonho de uma comunidade utopicamente idealizada, o que resulta afinal em uma falsa superação do empirismo.

A superação ao mesmo tempo do empirismo e do utopismo, bem como a possibilidade de alcançar um ponto de vista universalmente válido, estavam reservadas para uma classe que pudesse vir a se libertar do particularismo da sua perspectiva de classe, identificando-se, na prática, com a humanidade com um todo. Seria preciso que a evolução social humana e o desenvolvimento das forças produtivas dominadas pelo homem permitissem o aparecimento de uma classe que só pudesse se libertar da exploração da propriedade particular suprimindo o próprio sistema da propriedade particular. Seria preciso que se formasse um movimento social destinado a abolir as classes; que, pela primeira vez na história, uma classe de não proprietários pudesse dirigir uma revolução. E o capitalismo se encarregou de criar as condições necessárias para isso, através do extraordinário desenvolvimento das forças sociais produtivas, através da concentração industrial, através da montagem de um sistema de produção que se estende à sociedade inteira, através da socialização técnica do modo de produzir da sociedade e através, sobretudo, da criação do proletariado moderno. Com o proletariado moderno, no dizer de Marx e Engels, o capitalismo engendrara os coveiros que o haveriam de enterrar (Manifesto comunista).116

É evidente que, enquanto perdurarem as condições de divisão da sociedade em classes, o interesse da classe operária será um interesse particular, isto é, um interesse que não se confunde desde·logo, imediatamente, com o interesse da humanidade como um todo. Mas o fato de que a libertação do proletariado implique concretamente em um movimento orientado para a libertação da humanidade como um todo já faz da perspectiva da classe operária a primeira perspectiva ideológica a poder antecipar aspectos essenciais do pensamento pós-ideológico e supraideológico.

“Com o ponto de vista de classe do proletariado – escreve Lukács – chega-se a um ponto a partir do qual a totalidade da sociedade se torna visível” (Histoire et conscience de classe). Só uma classe cujo movimento de libertação exige a supressão da própria divisão da sociedade em classes (e não a mera queda da classe particular que detém o poder) é que, por estar ela realizando a reunificação da humanidade, pode se identificar, até certo ponto, com o mundo reunificado.”

115 O homem que nasceu póstumo, Mário FERREIRA DOS SANTOS, ed. Livr. do Globo, Porto Alegre.

116 Manifesto comunista, MARX e ENGELS, ed. Vitória, Rio de Janeiro.

 

 

“Hegel já definira a maneira dogmática de pensar, em um dos seus livros, explicando-a à luz dos critérios dialéticos e racionalistas: “A maneira dogmática de pensar – escreveu o filósofo alemão – no domínio do saber e no estudo da filosofia não é outra coisa senão a opinião de acordo com a qual o verdadeiro consiste em uma proposição que é um resultado fixo, ou, ainda, uma proposição que é imediatamente sabida” (La phénomenologie de l’esprit). No entanto, o próprio Hegel, que revelara tão aguda sensibilidade dialética para a caracterização do dogmatismo, não pôde impedir que o dogmatismo prejudicasse, na prática, alguns dos aspectos essenciais do seu pensamento filosófico.

É preciso não perder de vista o fato de que o dogmatismo não aparece como tal, isto é, como um processo de traição à verdade, ante a consciência do eventual dogmático. O dogmatismo não é incompatível com a boa-fé individual, a sinceridade subjetiva.

O caso particular de Hegel pode ser esclarecedor, neste sentido. Ainda jovem, impressionado com a ascensão revolucionária da burguesia francesa e com os fenômenos que viera a conhecer em seus estudos de economia política e de história (Cf. Lukács em O jovem Hegel), Hegel é levado a elaborar uma metodologia de direção profundamente antidogmática, com base na qual se esforça por construir um vasto e ambicioso sistema de explicação de todo o universo. Mais tarde, com o peso dos anos – e, sobretudo, com a derrota de Napoleão e com a criação da Santa Aliança – Hegel vai sofrendo uma alteração de perspectiva. Sua filosofia da história se torna mais resignada: o presente já não lhe aparece como um começo e sim como uma culminação. À filosofia já não cabe, como na época da Fenomenologia, “reconhecer e saudar” a nova oclusão do espírito; ela já corresponde ao mocho de Minerva, que só levanta voo quando as sombras da noite estão chegando. (Cf. Lukács em El asalto a la razón).

Ninguém tem o direito de simplificar o problema, dizendo, por exemplo, que o velho Hegel se tenha acanalhado e vendido às forças sociais mais reacionárias do seu tempo e do seu país. Uma análise simplista da sutil mudança de perspectiva do genial pensador nos impediria inclusive de compreender com que vigor e através de quantas mediações as pressões sociais alienadoras atuam sobre a consciência dos indivíduos.

A perspectiva marxista, em comparação com a perspectiva a que Hegel chegou, é socialmente mais avançada e oferece um instrumental teórico mais eficiente para analisar e combater a alienação do dogmatismo. Oferece o instrumental, mas não oferece (e nem podia oferecer) uma garantia de que esse· instrumental será empregado sempre da maneira mais apropriada.

“Por si só – já escrevia Lenin – o reconhecimento do marxismo não exime ninguém dos erros” (A doença infantil do ‘esquerdismo’ no comunismo).122

Quando se é Marx, Engels, Lenin ou Gramsci, os princípios e a metodologia do marxismo são utilizados de modo a limitar ao máximo, dentro da medida do possível, o número de erros. Mas a experiência histórica nos mostra que a mera adesão à perspectiva marxista não faz de todo marxista um Marx, um Engels, um Lenin ou um Gramsci.

Não há nada de estranhável, por conseguinte, no fato de que os revolucionários marxistas tenham cometido erros. Se Marx, Engels, Lenin e Gramsci os cometeram, por que não haveriam de cometê-los outros marxistas? E, em especial, por que não haveriam de cometer erros revolucionários de formação teórica mais ou menos improvisada para atender às exigências imediatas da prática? Ainda aqui, recorremos a algumas citações de Lenin: “O proletariado, vocês sabem muito bem, não está isento dos defeitos e das fraquezas da sociedade capitalista” (Pravda, abril de 1919). “As classes trabalhadoras, oprimidas, animalizadas, mantidas durante séculos num estado de miséria, ignorância e barbárie, não podem levar a termo a revolução sem cometer erros” (Carta aos operários americanos, agosto de 1918).

É claro, porém, que o reconhecimento desta inevitabilidade genérica dos erros no movimento operário não serve para justificar a priori qualquer dos erros individualizados, concretos, cometidos no presente ou a serem cometidos no futuro, e muito menos os erros porventura cometidos no passado.

Do erro, considerando o conceito de erro em nível superior de abstração, pode-se dizer hegelianamente que é “um momento necessário da verdade”; porém isso não tem valor de sanção para este ou aquele erro tomados de per si.

Encontramos hoje entre alguns marxistas a convicção de que os erros cometidos sob o estalinismo não foram propriamente erros, porque eram inevitáveis, dadas as circunstâncias em que se verificaram. É um entendimento deformado. Resulta de uma concepção não dialética da história.

Se renunciamos à crítica do passado, sob a alegação de que os acontecimentos do passado foram necessários, e apresentamos como prova desta necessidade o fato mesmo de que eles tenham ocorrido, estamos identificando erroneamente a necessidade dialética e a fatalidade metafísica. As coisas acontecem porque o acontecer delas corresponde a determinadas exigências e, por conseguinte, as coisas acontecem necessariamente. Mas as coisas não acontecem tal como não podiam deixar de acontecer, isto é, o modo de ocorrência delas não é predeterminado por nenhum mecanismo cego, por nenhum destino implacável, como também não o é por forças inteiramente independentes da vontade dos homens.

De resto, não nos é lícito considerar o passado uma coisa ou uma realidade inumana: o passado é o nosso passado, é a nossa história, integra a essência daquilo que chegou a ser a nossa realidade atual. Renunciar a julgar o passado é renunciar a julgar o presente, é assumir em face da realidade humana uma posição ficticiamente neutra e falsamente não empenhada.

Estes marxistas que acham conveniente procurar esquecer o estalinismo sem fazer-lhe a necessária crítica, estes marxistas que dizem que os erros do estalinismo só deveriam ser considerados erros dentro do contexto contemporâneo – estes marxistas que legalizam os erros do estalinismo em função das dificuldades objetivas enfrentadas nas décadas de 1930 e 1940 – veem-se sempre em situação melindrosa quando precisam explicar porque o estalinismo não se institucionalizou no tempo em que Lenin enfrentava dificuldades objetivas em nada inferiores àquelas com que se defrontou Stalin.

A subestimação da profundidade dos erros cometidos, a condenação atenuada das responsabilidades pelas deformações e a excessivamente tranquila ostentação de uma boa consciência marxista em face do estalinismo representam uma atitude de conivência com o dogmatismo, conivência tanto mais grave quanto mais vivo ainda se acha o dogmatismo em vigor no movimento marxista.

Em suas tremendas consequências negativas, e como vício teórico e prático, o estalinismo não tem absolvição possível.”

122 A doença infantil do ‘esquerdismo’ no comunismo, LENIN, trad. Luiz Fernando Cardoso, ed. Vitória, Rio de Janeiro.

 

 

“Para Marx e para Engels a ditadura do proletariado não tinha nada de intrinsecamente antidemocrática. Enquanto os blanquistas viam nas medidas democráticas da Comuna a expressão dos erros e da fraqueza da sua direção, Marx e Engels encaravam tais medidas como um saldo altamente positivo do movimento de 1871. E Engels, na Introdução que escreveu para A guerra civil na França (de Marx), por ocasião do 20° aniversário da Comuna de Paris, expressou claramente este ponto de vista: “Ultimamente, as palavras ditadura do proletariado voltaram a despertar sagrado terror ao filisteu social-democrata. Pois bem, senhores, quereis saber que face tem essa ditadura, olhai para a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado!”125

Na revolução russa, entretanto, o caráter democrático da ditadura do proletariado não pôde se realizar como seria desejável. E, em face das exigências da segurança e da preservação das conquistas revolucionárias, foram tomadas medidas particularmente rigorosas contra as classes interessadas na contrarrevolução. (...)

A esta pergunta responde afirmativamente Rodolfo Mondolfo em seu folheto Bolchevismo y dictadura.126 Escreve Mondolfo: “O sistema bolchevista, com a pretensão de saltar na Rússia as fases da evolução histórica laboriosamente atravessada pelo mundo ocidental e de passar da sociedade feudal diretamente para a sociedade socialista sem passar pela fase de desenvolvimento capitalista, não fez outra coisa, na realidade, senão colocar o Estado no lugar da burguesia, criando e desenvolvendo, com o sacrifício forçado das massas trabalhadoras, um formidável capitalismo de Estado, muito mais duro e inexorável do que o capitalismo privado”.

Parece-nos, contudo, inaceitável a apreciação do professor Mondolfo. Seu conteúdo de classe transparece claramente no fato de que ele se refira ao “capitalismo de Estado” na União Soviética como “muito mais duro e inexorável” (e, em outra passagem, como “mais áspero”) do que o “capitalismo privado”. Caberia indagar, aqui: “mais duro”, “mais áspero”, para quem? Para a burguesia ou para as amplas massas trabalhadoras? Pretenderia, por acaso, o professor Mondolfo, apologista do refordismo moderado, fazer-nos crer que a industrialização na União Soviética foi mais “dura” e mais “áspera” para as camadas mais populares e para os operários em especial do que a industrialização levada a cabo na Inglaterra, por exemplo?

É certo que o povo soviético pagou elevado preço pelo seu progresso material, sob o socialismo. Mas ele pelo menos pagou por este progresso e o teve. E, no Ocidente, os povos pagam mais caro por um progresso menor. E, quando um povo usufrui genericamente de um padrão de vida elevado e das vantagens de maior desenvolvimento econômico, não consegue manter a sua prosperidade senão às custas dos povos explorados de países subdesenvolvidos (os Estados Unidos da América do Norte, por exemplo).”

125 A guerra civil em França, em Obras escolhidas de Marx e Engels, volume 1, ed. Vitória, Rio de Janeiro.

126 Materialismo histórico & bolchevismo y dictadura, Rodolfo MONDOLFO; ed. Nuevas, Buenos Aires.

 

 

“O polonês Kolakowski mostra que o burocrata que justifica procedimentos desumanos em função da necessidade de apressar a construção do socialismo esquece-se, na verdade, que o socialismo não se resume na mera realização de certas tarefas econômicas, esquece-se que o socialismo (tal como o concebeu Marx) é a humanização dos homens, e não leva em conta o fato de que as práticas de desumanidade acarretam deformações em quem as sofre e em quem as pratica, retardando, por conseguinte, o avanço para o socialismo.

Para a ética revolucionária marxista, fins e meios acham-se organicamente ligados: os fins não são indiferentes aos meios que conduzem a eles. A interpretação cínica da máxima de que “os fins justificam os meios” é tão inaceitável quanto o moralismo dos fariseus, que querem que a revolução se faça com “bons modos”, através da pura persuasão, dos exemplos dignificantes, dos conselhos amenos e das exortações sentimentaloides. A recusa do moralismo estreito não conduz necessariamente ao cinismo. Mas o procedimento dos estalinistas, na prática, em diversas circunstâncias, deixou-se orientar por uma concepção cínica, superficial. E é esta visão cínica, deformada, imediatista, que podemos encontrar em numerosos incidentes ocorridos sob Stalin e na maneira como foram solucionados, com sério prejuízo para a superação da alienação da humanidade.”

 

 

“Enquanto a humanidade como um todo não sabia como produzir mais e melhor, como multiplicar a eficácia do trabalho humano, era compreensível que o atraso persistisse. Mas era um atraso geral. Por que, agora, que o atraso não é mais um atraso geral e inevitável, alguns países não conseguem sair dele, não conseguem superá-lo? Por que os ensinamentos proporcionados pela experiência (diversificada, aliás) dos países que se industrializaram e desenvolveram não são logo utilizados pelos países subdesenvolvidos com resultados tranquilos e imediatos?

A resposta a esta questão é menos complexa do que pode parecer. Na realidade, o subdesenvolvimento – devemos dizê-lo francamente – só não desaparece com maior rapidez porque tem os seus beneficiários.

Desde a revolução comercial, desde os primeiros tempos da substituição do feudalismo pelo capitalismo nos centros históricos, a história da humanidade registra um tremendo aprofundamento da diferença de nível alcançado pela evolução socioeconômica em determinados países em comparação com o atraso em que permaneceram outros países historicamente marginalizados. E, quando se montou o mecanismo espoliador do mercado capitalista mundial, os países historicamente marginalizados foram integrados a um sistema que os avassalava, que regulamentava e fixava as normas da sua exploração, em benefício dos países capitalistas desenvolvidos.

São os interesses do mercado mundial que estimulam a formação de monoculturas nos países subdesenvolvidos, esforçam-se por manter tais países na condição de meros exportadores de matérias-primas, estabelecem desde logo condições de comércio que excluem toda e qualquer igualdade efetiva nas relações entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos e procuram acentuar cada vez mais a dependência da economia dos países subdesenvolvidos no que se refere ao mercado mundial.

Controlados economicamente, mantidos em dependência econômica, com raio de ação muito limitado para as suas elites dirigentes no campo das iniciativas econômicas, não é de se estranhar que a própria história política dos países subdesenvolvidos esteja cheia de acontecimentos que se apresentam, à primeira vista, como verdadeiros epifenômenos, ecos de ocorrências verificadas nos países capitalistas desenvolvidos e que afetaram o mercado mundial (Exemplo: o crack de 1929 na Bolsa de Nova York e a revolução de 1930 no Brasil). Engolindo as regiões subdesenvolvidas e assimilando-as, integrando-as a um mecanismo espoliador (originalmente de caráter abertamente colonialista, depois assumindo formas mais sutis) mantido em proveito de algumas nações capitalistas desenvolvidas, o mercado mundial praticamente acabou com as histórias econômicas particulares deste ou daquele país. “Não há mais verdadeiramente, no mundo contemporâneo, história econômica deste ou daquele país, mas unicamente a de toda a humanidade” (Caio Prado Júnior, História econômica do Brasil).133 (...)

O subdesenvolvimento coloca o país em uma situação alienada. Não propriamente por se tratar de uma situação de atraso, de miséria, mas por se tratar de uma situação na qual a permanência no atraso e na miséria lhe é imposta por forças interessadas, forças estranhas ao legítimo interesse nacional, que é o interesse do povo – e especialmente das classes trabalhadoras – do país subdesenvolvido.

O povo do país subdesenvolvido produz. Porém, forças que lhe são estranhas se apropriam da produção, do fruto do seu trabalho. A atividade do país subdesenvolvido – tal como a atividade do operário no interior de uma fábrica capitalista – não é uma atividade em que ele se realize, é uma atividade não-livre, uma atividade que se realiza em condições impostas por outrem. Tal como o produto do trabalho do operário na fábrica do capitalista é apropriado pelo capitalista, o produto do trabalho de um povo que vive em um país subdesenvolvido sofre controle por parte do mercado capitalista internacional e é sangrado por empresas monopolistas ou oligopolistas cuja sede se encontra fora do país.

Antigamente, a exploração dos países subdesenvolvidos exigia o controle político direto por parte das potências imperialistas: o sistema colonial típico montado pela Grã-Bretanha não comportava, no século 19, a autonomia política (nem mesmo relativa) dos povos colonizados. No nosso tempo, contudo, o colonialismo tradicional, que utilizava sem máscaras a ocupação militar do território pilhado e impunha governos títeres, cedeu lugar, em geral, ao neocolonialismo. O neocolonialismo utiliza formas de exploração mais sutis do que as do colonialismo tradicional: prefere a coação econômica ao desembarque de tropa. Também a ingerência política na vida dos povos subdesenvolvidos por parte das potências do neocolonialismo é uma ingerência menos aberta e franca do que a ação dos antigos colonizadores do velho estilo. O neocolonialismo está para os velhos métodos de exploração colonial, neste particular, assim como o capitalismo está para os velhos métodos de exploração feudal ou escravista do trabalhador: a técnica da exploração evoluiu, tornou-se mais complexa, mais refinada, mais insidiosa.”

133 História econômica do Brasil, Caio PRADO JR., ed. Brasiliense, São Paulo.

 

 

“Para o moralismo, basta substituir alguns homens por outros homens (pertencentes, de resto, à mesma classe social dos anteriores) e os problemas nacionais tenderão automaticamente para se solucionar. Não será preciso mexer na estrutura da produção, não será preciso bulir no estatuto de propriedade, não será preciso enfrentar obstáculos institucionais internos realmente sérios e nem será preciso lutar contra os aproveitadores externos do nosso subdesenvolvimento. Uma expressão coerente do moralismo, como é o professor Eugênio Gudin – que, aliás, já foi ministro da Fazenda e, na sua gestão, não resolveu nenhum dos nossos maiores problemas econômicos – sustentará mesmo que o Brasil não é explorado pelos Estados Unidos e que é o Brasil, ao contrário, quem explora os norte-americanos, fazendo com que estes paguem pelo nosso café um preço superior ao justo (O Globo, 1/7/1963).141

141 O Globo, edição de 1/7/1963.

 

 

“No exame dos problemas relativos à alienação política e especialmente no exame dos problemas relativos à alienação no interior do movimento socialista, poderíamos ter procurado estudar mais detidamente as deformações surgidas na teoria marxista do Estado, a interpretação imediatista de certas ideias de Lenin, a questão das relações entre a direção do Partido e a direção do Estado, depois da tomada do poder (questão discutida por Fidel Castro no discurso pronunciado há tempos contra o sectarismo de Aníbal Escalante, em Cuba).145

Para a teoria marxista, o Estado, como instituição, consubstancia – em forma ilusória – o ideal humano de comunidade. Este ideal humano de uma vida comunitária (de integração, sem diluição, do indivíduo na coletividade) serve de base a uma mistificação na sociedade classista: o Estado – forma ilusória da comunidade – é controlado por interesses particulares e sanciona a exploração do homem pelo homem. Tal caráter de classe do Estado não desaparece, desde logo, sob o socialismo: novas forças sociais passam a controlar o aparelho do Estado, mas o Estado ainda não encarna concretamente a autêntica comunidade humana e continua a ser um corpo estranho a esta autêntica comunidade dos homens. Torna-se necessária, sob o socialismo, uma enérgica iniciativa das forças revolucionárias no sentido de forçar a abertura da administração aos mais amplos setores das camadas populares, no sentido de promover a participação cada vez mais ativa do povo nos processos de que resultam as decisões estatais. Para conseguir diminuir o abismo cavado pela divisão da sociedade em classes, o abismo que separa a vida popular cotidiana das misteriosas esferas da administração pública, pode ser útil uma retomada da problemática de Rousseau, do Contrato social, uma reavaliação de algumas profundas intuições libertárias do individualismo democrático-burguês, nos moldes da reavaliação que vem sendo empreendida pelo filósofo marxista italiano Galvano della Volpe.146

145 A revolução e o Estado, Fidel CASTRO, trad. Eduardo Sucupira Filho, ed. Brasiliense, São Paulo.

146 Rousseau e Marx, Galvano della VOLPE, ed. Riuniti, Itália.

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